O BEIJO DO RIO
ABR 2022
OLÁ, TAGGER Olá, tagger O
AVISO DE GATILHO O livro deste mês contém cenas com menções a suicídio e relatos de traumas psicológicos, abusos sexuais e LGBTQIA+fobia. Se você estiver precisando de ajuda, entre em contato com o CVV (Centro de Valorização da Vida) pelo 188 ou acessando www.cvv.org.br.
livro que você recebe neste mês é o primeiro romance de Stefano Volp, um dos escritores brasileiros mais prestigiados do momento. Colunista da Folha de S. Paulo, ilustrador, elogiado por publicações como a Rolling Stone e nomes como Emicida, Volp é um jovem de muitos predicados, um artista múltiplo, característica que se reflete em sua escrita. O beijo do rio é um projeto que tomou corpo na pandemia, pensado originalmente para ser roteiro de uma série, conta Volp em entrevista à TAG.De fato, o livro é muito visual: gera imagens fortes o tempo inteiro, colocando no centro da narrativa a investigação de um suicídio duvidoso. Para esta edição da revista, apresentamos um apanhado da literatura de suspense brasileira — dos cânones aos menos conhecidos. Também apontamos dicas de histórias que giram em torno de mistérios, crimes e mortes, para quem quiser adicionar ao seu rol de leituras mais obras envolventes e viciantes. “É difícil parar de ler”, aliás, foi a frase mais repetida pelas pessoas que avaliaram O beijo do rio, e esse é o principal ingrediente do primeiro thriller psicológico que a TAG Inéditos envia em 2022. Boa leitura!
ABRIL 2022 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200
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QUEM FAZ
RAFAELA PECHANSKY
JÚLIA CORRÊA
LIZIANE KUGLAND
ANTÔNIO AUGUSTO
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PAULA HENTGES
LAÍS FONSECA
LUANA PILLMANN
PÂMELA MAIDANA
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Designer
Estagiária de Design
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Impressão Impressos Portão
Capa Stefano Volp
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Por que ler o livro
O livro do mês
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sumário
Experiência do mês
Entrevista com o autor Para ir além
Próximo mês
JORNADA DE LEITURA
riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima de O beijo do rio colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!
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4 EXPERIÊNCIA DO MÊS
Vamos lá? Inicie o livro e leia até a página 44 O livro começou intenso, e esse áudio deixaria qualquer pessoa de cabelo em pé. Será que Daniel encontrou alguma coisa?
Marque a cada parte concluída
Leia até a página 75 Chegamos a Água Doce, e os suspeitos não param de aparecer. Seria o companheiro de peça do Romeu o responsável por sua morte? Leia até a página 154 — Parabéns, você chegou à terceira parte! O sobrinho de Daniel parece ter algo a esconder. Mas será que ele e o tio não têm mais nada em comum? Leia até a página 209 Os últimos acontecimentos foram eletrizantes. Como Daniel vai seguir a investigação agora? Leia até a página 289 Calma! Estamos quase terminando... O que você acha que Daniel vai descobrir com Jonas? Comente no app suas percepções sobre o livro.
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O beijo do rio pode ter terminado, mas a experiência não!
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EXPERIÊNCIA DO MÊS
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projeto gráfico
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Stefano Volp também produz a capa de seus próprios livros, e não foi diferente com O beijo do rio. Para esta edição exclusiva da TAG, ele conta que analisou projetos anteriores do clube e buscou referências em uma pasta secreta que mantém no Pinterest. Essa pesquisa, aliás, é uma parte importante de seu trabalho gráfico, podendo levar mais tempo do que a própria execução. Além de remeter ao elemento “água”, sugerido pelo título, Volp fez uso de tons frios e quase bucólicos na capa, pois acredita que a história do protagonista, Daniel, pede isso: “É sobre frieza, margem, passado, sombras e vazio”. O autor, que trabalhou com design gráfico em agências de publicidade antes de se dedicar totalmente à escrita, acredita que uma boa capa tem importância na medida em que pode oferecer uma “prévia” de sensações que o leitor terá durante a leitura. “Às vezes observo nas livrarias o quanto as pessoas passeiam pelas capas até tocar em um livro. Acho magnífico esse encontro.”
Para o mês de abril, elaboramos um mimo para aqueles associados que gostam de decorar a casa com artigos literários. A placa de MDF que acompanha o kit é colorida e tem o tamanho ideal para caber na sua estante ou até para ser dada de presente para alguém especial. Os itens foram desenvolvidos pelo time da TAG e homenageiam grandes nomes da literatura mundial. Que tal postar no app a foto do seu cantinho com a plaquinha, com a hashtag #bibliotecatag?
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O BEIJO DO RIO
“O sucesso de Volp não é uma coincidência. Ele escancara fragilidades e faz os leitores se identificarem.” Rolling Stone
“Stefano Volp é uma dessas descobertas felizes que o ambiente tão desolador que pode ser a rede social me trouxe nos tempos de pandemia, quando eu colocava em dia minhas leituras.” Emicida
“Stefano Volp sabe como expor o desalinho individual propositalmente por meio da literatura a fim de uma conexão coletiva.” Revista Claudia
POR QUE LER O LIVRO O quão fundo podemos mergulhar sem nos afogarmos? Em O beijo do rio, Stefano Volp, autor de Homens pretos (não) choram, nos leva às profundezas das mentiras e segredos de Água Doce, bairro de Ubiratã, litoral sul do Rio de Janeiro. Nesse romance policial, acompanhamos Daniel, um homem marcado por traumas de infância que tenta resolver a morte de seu melhor amigo, Romeu. Mas, para isso, ele precisará enfrentar seus demônios do passado.
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As águas turvas do passado FERNANDA SILVA E SOUSA*
Em sua estreia como romancista, Stefano Volp nos conduz pelos traumas e desejos de um protagonista que, assim como tantos jovens LGBTQIA+, cresceu com o peso do fundamentalismo religioso em suas costas
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Fernanda Silva e Sousa é bacharela e licenciada em Letras (USP), doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), professora, tradutora, revisora de textos e crítica literária. Atualmente, desenvolve uma tese de doutorado a respeito dos diários de Lima Barreto e de Carolina Maria de Jesus.
ma das expressões que marcam três romances – O olho mais azul (1970), Jazz (1992) e Paraíso (1997) — da escritora afroestadunidense Toni Morrison é “cá entre nós”, quando seus narradores, adentrando uma zona da vida negra que parece ainda indizível e invisível, aproximam-se do leitor como quem vai sussurrar segredos e silêncios que vão conduzir narrativas marcadas por um gesto de recusa quanto a oferecer explicações que tornem a experiência das pessoas negras mais compreensível, palatável e transparente, construindo, assim, personagens insondáveis e poderosamente vulneráveis. Fugitivo de um lugar “lotado de sombras e silêncios”, Daniel, protagonista de O beijo do rio, romance de estreia de Stefano Volp, autor do aclamado Homens pretos (não) choram, nos leva a mergulhar, quase em um fôlego só, nas profundezas das águas represadas de um homem negro bissexual que tinha “vontade de derramar as lágrimas que haviam secado dentro de si” e nos “segredos escondidos sob águas turvas” de um bairro chamado Água Doce, parte do município de Ubiratã, no Rio de Janeiro. É nos mistérios e nas forças da água que, cá entre nós, as comportas do passado de Daniel se abrem e inundam as páginas do romance, e segredos e silêncios se tornam, então, verbo.
O LIVRO DO MÊS
Nascido em Água Doce, um reduto conservador e fundamentalista onde passou a infância e a adolescência sob a égide da Igreja das Cinco Virgens e de seus fiéis, especialmente do Apóstolo, o principal líder, Daniel muda-se — ou melhor, foge — para a cidade de São Paulo, onde estuda Jornalismo e se torna repórter investigativo de uma reconhecida revista. É então, solitário na “floresta de concreto e aço” — como Mano Brown chama a cidade no rap “Negro drama” —, que Daniel tenta escoar as águas turvas do passado para longe do seu presente e sair do fundo de uma “cisterna” — e não de um “armário” — onde morou por muito tempo. Entretanto, a notícia do suicídio de Romeu, “seu único amigo na vida” e paixão da infância e adolescência em Água Doce, irrompe como uma correnteza que o arrasta de volta para o passado, para lembranças que tentava deixar para trás em “gavetas perdidas” que escondiam “pensamentos proibidos”, como o que sentia por Romeu. Este, ao atuar como Romeu numa versão gay de Romeu e Julieta, de Shakespeare, na inauguração do primeiro teatro de Ubiratã, escandalizando os religiosos da cidade, teria, segundo apurações policiais e laudos médicos, se suicidado durante a encenação ao ingerir veneno no último ato da peça. Procurado por Jéssica, então companheira de Romeu, que não acredita no suicídio, Daniel, agora adulto, é provocado a mergulhar nas águas de Água Doce, nas mesmas águas onde foi forçosamente batizado quando criança e “limpo” do que o deixava “imundo”, para investigar a morte de Romeu, em uma investigação que se torna também um rito de passagem para o corpo do amigo amado. Porém, apesar de experiente repórter investigativo, competente em apurar e contar histórias alheias, Daniel desta vez vai precisar investigar a si mesmo e escavar o próprio passado, num reencontro com
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o seu menino interior, com o “Danielzinho” que morreu no rio Iberê quando foi batizado e que passou a ser atormentado por vozes, alucinações e “cacos de memórias vis transformadas em assombros silenciados”. Em sua ida a Água Doce ao lado de Jéssica, acompanhamos ao longo de 61 capítulos e quatro partes — “Receio”, “Água Doce”, “Angústia” e “Mergulho” — o retorno de Daniel, o filho desviado e não o pródigo, à sua terra natal, revendo — e desafiando —, mais de dez anos depois, sua família e o Apóstolo, além de entrar em contato com suspeitos do que parecia um assassinato. Com ajuda de Sky, uma hacker “preta, gorda, com grandes olhos”, e de Jonas, uma figura negra misteriosa que, tal qual Exu, abre caminhos e provoca mudanças, Daniel abala a quietude do rio Iberê ao investigar a morte de Romeu, trazendo para a margem silêncios de décadas e podres segredos. Numa narrativa cheia de suspense, ele descobre que não se trata apenas de ajudar Romeu a descansar em paz, mas também de encontrar a própria paz e cura nas lembranças das águas que encharcavam os olhos da criança e do adolescente que foi impedido de ser, das carícias e beijos escondidos e com gosto de descoberta de dois “adolescentes fragilizados compartilhando a amizade um do outro”. Nesse sentido, Stefano Volp, em sua estreia como romancista, nos conduz, com coragem, suspense e delicadeza, ao âmago de dilemas, traumas e desejos que atravessam a vida de tantas crianças e jovens LGBTQIA+ que crescem com o peso do fundamentalismo religioso em suas costas, levando-nos a interrogar quantos amores e descobertas não vividas ficam pelo caminho no nosso país ou só podem existir em “águas rasas”. Não à toa, é nas mesmas águas que o mataram que Daniel busca aprender a navegar e parece encontrar as respostas que anseia, pois é onde afundamos que também podemos aprender a flutuar e sentir, enfim, o beijo do rio.
ENTREVISTA
“FOI UM PROCESSO VISCERAL, DESCONFORTÁVEL E ANGUSTIANTE” SOPHIA MAIA*
Stefano Volp conta como foi a concepção de O beijo do rio, avalia as representações de minorias em thrillers e revela as suas referências literárias
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Sophia Maia é estudante de Jornalismo na UFRGS e estagiária de Experiência da TAG.
m uma narrativa que envolve seus personagens com histórias do presente e do passado, o jovem escritor brasileiro Stefano Volp, de 31 anos, nos apresenta, com O beijo do rio, uma pequena cidade, um mistério e vários segredos. Tudo isso tendo como um dos principais personagens Daniel, um jornalista negro e LGBTQIA+ que, por assim existir, mobiliza um enredo envolvente, atravessado por questões raciais e sexuais. Antes de O beijo do rio, Volp já havia lançado livros como Homens pretos (não) choram, composto por uma reunião de crônicas escritas durante a pandemia, que contou com boa recepção crítica. Fundou também a editora Escureceu, voltada à literatura escrita por pessoas negras. Recentemente, ele passou a integrar o quadro de roteiristas da Netflix Brasil. Sua ligação com o cinema e a televisão, aliás, é notória. Não por acaso, na entrevista concedida à TAG, ele conta que a ideia inicial era que O beijo do rio fosse uma série. A seguir, confira a conversa completa.
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12 ENTREVISTA
O autor do mês, Stefano Volp. Victor Vieira
Como você se sente em ter um livro enviado em primeira mão pela TAG? Radiante! O beijo do rio é minha estreia no gênero thriller psicológico e eu não poderia começar de uma forma melhor. A oportunidade de ter uma história lida por tantos assinantes traz muita responsabilidade e ansiedade! Haja terapia! Qual foi a sua inspiração e como foi o processo de escrita desse novo livro? A pandemia impactou de alguma forma o seu trabalho? Sempre quis desenvolver uma história de suspense porque é meu gênero favorito. Cresci lendo Agatha Christie e Sidney Sheldon. Depois, fui descobrindo as subcamadas do noir e, assim, descobrindo o que mais me atraía. O beijo do rio era um projeto de série que nunca tomava forma. Em quarentena, na pandemia, eu resolvi transformar o episódio piloto em um livro. Para ser sincero, foi um processo visceral, desconfortável e angustiante. Mas há muito prazer nisso também. Terminei em menos de um mês. A quarentena “ajudou”.
ENTREVISTA
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O seu romance tem elementos que são familiares para quem cresceu sendo LGBTQIA+ em cidades do interior. Quais foram as suas referências para incluir essas questões na trama? Acho inclusive que esses elementos não se restringem ao interior, mas se refletem em qualquer lugar dominado pelo conservadorismo. Minhas referências foram as histórias de amigos e um pouco da minha história também. Sinto que é necessário que as pessoas falem sobre os problemas psicológicos por que essas pessoas podem passar por conta do conservadorismo, da hipocrisia e da corrupção.
"[...] precisamos de personagens negros ocupando o lugar de quem 'salva'."
Uma personagem que me marcou muito foi a delegada Mariana Nero. Por que você escolheu apresentá-la mais ao final da história? No começo, queria contar uma história de investigação sem a trilha da polícia. Mas, em um determinado momento, a necessidade dessa personagem surgiu. Ela nunca esteve programada em meus rascunhos. A história pediu e eu não hesitei. Principalmente porque precisamos de personagens negros ocupando o lugar de quem “salva”. Você constrói personagens negros que ocupam lugares (ainda, infelizmente) incomuns nesse tipo de narrativa: nos thrillers, as pessoas boas geralmente são brancas e as pessoas racializadas não aparecem ou então protagonizam papéis de sofrimento. Como você avalia os atravessamentos raciais em tramas de suspense de um modo geral? É exatamente isso. As pessoas falam que as coisas estão mudando e que personagens negros estão tendo destaque hoje em dia. Eu acho insuficiente. O que costumo ver entre esses personagens na indústria do entretenimento são arcos pouco desenvolvidos ou estereotipados, a não ser que a história seja escrita por uma pessoa negra. Há também outra subversão importante. O beijo do rio é protagonizado por um homem negro. Nas tramas de suspense, costumamos ver homens imbatíveis, heróis com corpo padrão, violentos
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MINHA ESTANTE O primeiro livro que eu li: Nunca vou saber. Não tenho memória de não saber ler. Aprendi a ler com 3 anos de idade. O livro que estou lendo: Copo vazio, de Natalia Timerman O livro que mudou a minha vida: Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon O livro que eu gostaria de ter escrito: Harry Potter e o enigma do príncipe, de J. K. Rowling O último livro que me fez rir: Quinze dias, de Vitor Martins O último livro que me fez chorar: O avesso da pele, de Jeferson Tenório O livro que eu dou de presente: Ei, você!, de Dapo Adeola O livro que eu não consegui terminar: The Underground Railroad, de Colson Whitehead
e insuperáveis. Daniel é frágil, vomita, tem alucinações, chora, foge desses padrões. Sinto que talvez o propósito maior desse livro seja discutir o tema da masculinidade negra. Como autor, me sinto responsável por redesenhar as histórias que vamos consumir daqui pra frente. O seu primeiro livro, Homens pretos (não) choram, ganhou uma nova edição toda especial com prefácio escrito por Jeferson Tenório. Me parece que isso vai muito ao encontro do que você busca na sua editora, a Escureceu: disseminar e criar um espaço na literatura de e para as pessoas negras. Pode contar como você se sentiu ao saber que seu livro seria prefaciado por um autor negro e ganhador do Jabuti? Ter a colaboração do Jeferson Tenório em Homens pretos (não) choram é de uma honra imensa. O avesso da pele, livro do autor, é o livro mais importante que li em 2021. Nunca achei que esse encontro pudesse acontecer. Sou grato ao autor e à editora HarperCollins por proporcionar para o meu livro a edição com que eu sempre sonhei.
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A grande literatura de suspense brasileira ANDRÉ CÁCERES*
Tramas do gênero no país se distanciam dos clássicos estrangeiros, exibindo detetives mais intuitivos que dedutivos e pendor para a impunidade
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André Cáceres é editor da Sesi-SP Editora, autor de Nebulosa (Patuá, 2021) e escreve na imprensa sobre literatura.
beijo do rio retrata a jornada de Daniel, jornalista radicado em São Paulo que se vê tragado pelos traumas do passado ao investigar a morte de um amigo de infância em sua terra natal, o fictício e sinistro vilarejo de Água Doce. Com esse romance, o escritor capixaba Stefano Volp se insere em uma longa tradição: a da literatura brasileira policial, de suspense ou de mistério. O folhetim O mistério (1920), escrito a oito mãos pelos imortais da ABL Medeiros e Albuquerque, Afrânio Peixoto, Coelho Neto e Viriato Corrêa, é tido como o pioneiro do gênero, mas é difícil precisar um marco inicial. Há diversos precursores, como Joaquim Maria Carneiro Vilela, autor de A emparedada da rua Nova (1886), clássico folhetinesco ambientado no Recife. O pesquisador Flávio Moreira da Costa, que organizou em 2005 a antologia Crime feito em casa: contos policiais brasileiros, lista "O enfermeiro" (1896), de Machado de Assis, "Mágoa que rala" (1919–20), de Lima Barreto, "A aventura de Rosendo Moura" (1919), de João do Rio, e "O crime" (1894), de Olavo Bilac, como obras protopoliciais. O professor Robert Moses Pechman, em Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista (2002), traça um paralelo entre o influente Os mistérios de Paris (1842–43), do francês Eugène Sue, e folhetins do Brasil como
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Os mistérios do Brasil (1847), A família Morel (1851), Misterios del Plata (1852), Os mistérios da roça (1861), Os mistérios do Recife (1876), Os mistérios da Tijuca (1882) e, por fim, Mistérios do Rio (1924), de Benjamim Costallat. No Brasil e em demais países, a ascensão da literatura policial se seguiu à urbanização por uma série de fatores, como o advento do anonimato (com o crescimento populacional, o criminoso pode se mesclar à multidão) e do crime como fato jurídico (antes da modernidade, infringir as leis era atentar contra a coroa ou contra Deus; após o século XIX, o criminoso não é mais pecador ou imoral, mas um inimigo público que rompe o pacto social firmado com seus semelhantes). A pesquisadora Sandra Reimão, em amplo artigo sobre o tema, observa um boom tardio de romances noir durante a ditadura militar, talvez uma reação literária à truculência do período. São exemplos: A região submersa (1978), de Tabajara Ruas; Malditos paulistas (1980), de Marcos Rey, Veias e vinhos (1981), de Miguel Jorge, e A grande arte (1983), de Rubem Fonseca. Fonseca, aliás, é um divisor de águas, tendo inspirado Bola da vez (1993), de Muniz Sodré, Acqua toffana (1994), de Patrícia Melo, Não foi o vento que a levou (1996), de Luís Henrique Dias Tavares, O assassinato da rua Maranhão (1998), de Daniel Krasucki, e BR 163 (2001), de Tony Bellotto. Mas talvez o detetive ficcional brasileiro mais relevante seja Espinosa, personagem recorrente de Luiz Alfredo Garcia-Roza e uma espécie de elo entre a máquina pensante das obras estrangeiras — de Sherlock Holmes e Hercule Poirot, de Arthur Conan Doyle e Agatha Christie, ao paródico Isidro Parodi, de Honorio Bustos Domecq, pseudônimo adotado pela dupla argentina Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares — e os protagonistas nacionais, mais intuitivos do que dedutivos — caso de Tonico Arzão, que mistura razão e misticismo em Quem matou Pacífico? (1969), de Maria Alice Barroso, e do Cabo Turíbeo, de O mistério do fiscal dos canos (1982) e O assassinato do casal
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de velhos (1985), de Glauco Rodrigues Corrêa — ou típicos malandros — como Raul, de Marcos Rey, e Ed Mort, de Luis Fernando Verissimo. O escritor e pesquisador Braulio Tavares, que organizou em 2021 a antologia Crimes impossíveis, reunindo contos clássicos de crimes de quarto fechado — quando os casos investigados parecem a princípio insolúveis —, vê na nossa literatura policial um pendor para a impunidade: “No Brasil não vejo muito futuro para o romance detetivesco, dedutivo, de crimes sofisticadamente concebidos e executados, e de detetives capazes de decifrar esses enigmas”, disse em entrevista à TAG. “Nossa tendência maior é para o romance de crime, não de detecção. O romance de violência social, de violência passional, de violência institucional. No Brasil deve haver muitos escritores na linha de Dashiell Hammett e de Patricia Highsmith, e poucos seguidores de Hercule Poirot e Sherlock Holmes.”
PISTAS PRECIOSAS Pedimos a alguns escritores que dessem dicas para quem pretende começar a trilhar o caminho da literatura de mistério. Marcelo Ferroni, autor de Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam (2014), adverte: “Vale a pena fazer uma pesquisa, que pode ser com leituras ou entrevistas, para dar consistência ao pano de fundo. O investigador pode ser um escritor, um dentista, um antiquário. O crime pode ocorrer durante uma corrida de cavalos, entre uma família poderosa. O assassino pode ser um colecionador de selos. Se você colocar realidade nos detalhes, vai dar mais credibilidade à história”.
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"Se o leitor não se importa com o personagem, não sentirá tensão, apreensão ou medo quando ele estiver correndo risco."
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O realismo das personagens também foi ressaltado por Cláudia Lemes, autora de Quando os mortos falam (2021): “Minha dica é focar sempre nos personagens, que devem ser tão realistas que o leitor terá a sensação de conhecê-los. Se o leitor não se importa com o personagem, não sentirá tensão, apreensão ou medo quando ele estiver correndo risco. ‘Importar-se’ nem sempre significa que o leitor irá gostar do personagem, mas que sentirá certa atração por ele(a), a ponto de estar envolvido emocionalmente com sua jornada”. Já Duda Falcão, vencedor do prêmio ABERST em narrativa curta de suspense ou policial, orienta: “É importante conhecer o gênero. Comece por personagens como Auguste Dupin, de Edgar Allan Poe, Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, e Sam Spade, de Dashiell Hammett. Observe as diferenças entre os tipos de detetives e como lidam com os casos que estão investigando. A partir dessas particularidades, podemos verificar que o próprio conceito de literatura policial se expande a ponto de podermos falar em outras nomenclaturas, como ficção de detetive, hard-boiled e ficção de crime. Ao perceber as diferentes possibilidades do gênero, você pode elaborar com mais consciência a história que deseja contar”. Para Stefano Volp, o importante é a construção do personagem principal e seu envolvimento com o objeto de investigação: “Apesar da trama importar, um bom suspense precisa ter um bom protagonista. Como leitor, pouco me importo com a trilha investigativa se não sinto de que forma ele está sendo afetado com a narrativa contada. Se você conseguir amarrá-lo emocionalmente ao crime, será sempre melhor. A vulnerabilidade do protagonista é importante da primeira à última linha. Crie uma pessoa real, com um passado interessante e um futuro duvidoso”.
PARA IR ALÉM
LEITURAS
RECOMEN
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DADAS
Objetos cortantes Gillian Flynn Assim como na obra de Volp, o romance de estreia de Gillian Flynn tem como protagonista não uma detetive, mas uma repórter. Vivendo em uma cidade grande, ela deve retornar à terra natal e encarar os traumas do passado enquanto investiga mortes misteriosas. O caso Morel Rubem Fonseca Primeiro romance de Rubem Fonseca, O caso Morel (1973) é uma trama de várias camadas: acusado de feminicídio, o protagonista escreve a própria história, que acaba despertando o interesse de um ex-policial por investigá-la. Realidade, ficção e investigação se entrelaçam — como na vida real. O silêncio da chuva Luiz Alfredo Garcia-Roza Estreia de Garcia-Roza na ficção, O silêncio da chuva apresenta Espinosa, um policial melancólico e desencantado, tentando sobreviver à inépcia e à corrupção da própria corporação enquanto investiga a misteriosa morte do executivo de uma mineradora. O matador Patrícia Melo Expoente da literatura noir contemporânea, Patrícia Melo tem em seu segundo romance, O matador, de 1995, a síntese do que buscaria em sua carreira: investigar a sordidez humana sem se preocupar tanto em elaborar um quebra-cabeças a ser decifrado. É a isso que seu livro, sobre um assassino profissional, aspira. O talentoso Ripley Patricia Highsmith Se a literatura policial brasileira tem no malandro e no criminoso impune um de seus principais temas, o romance mais célebre da norte-americana Patricia Highsmith, O talentoso Ripley, traz uma figura que poderia ser um bom protagonista nacional, com seus golpes, sua aptidão para o improviso e sua capacidade de enganar as autoridades.
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vem aí
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Nova ficção histórica na área. O livro do mês é sobre uma poção mágica feita por uma boticária para libertar mulheres de homens que lhes fizeram mal. A partir desse mote, acompanhamos duas personagens separadas pela história, uma em 1971 e outra na Londres do século XVIII.
Para quem gosta de: ficção histórica, tramas feministas, enredos envolventes
Que tal um thriller vira-páginas? O livro do mês mostra que ninguém é o que parece. Nesse que é o debut de uma autora bestseller do New York Times, conhecemos uma jovem grávida que, ao frequentar aulas pré-natais, torna-se amiga de uma mulher inconsequente que abalará a sua rotina. Para quem gosta de: thrillers, leituras vira-páginas, grandes reviravoltas
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“Nós precisamos ter a máxima lucidez possível sobre os seres humanos, porque ainda somos a única esperança uns dos outros.” – JAMES BALDWIN