A PINTORA DE HENNA
JAN 2022
Olá, tagger Olá, tagger V
ocê já sentiu, ao descobrir a obra de um autor, como se estivesse começando uma nova amizade? A ligação foi imediata — você adorou conhecer as histórias daquela pessoa e passou a se inteirar de todas as novidades vindas dela. Pois é, reside aí boa parte da magia proporcionada pela leitura. Nessa relação, nós, da TAG, frequentemente nos sentimos como aquele amigo que apresenta um conhecido ao outro, na expectativa de que essa rede de afinidades se amplie cada vez mais. Começamos o ano, aliás, com tal missão sendo renovada. E, de imediato, queremos lhe apresentar nossa amiga da vez. Trata-se de Alka Joshi, escritora indiana radicada nos Estados Unidos, que fez a sua estreia literária em 2020, aos 62 anos de idade, precisamente com o livro que você recebe este mês. A pintora de henna é fruto de uma verdadeira imersão em suas origens familiares e nas dinâmicas sociais de sua Índia natal. A seguir, você confere uma série de conteúdos que preparamos para apresentá-la devidamente a você, na expectativa de que tenham uma amizade duradoura. Conforme revela em entrevista presente nesta edição, Alka Joshi está animada em ter seu livro publicado no Brasil e acredita que os leitores daqui vão se identificar com diversos aspectos da cultura indiana. Além dos conteúdos, esperamos que você aprecie o novo formato de nossa revista. Mais integrada com cada kit, ela conta agora com seções inéditas — na Experiência do mês, sugerimos um guia para que sua jornada de leitura seja ainda mais proveitosa; na Por que ler o livro, destacamos a recepção crítica e outras qualidades da obra que chega às suas mãos. Boa leitura!
JAN 2022 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200
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QUEM FAZ
RAFAELA PECHANSKY
JÚLIA CORRÊA
Publisher
Editora
LIZIANE KUGLAND
ANTÔNIO AUGUSTO
PAULA HENTGES
Revisora
Revisor
Designer
LAÍS FONSECA
Designer
PÂMELA MAIDANA
LUANA PILLMANN
GABRIELA BASSO
Estagiária de Editorial
Estagiária de Design
Estagiária de Design
Impressão Impressos Portão
Contexto histórico
Por que ler o livro
O livro do mês
24 22 18 14
8 6 4 11
sumário
Experiência do mês
Entrevista com a autora
Para ir além
Imersão
Próximo mês
6 EXPERIÊNCIA DO MÊS
OUVIR PLAYLIST
vamos ler A pintora de henna? C
riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify.
Marque a cada parte concluída
O primeiro passo você já deu, agora é só terminar de ler a revista. :)
Leia até a página 177 Parabéns, você concluiu a segunda parte do livro! Para conseguir um lugar ao sol, Lakshmi precisa lidar com muitos jogos de poder. Conte suas percepções no aplicativo!
Vamos lá? Inicie o livro e leia até a página 87 Já deu para perceber que Lakshmi e Radha têm temperamentos bem diferentes e muitos desafios pela frente. Que tal comentar no aplicativo suas impressões sobre as personagens? Não esqueça de marcar a página em que você está.
Leia até a página 214 Não sei você, mas nós fomos pegos de surpresa pelos últimos acontecimentos e ficamos curiosos para saber o que Radha tem a revelar. Vamos descobrir como essa história termina?
Leia até a página 128 Terminamos a primeira parte do livro! Parece que a relação entre as irmãs não está fluindo tão bem. Você acha que Lakshmi foi injusta com Radha?
Leia até a página 334 Um brinde aos finais que possibilitam recomeços! Comente o que você achou do desfecho no aplicativo e não esqueça de avaliar o livro.
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EXPERIÊNCIA DO MÊS
projeto gráfico No livro da Alka Joshi, as pinturas de Lakshmi fazem muito mais do que ornar os corpos de suas clientes — elas contam histórias pessoais, exploram referências culturais, e cada desenho tem um significado especial. Por essa razão, nosso time de Design desenvolveu o projeto deste mês buscando construir também uma narrativa simbólica. A ilustração da capa foi criada pela artista Flavia Amaral: mandalas, formas orgânicas, flores, figos, bocas e olhos remetem ao feminino e a elementos importantes da narrativa e das pinturas de Lakshmi. O fundo azul e os desenhos em finas linhas douradas simbolizam a elegância das tatuagens de henna, com o acabamento em verniz representando o relevo da pintura com henna na pele. O rosa, por sua vez, representa a cidade de Jaipur, cenário do livro. Para a tipografia, optamos por uma fonte elegante, mas com formas orgânicas que harmonizassem com a fluidez da ilustração de Flavia (@flamaral).
mimo Ideal para organizar as tarefas do ano que começa, o mimo de janeiro é um planner, item sempre pedido pelos associados e que, nesta edição, celebra a diversidade. Intitulado Vozes plurais, inclui espaços para o planejamento pessoal e conteúdos sobre expressões literárias as mais variadas, com referências que vão da produção indígena à LGBTQIA+. As ilustrações são de Sophia Andreazza (@sophiandreazza).
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A pintora de henna pode ter terminado, mas a experiência não!
Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.
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A pintora de henna
a Joshi A pintora de
"A pintora de henna é um vislumbre maravilhoso na cultura da Índia nos anos 1950. [...] A prosa de Joshi é rítmica e sedutora." Jessica Bates, BookPage
"Me cativou desde o primeiro capítulo até a última página." Reese Witherspoon
"É um romance de estreia prazeroso e divertido sobre um tema importante — como balancear família e ambição pessoal, que permite aos leitores escapar para uma fantasia repleta de prazeres sensoriais." San Francisco Chronicle
POR QUE LER O LIVRO Best-seller do New York Times, esse livro é inspirado nas vivências familiares de Alka Joshi. Por meio de uma prosa envolvente, somos transportados aos anos 1950 e conduzidos em uma instigante viagem pela cidade rosa de Jaipur, na Índia, onde acompanhamos as experiências da protagonista Lakshmi, sua busca por independência e a complexidade do sistema de castas do país.
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O santuário íntimo de Alka Joshi DÉBORA SANDER*
A autora se debruça sobre elementos estruturantes da sociedade indiana, expostos nas sutilezas das interações entre os personagens "Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia" LIEV TOLSTÓI ATENÇÃO! O terceiro parágrafo traz conteúdo sensível para spoilerfóbicos
Débora Sander é jornalista formada pela UFRGS e cursa pós-graduação em Direitos Humanos na PUCRS. Passou por projetos como o Fronteiras do Pensamento e a Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Hoje, colabora regularmente com a Arquipélago Editorial e com a revista da TAG Inéditos.
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egure com cuidado o livro que acaba de receber. Vire cada página como quem folheia o tesouro íntimo de outra pessoa, confiado a você para inspirá-lo no seu próprio caminho. Se toda obra de arte é, em algum nível, o resultado de um processo pessoal, A pintora de henna é uma enciclopédia de conhecimentos, experiências e lições de Alka Joshi em forma de romance. Nascida na Índia e radicada nos Estados Unidos, a autora pintou sua aldeia imaginada, reformulada, deslocada no tempo. As privações que sua mãe precisou aceitar, sendo uma mulher indiana na década de 1950, e as oportunidades e liberdade de escolha que ela própria teve a comoveram e inspiraram a escrever esse livro. Assim, a autora condensou as diferentes experiências de ser mulher na Índia e no mundo, elaborou sensações de pertencimento e não pertencimento, de adequação e inadequação, de submissão e de rebeldia. Lakshmi Shastri, a protagonista, tem 30 anos e um trabalho reconhecido como artista de henna, atendendo senhoras das mais altas castas da sociedade de Jaipur dos anos 1950. Ela está finalmente colhendo os frutos que começou a cultivar treze anos antes, quando fugiu de sua aldeia rumo a uma cidade maior para escapar do marido violento e buscar autonomia. Em uma Índia bastante afeita a ideais e tabus tradicionais, ela sabia que esse ato de autopreservação custaria a reputação e honra
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da sua família, com quem nunca mais conseguiu ter contato. Desde então, Lakshmi assimila sentimentos dissonantes: a sensação libertadora de sair de um relacionamento abusivo mistura-se com o medo da sombra do marido que ela deixou para trás, a culpa pelo sofrimento dos pais, a saudade e a expectativa de reencontrar sua família e mostrar sua maior conquista: a casa que ela batalhou tanto para construir e onde ela espera viver com eles e enfim superar as dores do passado. Quando Lakshmi está prestes a concretizar seu sonho, é surpreendida pela súbita chegada de seu marido, Hari. Ele traz uma surpresa ainda maior: uma irmã caçula que a protagonista nem sabia que tinha. Radha, uma adolescente de 13 anos que nasceu logo após a partida de Lakshmi da aldeia, vai em busca da irmã com a trágica notícia do falecimento dos pais e a expectativa de encontrar o acolhimento familiar de que precisa. Com a agenda de trabalho lotada, sem tempo de sequer processar o impacto das novidades, Lakshmi incorpora Radha à sua rotina e toma conta dela da maneira que consegue: com uma lista de estritas regras de comportamento para garantir que a irmã, espontânea e ingênua, não prejudique sua relação com as clientes. Não demora muito para que o encontro do temperamento prático e rígido de Lakshmi com o jeito doce, curioso e questionador de Radha mobilize profundamente as duas irmãs. Ainda que a protagonista tenha a marca da rebeldia em sua história pessoal, a escalada para um padrão de vida mais digno demandou sua adequação às estruturas de poder da sociedade de Jaipur. Radha, por outro lado, não parece disposta a se adaptar às hierarquias sem estranhar a postura submissa da irmã e as injustiças que enxerga naquelas relações. Há muitas formas possíveis de encontro com países e culturas que desconhecemos. Quando se trata de culturas não ocidentais, frequentemente esses encontros são marcados por perspectivas reducionistas e estereotipadas sobre os costumes, tradições e paradigmas desses povos. Alka Joshi faz o oposto disso: em cada linha escrita, temos
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contato com a riqueza cultural da Índia, passando pelo vocabulário, as vestimentas, a gastronomia do país e descrições generosas da paisagem urbana de Jaipur. A autora se debruça sobre elementos estruturantes da sociedade indiana, expostos nas sutilezas das interações entre os personagens da história. Para completar, o pano de fundo histórico de A pintora de henna é a Índia dos anos 1950, recém-liberta da dominação britânica no país. “O que a independência havia mudado foi o nosso povo. Isso era visível na postura das pessoas, o peito estufado, como se finalmente pudessem se permitir respirar”, narra a protagonista. Esse panorama complexo traçado na obra é resultado de dez anos de pesquisa e entrevistas, que envolveram desde membros da família de Alka Joshi até as inúmeras pessoas que ela conheceu em suas viagens a Jaipur. Nesse legítimo trabalho de campo, ela falou com comerciantes, artistas de henna, médicos aiurvédicos, cidadãs e cidadãos comuns, com o diretor e professoras da Maharani Gayatri Devi Girls’ School, instituição que inspirou a escola que aparece no livro. Com esse rico material de referência, a autora explora com sensibilidade, lucidez, senso crítico e afeto toda a complexidade, a beleza, a diversidade e as incongruências de seu país de origem. Merecidamente, o livro entrou para a lista de best-sellers do jornal New York Times assim que foi lançado nos Estados Unidos, em 2020, e já teve os direitos adquiridos para a produção de uma série de televisão, que deverá ser lançada pela Netflix e estrelada pela atriz Freida Pinto. “O viajante tem que bater em cada porta estrangeira para chegar à sua, e tem que percorrer todos os mundos exteriores para alcançar o santuário mais íntimo no fim.” A citação que a autora escolheu para compor a epígrafe do livro, do poeta indiano Rabindranath Tagore, complementa a célebre frase de Liev Tolstói que abre este texto. A obra que você tem em mãos parece ser o livro sagrado do santuário mais íntimo de Alka Joshi. Por isso, leitor, segure-a com cuidado e mergulhe com atenção na história que o espera. Desejamos que ela possa levá-lo a seus próprios santuários. Boa leitura!
CONTEXTO HISTÓRICO 13
Entre a hierarquia e a mobilidade social PAULA SPERB*
Alka Joshi reflete sobre castas e independência da Índia; saiba mais sobre a história do país
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protagonista do romance do mês é, como diz o título, uma pintora de henna. A indiana Lakshmi Shastri ganha a vida pintando belos desenhos com a tinta produzida a partir da henna, planta muito usada na Índia. Lakshmi atende mulheres, as “suas senhoras”, pintando suas mãos e pés. Porém pintar os pés de alguém não é função a ser exercida por qualquer pessoa. Quando Lakshmi reencontra sua irmã mais nova, Radha, explica que exerce tal atividade para conseguir dinheiro para se sustentar e enviar aos pais delas, no interior. Sua irmã então responde: “Mas trabalho de henna é para sudras, não para brâmanes. Pitaji [o pai] nunca teria permitido que você tocasse os pés de outras pessoas”. Lakshmi, então, mostra que optou por esse trabalho por necessidade extrema. “Foi melhor isso do que ser uma prostituta, Radha”, conclui a irmã mais velha. Tal passagem — situada na década de 1950 — exemplifica bem a divisão da sociedade indiana em castas. Para contextualizar essa e outras questões presentes em A pintora de henna, a TAG conversou com Thaísa Martins, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que investiga a cultura da Índia por meio da dança.
Paula Sperb é crítica literária e jornalista. Tem pós-doutorado em Letras na UFRGS e é doutora em Letras pela UCS. Foi repórter da Folha de S. Paulo e VEJA.
O sistema de castas O termo “casta” é de origem portuguesa, explica Martins. É assim que os portugueses chamaram a “varna”, hierarquia social indiana com a qual se depararam ao chegar à Índia no final do século
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Brâmanes sacerdotes e letrados
Xátrias
guerreiros
Vaixás
comerciantes
Sudras
camponeses e operários
Dalits
intocáveis
XV e começo do século XVI. Vale lembrar que os portugueses chegaram ao Brasil justamente porque procuravam as “Índias” para explorar comercialmente especiarias. São quatro as principais castas: brâmanes (letrados), xátrias (guerreiros), vaixás (comerciantes) e sudras (camponeses e operários). “Em sânscrito, varna significa cor ou forma exterior. No texto Rigueveda, existe uma passagem que fala que Brahma, uma grande deidade, é dividido em partes do corpo. Assim, a primeira casta, dos brâmanes, viria da cabeça; a segunda, os xátrias, viria dos braços; a terceira, os vaixás, das pernas; e, finalmente, a quarta, dos sudras, teria surgido dos pés”, explica a pesquisadora. É por isso que a personagem Radha recrimina que Lakshmi pinte os pés de outras mulheres. Mesmo sendo pobres, elas são filhas de um professor brâmane, sendo brâmanes elas também. Tocar os pés de outra pessoa não seria digno para elas, sendo uma atividade apenas para sudras. Martins, entretanto, faz um alerta importante. O sistema de castas é relacionado ao hinduísmo e não é necessariamente aplicado em toda a Índia, que possui outras religiões além da hindu. A generalização não deve ser feita, especialmente nos dias atuais, quando a Índia é ainda mais diversa e plural, principalmente nas grandes cidades. “É mais que uma religião, tem uma base religiosa, mas é um sistema que opera na sociedade contemporânea de forma estrutural”, explica a pesquisadora. Martins compara com o racismo no Brasil, por exemplo. Embora seja crime previsto em lei, o racismo estrutura as relações da sociedade brasileira, relegando à população negra posições secundárias em diferentes espaços e instâncias da esfera pública. A discriminação por castas é proibida na Índia desde a Constituição de 1950. “Mas ainda assim acontece”, diz Martins. A pesquisadora ressalta que as principais vítimas do preconceito gerado pelas castas são os dalits, que compõem uma quinta casta. Eles também são conhecidos como “intocáveis”. “Essas pessoas exercem funções como limpar latrinas e as cinzas nos crematórios, sofrendo
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grande discriminação”, explica. Mas nem sempre as castas foram tão estigmatizadoras. Vejamos no próximo tópico o porquê.
Colonização e independência A Índia tornou-se um país independente apenas em 1947, após um longo processo para ver-se livre do domínio britânico. Um domínio que se consolidou a partir de 1858, quando a rainha Vitória, do Reino Unido, foi declarada também a rainha da Índia. Antes, uma série de países disputavam hegemonia sobre o território indiano. E por que afirmamos que o sistema de castas nem sempre foi tão estigmatizador? Segundo a pesquisadora da UFRJ, antes da Inglaterra dominar a Índia, as castas eram mais maleáveis e havia mais mobilidade social. “As castas eram mais fluidas antes da Índia ser colônia da Inglaterra. Um dos motivos era que o território era mais fragmentado, com diferentes famílias indianas dominando distintas áreas, assim havia diferentes interpretações regionais da religiosidade”, diz Martins. Com a consolidação do status de colônia, os ingleses enxergam nas castas uma ferramenta de dominação ideológica e econômica. É válido recordar que, na prática, era uma empresa britânica que ditava os rumos da colônia: a Companhia das Índias Orientais. “É importante olhar o período colonial porque é quando vai se consolidar esse lugar de discriminação. Com a consolidação das castas, garantiu-se mão de obra, por exemplo, e a estrutura para que a máquina colonial continuasse operando”, explica Martins. As castas superiores, em geral, apoiavam as políticas inglesas. No romance A pintora de henna, a maior parte da história se passa entre 1955 e 1956, poucos anos após a independência, ou seja, ainda sem grandes mudanças sociais visíveis. Em certo momento, Lakshmi afirma: “A independência mudou tudo. A independência não mudou nada”.
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"As mulheres merecem o poder de tomar as decisões que afetam seus destinos" RAFAELA PECHANSKY*
Alka Joshi comenta os elementos autobiográficos de sua obra, fala sobre a Índia atual e alerta para o perigo das ‘histórias únicas’
Rafaela Pechansky ama livros desde pequena. Foi uma das primeiras associadas da TAG, em 2014, e trabalha no clube desde 2018. Atua como publisher, publicando os livros em parceria com editoras brasileiras e na liderança de decisões editorais dos clubes.
Você declarou que a ideia para A pintora de henna veio da seguinte reflexão: "qual vida sua mãe poderia ter tido se ela não tivesse tido um casamento arranjado?" Quais outros elementos autobiográficos estão nessa história e como você acha que as suas vivências como mulher indiana serviram de inspiração para as personagens? Eu misturei imaginação, criatividade, meu DNA indiano e minhas habilidades artísticas para desenvolver uma vida alternativa para minha mãe. Lakshmi é parecida com minha mãe em sua pele macia, grosso cabelo negro e olhos claros de tom verde-azulado. Mas a semelhança termina por aí. Minha mãe, Sudha, nunca poderia ter seguido uma carreira como artista de henna por ser da casta brâmane. Porém, ao criar Lakshmi como uma mulher de uma casta alta que faz o trabalho de uma casta mais baixa, pude fazê-la transitar livremente entre várias classes e, assim, mostrar como as classes altas, médias e mais pobres convivem na Índia. Meu pai é professor emérito de Engenharia Civil na Universidade de Calgary. Seu papel na reconstrução da Índia pós-independência me inspirou a situar a história em 1955, o ano em que ele recebeu seu diploma de bacharel em Engenharia. Os indianos ficaram muito
ENTREVISTA 17
entusiasmados com a retomada do seu país e a possibilidade de criar suas próprias políticas de governança. Meu pai me ensinou muito sobre a capacidade de superação dos indianos após séculos de colonização, dominação e destruição por parte de poderes estrangeiros. Foi um tema fascinante de explorar e escrever! Malik representa as várias crianças de rua que vivem de sua própria criatividade, sagacidade e instinto de sobrevivência. A Maharani Latika foi inspirada na adorada Maharani Gayatri Devi, de Jaipur, que fundou a famosa Escola MGD para meninas, que existe até hoje (e me convidou para fazer um discurso às formandas de 2019). Os outros personagens são misturas de várias pessoas que entrevistei, observei e conheci ao longo da minha pesquisa ou minha experiência indiana.
A autora do mês, Alka Joshi
Essa é uma história, principalmente, sobre mulheres que tentam navegar em um mundo imposto pelos homens, cheio de regras e convenções sociais. Quais semelhanças você acredita que ainda ecoam com a sociedade contemporânea indiana? Em 2019, visitei cinco cidades na Índia — Jaipur, Délhi, Hyderabad, Bangalore e Mumbai — para aprender sobre as mudanças na autonomia feminina. Descobri que a resposta dependia da classe socioeconômica da mulher. Mulheres indianas das classes mais pobres, com menos educação, ainda vivem como as mulheres da década de 1950. Seus casamentos são arranjados quando ainda são muito jovens, aos vinte anos elas já têm vários filhos, e seus maridos tomam as principais decisões financeiras. Foi a classe média que passou pela maior transformação nesse aspecto. Por causa do crescimento rápido da classe média indiana, as filhas e filhos dessas famílias têm educação universitária. Para as mulheres, isso significa empregos com melhor remuneração, maior autoconfiança e mais participação nas questões financeiras. Também dá a elas mais liberdade para planejar o casamento — por exemplo, se preferem receber seu diploma de
Tradução ANA BEATRIZ FIORI
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bacharel antes de casar ou se preferem começar uma família depois do doutorado. Também houve um aumento nos divórcios e nos casamentos por amor (às vezes, entre castas diferentes) — um sinal de que mais mulheres estão assumindo o controle de sua felicidade. Recentemente, participei de um encontro online de um clube do livro feminino de advogadas de Mumbai, e elas me disseram que mulheres casadas que ganham mais do que os maridos têm até pedido acordos pré-nupciais. Essa, sim, é uma grande demonstração do aumento da autonomia feminina. Como você sentiu que a pandemia afetou a sua forma de escrever e de se relacionar com livros? A pandemia não mudou minha forma de escrever. Ela mudou a maneira como eu me relaciono com os leitores. A pintora de henna foi lançado no começo da pandemia! Todos os meus eventos de lançamento foram cancelados. Depois, as livrarias e bibliotecas fecharam. E então as lojas virtuais pararam de enviar livros. Fiquei desolada! Como eu poderia falar com os leitores — perguntar quais as suas dúvidas, quais eram seus personagens favoritos — sem os lançamentos nas livrarias? Então fui conversar com meus seguidores nas redes sociais, pedindo que falassem sobre o livro comigo. Um ano antes do lançamento pela MIRA Books, minha editora me motivou a criar um perfil nas redes sociais. Eu não queria, mas ela disse que seria uma boa maneira de compartilhar com os leitores o conteúdo rico de A pintora de henna: os curries picantes, a arquitetura Mogul, a vida nos palácios e a belíssima e antiga arte da henna. Fico feliz de ter seguido esse conselho, porque, nos últimos 18 meses, conversei sobre meus romances com mais de 600 clubes do livro (cerca de 7.000 pessoas) e fiz grandes amizades por todo o mundo. A pintora de henna foi traduzido para 26 idiomas, e tive o privilégio de ser entrevistada por mídias importantes de 31 territórios. The Secret Keeper of Jaipur também foi lançado durante a pandemia e está sendo traduzido para vários idiomas.
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A ESTANTE DA AUTORA O primeiro livro que você leu: As mil e uma noites (nossa babá na Índia costumava nos contar histórias desse livro para dormirmos). O livro que você está lendo: How I Met You, de Bradley Jay Owens. O livro que mudou a sua vida: The Blood of Flowers, de Anita Amirrezvani. O livro que você gostaria de ter escrito: Toda luz que não podemos ver, de Anthony Doerr. O último livro que a fez chorar: A cor púrpura, de Alice Walker. O último livro que a fez rir: Uma questão de conveniência, de Sayaka Murata. O livro que você dá de presente: A pintora de henna, escrito por mim. :)
Esta será a primeira vez que uma obra sua será traduzida no Brasil. Como você se sente com isso? Você poderia mandar um breve recado aos leitores brasileiros que vão descobrir a sua produção agora? Fico extremamente feliz em saber que os brasileiros poderão ler A pintora de henna na sua própria língua. É muito gratificante compartilhar meu conhecimento e amor pelas diversificadas tradições indianas, com sua culinária variada e aromática e suas mulheres resistentes. Acho que os brasileiros encontrarão muitas semelhanças entre nossas duas culturas: as relações entre homens e mulheres, as interações familiares e a importância da comida na identidade do seu povo. Ao terminarem meus romances, quero que os leitores se lembrem de duas coisas: 1) As mulheres de todas as culturas merecem ter o poder de tomar todas as decisões que afetam seus destinos. Nenhuma escolha de vida lhes deve ser negada por causa de religião, tradição ou patriarcado. 2) É perigoso ter uma história única sobre uma pessoa, uma cultura ou uma nação. Não devemos julgar um mundo sem conhecer todas as histórias que ele contém. Leiam o máximo que puderem; isso permitirá que vocês viajem pelo mundo no conforto de suas poltronas.
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Tradições femininas DÉBORA SANDER*
Da henna que dá título à obra a diferentes modalidades de dança, conheça costumes de mulheres indianas abordados no romance de Alka Joshi
HENNA “Era assim que minha saas tinha me ensinado a mostrar meu amor. Não com palavras ou toques, mas pela cura.”
Débora Sander é jornalista formada pela UFRGS e cursa pósgraduação em Direitos Humanos na PUCRS. Passou por projetos como o Fronteiras do Pensamento e a Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Hoje, colabora regularmente com a Arquipélago Editorial e com a revista da TAG Inéditos.
Partindo dos conhecimentos sobre ervas e fitoterapia aprendidos com a mãe do seu marido, sua estimada saas, Lakshmi tornou-se uma celebrada artista de henna e uma herbalista experiente. As plantas são uma constante na narrativa, pois são incontáveis as espécies que fazem parte da rotina de cuidados da protagonista com suas clientes. Ervas, temperos e raízes são usados em chás, na comida, em tratamentos para problemas físicos e emocionais e até em pinturas corporais, como é o caso da henna. Também conhecida como Mehndi ou Lawsonia inermis, a henna é uma planta nativa de climas quentes da Índia, China, países do Oriente Médio e do Norte da África. Há mais de cinco mil anos, ela é usada em vários desses lugares para enfeitar corpos. A pasta utilizada no processo, feita da henna em pó misturada com ingredientes como água, açúcar, óleo e limão, possui coloração marrom-avermelhada e conta com propriedades calmantes e curativas. A tradição da pintura corporal integra grande parte das celebrações e rituais indianos. Por ser um desenho temporário, que permanece cerca de três semanas no corpo, a henna carrega uma simbologia associada aos ciclos e à transcendência, sendo por isso tão utilizada em ritos de passagem e momentos de profunda transformação, como noivados, casamentos, nascimentos e rituais religiosos.
PARA IR ALÉM 21
Em casamentos, a henna adorna as noivas e, acredita-se, traz boa sorte e atração no matrimônio. É comum que o nome do noivo ou suas iniciais sejam escondidas no desenho feito no corpo da noiva. Na cultura tradicional indiana, a Mehndi, a pintura com henna, é um ritual feminino e, por isso, o momento da pintura também é uma ocasião de partilha e troca de confidências entre mulheres. Em A pintora de henna, as clientes de Lakshmi acreditam que seus desenhos são capazes até mesmo de ajudá-las a engravidar e aproveitam as sessões de pintura corporal para contar à protagonista sobre suas angústias e desejos, na expectativa de que seu trabalho as ajude a conquistar o que querem. Os desenhos podem ser compostos de infinitas formas, e variam muito de acordo com a região geográfica, a religião, a circunstância e, é claro, a mão da artista. “Meus desenhos ficaram mais elaborados com o tempo. Eu punha um pavão persa dentro de uma concha turca, transformava uma ave das montanhas afegãs em um leque marroquino”, afirma Lakshmi. Além do sentido estético e ritualístico, a henna é um antisséptico natural de grande poder medicinal, historicamente usada nos pés, mãos e cabelos para fortalecimento e proteção contra doenças fúngicas, caspa e piolho. A erva também traz benefícios ao fígado, trata doenças digestivas e previne alguns tipos de infecções em pessoas com diabetes.
VESTIMENTA “A maioria de minhas senhoras não usa algodão, apenas sedas tão finas que dá para passá-las por um anel. Em ocasiões especiais, elas usam sáris pesados de tantos bordados. Principalmente fios de ouro e prata.” A vestimenta tradicional indiana carrega muitas simbologias em relação à religião, estado civil, classe social e casta das mulheres. Os trajes do país são citados continuamente na obra de Alka Joshi: para se relacionar bem com as senhoras da elite, Lakshmi
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sabe que precisa prestar atenção em cada detalhe de sua aparência e cuidar da vestimenta com zelo. Um dos itens mais antigos da moda indiana é o sári, extenso tecido que é usado amarrado ao corpo. Nas peças tradicionais, as bordas são mais pesadas, com bordados, pedrarias ou outras aplicações mais simples — assim como o pallu, a ponta decorada do sári que em geral fica apoiada sobre o ombro. Desde a dominação britânica, a peça era usada sem nada por baixo, mas, durante a era Vitoriana, foi imposto o uso de blusas e anáguas para adequar o sári aos padrões puritanos. Mesmo depois da independência e até hoje, no entanto, a maior parte das mulheres indianas segue usando o item com blusa e anágua por baixo. A peça milenar é ainda amplamente utilizada no contexto contemporâneo — para além da tradição, trata-se de uma roupa versátil e conveniente: quente para o inverno e fresca no verão, quando tecidos mais leves protegem a pele do sol forte e da poluição urbana. Além disso, a amplitude do tecido permite boa mobilidade e as pregas formadas pela amarração do sári garantem generosos bolsos. Há dezenas de maneiras de amarrar o sári, e os estilos da peça são tão diversos quanto a própria cultura indiana — seu uso vai do dia a dia até as ocasiões mais especiais, dependendo do tecido e da sofisticação do modelo. A depender das estampas e das cores dos bordados, é possível identificar a região onde a peça foi feita. Outros aspectos são também simbolizados pela cor da roupa: as noivas costumam usar sáris vermelhos, e as mulheres viúvas, brancos.
DANÇA “Ouvi o kathak soar em minha cabeça, Dha-dhin... Dha-dha-dhin, os antigos ritmos de uma dança que celebrava a morte do demônio Tripurasura.” A nautch (dança, em tradução literal) é uma antiga e celebrada tradição cultural indiana. No país todo, danças originárias dos povos tradicionais de
Ilustrações FLAVIA AMARAL
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diferentes regiões da Índia seguem vivas até hoje, algumas delas amplamente disseminadas. No geral, as danças clássicas começaram a ser praticadas em templos hindus e se popularizaram ao longo dos milênios, ganhando espaço em celebrações e festivais nacionais e internacionais. Algumas características comuns entre elas são o caráter teatral, a importância da composição musical tanto quanto da dança em si e a expressão de uma linha narrativa com a finalidade de contar uma história. Abaixo você vê alguns exemplos: A Bharatanatyam, originada no sul da Índia, remonta ao Natya Shastra, um texto escrito há cerca de dois mil anos pelo musicólogo Bharata Muni sobre o teatro, o espetáculo e a dramaturgia clássica do país. A dança em questão integra um trabalho de expressão teatral e musical de narrativas religiosas do hinduísmo. Os movimentos trazem elementos típicos das danças tradicionais indianas: os pés marcando o ritmo e as mãos gesticulando em mudras (gestos simbólicos) contam histórias. Performada originalmente por mulheres em templos, a Bharatanatyam foi a primeira dança tradicional a ser remodelada para o teatro e apresentada amplamente. O Kathak surgiu no norte da Índia com os antigos povos Kathaks, contadores de histórias profissionais que encenavam episódios mitológicos em templos e praças, misturando dança, música e dramaturgia. Os dançarinos, homens e mulheres, usam sinos presos aos tornozelos e desenvolvem movimentos ritmados e enérgicos com os pés, usando a expressão facial e os mudras para narrar suas histórias. O Odissi, dança tradicional dos templos do estado de Odisha, no Leste da Índia, é possivelmente o mais antigo estilo clássico indiano de dança ainda vivo. Complexo e expressivo, é dançado tradicionalmente por mulheres e habitualmente explora mais de 50 mudras para narrar as histórias míticas dos deuses hindus. As posturas construídas pelas dançarinas replicam as esculturas dos templos da região de Odisha, mesclando teatro, artes visuais, música e literatura.
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Retratos indianos PÂMELA MAIDANA*
Ficou com vontade de conhecer outras obras relacionadas à Índia? Confira nossas indicações
Taj Mahal 1989 Série Netflix
Lançada em 2020, a série Taj Mahal 1989 se passa na Universidade de Lucknow, no final dos anos 1980. A trama mostra como pessoas de diferentes idades e classes sociais lidam com relacionamentos amorosos. Por meio de uma linguagem simples, somos imersos em um mundo sem a internet para mediar as relações.
Pâmela Maidana é estudante de Jornalismo na UFRGS e estagiária de Editorial na TAG.
Poster de Taj Mahal 1989 Divulgação
IMERSÃO 25
O deus das pequenas coisas, de Arundhati Roy Considerado um clássico moderno, O deus das pequenas coisas foi o primeiro e único romance da escritora indiana Arundhati Roy. A obra traz a história de um casal de gêmeos, Esther e Rahel, que acaba se separando após um evento trágico. O livro alterna entre passado e presente, e inclui críticas ao papel da mulher na sociedade indiana, assim como ao sistema de castas.
Intérprete de males, de Jhumpa Lahiri Livro da TAG Curadoria de 2019, Intérprete de males é uma coleção de contos escritos pela autora Jhumpa Lahiri em 1999. Entre as nove histórias que compõem a obra, acompanhamos narrativas simples que acabam se cruzando, acerca da diáspora indiana e do sentimento de pertença.
O grande passo, com direção de Sooni Taraporevala O grande passo, filme dirigido pela cineasta Sooni Taraporevala, conta uma história baseada em fatos reais, na qual dois meninos de Mumbai, Asif e Nishu, querem ser bailarinos. Eles vão ter de enfrentar o preconceito e o machismo da sociedade indiana para conseguir realizar seus sonhos.
Trem para o Paquistão, de Khushwant Singh Publicado em 1956, Trem para o Paquistão, de Khushwant Singh, se passa no verão de 1947, quando acontece a partição da Índia e do Paquistão. Ao longo da trama, acompanhamos a aldeia fictícia Mano Majra, perto da fronteira com o Paquistão, onde muçulmanos e sikhs convivem de maneira pacífica, seguindo o ritmo do trem que passa levando refugiados.
26 PRÓXIMO MÊS
março
fevereiro
vem aí
O segundo livro do ano enviado pela TAG apresenta um enredo sensível sobre a busca de sentido para a vida na terceira idade. Escrita por uma autora britânica, a história gira em torno de uma senhora que se entusiasma com uma expedição que está sendo realizada na Antártica, local que lhe proporcionará a oportunidade de abrir o seu coração e repensar os seus afetos. Para quem gosta de: ficção contemporânea, histórias delicadas e acalentadoras A autora do livro do mês propõe uma ousada reconstrução histórica, centrada em uma mulher cuja trajetória representa outras tantas silenciadas ao longo dos séculos. Criada em uma família rica em Séforis, com ligações com o governante da Galileia, a protagonista é uma figura rebelde e ambiciosa, que se aproximará de ninguém menos que Jesus Cristo. Para quem gosta de: ficção histórica, tramas feministas
“O futuro — pensei — será todo assim, a vida viva junto ao cheiro úmido da terra dos mortos, a atenção com a desatenção, os saltos entusiastas do coração junto às quedas bruscas de significado. Mas não será pior do que o passado.” – DIAS DE ABANDONO, ELENA FERRANTE