"O livro dos anseios" - TAG Inéditos Mar/2022

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O LIVRO DOS ANSEIOS

MAR 2022



OLÁ, TAGGER Olá, tagger V

ocê já parou para pensar em quantas vozes femininas foram silenciadas no decorrer da história? Quantas narrativas, perspectivas e experiências impactantes não teriam nos inspirado através dos séculos caso as mulheres tivessem sido valorizadas desde o princípio? Essas especulações, tão fundamentais para lançarmos um olhar crítico sobre a sociedade, estão na essência do romance que você recebe este mês. O livro dos anseios, de Sue Monk Kidd, gira em torno de Ana, uma personagem destemida e ambiciosa na Galileia do século I. Ela resiste às privações que buscam lhe impor e almeja propósitos mais elevados. Dedica-se, então, a escrever precisamente sobre mulheres que não receberam o devido destaque por suas realizações. Em meio a tudo isso, um “detalhe” importante: a protagonista casa-se com ninguém menos do que Jesus Cristo. Sabemos que nem sempre é fácil transitar por épocas e localidades tão remotas. Pensando nisso, além de um texto de apresentação do livro do mês, publicamos a seguir uma contextualização histórica e geográfica para facilitar a leitura. Há também uma entrevista com a autora, uma reportagem sobre personagens bíblicos reinventados na ficção e uma matéria sobre mulheres transgressoras que foram relegadas a um segundo plano. É sempre bom lembrar que estamos no terreno da ficção — a escolha do livro para o clube não pressupõe imposições ou ofensas religiosas. Respeitamos a diversidade de crenças e de fé e desejamos que, acima de tudo, O livro dos anseios seja um estimulante convite à imaginação e à reflexão. Boa leitura!


MARÇO 2022 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200

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QUEM FAZ

RAFAELA PECHANSKY

JÚLIA CORRÊA

Publisher

Editora

LIZIANE KUGLAND

ANTÔNIO AUGUSTO

PAULA HENTGES

Revisora

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Designer

LAÍS FONSECA

Designer

PÂMELA MAIDANA

LUANA PILLMANN

GABRIELA BASSO

Estagiária de Editorial

Estagiária de Design

Estagiária de Design

Impressão Impressos Portão Capa Tereza Bettinardi


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sumário Experiência do mês Por que ler o livro O livro do mês Contextualização Entrevista com a autora Para ir além

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Próximo mês


riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima de O livro dos anseios colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!

Leia até a página 88 Estamos só começando, mas a realidade das mulheres em Séforis já se mostrou brutal. Ainda assim, Ana não se deixa resignar. Vamos adiante? Leia até a página 155 Concluímos a primeira parte do livro! Depois de tanto sofrimento na relação de Ana com seus pais, podemos concordar que a protagonista estava precisando de um recomeço, não é mesmo? Agora que você foi apresentado ao personagem de Jesus, que tal compartilhar suas impressões no aplicativo? Leia até a página 275 Você terminou a segunda parte, e é hora de mais uma grande mudança na vida de Ana. Parece que sua rebeldia a colocou em perigo. Será que no Egito ela conseguirá satisfazer seu maior anseio?

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JORNADA DE LEITURA

4 EXPERIÊNCIA DO MÊS

Leia até a página 382 Quanta adrenalina! E como a vida de Ana se transformou nesses dois anos em Alexandria! Ana parte na expectativa do reencontro, mas consciente das complicações que a esperam. Vamos embarcar com ela! Leia até a página 421 Por mais que a gente já conhecesse parte dessa história, foi duro lê-la dessa perspectiva. Depois desse capítulo difícil, pode ser um bom momento para contar aos outros leitores o que você sentiu nas últimas páginas. E então seguiremos para a parte final! Leia até a página 435 Décadas separam a Ana das primeiras páginas e aquela que você leu nas frases finais do livro. Quase tudo mudou, mas ela não perdeu de vista seus anseios. O que você achou do encerramento da história?


EXPERIÊNCIA DO MÊS

projeto gráfico

A designer Tereza Bettinardi reuniu elementos de elegância, sofisticação e delicadeza para desenvolver o projeto gráfico de O livro dos anseios. A fonte escolhida para a capa foi a VOIR, criada pelos premiados designers suecos Pompe Hedengren e Göran Söderström. Fina e geométrica, a tipografia combina círculos e linhas retas simples, dispostos em diferentes proporções e ângulos, para criar uma atmosfera elegante e leve. O título do livro, grande e centralizado, dialoga com os ornamentos florais nas bordas da capa e com o pantone dourado metalizado, resultando em um projeto gráfico que remete ao feminino e à estética sofisticada e fina de livros antigos para contar a história de Ana, a esposa de Jesus. Quem assina a TAG Curadoria possivelmente já conhece o trabalho da designer Tereza Bettinardi. Ela desenvolveu projetos gráficos de obras como A mulher ruiva, de Orhan Pamuk, O olho mais azul, de Toni Morrison, e As últimas testemunhas, de Svetlana Aleksiévitch.

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mimo

O mimo deste mês é inspirado na protagonista de O livro dos anseios, Ana, e na sua ligação com a escrita — essa prática tão especial. Produzimos um bloquinho personalizado, no formato 10,4 x 8 cm, em papel pólen, aquele amarelinho que todo mundo ama! Ele cabe em qualquer lugar e acompanha uma caneta da TRIS em cor sortida. E atenção: a capa do bloquinho, além de metalizada, é destacável e colecionável. Sugerimos usar os itens para exercitar a escrita e a criatividade assim como a Ana, levando-os para toda parte com você.

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O livro dos anseios pode ter terminado, mas a experiência não!

Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.

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O LIVRO DOS ANSEIOS

“A evocação que o romance faz da vida na Galileia é fascinante, e a rebelde e inteligente Ana é uma personagem memorável.” The Times

“Para os fãs de romances históricos, Kidd usa sua inesperada narradora para revelar novas perspectivas sobre uma era analisada infinitamente.” The Washington Post

“O que nos mantém [presos ao livro] é a vivacidade do mundo que Kidd constrói, povoando-o com nomes conhecidos do Novo Testamento e personagens recém-inventados que ela imagina com a mesma intensidade — Ana, a narradora ficcional, é a principal entre eles.” The Boston Globe


POR QUE LER O LIVRO E se o homem mais famoso do mundo tivesse se casado, como seria sua esposa? É com essa ousada premissa que Sue Monk Kidd, autora do premiado A vida secreta das abelhas, constrói O livro dos anseios, uma envolvente ficção histórica que nos leva para a Galileia de dois mil anos atrás. Baseada em uma rica (e respeitosa) pesquisa histórica, a autora usa a imaginação para apresentar trajetórias alternativas a personagens bíblicos e, assim, dar voz a uma mulher transgressora que nos faz refletir sobre tantas outras silenciadas ao longo da história.


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Angústias milenares DÉBORA SANDER*

Fruto de cinco anos de pesquisa, O livro dos anseios é, ao mesmo tempo, uma aventura histórica e um exercício imaginativo que explora o que era ser mulher nos primórdios da sociedade

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Débora Sander é jornalista formada pela UFRGS e cursa pós-graduação em Direitos Humanos na PUCRS. Passou por projetos como o Fronteiras do Pensamento e a Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Hoje, colabora regularmente com a Arquipélago Editorial e com a revista da TAG Inéditos.

autora do livro deste mês escreveu que “a alma se expressa mais claramente através do anseio”. Para Sue Monk Kidd, o ato de perguntar-se pelo que alguém anseia abre um caminho fértil de investigação sobre o que há de mais fundamental na história e na potência daquela pessoa ou personagem. É a partir dessa questão, segundo Kidd, que ela constrói seus romances. Anseios são desejos que persistem, inquietam, impõem urgência e, por isso, angustiam. Neles moram brilho e sofrimento, pois o anseio contém em si alguma insatisfação com o presente — mas também alguma resistência em abandoná-lo — e a perspectiva encantadora e apavorante de um futuro que ainda precisa ser construído. O anseio talvez manifeste o que a natureza humana tem de mais vital: a eterna busca, o desassossego. Em O livro dos anseios, o quarto romance da escritora best-seller Sue Monk Kidd, acompanhamos a protagonista Ana da adolescência à maturidade na Palestina do século I. No ousado enredo, a autora apresenta uma personagem que teria sido casada com Jesus Cristo. A circunstância é certamente um elemento instigante e central desse livro, mas o foco aqui não é Jesus, e sim o olhar de Ana sobre a sociedade em que Jesus viveu e morreu, sobre o contexto que constituiu essa figura decisiva nos rumos


"O anseio talvez manifeste o que a natureza humana tem de mais vital: a eterna busca, o desassossego."

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da história ocidental. Kidd propõe um deslocamento do nosso olhar, usualmente tão centrado nas grandes figuras masculinas da história. Na narrativa, a companheira de Jesus é uma mulher excepcional e faz sua própria história. Aos catorze anos, Ana pede a Deus: “Abençoe a grandeza dentro de mim, não importa o quanto eu a tema". Mesmo nos dias de hoje, temer a própria grandeza é um sentimento conhecido por muitas mulheres. Dois mil anos mais cedo, uma figura como a da protagonista-narradora representaria uma afronta perigosa às convenções sociais de seu tempo. Curiosa e obstinada, Ana lê e escreve em quatro idiomas, questiona e resiste ao que lhe parece injusto e cultiva sonhos considerados ambiciosos demais para uma mulher: ela deseja estudar e escrever para dar voz àquelas que foram silenciadas — tanto as mulheres esquecidas do Velho Testamento quanto as que estão ao seu redor. Sua relação com Deus é forte, mas atravessada pelas contradições que ela identifica na perspectiva religiosa dominante daquele espaço-tempo. O comportamento de Ana a coloca em uma relação delicada com sua abastada família tradicional judaica, liderada pelo pai, o chefe dos escribas do tetrarca da Galileia. Para o desespero da protagonista, seus pais a prometem em casamento para um homem mais velho e viúvo, que Ana considera desprezível. Mas a personagem não é a única rebelde de sua família: o irmão, Judas, é um zelote, envolvido na resistência à dominação romana, e sua autêntica e sensível tia Yalta vive com a família após ter fugido do Egito para escapar da perseguição por um crime que não cometeu. É nesses laços que a protagonista busca refúgio e alento para suportar e lutar contra as imposições sociais. A chama da insubordinação de Ana, já decididamente acesa, é intensificada pelo encontro com Jesus, um trabalhador pobre de Nazaré que a encanta pela defesa dos oprimidos, por seu senso de justiça e pelo cultivo de uma relação

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próxima e genuína com Deus. O Jesus construído por Kidd não só se assemelha a um ser humano inteiro e complexo como é também um humanista. Sua rebeldia é pregar uma espiritualidade amorosa em uma sociedade repressiva e violenta. Quando Ana e Jesus se casam, a protagonista passa a viver na casa humilde da família do marido em Nazaré. Lá, Ana é designada a participar das funções domésticas enquanto Jesus passa grande parte do tempo ausente, trabalhando em cidades vizinhas para garantir o sustento da família. O árduo trabalho diário e a escassez de recursos restringem radicalmente as possibilidades de Ana continuar escrevendo, o que instala nela uma angústia persistente, acalentada em parte pela postura acolhedora e compreensiva de Jesus, que também carrega consigo o anseio por um propósito maior. O desejo dele em livrar da dor aqueles que sofrem — gesto que ele entende como a verdadeira manifestação de Deus no mundo terreno — faz com que seus caminhos coincidam com o movimento de resistência liderado pelo irmão de Ana, Judas. Ana e Jesus partilham um amor que nem sempre se dá na presença física, mas se fortalece no reconhecimento mútuo da grandeza de suas almas — e na capacidade de aceitar os caminhos que se desenham para que cada um deles possa perseguir seus anseios. Fruto de cinco anos de pesquisa e do brilhante processo criativo de Kidd, O livro dos anseios é, ao mesmo tempo, uma aventura histórica por nomes, lugares e referências que de fato faziam parte da vida das pessoas no século I e um exercício imaginativo que explora o que era ser mulher nos primórdios da sociedade e quais teriam sido os percursos afetivos de um dos homens mais admirados da história da humanidade. Talvez, passados vinte séculos, nossos anseios guardem as mesmas raízes: ainda é preciso dar voz aos silenciados, e seguimos desejando livrar da dor aqueles que sofrem.


CONTEXTUALIZAÇÃO

Nos caminhos da Galileia EDUARDO PALMA*

Confira aspectos históricos, culturais e geográficos determinantes para a compreensão da obra do mês

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Eduardo Palma já escreveu sobre política brasileira, relações internacionais e comportamento. Sempre com um livro na mão, não dispensa uma leitura com ideias que transcendem seu tempo, de temas complexos a amenidades.

livro dos anseios se desenvolve majoritariamente na região da Galileia, localizada ao norte de Israel, com algumas passagens na Alexandria, no Egito. A história começa no ano 16 d.C., em Séforis, uma cidade multicultural com cerca de 30 mil habitantes situada entre o mar da Galileia e o mar Mediterrâneo. Devido à sua arquitetura, às terras férteis e à água abundante, a cidade, governada por judeus, foi centro administrativo local e era vista como a “pérola da Galileia”. Séforis era considerada uma cidade helenizada e impressionava pelos edifícios públicos imponentes, o tesouro real, os mercados fartos, as hospedarias movimentadas, as basílicas com afrescos, esgotos estruturados, as calçadas e ruas pavimentadas e as residências exuberantes, principalmente da elite local. Naquele tempo, a Galileia era ocupada pelo Império Romano, que cobrava altos impostos, principalmente dos agricultores. A situação não agradava a todos os habitantes, principalmente os mais pobres, mas favorecia as classes mais ricas. Séforis estava sendo governada pelo príncipe Herodes Antipas, um líder obcecado por grandes obras e aliado dos romanos.

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12 CONTEXTUALIZAÇÃO

Fragmento do mural "Monalisa da Galileia". Ilan Sharif

Antipas reconstruiu a cidade após a destruição causada por uma disputa com Roma algumas décadas antes. Por isso, Séforis atraía pessoas de diferentes regiões em busca de trabalho, caso de Jesus e de seu pai, José. Uma dessas obras realizadas por Antipas é um mural que viria a ser chamado de “Monalisa da Galileia”, citado no livro e existente até hoje. Hoje, Séforis é um sítio arqueológico preservado dentro do Parque Nacional de Israel e possível de ser visitado por turistas.

Da multicultural Séforis à pequena Nazaré A menos de dez quilômetros de Séforis, a pequena cidade de Nazaré era uma aldeia bem menos desenvolvida, onde era mais difícil encontrar trabalho. Por isso, muitos moradores, como Jesus e seus companheiros, buscavam empregos na cidade vizinha, principalmente nas construções. Durante seu período no local, a personagem Ana, que era filha de um alto funcionário público em Séforis, sente o choque de realidade no local mais pobre, mais pacato, rural e menos cosmopolita que o centro político da Galileia.


CONTEXTUALIZAÇÃO

Com os séculos, a situação se inverteu, e hoje Séforis é uma pequena vila, enquanto Nazaré tornou-se um importante município do norte de Israel, com 70 mil habitantes. A cidade é sagrada para os cristãos e um espaço de peregrinação. Maior deste tipo no Oriente Médio, a Basílica da Anunciação é um de seus principais atrativos, e foi construída onde, segundo a tradição cristã, foi anunciado que Maria estava grávida de Cristo. Nazaré foi onde Jesus passou boa parte da vida até iniciar sua peregrinação. Não muito longe dali está o mar da Galileia, cujo principal afluente é o rio Jordão. É ali que Jesus foi batizado por João Batista, onde conquistou muitos fiéis para seu ministério e recrutou alguns apóstolos. Jerusalém, “o centro do mundo”

Mesquita de Omar Raimond Klavins Igreja do Santo Sepulcro Amir Cohen/REUTERS Muro das Lamentações Snowscat via Unsplash

A cidade palco da morte de Jesus também ganha atenção especial em O livro dos anseios. Jerusalém já foi vista como centro do mundo e é, há séculos, o coração pulsante das três maiores religiões monoteístas do planeta: cristianismo, judaísmo e islamismo. “É uma cidade de um movimento religioso gigantesco porque três grandes religiões compartilham daquele espaço”, explica o professor Andrei Venturini, doutor em filosofia e mestre em ciências da religião. Jerusalém abriga locais simbólicos, como a Igreja do Santo Sepulcro — o local da crucificação, do sepultamento e da ressurreição de Cristo — e a Via Dolorosa, com indicações do caminho por onde Jesus carregou a cruz. “É o local em que Jesus derramou seu sangue”, resume Venturini. Para os judeus, o local sagrado é o Muro das Lamentações, uma muralha que foi parte do suntuoso Templo de Salomão, destruído pelos romanos. E, para os islâmicos, a Mesquita de Omar é um dos locais mais importantes de sua tradição. Jerusalém tem hoje 900 mil habitantes e é a capital reivindicada pelos israelenses e pelos palestinos, em uma disputa que não é unanimidade na comunidade internacional e se arrasta por décadas.

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Alexandria e o refúgio dos terapeutas

O Farol de Alexandria na Antiguidade, segundo o arqueólogo alemão Hermann Thiersch (1874 – 1939). Ilustração publicada no livro Pharos: Antike, Islam und Occident, ein Beitrag zur Architekturgeschichte (1909). Thiersch fez um dos mais detalhados estudos sobre o Farol até a sua época. Guia Geográfico

Outro local importante para o livro é Alexandria, no Egito, local onde a tia de Ana, Yalta, passou boa parte da vida. Fundada em 331 a.C. no delta do rio Nilo, logo tornou-se um porto multicultural, cosmopolita e famoso mundialmente por seu farol de 130 metros de altura, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Ele foi destruído no século XIV, mas há planos de reconstrução. Alexandria foi um importante centro cultural e tinha uma lendária biblioteca com milhares de obras — considerada a maior do mundo antigo. Era, portanto, um espaço virtuoso para filósofos, religiosos, cientistas e escritores. Foi por quase mil anos a capital do Egito e hoje é a cidade mais ocidentalizada do país, com 5 milhões de habitantes. No livro, Alexandria ganha destaque graças à comunidade dos terapeutas, um grupo de homens e mulheres seguidores do judaísmo que se dedicam à literatura e à filosofia. Em sua rotina, os terapeutas viviam isolados em casas de pedra nos arredores do lago Mareótis, nas proximidades da cidade, e rezavam usando o nome grego de Deus — Sofia. Jejuavam, cantavam, dançavam, faziam trabalhos manuais, cultivavam alimentos, costuravam roupas, escreviam e estudavam, vivendo em seu próprio mundo. Tudo isso sob a liderança de uma mulher, algo inesperado para a época. “Lembro-me de quando esbarrei nos ‘terapeutas’ durante a pesquisa (para o livro). Foi uma nova direção para a história”, conta Sue Monk Kidd em entrevista à TAG (leia a íntegra nas próximas páginas).


ENTREVISTA

"ANA É DEFINITIVAMENTE UMA PERSONAGEM FEMINISTA" Autora do mês, Sue Monk Kidd fala sobre o seu processo criativo, detalha a ousada reconstrução histórica de seu romance e destaca a força de sua protagonista

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ue Monk Kidd dedicou quatro anos e meio até poder redigir a última palavra de O livro dos anseios. O romance conta a trajetória da jovem Ana, uma mulher destemida, ambiciosa e à frente do seu tempo, na Galileia do século I, que se torna a esposa de Jesus e questiona as limitações impostas às mulheres por aquela sociedade. Aos 73 anos, a autora diz que a história de Jesus chegou até nós por meio de perspectivas masculinas. “Histórias, vozes e percepções femininas estão faltando”, afirma. Movida pela ideia de que, se Jesus realmente tivesse tido uma esposa, ela teria sido a mulher mais silenciada da história da humanidade, Kidd decidiu construir o romance dando vida e voz aos anseios de Ana. Sobre Jesus ter sido casado ou não, uma ideia que afronta séculos de tradição, a autora é taxativa: “Acreditar que Jesus tinha uma esposa nunca foi o ponto principal. O que importava para mim era imaginar que ele tinha uma esposa. Fui inspirada a reimaginar o passado e a criar uma história alternativa que poderia abrir novas maneiras de ver e pensar”. A seguir, confira a entrevista completa.

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Ana é uma mulher ousada que deseja escrever narrativas de mulheres silenciadas e ter uma voz em um mundo no qual apenas os pensamentos dos homens são permitidos. Com essa personagem, você tentou dar visibilidade a muitas mulheres que, ao longo da história, tiveram suas vozes silenciadas? Quis não só destacar o silêncio e a invisibilidade das mulheres na história, mas retratar esse anseio por uma voz. Ao refletir sobre quem poderia ser Ana, formou-se em minha mente a imagem de uma jovem brilhante, rebelde, ambiciosa e ousada, com habilidades raras e inclinações acadêmicas. Seus pais esperam que ela se case com um viúvo mais velho e amargo, uma perspectiva que a horroriza, mas seu desejo é escrever narrativas de histórias perdidas e esquecidas de mulheres. As mulheres, entretanto, eram proibidas de ler e escrever. Suas histórias raramente eram registradas. Ana deve lutar, portanto, contra as limitações impostas às mulheres. Podemos afirmar que ela é uma personagem feminista, embora o feminismo não existisse naquela época? Indiscutivelmente à frente de seu tempo, Ana é definitivamente uma personagem feminista. O feminismo pode não ter existido na Galileia do primeiro século, mas isso não significa que as mulheres não tiveram desejos, ousadia e resistência. Muitas mulheres nessa época desejaram a liberdade e as oportunidades que seus irmãos tinham. Para saber isso, basta conhecer o coração indomável das mulheres. Ao longo da história, as conversas de Ana com Yalta são transformadoras. As memórias de Alexandria e a audácia de sua tia encorajaram Ana em muitas situações. De onde veio a inspiração para criar Yalta? De todos os personagens que criei em meus romances, Yalta é uma das minhas favoritas. É educada, feroz, subversiva e sábia. E ela é a tábua


ENTREVISTA

de salvação de Ana. Tudo o que é preciso saber sobre ela está em duas linhas do romance: “Sua mente era um imenso país selvagem que extrapolava suas fronteiras. Ela invadia todos os lugares”. Provavelmente, essas são minhas frases favoritas no romance. Yalta atua como a mãe substituta de Ana, amiga de alma e guia. Ana possuía uma “grandeza” por dentro. Todos temos isso — uma capacidade, uma paixão, um potencial que são únicos. O que nem sempre temos é uma tia Yalta. O romance explora a importância de conhecer nossa grandeza e nossa necessidade de alguém para abençoá-la. Yalta é essa pessoa para Ana. Ela ajuda Ana a superar seus medos, resgatar sua bravura e chegar à plenitude. A inspiração para criar Yalta foi querer retratar a beleza e a necessidade dessa experiência.

A autora do mês, Sue Monk Kidd. Tony Pearce

A comunidade dos Therapeutae, um grupo de homens e mulheres judeus filósofos da região de Alexandria, é bastante surpreendente e inesperada. Como essa descoberta feita por você em sua pesquisa para o livro influenciou a história? Lembro-me de quando esbarrei nos “terapeutas” durante a pesquisa. Foi uma nova direção para a história. Ana precisava encontrar uma maneira de cumprir seu desejo, sua grandeza e viver seu próprio destino, assim como Jesus. Eu sabia que a comunidade dos terapeutas poderia ser uma forma de isso acontecer. Na história, Ana está fugindo do perigo e os terapeutas lhe dão um lugar para se esconder, mas também uma possibilidade de florescimento. Ela encontra a liberdade de ‘purificar’ seus escritos e sua paixão.

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"Fui inspirada a reimaginar o passado, a criar uma história alternativa que poderia abrir novas maneiras de ver e pensar."

Você descreve Jesus como um profeta social que espalha a mensagem de amor e compaixão. Qual foi o seu objetivo ao privilegiar o Jesus histórico, que muitas vezes é “ofuscado” pelo teológico? Como uma romancista que escrevia de uma perspectiva literária e não religiosa, eu estava mais interessada no Jesus histórico. Queria retratá-lo como totalmente humano. Claro, há uma antiga doutrina da Igreja de que Jesus era humano e divino, mas parecia-me que, ao longo dos séculos, os cristãos haviam enfatizado sua divindade a ponto de obscurecer sua humanidade, levando a perder de vista o extraordinário ser humano que ele realmente era e também facilitando o esquecimento daquilo de que os humanos são realmente capazes. Ao focar no homem de carne e osso, esperava que pudéssemos redescobrir isso. E por que incluir na história um casamento, ideia que vai contra séculos de histórias em torno de sua figura? Existem razões para apoiar a crença de que ele se casou e de que não. Mas acreditar que Jesus tinha uma esposa nunca foi o ponto principal. O que importava para mim era imaginar que ele tinha uma esposa. Fui inspirada a reimaginar o passado, a criar uma história alternativa que poderia abrir novas maneiras de ver e pensar. Escrevi uma pergunta em um pedaço de papel e coloquei na minha mesa, onde ela permaneceu durante os quatro anos e meio em que escrevi o romance: “Como o mundo seria diferente se Jesus tivesse uma esposa que fizesse parte da narrativa?”. Parece provável que o cristianismo e a história teriam evoluído de maneira diferente. Se Jesus tivesse uma esposa, talvez as mulheres e suas histórias tivessem tido mais inclusão e importância. Talvez nosso relacionamento com o sagrado e a sexualidade fosse menos polarizado. O sexo poderia ter sido visto de forma diferente. É razoável supor que a virgindade não teria se tornado uma das maiores virtudes do cristianismo e que o celibato dentro do sacerdócio não existiria.


PARA IR ALÉM

A Bíblia e a arte BRUNA MENEGUETTI*

De Dan Brown a Sue Monk Kidd, autores apostam na imaginação e na liberdade artística para recriar eventos e humanizar personagens bíblicos

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Bruna Meneguetti é jornalista, escritora e dramaturga. Autora do livro O último tiro da Guanabara, vencedor do Prêmio Bunkyo de Literatura de 2021.

a arte, não faltam especulações sobre a vida de Cristo. Talvez as primeiras ficcionalizações tenham sido as pinturas de episódios bíblicos, um dos temas mais recorrentes na arte até o Renascimento. Séculos mais tarde, essas narrativas foram contadas em filmes e animações, como Os dez mandamentos (1956), A paixão de Cristo (2004) e O príncipe do Egito (1998). Além disso, há novelas brasileiras, histórias em quadrinhos — como a graphic novel Noé, de Darren Aronofsky — e até mesmo videogames — como o jogo I Am Jesus Christ, que será lançado pelo estúdio SimulaM. Na literatura, há o clássico O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), de José Saramago, que reconta a história bíblica de uma forma moderna; A última tentação de Cristo (1951), de Nikos Kazantzakis, que virou um filme de mesmo nome dirigido, em 1988, por Martin Scorsese; O testamento de Maria (2012), de Colm Tóibín, cuja história é contada do ponto de vista da mãe de Jesus; e, mais recentemente, o novo livro de Sue Monk Kidd, O livro dos anseios (2020) — entre muitos outros. Para Alex Fernandes Bohrer, historiador, professor, especialista em simbologia cristã e autor de Jesus: um breve roteiro histórico para curiosos, especulações e obras de arte sobre o tema são inúmeras porque há pouca documentação histórica da época. Felizmente, “o Brasil é um dos países que mais estudam o Jesus histórico”, segundo o historiador Thiago da Silva Pacheco, que dá aulas sobre a Bíblia na ficção. Por um lado, isso é uma vantagem, mas, por outro, ter tantas linhas de pesquisa sobre o tema pode ser desafiador

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20 PARA IR ALÉM

para criadores de ficções históricas. No Brasil, Henry Bugalho, especialista em Literatura e História e autor de O rei dos judeus, sabe o que é se arriscar nesse terreno: “À medida que você começa a estudar, vão se abrindo várias possibilidades. Nem sempre tudo o que pesquisou vai entrar na narrativa”. Mas as dificuldades de se fazer uma ficção sobre o tema vão além da pesquisa. Pacheco explica que criar os detalhes da narrativa pode ser desafiador. Isso porque a Bíblia foi pensada para ser encenada ou decorada e narrada por viajantes, ou seja, há poucas descrições nos textos. “A Bíblia não responde se estava frio, se estava escuro, como Jesus era fisicamente, como ele se vestia.” No entanto, o que é um ponto de adversidade pode ser também positivo: “Isso é um prato cheio para uma escritora como Kidd, pois ela tem liberdade artística de preencher essas lacunas”, diz Pacheco. Bugalho concorda: “Para a ficção, sempre temos que ter em mente que a parte histórica é um complemento para a trama”. As mulheres e as representações Talvez o livro de ficção mais polêmico que envolve Jesus seja O Código da Vinci (2003), de Dan Brown, em que o autor imagina possíveis descendentes de Jesus e de Maria Madalena. Segundo Bohrer, diversas especulações sempre surgiram quando se trata de Cristo e de suas seguidoras porque ele “é o primeiro profeta judeu que dá força e tem respaldo nas mulheres”. Uma das especulações mais comuns e que está no livro de Kidd é a de que Jesus era casado. No entanto, para Bohrer, essa versão é “quase impossível”, pois não há qualquer menção a isso em documentos romanos ou judaicos. Além do mais, naquela época, não constituir uma família podia ser comum entre os profetas. “Não se casar não era visto como pecado, mas pregar casado de forma itinerante era”, explica Bohrer.


“Para a ficção, sempre temos que ter em mente que a parte histórica é um complemento para a trama.”

PARA IR ALÉM

Por esses motivos, nem todos os escritores colocam que Jesus constituiu uma família. Bugalho, por exemplo, buscou como diferencial a “busca pela humanidade de Jesus em meio ao mito cristão”. Essa humanização foi ficando cada vez mais comum na ficção e é possível notá-la no livro de Kidd. “Nos filmes antigos, sequer mostravam o rosto de Jesus. Agora, Jesus ainda é divino, mas conta piadas, ri, sofre e chora igual a mim”, diz Pacheco. Para explicar o movimento de humanização, Pacheco lança mão de um provérbio árabe que diz que “os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”. Segundo ele, quanto mais antiga é a obra de arte, mais caladas, reclusas e secundárias são as mulheres. De acordo com a socióloga Isabelle Anchieta, “hoje em dia, há uma dessacralização das representações das mulheres bíblicas, elas são retratadas muito mais como mulheres reais”. Nesse sentido, narrativas como a de Kidd ajudam a trazer a figura de Maria para a existência de uma mulher possível. De acordo com Anchieta, a ideia de que Maria era virgem foi reforçada pela Igreja no século V, deixando-a distante das “mães reais”. Maria, então, segundo Bohrer, “transformou-se num padrão de mulher impossível para as outras”. Mas, apesar de todas as mudanças trazidas pelo olhar moderno de artistas, para Pacheco, a ficção poderia ousar ainda mais. “Jesus é sempre retratado como alto, de olhos claros, magro. Seria interessante se tivesse mais livros quebrando esse padrão.” Para Anchieta, “a imagem pode ser um campo de reforço de certos poderes, mas também de invenção”. Outro padrão que, segundo Pacheco, poderia ser quebrado é o de que poucas pessoas procuram ler a Bíblia ou saber mais sobre narrativas bíblicas depois de terem contato com uma obra de ficção sobre o tema. “Seria um movimento interessante. É um livro que, pelo fato de ter influenciado a vida ao nosso redor, merece ser lido.”

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22 SAIBA MAIS

Da transgressão ao silenciamento PÂMELA MAIDANA*

Conheça a trajetória de mulheres que, assim como a protagonista do livro do mês, buscaram conquistar espaço em seu tempo, mas foram relegadas da história Prudencia Ayala (1885–1936) Nascida em El Salvador, Prudencia Ayala foi a primeira mulher a tentar se candidatar à presidência do país, em 1930, quando as mulheres ainda não tinham o direito ao voto. A suprema corte de El Salvador decidiu que as leis concedidas aos cidadãos não se estendiam às mulheres e, por esse motivo, ela não pôde concorrer. Harriet Powers (1837–1910) Nascida e escravizada na Geórgia, a artista Harriet Powers foi libertada depois da Guerra Civil Americana, quando começou a fazer colchas. Apenas duas de suas obras ainda existem e se encontram no Smithsonian e no Museu de Belas Artes de Boston. Seu trabalho representava mulheres em situações domésticas.

Pâmela Maidana é estudante de Jornalismo na UFRGS e estagiária de Editorial na TAG.


SAIBA MAIS

María de la O Lejárraga (1874–1974) Mais conhecida pelo pseudônimo María Martínez Sierra, María de la O Lejárraga foi uma professora, dramaturga e escritora espanhola. Ela foi a verdadeira autora de várias obras de seu marido, Gregorio Martínez Sierra. María participou da criação da União de Mulheres da Espanha em 1917 e também foi deputada no Congresso espanhol. Júlia Lopes de Almeida (1862–1934) Cronista, dramaturga e escritora abolicionista, Júlia Lopes de Almeida foi uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras. Seu nome estava junto dos “40 imortais” que fundaram a Academia, porém, na primeira reunião, foi excluído. A ABL permaneceu masculina até a entrada de Rachel de Queiroz em 1977. Nísia Floresta (1810–1885) Considerada a primeira feminista do Brasil, Nísia Floresta escreveu o livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens aos 22 anos. Produziu 14 obras, hoje prestigiadas no mundo inteiro, nas quais defende o direito das mulheres, dos indígenas e dos escravizados.

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24 PRÓXIMO MÊS

vem aí abril

Alerta de autor brasileiro! O livro do mês nos faz embarcar em uma trama cheia de reviravoltas no interior do Rio de Janeiro, em uma pequena cidade chamada Ubiratã. Nosso protagonista volta à cidade natal para investigar um suposto caso de suicídio ligado a uma peça de teatro. Esse retorno traz à tona memórias que ele ainda está lutando para superar — mas que também são a chave para solucionar esse mistério. Para quem gosta de: mistérios, literatura brasileira, histórias LGBTQIA+

maio

Nova ficção histórica na área! O livro do mês é sobre uma poção mágica feita por uma boticária para libertar mulheres de homens que lhes fazem mal. Acompanhamos duas personagens separadas pela história, uma em 1971 e outra na Londres do século XVI, nesse romance best-seller do New York Times. Para quem gosta de: ficção histórica, tramas feministas, enredos envolventes



26 CARTOLA

“E não dá vida o amor? E não empresta beleza Àquele que se quer bem? Que não vos cause surpresa O perceber neste amor Fidelidade e nobreza.” – HILDA HILST


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