A mulher ruiva
PREFĂ CIO
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OLÁ, TAGGER Pessimistas dirão que a ressaca de 2020 será difícil de superar. A gente aqui concorda em parte: erguer um novo ano – um novo normal, novos olhos para a vida, tudo novo de novo – será, sim, difícil, mas também será proveitoso. Para iniciar 2021, tagger, você recebe um livro que trata de escavar poços e procurar a verdade. E um filósofo já juntava as duas coisas quando dizia que a verdade jaz no fundo de um poço. No prefácio desta edição, você vai ser apresentado a Cem Çelic, protagonista de A mulher ruiva, e às poderosas questões que Orhan Pamuk nos traz por meio de sua figura. Você também conhecerá mais sobre a vida e a obra de Pamuk, Nobel de Literatura e autor desse e mais outros romances. Você também recebe um panorama da produção literária do Oriente Médio – lamentavelmente, ainda pouco traduzida para o português. A gente espera que a busca de Cem lhe inspire a ir atrás da própria verdade. O ano que começa vem cheio de desafios... e cabe a nós achar a graça em seus percursos. Boa leitura! 3
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janeiro de 2021
COLABORADORES
FERNANDA GRABAUSKA
RAFAELA PECHANSKY
LAURA VIOLA HÜBNER
Editora-chefe
Publisher
Assistente
SOPHIA MAIA
ANTÔNIO AUGUSTO
LIZIANE KUGLAND
Assistente
Revisor
Revisora
PAULA HENTGES
KALANY BALLARDIN
GABRIELA BASSO
Designer
Designer
Designer
Impressão Gráfica Ipsis
Capa Tereza Bettinardi
COMO MANUSEAR A REVISTA Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.
Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!
SUMÁRIO prefácio
5 O livro indicado
9 Unboxing
10 Desafio de leitura
11 Os olhos melancólicos de Istambul
14 Uma ponte para o Oriente Médio
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O livro indicado
ÉDIPO NO FUNDO DE UM POÇO Como uma esfinge, Orhan Pamuk quer que você pense sobre o enigma de pais e filhos – e sobre mulheres de cabelos vermelhos, é claro
IGOR NATUSCH
Recorte da capa de A mulher ruiva
Na literatura, muitas histórias nunca se resolvem, mesmo que contadas de inúmeras formas. Não há quem não conheça o mito de Édipo: condenado a matar o pai e casar-se com a própria mãe, ele luta para fugir de seu destino e, exatamente por isso, acaba traçando a trilha da própria destruição. A peça de Sófocles existe há bem mais de dois milênios; seus detalhes são conhecidos de cor e salteado, seus dilemas e dramas, debatidos à exaustão. Ainda assim, Édipo continua vagando por terras selvagens, os olhos vazados com as próprias mãos, louco de dor e de remorso. Em algum lugar de nossa mente, conseguimos vê-lo – e sofremos para entender se devemos amá-lo ou odiá-lo, se ele é vítima ou justo alvo da danação. Olhamos para ele e, mesmo com medo, não conseguimos parar de olhar, porque é fascinante e terrível o risco de enxergarmos a nós mesmos. E continuamos contando sua história, das mais diferentes maneiras, tentando achar um modo de concluí-la dentro de nós. De nos livrarmos dela, talvez. 7
A seu modo, Orhan Pamuk precisou encarar o fundo de um poço para escrever A mulher ruiva, que inicia o ano dos associados TAG Curadoria. Durante evento do lançamento do livro em Londres, na Inglaterra, o autor turco revelou que, embora seja o livro menos extenso que já escreveu, a obra precisou de quase 30 anos para chegar à versão final. No final dos anos 1980, enquanto escrevia O livro negro, o autor teve contato com uma pequena equipe que cavava um poço nas redondezas: dois jovens aprendizes e um senhor de certa idade. De vez em quando, batiam à porta de Pamuk para pedir algum favor ou tomar um pouco d'água. À noite, o escritor podia vê-los em uma barraca, juntos, assistindo a uma pequena televisão. Um fragmento de vida que, como tantos, vira assombração antes mesmo que se perceba – e continua sempre lá, em um canto de nosso pensar, insinuando histórias que só vão chegar muito mais tarde. No caso de Orhan Pamuk, foi refletindo sobre pais e filhos que surgiu o fio capaz de puxar a trama para fora do buraco. Antes do trágico parricida grego, o autor turco lembrou de Rostam e Sorhab, personagens que surgem no épico Shahnameh (conhecido em português como Épica dos Reis), do poeta persa Ferdowsi. Entre os dois, a tragédia se inverte: é o guerreiro Rostam que, sem saber, mata o próprio filho, após uma interminável batalha. Unindo o poema do século X ao mito de Édipo, que inquietou de Freud a Nietzsche, Pamuk viu-se diante do enigma que, talvez, nem a Esfinge tenha tido coragem de enunciar: estarão pai e filho condenados a matar um ao outro?
“A RESPOSTA, COMO DIRIA DEMÓCRITO, ESTÁ NO FUNDO DO POÇO. LÍQUIDA, CRISTALINA COMO ÁGUA. DEPENDE APENAS DE QUÃO FUNDO SE ESTÁ DISPOSTO A CAVAR.” 8
Cena do cerco de Shahnameh. Reprodução
A narrativa de A mulher ruiva surge primeiro na voz de Cem, jovem de 16 anos que se ressente da ausência do pai, dono de farmácia mais apaixonado pelas disputas políticas do que pela família. Durante uma das longas ausências do pai, e atraído pela chance de ganhar um dinheiro a mais, Cem aceita trabalhar como aprendiz de Mahmut, um cavador de poços de água. O jovem logo enxerga em seu rude mas amável mestre uma figura paternal – muito embora a ligação entre ambos não fique, de forma alguma, resumida ao lado afetuoso da equação. A moça de cabelos vermelhos, tão marcantes quanto os da Veronica Veronese de Dante Gabriel Rossetti, surge para transformar esse desajeitado relacionamento de pai e filho. Apaixonante como um destino do qual não se pode 9
Édipo e a Esfinge de Tebas (c. 470 a.C), de Vulci. Reprodução, Museu do Vaticano
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fugir, ela passa a ser o centro das visitas de Cem e Mahmut a Öngören, cidade fictícia onde se desenrolam os acontecimentos centrais da história. Enquanto isso, o poço vai se tornando cada vez mais fundo e, paradoxalmente, mais estreito: logo, não é mais possível que mestre e aprendiz cavem no mesmo espaço. Na história imaginada por Orhan Pamuk, cabe à Jocasta de cabelos ruivos amarrar as pontas soltas. Na última parte de A mulher ruiva, é a própria quem toma a palavra, trazendo todas as várias tramas paralelas a uma surpreendente e impactante conclusão. Não é, no entanto, como se as revelações trouxessem a paz de espírito de um impasse que se encerra. De algum modo, Édipo segue vagando cego pelos campos; do mesmo modo, em algum lugar da mente de cada leitor, Cem e Mahmut seguirão cavando o poço durante muito, muito tempo. E estaremos na beira do buraco, decidindo se temos ou não coragem de olhar lá para baixo. Orhan Pamuk olhou, óbvio. O que não quer dizer que sua busca por sentido tenha terminado: é que escritores são criaturas curiosas e insistentes, como a gente sabe. Em certo sentido, talvez se possa comparar A mulher ruiva com Neve, uma das mais reconhecidas obras do ganhador do Nobel de Literatura em 2006: em ambas, o enredo complexo ganha contornos próximos da fábula, e o cenário assume uma dimensão capaz de engolir personagens e moldar seus destinos. Öngören quase inexiste no começo da história, e, ainda assim, Cem se perde dentro de seus poucos caminhos; o que poderá fazer ele mais tarde, quando o agora subúrbio de Istambul parece cheio de olhares reprovadores, tão hostis quanto o cinza grosseiro das fábricas abandonadas? De que servimos nós, diante de nosso destino? Não é essa, no fim das contas, a pergunta que a desgraça de Édipo nos impõe? A resposta, como diria Demócrito, está no fundo do poço. Respire fundo: Orhan Pamuk quer que você olhe lá, bem no fundo dele.
MIMO 2021 finalmente chegou e um novo ciclo começa agora. Após todas as turbulências que o ano passado trouxe, temos certeza que foi uma vitória para cada um de nós ter chegado até aqui. E, para iniciar o novo ano virando a página, é sempre uma boa ideia colocar os planos em uma folha em branco. Por esse motivo, o mimo do mês é um planner, que, além de auxiliar na organização individual, vai enriquecer seu ano com histórias de escritoras que mudaram o mundo com as suas palavras. As páginas homenageiam doze autoras revolucionárias, todas ilustradas pela artista @movimento1989, que também assina a capa. Agradecemos a oportunidade de acompanhar o cotidiano de cada um de vocês neste ano que começa!
Unboxing
PROJETO GRÁFICO
O projeto gráfico deste mês, assinado por Tereza Bettinardi, traz como inspiração para a capa a iconografia histórica que ilustra a tragédia de Rostam e Sohrab, peça teatral persa do século X, que será um elemento importante na trajetória do personagem. O vermelho vibrante representa o fervor e a passionalidade da obra. Já os desenhos presentes na luva e marcador de página simbolizam a repetição dos ciclos, e foram inspirados nas padronagens turcas de tecidos. O acabamento da luva foi feito em pantone metalizado, uma mistura especial de uma cor sólida com outra de pigmento metálico.
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DESAFIO DE LEITURA 21 dias para um novo hábito
O começo de um novo ano é o momento de repensarmos nossa rotina e a utilização de nosso tempo. O que você gostaria de fazer diferente daqui em diante? Nosso convite é para que, em 2021, você se conecte com a leitura de uma nova forma. Se você já é assíduo na leitura, esta pode ser a hora de se aventurar por novos gêneros literários. Se ainda não lê tanto quanto gostaria, esperamos que fazer parte do clube seja um incentivo para tornar a leitura cada vez mais parte do seu cotidiano. Você já ouviu falar que, para adquirir um hábito, são necessários 21 dias de repetição? Ao se comprometer com uma tarefa por esse período, fica mais fácil permanecer firme no propósito. Então, vamos começar! No primeiro dia, prepare seu ambiente de leitura: deixe o celular em outro cômodo (ele tem a capacidade de tirar sua atenção, mesmo no silencioso), encontre um horário e local confortáveis e tenha seu livro em mãos. Para receber mais dicas, acesse taglivros.com/ desafio1livropormes Por que queremos ler mais em 2021? Para além de atingir metas, propomos que seu ano novo marque a criação ou transformação do hábito que mais amamos cultivar: o mergulho em uma boa experiência literária.
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Perfil
OS OLHOS MELANCÓLICOS DE ISTAMBUL Orhan Pamuk se vale de duplicidades e alegorias para contar a história social de seu país
THIAGO SOUZA
A Academia Sueca justificou o Nobel de Literatura de 2006 sublinhando que o prêmio daquele ano seria concedido a um autor que, “na busca pela alma melancólica de sua cidade natal, descobriu novos símbolos para o confronto e o entrelaçamento de culturas”. É desse choque de sentidos que Orhan Pamuk extraiu a matéria-prima para compor sua obra, tornando-se o primeiro turco a ser celebrado com um Nobel. Filho de uma família burguesa que experimentava os primeiros sinais de declínio, o escritor nasceu em Istambul, Turquia, em 7 de junho de 1952. O pai, o tio e o avô paterno, que deu início à fortuna da família, eram engenheiros. 13
Na página anterior: Orhan Pamuk no Fronteiras do Pensamento (2011) Fronteiras do Pensamento, CC BY-SA 2.0
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Pamuk, depois de se formar no Robert College, começou a estudar Arquitetura na Universidade Técnica de Istambul. Três anos depois, no entanto, abandonou o curso para se tornar escritor em tempo integral e, em 1976, graduou-se em Jornalismo na Universidade de Istambul. Em seu primeiro romance publicado, uma crônica familiar chamada O Senhor Cevdet e seus filhos, Pamuk escreveu sobre ter passado pela mudança, enquanto crescia, de um ambiente familiar tradicional otomano para um estilo de vida mais voltado para o Ocidente, tema que apareceria em boa parte dos seus livros. Com cinco narradores diferentes, seu segundo romance já traz elementos que fariam Pamuk ser visto como um comentador social. A casa do silêncio conta a história da visita de uma família à avó idosa em um resort à beira-mar nos anos 1980 – enquanto a Turquia caminha para a guerra civil. As discussões políticas dos netos refletem um caos social em que várias organizações extremistas disputam o poder. Foi com o terceiro livro, contudo, que Pamuk começou a ganhar projeção internacional. O castelo branco, romance histórico ambientado na Istambul do século XVII, é majoritariamente uma história sobre como nosso ego se baseia em ficções de diferentes tipos. A personalidade é mostrada como uma construção variável: o personagem principal, um veneziano vendido como escravo ao jovem estudioso Hodja, encontra no mestre seu próprio reflexo. O livro é um exemplo de como a escrita de Pamuk ficaria conhecida por seu jogo com identidades e duplos. A questão também aparece em O livro negro, em que o protagonista procura na confusão de Istambul por sua esposa desaparecida e seu meio-irmão, com quem ele mais tarde troca de identidade. Por fazer referências ao sufismo – corrente mística do Islã –, o texto provocou debate na Turquia e representou uma ruptura com o realismo social dominante na literatura do país. Badalado por críticos e leitores, Meu nome é vermelho – um retrato da relação entre Oriente e Ocidente – foi um marco para Pamuk. O romance, que aborda as diferentes visões sobre como o artista se relaciona com sua obra nas duas culturas e discute o papel da individualidade na arte,
rendeu ao autor sua consagração literária, cristalizada nas palavras da Academia ao lhe conceder o Nobel. O livro ainda venceu o prestigiado International IMPAC Dublin Literary Award de 2003. Depois vieram títulos com os quais os leitores do Brasil estão mais familiarizados, como Neve, A maleta do meu pai, O museu da inocência e Uma sensação estranha, além de O romancista ingênuo e o sentimental, reunião de conferências sobre criação literária. Neve (que foi enviado pela TAG em seus primórdios, em abril de 2015) é um registro dos conflitos políticos e religiosos que caracterizam a sociedade turca contemporânea. Pamuk publicou ainda uma coleção de ensaios, Outras cores, e um misto de memórias e registro cultural de sua cidade, Istambul. É nesse livro em que elabora o hüzün, um conceito multifacetado que Pamuk usa para caracterizar a melancolia que vê como característica de Istambul e seus habitantes. Embora se veja como um ficcionista sem agenda política, o escritor é conhecido pela defesa dos curdos. Em entrevista a um jornal suíço, ele mencionou o genocídio de um milhão de armênios e o assassinato de 30 mil curdos na Turquia durante a Primeira Guerra, dizendo que “ninguém se atreve a falar” do assunto. Por essa declaração, foi acusado de “insultar e desacreditar a identidade turca”, chegando a ter de dar explicações em tribunal. Acabou inocentado. Pamuk também foi o primeiro autor muçulmano a condenar publicamente a fatwa contra o escritor Salman Rushdie, que supostamente blasfemou contra o Islã em seu livro Versos satânicos. Publicado em 2016 e ainda inédito no Brasil, A mulher ruiva chega com exclusividade aos assinantes da TAG. O romance é quase um monumento às principais obsessões do autor, sempre recorrendo ao jogo de duplos e às alegorias: o choque entre o Oriente e o Ocidente, o islamismo e o secularismo, o socialismo e o capitalismo, o passado distante e o recente do seu país, ao mesmo tempo conservador e liberal, Ásia e Europa. Insinuando nas epígrafes, passando de Édipo Rei à história de Rostam e Sohrab, o livro discute a relação entre pais e filhos e nos convida a conhecer a Turquia que Pamuk vê, a um só tempo tradição e mundo moderno. 15
Livros para ir além
UMA PONTE PARA O ORIENTE MÉDIO Em vários países do mundo árabe, o que não falta é literatura – mesmo que ela tenha dificuldade de chegar até aqui
IGOR NATUSCH
De cima para baixo: Elif Shafak, Hoda Barakat, Saleem Haddad e Ayse Kulin. Suzanne Plunkett, CC BY 2.0. Divulgação. Valentina D’ettorre, divulgação. Levent Abi, CC BY-SA 3.0 16
Para a maioria dos leitores ocidentais, a literatura do Oriente Médio é um mistério. Embora não seja rara, a publicação em português de livros escritos por lá está longe de ser comum – e a frequência cai ainda mais quando falamos de literatura contemporânea. Diante desse oceano de distância, o turco Orhan Pamuk acaba construindo, com suas histórias impregnadas de sabor local, uma ponte segura para o lado de lá. O que não quer dizer, é claro, que ele seja a única opção – ou que, tendo chegado do outro lado, tudo que nos reste seja voltar pelo mesmo caminho, sem apreciar um pouco da rica paisagem literária da região. Na própria Turquia, o que não falta é gente criativa produzindo, honrando uma tradição literária que remonta a séculos. Nomes como as escritoras Ayşe Kulin e Elif Shafak ostentam obras extensas e significativas, e o romancista e poeta Enis Batur é um nome quase lendário em seu país natal, com mais de quatro décadas de produção quase ininterrupta. A teia da palavra escrita também se estende com força pelos países vizinhos – mesmo que, às vezes, precise enfrentar a dureza de regimes pouco chegados a pensar
fora da caixa. Nascido no Kuwait, Saleem Haddad recebeu ótimas críticas internacionais com Guapa (2016), que conta um dia na vida de um homem gay em um país árabe não identificado. Por sua vez, o iraquiano Ali Bader tem obras premiadas como Papa Sartre (2001) e The tobacco keeper (2008), e é frequentemente lembrado pela linguagem áspera e pelas histórias recheadas de comentários sociais. E quem pensa que as barreiras culturais e sociais impedem as mulheres de fazer literatura no Oriente Médio se engana. Vinda da Arábia Saudita, a autora Rajaa Alsanea sacudiu o cenário literário da região já em seu livro de estreia, Vida dupla (2005). Retratando de forma direta a intimidade de quatro ricas jovens sauditas, o livro (conhecido em outros países como Garotas de Riad) foi banido no país natal da autora – o que só estimulou uma série de tiragens clandestinas, é claro. Desde então, Alsanea não publicou mais, dedicando-se à odontologia – uma escolha prudente, considerando que o regime saudita é notório pela repressão a manifestações artísticas fora da norma. Outras mulheres que estão juntando palavras e frases para contar e sentir o Oriente Médio são a também saudita Raja'a Alem, que escreve desde novelas e peças teatrais até jornalismo literário e livros infantis; a libanesa Hoda Barakat (que teve seu livro Correio noturno lançado recentemente no Brasil); e a iraquiana Inaam Kachachi, que trabalha como jornalista na França e recebeu prêmios internacionais com sua obra de ficção The American granddaughter (2008). 17
Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.
Ilustração do mês Catarine Rocha é uma ilustradora de 24 anos. Suas composições são influenciadas por movimentos artísticos como simbolismo, romantismo, decadentismo e artes narrativas em geral. Seus trabalhos focam em temas derivados de seus processos de autoinvestigação e escrita, como mortalidade, religião, beleza e decadência, violência e inocência, mitologias e uma visão de mundo melancólica. Catarine retratou a cena em que Cem finalmente encontra a mulher ruiva depois de muito procurar pela cidade. Na porta de um café, ele a observa gesticular, mas, quando ela o convida a se juntar ao grupo, o garoto foge. 18
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A mulher ruiva
POSFĂ CIO
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OLÁ, TAGGER A mulher ruiva é um daqueles livros que dá muito o que pensar: quer dizer, o que você acabou de ler? Bem, estamos aqui para te ajudar: este posfácio está recheado de reflexões a respeito da temática do livro. Se você sentiu que a obsessão de Cem Çelic lembrou algum livro do passado, você tem razão: a obsessão é um tema clássico da literatura – e, neste posfácio, discutimos algumas das melhores histórias do tipo. E tem mais: a psicanalista Diana Corso leu a obra do mês e nos concedeu uma super entrevista. Ela mostra um olhar psicanalítico sensível a respeito da relação de pais e filhos aplicada à história de Orhan Pamuk. De lambuja, um perfil do curador do mês, o amazonense Milton Hatoum, e sua relação afetivo-literária com a memória. Boa leitura!
“Filhos têm sempre um desejo rebelde de que fiquem desiludidos com aquilo que encantou seus pais.” HUXLEY, Aldous. “Música na noite e outros ensaios”
SUMÁRIO posfácio
4 Um passado que nos move para a frente
7 A inerente obsessão
10 Entrevista O enigma entre pais e filhos
14 Crítica Todos os "quase" de Cem Çelic
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Perfil
UM PASSADO QUE NOS MOVE PARA A FRENTE Amazonense, o curador Milton Hatoum se refere à memória como “deusa tutelar da literatura”
PRISCILA PACHECO
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A memória é o motor da escrita de Milton Hatoum. O escritor, que afirma não ser capaz de escrever no presente, busca no passado a força vital para movimentar histórias que gravitam em torno de um grande eixo: a lembrança. Desde Relato de um certo Oriente até o mais recente Pontos de fuga, Hatoum empreende escavações no tempo e no espaço para criar narrativas e personagens atravessados pela passagem do tempo. Brasileiro de ascendência libanesa, Milton Hatoum nasceu e cresceu na capital amazonense. Dos tempos de infância, recorda os encontros com diferentes culturas,
O autor Miltom Hatoum Regina Elias, CCJ, CC BY-NC-SA 2.0
histórias e costumes vividos na casa da família, algo que mais tarde perceberia essencial em sua formação como escritor. Lembranças como essa aparecem em Escrever à margem da história, texto que escreveu em 1993 para o Seminário de Escritores Brasileiros e Alemães do Instituto Goethe de São Paulo. No mesmo texto, discorre sobre a tradição oral: diferentes narradores contando histórias, invocando saberes de longe, revelando o poder da língua. Hatoum conta que a mãe o incentivava a falar português, “porque a língua é a pátria”. Em sua obra, entrelaçados com a memória, esses são elementos que andam juntos. Aos 15 anos, sai de Manaus para terminar os estudos em Brasília e, de lá, parte para São Paulo, onde se forma em Arquitetura e Urbanismo pela USP. A viagem, para ele, é uma viagem “da periferia para vários centros”, porque “o centro é sempre plural”. A jornada não terminaria ali: em 1980, viaja para a Espanha como bolsista do Instituto Iberoamericano de Cooperación. Vive em Madri, Barcelona e, por fim, em Paris, onde estuda literatura comparada na Sorbonne. A dedicação aos estudos é uma constante na trajetória de Hatoum antes e depois de começar a publicar. Foi professor em diferentes momentos e membro de diversos programas de escrita. Em 1989, Relato de um certo Oriente marca o início de uma produção literária calcada sobre a estrutura memorialística. Hatoum já se referiu à memória como “espécie de deusa tutelar da literatura”: de seus meandros e contornos nem sempre precisos nascem as trilhas da ficção. Em Dois irmãos, seu segundo romance, publicado 11 anos depois do livro de estreia, Hatoum novamente se debruça sobre uma narrativa envolvendo memória e passado, assim como nos livros que se seguiriam – Cinzas do Norte, Órfãos do Eldorado, A cidade ilhada (contos), A noite da espera e Pontos de fuga. Milton Hatoum é um dos mais respeitados ficcionistas brasileiros, tanto pela potência que sua produção evoca quanto pelos diversos prêmios recebidos. Até hoje, para citar apenas alguns, já foram quatro Jabutis, Prêmio BRAVO! de Literatura e Prêmio Portugal Telecom. Seus livros já venderam mais de 300 mil exemplares no Brasil e sua obra foi traduzida em 12 línguas e publicada em diversos países. 5
Milton Hatoum. SESCSP, CC BY-NC-SA 2.0
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Sondar a memória, lançar nova luz sobre outras épocas e acontecimentos, dar novos sentidos ao passado – tudo isso está presente na ficção de Milton Hatoum, que, como ele próprio já afirmou, inventa a partir de uma experiência dupla: a vida e a leitura. Esse traço aparece também em seu projeto mais recente, a trilogia O lugar mais sombrio, cujos dois primeiros títulos foram publicados em 2017 (A noite da espera) e 2019 (Pontos de fuga). Sobre o primeiro volume da trilogia, Hatoum já contou que chegou a 12 versões – e isso antes de ir para a editora. Ele escreve à mão. Talvez não à toa o tempo se faça tão presente em sua escrita: escrever à mão é um trabalho que leva tempo, ao mesmo tempo que deixa esse tempo agir. Por isso, também, os intervalos longos entre um livro e outro. No processo de escrita, para não se perder, vale-se da formação em arquitetura: cria gráficos, desenhos e linhas temporais para ajudar a estruturar a trama das histórias. Em Relato, a protagonista volta para a casa da família depois de anos fora, mas percebe que a volta coincide com a própria impossibilidade de realizar esse retorno: o passado é passado, o que carregamos na memória já não condiz com a realidade, a vida no presente é outra. Na literatura, como na vida, estamos sempre em busca de um norte, esse lugar fictício do qual o próprio autor já falou: “menos uma geografia do que um lugar que se busca. Lugar que já não mais existe, ou lugar utópico que só existe na memória. Em outras palavras: essa tentativa de um retorno à terra natal só é possível através da linguagem”. Hatoum situa suas histórias no passado, mas o que elas fazem é diferente: nos movem para a frente.
Análise
A INERENTE OBSESSÃO No Brasil e no mundo, enredos de buscas compulsivas marcam a literatura desde sua criação
HENRIQUE SANTIAGO
Imagine uma conversa informal entre Cem Çelic, Capitão Ahab e Bento Santiago. Não estamos falando de homens, apenas: os protagonistas de A mulher ruiva, Moby Dick e Dom Casmurro têm trajetórias, cada um ao seu modo, marcadas pela obsessão. Possivelmente falariam por horas sobre o desejo imparável de elucidar o sumiço de seu pai, a vingança contra uma baleia cachalote ou a tentativa de provar o adultério da ex-amada. Na literatura, há inúmeros enredos clássicos delineados pela obsessão de um ser pelo outro – e sobre como essa compulsão pode desencadear uma série de eventos trágicos. Além dos autores já mencionados, a temática já foi explorada por escritores de diferentes épocas – da ambição do homem em criar o seu semelhante em Frankenstein (1818), de Mary Shelley, até o distanciamento de Yeong-hye de sua família em A vegetariana (2007), de Han Kang. Sentimento inerente à natureza do ser humano, portanto, a obsessão é ressignificada na literatura com o passar dos tempos. Bruno Rafael Vieira, doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), avalia que se trata de um assunto universal, como o amor e a violência, por isso há uma vasta produção – inclusive de obras-primas – desde o advento da escrita. “A obsessão está à nossa volta, inclusive no dia a dia, porque sempre buscamos algo. Não como o Capitão 7
Ahab em Moby Dick, mas algo que ansiamos. O limite da obsessão é um questionamento importante desse romance e, quando se ultrapassa esse limite, entra-se em uma alameda muito destrutiva. A obsessão é inerente ao ser humano, não há como negar, e na literatura é um tema recorrente”, aponta.
“COMO NA VIDA, O COMPORTAMENTO OBSESSIVO DE UM INDIVÍDUO SE CONFUNDE COM A PUREZA DE UMA PAIXÃO.” Não à toa, literatos se dedicaram à análise de narrativas sobre a questionável conduta de alguns protagonistas que chegam às últimas consequências por não ter um amor correspondido. Se você pensou em Heathcliff, de O morro dos ventos uivantes, ou Humbert Humbert, de Lolita, é bem por aí. Mas não é preciso sequer sair do Brasil para conhecer um desses tipos. Um dos livros definitivos da língua portuguesa, Dom Casmurro, é estruturado a partir da hipótese de infidelidade de Capitu segundo seu marido, Bento Santiago. Mas se hoje o enigma da perfídia parece resolvido, o benefício da dúvida não foi dado à personagem feminina quando o romance foi lançado, em 1899. Quem afirma isso é a professora e doutora em crítica literária pela Universidade de Campinas (Unicamp), Amara Moira. Ela conta que só foi a partir dos anos 1960, com a publicação de O Otelo brasileiro de Machado de Assis, da estadunidense Helen Caldwell, que foi iniciado o debate sobre a possibilidade de Capitu ser uma mulher fiel, e não o contrário. 8
Ilustração de Rockwell Kent para edição de Moby Dick (1930). Reprodução, domínio público
“Em Dom Casmurro, não temos a história de uma infidelidade, mas sim a história da obsessão de um homem com a possibilidade de ter sido traído e, junto com isso, uma narrativa sobre como um homem se comporta quando desconfia da sua companheira. [O escritor] Silviano Santiago dirá, em Uma literatura nos trópicos, que, se Dom Casmurro for um estudo, ele será tão somente um estudo do ciúme, e não do adultério feminino, uma vez que só temos acesso ao pensamento do narrador-protagonista.” Contradições à parte, apenas a literatura tem a capacidade de entregar enredos que revelam nessa profundidade os muitos matizes da natureza obsessiva do ser. Uma coisa, no entanto, é certa: livros como esses que foram citados ao longo do texto devem ser devorados. Com obsessão, óbvio.
Outros livros sobre obsessão Otelo, de Shakespeare (1603) O colecionador, de John Fowles (1963) Misery – Louca obsessão, de Stephen King (1987) Nó na garganta, de Patrick McCabe (1992) 9
Entrevista
O ENIGMA ENTRE PAIS E FILHOS Autora de livros como Psicanálise na Terra do Nunca e Fadas no divã, a psicanalista Diana Corso deu uma olhada em primeira mão em A mulher ruiva – e, nesta entrevista, traz elementos para pensar ainda mais sobre esse drama edipiano em solo turco.
Diana Corso. Divulgação
TAG – O confronto pai vs. filho parece ser um dos mais antigos e, ao mesmo tempo, um dos mais distantes de se resolver na literatura. Como você vê essa questão? Porque nos é tão importante falar (e silenciar, e criar) a respeito disso? Diana Corso – Costumo pensar que, como psicanalista, sou editora de livros autobiográficos privados, constantemente reescritos, que vão interpretando e, ao mesmo tempo, tecendo uma vida. Nosso autor (Orhan Pamuk) disse, no seu discurso de recebimento do Nobel, que não escreve para contar uma história, mas sim para compô-la. Para esclarecer essa delicada diferença retórica, podemos pensar nos livros através de uma metáfora, que aparece em várias ideias de Jorge Luis Borges e na trama do livro História sem fim. Haveria um livro que vai sendo escrito enquanto a história acontece, de tal modo que
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não sabemos se ela acontece porque o livro está sendo escrito, ou se ele está sendo escrito porque ela acontece. Nessas narrativas de uma vida, os pais vão mudando de figura, exercendo os papéis que precisamos que desempenhem. Há a herança dos atos e palavras deles que mudaram nossa vida, mas, na verdade, o que nos marca é o que nunca foi explícito. Um filho sente que precisa superar seus pais, mas, para conseguir isso, precisa desmerecer quem eles são, senão seus modelos seriam insuperáveis. Herdar dos pais é superá-los e cortar a cabeça deles, para depois descobrir que já haviam se instalado em nosso interior. O enigma entre pais e filhos nem sempre é trágico, como em Édipo Rei ou Rostam e Sorhab, mas costuma surgir na literatura com uma carga intensa de conflito e desafio. É destino do pai confrontar o filho, e vice-versa?
Freud não se apoiou na tragédia de Édipo e sua família para que isso se tornasse uma interpretação clichê, obrigatória, sobre qualquer coisa que se diga em uma análise. Essa história surgiu nos pensamentos do pai da psicanálise, helenista amador que era, como forma de dizer que cada um encena sua própria tragédia familiar. Quando dizemos tragédia, não significa, como no caso do herói tebano, que toda família caminhe para um final catastrófico. O trágico nesse caso é a força de um desígnio impondo-se sobre as próprias escolhas. Freud também queria ilustrar com isso que nosso inconsciente nos encaminha para lados dos quais ele “sabe” melhor que nós. Somos mais nossos desejos e ruminações ignorados do que nossa consciência gostaria de admitir. Quanto aos personagens da trama edipiana clássica, sua importância na construção da teoria psicanalítica é o enfoque nos conflitos familiares, principalmente naqueles que nos determinam sem que saibamos deles. Em casa, odiamos quem deveríamos amar, apegamo-nos a quem deveríamos abandonar, roubamos o que poderia ser gratuito, matamos para crescer. Claro, existem dois planos, um na fantasia e outro real: drama mesmo é quando a fantasia desce para a realidade. 11
O pai, na literatura, surge frequentemente como uma figura decepcionada com os caminhos escolhidos pelos filhos. São as expectativas dos pais que moldam os filhos (na literatura e, em consequência, no mundo)? Ou talvez seja o contrário, e são os filhos que, negando os pais, dão contorno definitivo a eles?
É óbvio que os filhos moldam (compõem, como diria Pamuk) em sua mente as figuras imaginárias dos próprios pais. Não temos uma visão objetiva de nossos progenitores, sobre eles recai uma única certeza: nos trouxeram ao mundo e faziam conosco o que bem entendiam enquanto éramos minúsculos e dependentes. Essa subserviência inicial é também origem de muitos conflitos. Nesse livro, ao resgatar a figura de Sohrab, o jovem persa vítima de filicídio, [Pamuk aponta] que esses conflitos têm duas mãos: os pais também desejam algo que o filho pode lhes dar.
“REALIZAR-SE ATRAVÉS DOS FILHOS, ORGULHAR-SE DELES, OSTENTAR SUAS VITÓRIAS FRENTE AOS OUTROS CASAIS. É DESSA FORMA EM QUE O NARCISISMO DOS PAIS ESTENDE-SE AOS DESCENDENTES.” Porém, isso tem sua contrapartida de invejas: quando alguém tão parecido com eles desabrocha enquanto eles fenecem; quando percebem que a expectativa de vida dos filhos é algumas décadas maior que a deles; quando essas conquistas aparecem num formato condenável para seus valores; quando, envelhecidos, começam a afogar-se em indômitas novidades, nas quais os filhos nadam como peixe na água. Aqui estamos mais próximos do que seriam fantasias de filicídio do que de parricídio.
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“SOMOS MAIS NOSSOS DESEJOS E RUMINAÇÕES IGNORADOS DO QUE NOSSA CONSCIÊNCIA GOSTARIA DE ADMITIR. ” De que modo a mulher, na figura da mãe, surge nos confrontos entre pai e filho da literatura? O fato de estarmos falando de um livro sobre pais e filhos, mas que foi batizado pelo seu autor de A mulher ruiva, nos dá o que pensar…
[risos] Sim, a pegadinha edipiana de que todo conflito está centrado na disputa pela mãe ou uma figura representativa desta. É interessante notar que, nessa obra, a tradicional separação de desejos que domina as mentes masculinas clássicas, entre a santa e a puta, apareça colada em personagens maternas. Nas duas “mães” da vida de Cem, para ser mais específica (não posso ser mais explícita sob risco de spoiler). Na verdade, a figura da mãe na história de Édipo já é cindida em duas: sua primeira aparição é um monstro devorador. Lembrem, o prêmio por eliminar a Esfinge seria a mão da rainha, que está viúva. A mulher ruiva não é apenas essa “mãe que produz sonhos lúbricos”, mas também representa o despertar do desejo. Ela é como uma representação simbólica daquilo que perseguimos a vida inteira, e está intrincada em uma disputa com a figura paterna, que é preciso eliminar do caminho para angariar as forças necessárias à conquista. Na imaginação dos jovens édipos, só pode haver um senhor vivo em cada castelo.
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Crítica
TODOS OS “QUASE” DE CEM ÇELIC
MARCO SYRAYAMA DE PINTO
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Tendo nascido em um país que sofreu transformações drásticas em menos de um século, não surpreende que Orhan Pamuk seja (ou esteja, melhor dizendo) obcecado, com um elemento substancial de nostalgia, pelas transformações de sua nativa Istambul. Também, pudera: ele viu mudanças na sociedade (com a adoção da lei civil suíça, vestimenta ocidental, adoção de sobrenome) e na língua turca, que não somente mudou de alfabeto, como teve seu léxico árabe/persa surpreendentemente reduzido a menos da metade, além da introdução de inúmeros neologismos duvidosos. A iniciar pelo penúltimo livro de Pamuk, Uma sensação estranha, testemunhamos, juntamente com os habitantes de Istambul, o gradual desaparecimento de uma ocupação que existiu há séculos na cidade: a de vendedor de boza, uma bebida típica da região. Ademais, compartilhamos a mesma melancolia do autor ao observar sua amada Istambul, à qual ele passou a ser inextrincavelmente associado – assim como São Petersburgo a Dostoiévski, Dublin a Joyce e Paris a Proust –, ser, do mesmo modo que suas ocupações tradicionais, devorada por arranha-céus, que passaram a ocupar mesmo as partes mais longínquas e (ainda) verdes de seus arrabaldes.
O recurso é repetido em A mulher ruiva: no romance, ele se utiliza do protagonista, cuja narração é em primeira pessoa, para falar de outra antiga profissão engolida pela modernidade: a de cavador de poços. O narrador, Cem Çelic (pronuncia-se djém tchelík), não chega a cavar um poço, mas participa ativamente dessa prática quando, aos dezesseis anos de idade, vai trabalhar como ajudante do experiente cavador de poços Mestre Mahmut. Tal ofício, como nos relata Pamuk (um cronista e pesquisador de primeira), era dominado por armênios no período otomano, sendo assumido pelos turcos a partir do período republicano (década de 1920). Com a vertiginosa modernização do país, muitos migrantes oriundos de regiões pobres da Anatólia vieram se estabelecer em Istambul (algo não incomum para nós brasileiros – vide os nordestinos que, no século passado, migraram para o sudeste), fixando-se em regiões então desabitadas da cidade e construindo suas gecekondular. Saliente-se que, à época, não havia saneamento básico nessas regiões, daí a necessidade de construção de poços. Modernidade à parte, vemos também a construção, ao longo de vários capítulos, de uma relação amistosa (e por vezes até terna) entre Cem e Mahmut, quase que de pai e filho. Homem experiente e conservador, Mahmut faz o papel do pai ausente que Cem (e Pamuk, também) teve, contando anedotas de seu ofício e contos tradicionais do Corão ou da sabedoria popular. Até que, no vilarejo vizinho de Öngören, ocorre o incidente que marcaria a vida de Cem: uma peça baseada numa parte do épico persa Shahnameh (também conhecido em português como Épica dos reis), que trata do filicídio de Rostam para com Sohrab. Em um magistral emaranhado de acontecimentos, Pamuk introduz, com a peça, a personagem que dá nome ao livro, a atriz ruiva Gülcihan. Como é de se esperar, a mulher muda a vida de Cem por completo. Não é demasiado dizer que a estada dele naquela cidade, apesar de ter custeado seus estudos do pré-vestibular, foi um pesadelo. Dois momentos breves e impensados (e até interrelacionados), povoariam sua mente para sempre: uma noite de amor – sua primeira – com Gülcihan, por quem se apaixona, e um acidente (quase) fatal com Mestre Mahmut. 15
Recorte do cerco de Shahnameh. Reprodução
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A obsessão perdura na mente de Cem (alterego do próprio Pamuk) até mesmo depois de seu (quase) feliz casamento com Ayşe, logo depois de se formar como geólogo. Percebe-se aí que o período na escavação influencia até a escolha de sua profissão futura. Perceba também o leitor que esses "quase", quando se trata de Pamuk, não são nem de longe casuais: descobrimos, depois do típico suspense pamukiano, que Mahmut, apesar do grave acidente dentro do poço, sobreviveu e, não menos importante, achou água nele e tornou-se abastado. O “quase” referente ao casamento se refere à infertilidade de Ayşe – único empecilho para a felicidade total do próspero casal. A mulher ruiva, com a tonalidade capilar que gera tanta suspeita nos homens e mulheres turcos (a maioria de cabelos escuros), volta anos depois para revelar algo que custaria a vida de Cem. Ela teve um filho, o excêntrico Enver. Num encontro não planejado, ele aos poucos descobre que Serhat, um jovem que supostamente trabalha com Gülcihan, é seu filho. Cem, que sonhara com um primeiro encontro melodramático com seu filho, se depara com uma situação totalmente ad(in)versa. Vale ler para descobrir. É a vida imitando o mito. Bem Pamuk.
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A multipremiada Conceição Evaristo renova sua parceria com a TAG para indicar um dos livros mais belos e arrepiantes que você vai ler este ano. Inédita no Brasil, essa obra traz como protagonista uma mulher que, ao decidir seguir o caminho da independência, ultraja uma cidade inteira. Entre reflexões sobre a maternidade imposta, sobre fidelidade, e fazendo uso de um fino jogo de duplos, sua autora – premiada com o Nobel de Literatura – formou com esse livro uma parte integral da crítica literária feminista negra. 17
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O thrille que deu premiad
O JARDIM DE BRONZE
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GUSTAVO MA
ICH nasceu na Argentin a em 1963 e trab alhou como arquiteto até 2002, quando foi convidado para roteirizar o seria do argentino Los Simu ladores. Desde entã o, tem se dedicado em tempo integ ral às carreiras de rote irista, escritor e professor. O jardim de bron ze é o seu primeiro romance publicad o, que marca tamb ém o início da saga de suspense prot agonizada por Fabián Dan ubio.
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Ainda assim, em um nostálgica e tom ada corruptos, o dese spe combustível que man Ele conta com a ajud e talentoso dete tive p disposto a desvenda ro por trás do desa parecim