"O céu da meia-noite" - Revista TAG Curadoria mar/21

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O céu da meia-noite

PREFÁCIO



OLÁ, TAGGER O mês de março nos leva à amplitude do espaço e à singeleza do coração. Diante das estrelas, quão pequenos somos? O céu da meia-noite se oferece a essa reflexão, mas não só. É por isso que te apresentamos esse livro com o lirismo que a beleza do universo merece. A sensibilidade da jornalista Luciana Thomé nos guia pelas jornadas da astronauta Sully e do astrônomo Augustine. Neste prefácio, curadora e autora nos falam sobre o mundo em que vivemos e sobre a solidão das coisas que estão prestes a terminar, em duas entrevistas exclusivas. Leia com olhos vivos, tagger, esta é uma leitura para sonhar. Ou, para citar o doce e.e cummings (em tradução de Cecília Rego Pinheiro): mergulha nos sonhos ou um lema pode ser teu aluimento (as árvores são as suas raízes e o vento é o vento) confia no teu coração se os mares se incendeiam (e vive pelo amor embora as estrelas para trás andem) Te desejamos uma leitura estelar.


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março de 2021

COLABORADORES

FERNANDA GRABAUSKA

RAFAELA PECHANSKY

LAURA VIOLA HÜBNER

Editora-chefe

Publisher

Assistente

SOPHIA MAIA

ANTÔNIO AUGUSTO

LIZIANE KUGLAND

Assistente

Revisor

Revisora

PAULA HENTGES

KALANY BALLARDIN

GABRIELA BASSO

Designer

Designer

Designer

Impressão Gráfica Ipsis

Imagem de capa Arte de Bjorn Jonsson com imagens de NASA CC-BY

COMO MANUSEAR A REVISTA Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.

Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se! Não esqueça de destacar a ilustração colecionável.


SUMÁRIO prefácio

5 O livro indicado

7 Unboxing

8 Encontros literários

9 Entrevista Lily Brooks-Dalton

13 Entrevista Maja Lunde


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O livro indicado

BOM DIA, MEIA-NOITE! Uma obra sobre ser pequeno, mas atento em relação às coisas do infinito, espera você neste março

LU THOMÉ

Recorte do kit O céu da meia noite

Ciência e amor estão relacionados para além dos fatores biológicos. E, embora pareçam habitar lados opostos, como o azul e o vermelho, o fora e o dentro, o dia e a noite, pertencem ao espectro que simboliza o ato de ser humano. É esse olhar sensível, apaixonado e extremamente bonito que o romance O céu da meia-noite, da escritora norte-americana Lily Brooks-Dalton, traz ao leitor. O livro, formatado como uma narrativa pós-apocalíptica e repleto de termos científicos, foi publicado originalmente em 2016. E possui também uma adaptação para o cinema, desde dezembro de 2020 na plataforma de streaming Netflix, com George Clooney e Felicity Jones no elenco. Ao olhar para o céu, pensamos em nossas existências, sentimentos, culpas ou esperanças. Na imensidão daquilo que sequer podemos vislumbrar, assumimos nossos tamanhos de grãos de areia, mas com universos igualmente imensos dentro de nós. Esse é o impacto da ciência naqueles que se encantam pela área e por seus enigmas. Também é a metáfora que carrega todo o sentido de amar e de ser amado. A narrativa se concentra em duas personagens aparentemente diferentes e opostas. O cientista e pesquisador sênior Augustine Lofthouse se vê abandonado e sozinho depois que o Observatório Barbeau é desocupado 7


às pressas. Movido por uma paixão pela ciência, resolve ficar e continuar o trabalho. Igualmente movida pelo encanto e mistério, a especialista Sully resolve deixar a Terra (e a filha Lucy) para viajar até Júpiter a bordo da nave espacial Aether. Em comum, os dois seguem em cenários vazios e sem comunicação com o restante do planeta após um evento misterioso. Augie caminha sobre a neve no ambiente branco e inóspito do Ártico na companhia de Iris, uma menina de cabelos bagunçados e olhos de avelã, que é esperta e antenada, mas surgiu sabe-se lá de onde, sem pais e sem contar como foi parar no polo do mundo. E Sully flutua no espaço escuro e distante, acompanhando a tripulação da Aether no ansiado retorno à Terra. O que terá acontecido com toda a humanidade? Foi algum tipo de desastre ambiental ou atômico? Como Iris sobreviveu no meio da tundra e do gelo até aparecer atrás de uma estante do laboratório? Como Sully e os outros tripulantes vão resistir ao clima tenso e sem receber notícias do centro de comando espacial? É nas ondas de rádio, num evento aleatório, que Augie e Sully têm o seu ponto de intersecção na história. Um encontro sonoro no qual os dois querem obter mais informações sobre o que aconteceu com a Terra e seus habitantes e o porquê do silêncio absoluto. Mas que vai simbolizar muito mais do que isso. Esse é um livro sobre solidão e medo. Sobre o universo dentro de nossos corpos e no exterior de nós. E sobre como a ciência nos mostra que nem tudo é coincidência. “This is Major Tom to Ground Control”, já cantava David Bowie na música preferida da tripulação da Aether. A vida é uma viagem que envolve sofrimento e alegria e alguns momentos mágicos, como os segundos em que a madrugada e o amanhecer se encontram no céu para um abraço presenciado pelo infinito.

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MIMO O universo e seus corpos celestes são quase que personagens no livro O céu da meia-noite. A narrativa instiga e faz questionar o valor do ser humano na vastidão do espaço, que serve de cenário para o desenrolar da história. Assim como no livro, queremos que a beleza da galáxia enfeite o ambiente do nosso associado e que seja útil no cotidiano. Por isso, o mimo deste mês é um conjunto de porta-copos lunares, em referência às quatro Luas de Galileu citadas ao longo da história: Io, Europa, Ganimedes e Calisto. Sozinhos ou com companhia, esperamos que os porta-copos participem de momentos estelares da sua vida!

Na capa do livro deste mês, a procura foi contextualizar a solidão de Augustine. As poucas cores na Terra - das roupas do personagem e da areia -, contrastam com as múltiplas cores e faces do universo, refletidas num imenso mar que espelha e compara o infinito do espaço com a pequenez do indivíduo. Na luva, foram representadas as Luas de Galileu, e na capa da revista, buscou-se retratar a textura da superfície de Júpiter. Todo o projeto gráfico foi produzido pela equipe de design da TAG.

Unboxing

PROJETO GRÁFICO

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ENCONTROS LITERÁRIOS Todos os meses, associados de todo o Brasil se reúnem para transformar a leitura em pauta de conversa. Mesmo migrando para o ambiente digital em função da pandemia, mais de 800 Encontros aconteceram ao longo de 2020: uma prova de que a leitura conecta! “Descobrir o grupo de leitura e o Encontro salvaram a minha sanidade... Fiz amigos do Brasil inteiro sem sair de casa!” — Marcinha Mel, anfitriã do Encontro TAG Nacional

"A contribuição de cada um, descortinando as nuances da narrativa a partir das próprias experiências e acolhendo a perspectiva do outro dentro do seu contexto social, é o que nos une e nos fortalece em tempos difíceis. Somos resistência!” — Nayara Suyanne, Diretoria do Encontro Cuia Literária

Para criar ou participar de um evento, acesse a aba Encontros do app da TAG! Aponte a câmera do celular para o QR Code para abrir ou baixar o aplicativo. Para saber mais, acesse clube.taglivros.com/encontros

Encontro TAG Curadoria Nacional, em setembro de 2020

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XXI Colóquio Cuia Literária em Teresina (PI), em 30/11/2019


Entrevista

DE MÃOS DADAS COM A ESCURIDÃO

FERNANDA GRABAUSKA

Em uma busca rápida, Good morning, midnight pode ser tanto um poema de Emily Dickinson quanto um romance de Jean Rhys. Para Lily Brooks-Dalton, os dois falam sobre o sentimento de dar as mãos ao vazio e à dor que o acompanha – razão pela qual o título original do romance é um aceno às duas autoras. Nesta entrevista exclusiva à TAG, a autora de O céu da meia-noite fala sobre as maravilhas do rádio, sobre o julgamento das mães pela sociedade e sobre como a mudança é bem-vinda a qualquer hora. TAG – Como você criou o enredo para o livro? Como você decidiu qual seria seu título original ? Lily Brooks-Dalton – A história surgiu durante o tempo em que trabalhei em uma rádio pública no (estado norte-americano do) Massachusetts – não era o Ártico, mas eu com certeza peguei neve. Fiquei interessada na engenharia do rádio, e quanto mais eu lia a respeito, mais me sentia inspirada pelo que aprendia. O rádio é um mecanismo deslumbrante, o que o torna um meio muito interessante da perspectiva pós-apocalíptica. A comunicação via rádio pode ser tanto uma criança falando com o amigo que mora do outro lado da rua por um walkie-talkie quanto a NASA conversando com os astronautas na Estação Espacial Internacional. Se um furacão arranca linhas telefônicas e elétricas, o que resta? Radioamadores, veja só. Eu não conseguia parar de pensar sobre rádio. E, depois, eu comecei a ler a respeito de radioastronomia e a comunicação da NASA. Foi aí que o elemento espacial do livro se tornou o foco. A respeito do título, eu amo muito essa pergunta, então agradeço por fazê-la. Terminei o 11


livro e não conseguia encontrar um título do qual eu gostasse. Acho que salvei o original como O sol da meia-noite no meu computador enquanto trabalhava nele, mas nunca gostei muito desse título. Estava guardando lugar. Sempre amei a poesia de Emily Dickinson (e eu morava em Amherst, onde ela viveu, enquanto escrevia o livro), e acho que cruzei com o romance de Jean Rhys ou quando estava escrevendo o primeiro rascunho ou logo depois. Mas, uma vez tendo terminado de lê-lo, não conseguia tirar a frase da minha cabeça. Voltei ao poema de Dickinson. Reli o romance de Rhys. E me pareceu que estávamos todas, de maneiras radicalmente diferentes, falando de caminhar de mãos dadas com a escuridão, com a morte, com o luto. Era essa coragem que eu desejava para meu livro. Você mencionou ter assistido a muitos filmes de ficção científica nesse processo de pesquisa para o romance. Contato é um favorito. 2001 – Uma odisseia no espaço, é outro. Em minha opinião, Lunar é um filme muito bom e Solaris, fascinante (e incompreendido criticamente, penso). E, óbvio, Gravidade. Lembro de ter visto Gravidade no cinema enquanto estava escrevendo – foi um filme que ficou em cartaz por muito tempo, então estimo que estivesse nos estertores de meu primeiro rascunho na época em que eu o assisti... suponho que tenha sido durante o inverno, no comecinho de 2014. Eu assisti àquilo sentada, estupefata depois do final, sentindo como se alguém estivesse lendo meus pensamentos. Voltei para mais uma sessão na semana seguinte. E, enfim, sete anos depois aqui estamos, com George Clooney (que estava fantástico em Gravidade) no leme da adaptação de O céu da meia-noite. Maluco, você não acha? Existem todos esses filmes “sérios” a respeito do espaço, mas preciso acrescer aqui que gosto dos estranhões na mesma medida. O quinto elemento está pau a pau com Contato. Como você se sentiu ao ter o livro adaptado para a tela? Como você se sentiu a respeito do resultado? É algo extraordinário ver alguém tomar sua história e traduzi-la para um meio tão incrível. Geralmente, sou muito boa em verbalizar meus sentimentos – vem da lida –, mas essa 12


experiência foi muito difícil de descrever. Foi uma honra enorme, devo dizer antes de tudo. Então posso dizer que, de modo geral, eu realmente amei ver como Mark [L. Smith], o roteirista, e depois George, tomaram nas mãos deles a minha história. E, sabe, acho que volta àquilo de sentir uma ligação com o poema de Emily Dickinson e o romance de Jean Rhys – a ideia de que uma história ou uma obra de arte é algo que transmite uma herança. Tem uma linhagem sua. É uma coisa maravilhosa ser um elo na corrente da inspiração de outra pessoa. Foi uma experiência muito especial. Pois então. As razões de Augie para ficar na Terra ficaram extremamente óbvias, mas fiquei curiosa a respeito do porquê de você ter omitido a razão pela qual a humanidade se esvaiu da Terra. Por que você fez essa escolha? Bem, eu não pensei em todos fugindo da Terra. O que eu imaginei foi uma espécie de fim global – mas como um evento de bastidores. Deixei isso indefinido, mesmo para mim. Há muitas histórias maravilhosas e meticulosas a respeito de como e por que as coisas desandaram. E eu queria agir com intenção a respeito do fato de como e por que isso não é um ponto fundamental para o desenvolvimento dessa história em particular. Também quis criar um vácuo para o leitor preencher. Acho tão interessante como diferentes leitores preenchem as lacunas de modos diferentes – por exemplo, eu nunca havia falado com alguém que interpretou como uma fuga coletiva da Terra. E é isso que eu amo. Mas a razão principal pela qual não expliquei o fim do mundo foi porque quis que a ausência de explicação resumisse ao leitor o seguinte: a história que você vai ler não fala sobre o que aconteceu com o resto da humanidade. Esta é uma história sobre um punhado de indivíduos e como eles lidam com essa experiência que é extremamente pessoal. Augie muda muito ao longo da história. Ele já tinha um destino delineado quando você começou a escrever ou você se afeiçoou a ele e lhe deu um lado mais doce? Já sabia como queria que o livro terminasse logo no início. Eu estava apaixonada pelo final tão logo resolvi o começo, então escrevia basicamente para chegar até onde eu 13


estava pensando. Realmente quis explorar essa teimosia da identidade por meio de Augie. Desde o início de nossas vidas, vamos construindo nossas identidades – descobrindo quem somos, o que queremos – e, depois, gradualmente, acho que alguns de nós decidem que encerraram esse processo. Somos quem somos, caso encerrado. Mas não acredito que isso seja verdade. Penso que, às vezes, construímos nossas próprias gaiolas desse modo, e depois nos sentamos dentro delas, pensando que agora está tarde para mudar as coisas de que não gostamos, lamentando tudo aquilo a que não temos acesso... enquanto a porta está aberta. Sempre esteve! Essa ideia de que é “muito tarde” para uma mudança é fascinante e, penso eu, profundamente defeituosa. Não existe “muito tarde”. Efeitos variam, mas a mudança cuidadosa sempre tem seu valor, não importa o quão cedo ou tarde ela ocorra. É possível que um ou outro leitor julgue Sully por desistir de criar a filha para ir atrás do sucesso profissional. Como foi a experiência de escrever essa personagem? Eu acho que as expectativas que temos de mães e de pais são muito interessantes, e queria enxergar isso tudo com os olhos de Sully. Há outros astronautas naquela missão que deixaram as famílias. Mas eles são pais. Para ser justa, Sully desistiu do papel de mãe de um modo que suas contrapartes masculinas não o fizeram, e isso é uma distinção importante. Mas é interessante, não é? As mães complexas me atraem – mães que, talvez, não queiram ser mães e ponto, mães “ruins”, mães que lutam para conseguirem se sentir maternais. Noto muitas histórias nas quais os pais têm muito espaço para desenvolverem complexidade, mas poucas nas quais as mães têm permissão para agir do mesmo modo. Pessoas me disseram que isso é uma questão de verossimilhança, que uma mãe jamais se comportaria como Sully. O que é ridículo, mães abandonam seus filhos o tempo todo. Mas o que me interessa é por que somos tão rígidos em nosso entendimento daquilo que uma mãe é, o que torna uma mãe boa e como uma mãe precisa se comportar. Não creio que tal rigidez exista na maneira como pensamos a respeito dos pais.

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Entrevista

“A FICÇÃO FALA AOS NOSSOS SENTIMENTOS” FERNANDA GRABAUSKA

Maja Lunde Oda Berby. Divulgação.

Os livros de Maja Lunde nos fazem agradecer pelas gotas de água potável que nos chegam pelos canos. Pelas abelhas que enxergamos carregar o corpo de pólen antes de alçar voo. A pesquisa para uma literatura que provoque empatia, diz a norueguesa, é estafante, mas também divertida. Nesta entrevista à TAG, a curadora fala disso, sobre ficção e sentimentos e sobre a solidão sutil de O céu da meia-noite, livro que indica aos associados. Tudo que deixamos para trás é um livro que me causou uma impressão tremenda quando foi lançado no Brasil. Como foi que você começou a escrever a respeito de mudanças climáticas? Como você pesquisa? Maja Lunde – Trabalho com texto há muitos anos, então era algo próximo da minha vida, mas eu nunca encontrava a forma para o material e também não tinha foco 15


suficiente. Um dia, em 2013, assisti a um documentário a respeito do distúrbio do colapso das colmeias e sobre a importância que os insetos polinizadores têm para nós. Imediatamente tive a ideia para o romance e para as pessoas que ele retrataria. Foram as três vidas, as três histórias, que foram meu norte. E as abelhas, é claro. A colmeia, como organismo, e o quão avançados esses serezinhos são. Sempre pesquiso muito, leio todos os livros e artigos em que consigo botar as mãos e entrevisto especialistas. É a pesquisa que dá forma à história, que a leva a diferentes direções. A pesquisa às vezes pode ser estafante, mas também é extremamente divertida e interessante. Seus romances e O céu da meia-noite têm preocupações similares, trazem um pouco da solidão de coisas prestes a terminar, de certo modo. O que você pensou ao ler o livro de Lily Brooks-Dalton pela primeira vez? Achei o livro inspirador. A autora descreve de uma maneira tão sutil a solidão de todos nós, a solidão deste pequeno planeta cercado por um vazio tão vasto. É um texto que enfatiza a mágica da vida. O livro me fez amar a Terra ainda mais. Me fez lembrar do meu amor por este maravilhoso planeta azul. Como a ficção pode modificar o descaso com as mudanças climáticas? A ficção fala aos nossos sentimentos. Quando lemos ficção, estamos na história, sentimos o que os personagens sentem, aprendemos o que eles aprendem. Enquanto artigos e reportagens falam com nossas cabeças, a ficção fala com nossos corações. E para querer mudar, para fazer o que é necessário, acredito que precisamos de nossos sentimentos. Minha escrita começa com sentimentos, nunca com uma mensagem. Penso sobre a história e sobre os personagens e quero ser verdadeira com eles, sentir que estão vivos. Não tenho todas as respostas, apenas muitas perguntas. Como é que os seres humanos acabaram mandando no mundo? O que separa os humanos dos animais, o que os liga a eles? E, mais importante, temos em nós o que é necessário para mudar o que é necessário? Ainda penso que a resposta 16


Maja Lunde Sturlason. Divulgação.

para essa última questão é sim. Podemos fazer tantas coisas quando trabalhamos juntos, a nossa habilidade de nos comunicar e de cooperar superando fronteiras é fantástica. Mas eu não sei. Às vezes é difícil ter esperança. Como ativista, qual é sua opinião a respeito da situação ambiental no Brasil no momento? O que acontece no Brasil me assusta. Todos temos uma responsabilidade imensa em relação à Floresta Amazônica. Espero ver mudanças drásticas em como o mundo lida com essa questão nos próximos anos.

A estante da curadora O primeiro livro que você leu: não consigo lembrar, mas provavelmente algo da brilhante Astrid Lindgren O livro que você está lendo: The Topeka school, de Ben Lerner O livro que mudou sua vida: houve tantos. Os livros mudaram minha vida, todos eles. Mudam-na um pouco todos os dias, mudam o jeito que vejo o mundo e as pessoas que me cercam. O livro que você gostaria de ter escrito: eu não poderia imaginar ter escrito algo que não os meus livros. Romances são pessoais, eles são quem eu sou. Se eu fosse escrever o livro de outro autor, eu seria outra pessoa. O último livro que te fez chorar: Minha vida de rata, de Joyce Carol Oates O último livro que te fez rir: recentemente estive relendo Liberdade, de Jonathan Franzen. Me fez rir pela segunda vez, assim como na primeira. O livro que você dá de presente: A sexta extinção, de Elizabeth Kolbert O livro que você não conseguiu terminar: uns tantos. Não raro eu leio muitos livros ao mesmo tempo, e às vezes esqueço de terminá-los, ou eles não me movem o suficiente.

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Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.

Ilustração do mês Paola Yuu Tabata tem 24 anos, é formada em Design e trabalha como ilustradora e tatuadora em São Paulo. Assina seu trabalho como Papoulas douradas desde 2014, e principalmente por meio da arte digital, tenta criar universos mágicos. “Assim como um leitor viaja na sua obra favorita, enquanto estou sentada ao computador, sinto que posso viajar dentro da minha cabeça e criar um lugar diferente, sem limites!” complementa. A história do mês é uma imersão no gênero de ficção científica. Por isso, Paola se inspirou na imensidão do universo para criar um mapa astral, que registra a posição dos astros no dia em que cada pessoa nasceu. A pedido do clube, ela representou o céu no exato momento em que a equipe da TAG escolheu enviar O céu da meia-noite para os associados: 5 de outubro de 2020, às 16h. Naquele dia, começava a ser escrita nas estrelas a nossa experiência de março 18



PREFÁCIO O céu da meia-noite


O céu da meia-noite

POSFÁCIO


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OLÁ, TAGGER Como falar com a Terra estando em uma nave na sua órbita? Existe uma maneira acadêmica de olhar para o céu? Você há de descobrir a resposta para essas duas perguntas nas próximas páginas. Mas que a literatura tem um caso de amor com um bom céu estrelado... bem, disso você já sabe. Desde a antiguidade greco-latina, quando Vênus e Marte eram deuses e não planetas, poetas davam a seus heróis o caminho das estrelas, comparavam a distância entre si e os astros à separação de dois amantes. É a respeito disso que nossa editora Fernanda Grabauska divaga por aqui. E, como o universo é infinito e sabe-se lá se estamos sozinhos nele, as estrelas nos guiam por outro percurso literário: que outras obras, de ficção e não ficção, versam sobre a exploração espacial? Uma ótima leitura!


"Tenho dó das estrelas Luzindo há tanto tempo, Há tanto tempo Tenho dó delas Não haverá um cansaço Das coisas, De todas as coisas Como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir De ser, Só de ser, O ser triste brilhar ou sorrir Não haverá, enfim, Para as coisas que são, Não a morte, mas sim Uma outra espécie de fim, Ou uma grande razão Qualquer coisa assim Como um perdão?" PESSOA, Fernando. "Tenho dó das estrelas"


SUMÁRIO posfácio

4 As estrelas, o que são?

7 Alô, é da nave espacial?

11 Para o alto e além

13 Crítica De paisagens gélidas e caixas de ferramenta


Reportagem

AS ESTRELAS, O QUE SÃO? Metáfora para amantes inacessíveis, faróis da esperança de poetas em desespero, proteção para heróis: os astros permeiam a literatura desde os épicos gregos

FERNANDA GRABAUSKA

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Uma estrela é um objeto astronômico que consiste em uma esfera luminosa de plasma cuja integridade é garantida tanto pela gravidade quanto pela pressão de radiação. A estrela mais próxima da Terra é o Sol. Se as estrelas, em definição formal, já são inacreditáveis, a literatura as leva ainda mais longe. Os astros guiam o herói em sua jornada, representam amantes inacessíveis, são as mansões construídas pelas mãos da natureza. Morto, o imperador se transforma em uma estrela. Há a Estrela do Norte. A estrela da manhã. As estrelas que escutamos. E algumas que inspiram piedade. A Ilíada e a Odisseia não são apenas narrativas de suprema importância literária; elas são, também, uma fonte rica do conhecimento histórico, científico, tecnológico e astronômico produzido pelos gregos nos períodos homérico e pré-homérico. No modelo cosmológico de Homero na Odisseia, a Terra estava entre o céu e o submundo. Não se pode saber exatamente quais são precisamente sua estrutura e sua forma, mas podemos supor que ela seja um disco circular, já que está cercada por um oceano circular. Já o céu, com suas estrelas luminosas, é representado como um domo hemisférico que cobre a Terra Plana. Na Ilíada, diz-se que, no escudo de Aquiles, feito por Hefesto a pedido de Tétis, foram retratadas todas as constelações. Muito depois, em 1609, William Shakespeare falaria de estrelas e amor no Soneto 14 (tradução de Josely Vianna Baptista): Não está nas estrelas o meu tino;/Sei


um pouco, porém, de astronomia,/Mas não para prever qualquer destino,/Ou o tempo, a miséria, a epidemia:/Não posso em um minuto dar a sorte,/A cada qual seu raio, ou chuva, ou vento,/Nem por indícios a que o céu me aporte,/ Ao príncipe augurar feliz intento. No poema, o bardo afirma que não é da astronomia que obtém seu conhecimento sobre o amor e sobre a vida. Tudo o que ele sabe vem, pura e simplesmente, da mulher amada. No drama teatral Júlio César, o personagem -título se compara, no terceiro ato, à Estrela do Norte. Ele é “constante como a Estrela do Norte” (verso aproveitado, muitos anos depois, por Joni Mitchell) por sua estabilidade, seu compromisso com a lei e por jamais ceder à pressão. A comparação implica mais do que firmeza, no entanto. A Estrela do Norte é o astro pelo qual navegadores se guiam desde a antiguidade – a estrela que os conduz, assim como César conduz o povo romano. Já o romântico William Wordsworth afirma que “as estrelas são mansões construídas pelas mãos da natureza”. No poema, o inglês evoca a ideia de que cada estrela é uma estrutura construída por Deus, mas também conjura a noção do céu divino, para onde as pessoas vão depois de morrer. Nessas estrofes ele celebra, no maior romantismo, a beleza das estrelas no céu noturno, vendo-as como morada dos “espíritos dos abençoados”. Já Gerard Manley Hopkins compara o céu a uma mina de ouro, de certa forma, ao concluir "The starlight night". “Ah, bem”, ele suspira: “é tudo uma compra, é tudo um prêmio”*. Veja: você só recebe o que dá, assim como em tudo na vida: se você não olhar para cima e admirar o céu e as estrelas, jamais apreciará tal beleza. John Keats comparou a firmeza de uma estrela à efemeridade da sua vida – ao escrever os versos de “Estrela brilhante, fosse eu como tu és constante”, o poeta já imaginava sua morte precoce aos 25 anos. Emily Dickinson retoma a temática do amor e da distância. Em “Ah, lua – E estrelas!”, ela olha para o céu e conclui que, não importa o quão longe ela esteja da lua e das estrelas, seu amado está ainda mais longe dela. Alusões ao céu noturno são uma constante no trabalho da norte-americana. e.e. cummings aconselha (tradução de Cecília Rego 7


Pinheiro): “confia no teu coração/se os mares se incendeiam/(e vive pelo amor/ embora as estrelas desandem)”. Entre os modernos, Frank O’Hara compara o céu estrelado de um ontem apaixonado a um dia sem amor: “é difícil pensar/em você sem mim/na frase você me/deprime quando está sozinho/ontem as estrelas/eram numerosas e hoje/a neve é o cartão/de visita delas não serei cordial”. Em “Stars over the Dordogne”, Sylvia Plath espelha a sensação de desesperança. Cada estrela vista por ela no poema representava, pensam alguns leitores, o apagar da esperança e do otimismo que restavam à escritora. Para Fernando Pessoa, as estrelas inspiram piedade (é isso mesmo!). Reflete ele: “Não haverá um cansaço/ Das coisas./De todas as coisas,/Como das pernas ou de um braço?”. No poema, o poeta deseja a morte, tanto que chega a refletir sobre a existência de perdão: “Não haverá, enfim,/ Para as coisas que são,/Não a morte, mas sim/Uma outra espécie de fim,/Ou uma grande razão —/Qualquer coisa assim/Como um perdão?”. Já Olavo Bilac afirma, categórico, que só quem ama pode ouvir estrelas – seu eu-lírico aceitando a necessidade de um certo irracional para que a vida seja suportável. Manuel Bandeira empreende uma busca atrás da estrela da manhã, de uma Vênus-mulher inatingível que povoa seu pensamento. E Cecília Meireles supera um amor malfadado ao deixar de olhar para as estrelas em “Aceitação”: “Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar, nem tu./ Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:/não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.” Mas, afinal, o que são as estrelas? Em 2005, o MoMA, em Nova York, comissionou o escritor Eliot Weinberger e a artista Vija Celmins. O resultado foi um poema-resposta de algumas páginas, que relaciona as estrelas a diferentes culturas. Escreve Weinberger que as estrelas “estão sentadas em cadeirinhas;/estão espalhadas pelo céu;/ levam recados para os amantes;/são compostas de átomos em queda no vácuo e se entrelaçam umas às outras;/são as almas dos bebês mortos transformadas em flores celestes;”. As estrelas, leitor, são tudo e são nada. São uma polaroide tirada do passado. E rendem belíssimos poemas. 8

*Todas as citações literárias traduzidas do inglês por Fernanda Grabauska, exceto quando informado.


Entrevista

ALÔ, É DA NAVE ESPACIAL? Conversamos com um físico para entender como é que se fala com o espaço – e outras questões técnicas de O céu da meia-noite

FERNANDA GRABAUSKA

Em 2012, o comandante Chris Hadfield foi o primeiro canadense a comandar uma expedição na Estação Espacial Internacional, lançado a partir do Cosmódromo de Baikonur. Carismático, o astronauta usava as redes sociais para fotografar cidades vistas lá do alto (Porto Alegre, casa da TAG, foi uma das contempladas com seu olho espacial) e para compartilhar a vida na nave Soyuz TMA-07M. Como a tripulação da Aether em O céu da meia-noite, Hadfield cantou Space oddity, de David Bowie, mas acompanhado de um violão, em vídeo transmitido à Terra. O mistério que fica é o seguinte: estando na Terra, como se comunicar com o espaço? Inquietos com a possibilidade de encontrar uma Terra arrasada, nenhum dos astronautas na Aether tuíta fotos ou mostra no Instagram como é chorar no espaço. A busca por um eco que seja por parte do planeta destino é nervosa e, por vezes, infrutífera. Para entender essa e outras tecnicalidades, o físico Giordano Motta nos fala a respeito de conversar com outras partes do universo e sobre humanos que têm transitado por lá. 9


O astronauta Kjell Lindgren, da NASA, utiliza rádio HAM para se comunicar com a terra NASA. CC BY-NC 2.0. CC

TAG - Como leitor, o que você achou desse livro? Giordano Motta – Adorei o livro! É uma ficção científica muito envolvente e, apesar de ser tão space geeky, é de uma enorme sensibilidade em relação ao estudo de personagens. Diferentemente de boa parte das histórias de ficção científica distópicas ou apocalípticas, que são carregadas de ação e barulho, essa é uma história muito mais introspectiva. Em alguns momentos, o ritmo, a profundidade psicológica e a atenção à vastidão e aparente indiferença do espaço me lembraram alguns dos momentos mais intensos de 2001: Uma odisseia no espaço, meu filme favorito. As histórias espaciais que enfatizam o silêncio e a introspecção são muito mais verossímeis. E, como especialista, o que achou da pesquisa feita pela autora? Quais foram os erros e os acertos? Em termos de pesquisa, acho que ela foi muito bem feita. As descrições da vida no interior da nave, os efeitos da “ausência” de gravidade, a simulação do efeito gravitacional pela pseudoforça centrífuga, as caminhadas espaciais e os detalhes técnicos de radioamadorismo foram representados de modo acurado. O que não é propriamente

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um erro, mas fica sem explicação satisfatória no livro, é o fato de que a Aether não foi capaz de receber absolutamente nenhuma informação vinda da Terra durante a viagem de retorno da missão. Como funciona a conversa entre Augie e Sully? Basicamente, a comunicação entre Augie e Sully se dá por transmissão direta via ondas de rádio, uma vez que o sistema de satélites artificiais em órbita da Terra que suporta as comunicações globais (e que muitas vezes tomamos por garantido, como um dado da realidade) havia aparentemente entrado em colapso. O fato da comunicação se dar por transmissão e recepção diretas de ondas de rádio explica o porquê da mesma ficar prejudicada e, em última análise, impossibilitada, quando as antenas do Ártico e da Aether saíam da linha de visada uma da outra à medida que a nave (acoplada naquele momento à Estação Espacial Internacional) orbitava a Terra. É por esse motivo também que as antenas da Rede de Espaço Profundo, muito citadas no livro, estão distribuídas ao redor do globo de modo a garantir visibilidade quase total da abóbada celeste e comunicação permanente com as sondas e espaçonaves em missão. Em linhas gerais, o que acontece na comunicação via rádio é o seguinte: as ondas sonoras da voz são captadas por um microfone, convertidas em sinais elétricos, amplificadas e então moduladas em uma onda eletromagnética, dessa forma codificando a informação original da voz na onda. Essa onda eletromagnética é transmitida e, do outro lado, captada pelas antenas do receptor, decodificada e convertida de volta em ondas sonoras que podem ser ouvidas. E a respeito dos astros descritos, do objeto de estudo de Sully, o que você pode me dizer? Há alguma referência que o leitor curioso possa avistar no céu com facilidade? Bem, Sully é responsável pela análise dos dados de telemetria de sondas deixadas nas luas de Júpiter, as chamadas luas jovianas. Dentre essas, as que são mencionadas explicitamente no livro são as quatro famosas luas galileanas (Io, Ganimedes, Europa e Calisto), primeiros satélites naturais descobertos orbitando outro planeta 11


A Estação Espacial internacional em órbita, grande como um campo de futebol americano NASA. CC BY-NC 2.0. CC

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do Sistema Solar. Galileu Galilei fez essa descoberta no início do século XVII apontando para os céus o então recentemente inventado telescópio, em uma versão muito rudimentar. Muitos binóculos modernos são tão ou mais capazes que o telescópio de Galileu de revelar as quatro luas galileanas em toda a sua glória. Júpiter é o maior planeta do Sistema Solar e é facilmente identificável no céu. Para achar um planeta e diferenciá-lo de uma estrela, basta procurarmos aqueles objetos luminosos do céu noturno que não parecem cintilar como a maioria dos outros. A luz dos planetas, por vir de corpos celestes muito mais próximos do que as estrelas, não está sujeita tão fortemente aos efeitos de refração na atmosfera da Terra, e, portanto, parece ser mais constante. Todos os planetas encontram-se em um plano chamado eclíptica, que pode ser identificado no céu como algo próximo de uma linha reta imaginária. As constelações que formam o círculo do zodíaco são justamente aquelas que ficam ao fundo da eclíptica. Júpiter vai ser o mais brilhante desses objetos de brilho constante visível noite adentro (Vênus tem maior brilho aparente, mas só pode ser visto ao anoitecer e ao amanhecer, por estar muito próximo do Sol). Uma vez encontrado o planeta Júpiter, mirar um bom binóculo para ele deve ser o suficiente para avistar as quatro luas galileanas como pequenos pontos luminosos em séquito que acompanha a majestade do Sistema Solar.


Para ir além

PARA O ALTO E ALÉM Viajar no espaço é um dos vértices fundamentais de O céu da meia-noite – e uma ambição humana que já rendeu séculos de literatura

IGOR NATUSCH

O olhar da humanidade sempre esteve voltado para cima. Demorou muitos séculos até que aquelas coisas brilhando e flutuando no céu se tornassem um pouco mais alcançáveis, mas a nossa imaginação sempre exigiu que fôssemos até lá. Os homens e mulheres que criaram tintas para desenhar nas paredes das cavernas não falavam só de caçadas e animais, mas também do Sol, da Lua e das estrelas – uma necessidade de contar e entender que, é claro, saltou para a literatura tão logo inventamos a ideia de juntar letras para escrever. Muita gente, anônima ou notória, já tinha escrito sobre viagens pelo cosmos nos séculos anteriores, mas foi o francês Júlio Verne, com Da Terra à Lua (1865), quem se destacou por pensar nessa busca além dos poderes mágicos de deuses ou super-humanos. Mesmo superada pela fantástica realidade que se seguiu, a saga dos astronautas Ardan, Nicholl e Barbicane (um trio que espelhou, um século antes, a epopeia de Armstrong, Aldrin e Collins na Apollo 11) segue fascinante por transformar a busca do espaço em algo crível – algo que nos inspirou a seguir em frente, tanto nos livros quanto no mundo real. Desde então, muito se escreveu sobre visitas ao espaço; a pretensão de resumir tudo em poucos parágrafos é tão absurda quanto querer ir até Júpiter a pé. Ray Bradbury, em suas Crônicas marcianas, passou voando pela Lua e nos instigou a viajar um pouco além. E também a questionar: e se, mais do que um sonho, ir a outros planetas virar uma questão de sobrevivência? Ou, quem sabe, uma necessidade premente por recursos naturais, se espalhando por milênios – como nos conta Frank Herbert em 13


sua monumental saga Duna, que se passa em um distante futuro no qual a humanidade colonizou mundos remotos na busca por especiarias. Recentemente adaptado para o cinema, O marciano, de Andy Weir, nos faz pensar sobre a solidão do espaço, mesmo quando se está (ao menos em termos cósmicos) do lado de casa. É uma história sobre o ser humano e seu conhecimento abrindo caminho para a sobrevivência em mundos inóspitos. Uma solidão que também se manifesta no tempo: no recente Aurora, escrito por Kim Stanley Robinson e editado em 2015, a chegada de colonizadores ao sistema estelar de Tau Ceti é a culminância de uma jornada de milênios, um esforço de gerações para manter a saga humana em um mundo novo e desconhecido. Outra autora que pensou sobre viagens para lá do Sistema Solar é Ursula K. Le Guin. Em obras como A mão esquerda da escuridão e Os despossuídos, ela explora os desdobramentos da colonização de mundos distantes, facilitada pela descoberta do "ansible", processo que permite a transmissão de informação por velocidades mais rápidas do que a da luz. Por sua vez, os norte-americanos Daniel Abraham e Ty Franck, que escrevem sob o pseudônimo James S. A. Corey, voltam um pouquinho no espaço na série The expanse (que teve volumes, como Leviatã desperta, lançados no Brasil): a humanidade colonizou alguns planetas e luas do Sistema Solar, em uma tensa costura política e social que é sacudida pela descoberta de uma tecnologia alienígena que expande as possibilidades de deslocamento interestelar. Óbvio que viagens espaciais, mesmo sendo assunto sério, não precisam ser sisudas. Douglas Adams, na saga Guia do mochileiro das galáxias, nos fala de um Universo tão imenso quanto absurdo e imprevisível, onde rir é uma boa alternativa diante da indiferença que rege a existência. Ao contrário de tantas obras em que ocupamos papel central, Adams fala de uma humanidade tão irrelevante que se vê destruída antes mesmo de participar da história. E quem poderá dizer que não é isso mesmo, que não possamos estar alheios a uma saga estelar que se desenrola neste exato momento, muito mais incrível do que a nossa imaginação é capaz de alcançar? Vai saber. 14


Crítica

DE PAISAGENS GÉLIDAS E CAIXAS DE FERRAMENTA GIOVANA BOMENTRE Tradutora, editora e resenhista

Toda viagem nos transforma um pouco e costumamos ansiar pelo retorno a um ambiente familiar para descobrir em qual medida fomos mudados. Em viagens a lugares extremos, como o Ártico ou Júpiter, supomos que as mudanças serão também drásticas. E o que acontece quando não se tem para onde voltar e já não há parâmetro conhecido? Embora O céu da meia-noite tenha sido originalmente publicado em 2016, suas paisagens ermas e belíssimas oferecem a paleta emocional de 2020. Uma das potências da literatura é o cultivo de um repertório emocional. Ao descrever situações e nos oferecer a oportunidade de experimentá-las nessa via indireta, preparamos nossa mente e coração para situações que talvez jamais vivenciaremos. Editar uma distopia tão consonante com o isolamento, a incerteza e a fadiga dos quais é impossível se desvencilhar foi um desafio inesperado. Felizmente, não é apenas isso que Lily Brooks-Dalton nos oferece. Ao confrontar os protagonistas com um silêncio fatal, a autora enfatiza a importância da conexão; a literal, óbvio, nos esforços de comunicação de Augie e Sully, mas também a conexão humana que pode surgir de interações inesperadas ou de memórias revisitadas. Esse exercício de ligar pontos já começa no título original da obra: Good morning, midnight. A frase é herdada da obra de 1939 da dominicana Jean Rhys, que relata, em uma prosa 15


experimental, a angústia de uma mulher que retorna a Paris no entreguerras. Rhys, por sua vez, batizou sua obra com um empréstimo de um poema de Emily Dickinson que é metade graça e metade dor de cotovelo. Bom dia – Meia-Noite Já volto à Casa O Dia – de mim se cansou Me cansaria dele – como? Doce era onde o Sol brilha Ficar me aprazia Mas o Raiar – não me quis – portanto Agora – Boa noite – Dia! Posso olhar – não posso Com o Leste em torra? À sua maneira – então – as colinas Me põe o Coração – afora Você – não tão bela – Meia-Noite Escolhi – O Dia Mas peço – acolha esta Garota Que Ele repudia! O poema nos traz a nota melancólica da escolha impossível e da ação relutante. Essa melancolia ecoa o cataclisma silencioso de Sully, que reconhece seu deslocamento da família antes mesmo do silêncio, mas atravessa primeiro a protagonista depressiva de Rhys, que em 1957 ganhou voz na rádio BBC. Impossível não pensar em Augie agarrado aos dispositivos radiofônicos, na juventude e na velhice, em busca de contato. Assim, Lily Brooks-Dalton se posiciona em uma constelação – trocadilho irresistível – na história literária. Ela não apenas reconhece e reverencia um passado de mulheres que escrevem, mas o presentifica. É uma maneira de afirmar, sim, que a escrita não é necessariamente solitária, mas que estamos sempre acompanhados por aqueles que nos precederam. Estamos acompanhados também por quem já fomos. 16


Cientistas em missão próxima ao Alasca NASA. CC 1.0.

Nesse sentido, as referências que acumulamos são nossa bagagem e caixa de ferramentas. A memória tem seus limites e, parafraseando Augie, não há “espaço a desperdiçar nem tempo a perder com um amor menor”. Mas a memória é também sábia e prioriza apenas o que nos impacta. Quais são as ferramentas afetivas que você leva em suas jornadas? Thebes teria a resposta na ponta da língua: ele carrega consigo os clássicos da Ficção Científica, os profetas de outras realidades. Mais uma vez, Brooks-Dalton dá uma piscadela para o leitor ao reverenciar Arthur C. Clarke, com a menção a O fim da infância, e Ursula K. Le Guin, com A mão esquerda da escuridão. Esta obra, inclusive, também trata de uma jornada de duas pessoas por um ermo gélido e hostil. Não há acaso, apenas alinhamentos. Apesar de O céu da meia-noite ter um gênero literário aparentemente ambíguo, seu vínculo com a Ficção Científica é reforçado também pelo trailer do filme, que, além da premissa futurística de viagem espacial a Júpiter, nos traz equipamentos avançados.

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Essa espécie de eco se dá também dentro da obra: há uma espécie de simetria nas paisagens espaciais e gélidas, cujas descrições têm uma qualidade poética (transposta por Ana Guadalupe com muita justiça) e que oferecem, a nós e aos personagens, uma esperança subliminar. Essa quiralidade também se apresenta na falta de carisma dos protagonistas, que têm dificuldade de superar os padrões de suas respectivas famílias e são obrigados a ressignificar suas memórias frente à crise. E também ressignificamos nossos sentimentos em relação aos dois: reconhecemos os problemas no comportamento de Augie, um sedutor serial na juventude, e de Sully, uma esquivadora um pouco obtusa. Mesmo assim, reconhecemos suas jornadas e lamentamos seus destinos. É isto o que quero da literatura: refinar a capacidade de lamentar a perda de coisas que sequer gosto. Os astronautas da Aether persistiram na viagem de volta a uma casa que agora é meramente geográfica e Augie morre, que é a jornada última. O que estamos passando agora é o oposto disso: uma imobilidade intoxicante. Mas agora temos à mão as ferramentas emocionais de ambos. Não que a crise precise ser edificante, mas que não implodamos.

“AO CONFRONTAR OS PROTAGONISTAS COM UM SILÊNCIO FATAL, A AUTORA ENFATIZA A IMPORTÂNCIA DA CONEXÃO; A LITERAL, ÓBVIO, NOS ESFORÇOS DE COMUNICAÇÃO DE AUGIE E SULLY, MAS TAMBÉM A CONEXÃO HUMANA QUE PODE SURGIR DE INTERAÇÕES INESPERADAS OU DE MEMÓRIAS REVISITADAS.” 18


Uma ficção que infecta e deixa sequelas. É essa a indicação da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz para os associados à TAG Curadoria em abril. A curadora, comendada em 2010 com a Ordem Nacional do Mérito Científico, oferece aos leitores um romance que é um insight sobre duas guerras: a Segunda Guerra Mundial, lutada alhures, e a guerra contra a poliomielite, que dizima e mutila os Estados Unidos concomitantemente. Schwarcz é professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e tem extensa obra a respeito das mazelas sociais brasileiras, com destaque para o recente lançamento de A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. Quanto à sua indicação para os taggers, é bom estar preparado para sentir o presente de forma tão intensa quanto o passado. 19

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A próxima curadora do mês, Lilia Schwarcz Crédito: Leonor Calasans, IEA/USP

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