Nêmesis
PREFÁCIO
OLÁ, TAGGER Há coisas que jamais conseguimos descobrir de onde vêm. Ninguém sabe apontar exatamente onde começa o amor – usando a luz como metáfora, para alguns passar a amar é como ligar um interruptor; para outros, o amor acontece como uma alvorada. As catástrofes se dão da mesma forma: os últimos muitos meses não foram a primeira vez que a humanidade precisou refletir sobre a chegada da escuridão. Alguns viram o interruptor desligar a luz de chofre. Outros presenciaram, estarrecidos, o mais longo anoitecer. É por isso, leitor, que Nêmesis, o livro que você recebe este mês, é uma preciosidade. No desespero das luzes que se apagam, muitas vezes não refletimos sobre o que muda entre os nossos afetos. Em sua última obra publicada, Philip Roth não escreve apenas sobre a epidemia de pólio, sobre o morticínio nas trincheiras da Segunda Guerra Mundial. O mestre americano escreve sobre o que se apaga e o que se acende dentro de cada um de nós no momento da tragédia. O que realmente importa? Este prefácio fala sobre amor e epidemias. Boa reflexão sobre as velocidades da luz.
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Impressão Gráfica Ipsis abril de 2021
COLABORADORES
FERNANDA GRABAUSKA
RAFAELA PECHANSKY
LAURA VIOLA HÜBNER
Editora-chefe
Publisher
Assistente
SOPHIA MAIA
ANTÔNIO AUGUSTO
LIZIANE KUGLAND
Assistente
Revisor
Revisora
PAULA HENTGES
KALANY BALLARDIN
GABRIELA BASSO
Designer
Designer
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LUISE SPIEWECK FIALHO
VITÓRIA PACHECO
RAONE ARAUJO
Redatora
Relacionamento
Designer
SUMÁRIO prefácio
5 O livro indicado
8 Unboxing
9 Caro Zuckerman
17 Marcados por pandemias
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Despedida literária de seu autor, Nêmesis fala de uma sociedade que ignora a morte – mesmo ao ver-se dela cercada por todos os lados
LUIZ MAURICIO AZEVEDO Doutor em Teoria e História Literária, pela UNICAMP; pesquisador pós-doc na FFLCH/ USP; autor de Por uma literatura menos ordinária (Figura de Linguagem)
Lee Russell/ The Miriam and Ira D. Wallach Division of Art, Prints and Photographs: The New York Public Library.
O livro indicado
NEWARK, 40 GRAUS
Publicado originalmente em 2010 – com certo alarde, por se tratar da despedida literária de Philip Roth, – Nêmesis é possivelmente o mais alegórico dos romances do autor. De certa forma, o retorno à sua cidade de origem marca também o fim de sua trajetória literária, em uma simbologia de encerramento de ciclo que fascina todo contador de histórias. Diferentemente de outros autores de sua geração, Roth não se atraía por inovações na linguagem. Sua prosa é límpida e seu texto, ágil. Com a força da literatura contemporânea, venceu o National Book Award e o Pulitzer, tornando-se um nome cuja pronúncia passou a significar, ao mesmo tempo, glória e aversão. Em sua carreira, visitou com coragem os grandes temas que assombram a pequena burguesia norte-americana, a saber: o comunismo, a hipocrisia, o politicamente correto, o racismo, a família, o difícil processo de envelhecer em um mundo construído por homens com síndrome de Peter Pan, e o erotismo como campo de disputas simbólicas. Sua literatura é fruto da suspeita de que as vontades do corpo, cedo ou tarde, engolem a disposição do espírito. Aos poucos, aquilo que somos se torna uma representação melancólica de nossas adversidades biológicas, e o que era acidente vira essência. A esse fenômeno Roth dá o nome de vida – mas, para convencer-nos da validade de seu argumento, não se furta a analisar minuciosamente as mil e uma estratégias que inventamos para nos protegermos da verdade que nos cerca. Nêmesis foi sua última tentativa de provar que estava certo. Grosso modo, trata-se da história da pandemia de poliomielite, em plena Segunda Guerra, na comunidade judaica de Newark, e de como um homem limitado jamais conseguiu se perdoar pela extensão nociva de suas limitações. Em um sentido mais amplo – sentido que sempre nos interessa, porque, afinal, literatura não é enredo –, Nêmesis é o modo que Roth 7
encontrou para descrever as feições da morte, deusa do resto e do fim, aquela a quem todos nós – atléticos ou não – vamos encontrar. Nêmesis era a deusa grega que distribuía justiça e dor, mas seu intuito filosófico era mostrar que aquilo que julgamos ser nosso tempo de fracasso é, na verdade, nosso melhor momento sobre a Terra. Na obra, Bucky Cantor aceita, em princípio sem reclamar, a imposição de uma vida que se apresenta como um fragmento mínimo daquilo que sonhara para si. Por causa da miopia severa, ele é dispensado do Exército e acaba se tornando professor de educação básica. Enquanto lamenta não poder combater inimigos visíveis, contra os quais fuzis, trincheiras e bazucas funcionam, sente-se abandonado em um campo de batalhas onde o inimigo é invisível, metastático e imune a tribunais de guerra. Considerado insuficiente para combater nazistas, ele ficou com a responsabilidade não declarada de eliminar um adversário cuja principal obsessão é mutilar crianças. Assim, a falha trágica de sua vida se repetia: herdar uma incumbência que não tinha a menor condição objetiva de dar conta. O fracasso presumível de Cantor é o fracasso de todos nós: fazer muito com muito pouco. E perceber que é insuficiente. Para o mundo dos livros, o que importa – seja em uma pandemia, seja em um dia ensolarado em Paraty – são as tensões sociais causadas pelos eventos na vida íntima dos indivíduos. Assim, também as pandemias se tornam livros a serem lidos, costumes escritos sob códigos que podem ou não, a depender de nossa habilidade em decifrá-los, ter as respostas de que precisamos. Em um ambicioso empenho metafórico, Nêmesis deixa de ser um romance sobre a poliomielite para se tornar ele mesmo a poliomielite. É como se Roth desejasse ressignificar a pandemia, recontá-la, substituindo o imaginário coletivo, feito de imagens, pelo imaginário de Cantor, feito de palavras. A ameaça da pólio – ou da COVID-19 – não é somente biológica, mas cultural. É um atentado à identidade humana, à narrativa dentro da qual decidimos instalar nossa vida. As doenças ordinárias nos dizem que somos mortais, mas as pandemias nos dizem que somos mortais como o Outro. A despeito de tudo o que sabemos, lemos, e 8
da entrega expressa da Amazon, ainda podemos esbarrar em um micro-organismo que tem a seu lado uma força muito maior do que seu mecanismo de replicação: a nossa infinita tendência a abraçar tudo o que pode nos destruir. Muito embora Roth seja uma expressão incontornável e luminosa – como foram Marx, Sontag, Freud e Benjamin – de um Haskalá* estético tardio, não é preciso ter qualquer iniciação à cultura judaica para compreender sua obra; afinal, sua literatura é verdadeiramente universal na medida em que constrói sua totalidade a partir da destruição de qualquer presunção de especificidade. Esse compromisso estético está no cerne da boa literatura. O princípio de Roth é simples: voltar-se com força – mas sem delírios e vingancites – contra aquilo que nos criou, para, assim, encontrar a face mais poderosa do pensamento: aquela que edifica, a partir de um compromisso desesperado com a destruição, um espetáculo silencioso de iconoclastia. Na mesma Newark de Bucky Cantor, Whitney Houston, Sarah Vaughan e Paul Auster, ainda hoje há um tour literário, saindo da biblioteca da cidade, no qual um ônibus passa por todos os “pontos essenciais para o universo ficcional de Roth”, como anuncia o panfleto apócrifo, distribuído em alguns eventos literários de Nova Jersey. Certa vez, quando morava lá, decidi fazer o tal tour. Uma senhora – que fazia as vezes de guia informal – me perguntou se eu era como Roth. Segurando a fantasia narcisista o máximo que pude, disse que eu era escritor, mas que não escrevia como ele, deixando clara minha impecável consciência das múltiplas variações semânticas disponíveis na língua inglesa. Insatisfeita, ela continuou as indagações, até que, depois de muito circular, soltou: “Afinal, você também fala mal da sua gente?”. Não me lembro exatamente o que respondi, mas ela se afastou para longe, em direção à parte da frente do ônibus, sem dirigir mais a palavra a mim no restante da viagem. Não consigo pensar em uma decisão mais acertada. *Ficou conhecido como Haskalá o movimento iluminista judaico surgido na Alemanha do século 18, que incentivava a integração com a Europa e a educação secular aliada ao estudo do hebraico e da história judaica. 9
MIMO Em abril, decidimos brindar nossos associados com um mimo que homenageia de maneira divertida autores muito queridos! Títulos de livros de Clarice Lispector, Lima Barreto, Machado de Assis e Rachel de Queiroz tornaram-se trocadilhos literários e estampam os copos que irão acompanhar momentos especiais dos taggers. Vocês lembram que nossa utopia é transformar a literatura em papo de bar, não é mesmo? Para isso, não há um acessório melhor do que o clássico copo americano - que poderia muito bem ser chamado de "clássico copo brasileiro". E atenção, taggers! Fiquem ligados: em maio, teremos mais razões para celebrar a literatura brasileira, tema do segundo mês temático da TAG. Tin-tin!
Unboxing 10
PROJETO GRÁFICO Na capa do livro deste mês, buscou-se representar o personagem principal, o Sr. Cantor, em sua juventude, quando era professor de natação em um acampamento. Os materiais complementares, como a luva e a revista, seguem a mesma estética da capa, remetendo ao universo do Sr. Cantor. As cores fortes e contrastadas se misturam para gerar a sensação de calor excessivo, procurando se assimilar ao cenário tórrido da narrativa: a cidade de Newark.
Perfil
Caro Zuckerman, THIAGO SOUZA
Ou devo te chamar pelo seu alter ego real, o seu duplo de carne e osso, que destrinchou toda a ficção que criou de fatos da vida? “Todos os eventos genuinamente imaginativos têm origem lá, nos fatos”, ele te escreveu. Os fatos, título da autobiografia de Philip Roth, começa assim, com uma carta endereçada a você. Mas vou inverter a ordem das coisas: Caro Roth, Assim que colocou o ponto final na última frase de Nêmesis, de pé em frente ao teclado, pois suas costas doíam já havia muitos anos e você só conseguia escrever nessa posição, você decidiu que esse seria seu último livro. Te escrevo com este tom intimista porque cá estamos, a humanidade, vivendo de novo um período histórico tão gigante como os que inspiraram seus personagens a se perguntem como essas forças da História moldam nossas vidas comuns. Você tentou entender quando colocou um jovem Bucky Cantor no meio da epidemia de poliomielite de 1944 em Nova Jersey, ao passo que, do outro lado do Atlântico, as batalhas mais terríveis da Segunda Guerra também se desenrolavam. Cantor perdeu um dos seus melhores amigos em combate e viu, assustado e impotente, os meninos sob os seus cuidados no pátio de recreio de que era fiscal em Newark adoecerem e morrerem. Agora estamos aqui, também assustados, meio impotentes, enquanto outro vírus circula por todo o planeta e espalha a morte e, sobretudo, o medo. * Foi com um volume de contos, Adeus, Columbus, que você estreou e apresentou sua voz debochada – estreia que 11
enfureceu alguns membros da comunidade judaica. Ser um judeu americano, e às vezes satirizar as contradições de ser judeu, se tornou incontornável para sua literatura. Você estava preparando o terreno para O complexo de Portnoy, o seu primeiro romance sobre a fome autoerótica que vai aparecer em todos os seus livros. Nele, o protagonista judeu, sufocado por uma mãe controladora e opressiva, só pensa em “bater bronha” e não sabe o que fazer para deixar de ser esse “menino judeu bonzinho”. Freud, sim, porque aquele foi um período da sua vida em que você estava desesperado para se livrar de um casamento fracassado e tóxico com Maggie, que chegou a inventar uma gravidez, e fez muita análise. Desde Fitzgerald e Zelda a literatura não conhecia um casal com propensões tão autodestrutivas, e você transformou seu desespero num romance, Minha vida de homem, que buscava iluminar um pouco a personalidade de Maggie. “Eu só buscava aquilo que podia ser transformado”, você escreveu para Zuckerman em Os fatos. Maggie morreu logo depois, vítima de um acidente de carro. As críticas a Minha vida de homem deram os primeiros sinais da recepção um tanto turbulenta que sua obra suscitou, no decorrer das décadas seguintes, nas mulheres. Vivian Gornick, escritora e ativista feminista, disse que seu romance não passava de “terapia”. Em sua biografia, Roth libertado, Claudia Roth Pierpont escreveu: “Seus livros contêm uma variedade imensa de figuras femininas, de todos os matizes morais e emocionais, que não são nem ‘melhores’ nem ‘piores’ que os personagens masculinos; como romancista, ele não pode se dar ao luxo de apresentar as coisas de outra forma, mesmo que pense assim, o que não ocorre. Sua obra estava sendo mal interpretada por algumas feministas contemporâneas, como havia sido mal interpretada por judeus – e por motivos não muito diferentes, a saber, a representação de personagens cheios de defeitos ou concebidos de maneira cômica”. * Na primavera de 1981, em um domingo normal em que você falou com seus pais por telefone pela manhã, como costumava fazer aos domingos, o imprevisível aconteceu: à noite, depois de uma longa caminhada com o marido, sua 12
mãe, Bess Roth, morreu. Um ataque do coração. Você estava em Londres e recém havia lançado Zuckerman libertado. Em Patrimônio, o livro que você fez para investigar a morte do seu pai, você escreveu um tanto especulativamente que ela saiu para caminhar “naquela tarde com a esperança de se preparar para o passeio no verão”, pois, em sua conversa por telefone na manhã da morte de sua mãe, você disse que pretendia levá-la para uma longa caminhada no campo no verão, quando ela e o seu pai lhe fizessem a habitual visita em Connecticut. Lição de anatomia, de 1983, começa assim: “Doente, todo homem quer a mãe”. Agora é Zuckerman quem adoece, e talvez seja porque você mesmo tenha recebido, um ano antes, o diagnóstico de doença arterial coronariana “significativa”. Continuar escrevendo com todos os problemas de saúde que lhe acometeram foi uma prova de sua ética imperturbável para com a literatura e do quanto ela era importante e essencial na sua vida. Foi nesse contexto que você sentiu que precisava
“TE ESCREVO COM ESTE TOM INTIMISTA PORQUE CÁ ESTAMOS, A HUMANIDADE, VIVENDO DE NOVO UM PERÍODO HISTÓRICO TÃO GIGANTE COMO OS QUE INSPIRARAM SEUS PERSONAGENS A SE PERGUNTEM COMO ESSAS FORÇAS DA HISTÓRIA MOLDAM NOSSAS VIDAS COMUNS.”
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de respostas para as perguntas: “por que faço o que faço, por que vivo onde vivo, por que compartilho minha vida com quem compartilho?”. Em Zuckerman libertado, apesar de você ter aliviado Zuckerman de seus próprios problemas conjugais, você o coloca num conflito inédito para você: a desaprovação paterna. Herman Roth, ao contrário, gostava de levar exemplares dos seus livros consigo e distribuí-los às pessoas com um autógrafo do próprio punho. Em Lição de anatomia, Zuckerman sofre a dor – a física e a da escrita. Quatro anos se passaram e ele não escreveu mais nenhuma palavra. Zuckerman precisa parar de escrever para minimizar a dor, mas, sem escrever, ele percebe que não tem lá muitas razões para existir. É o que a sua vida também atesta. * Patrimônio assume uma assombrosa honestidade e é uma tentativa de reconstruir o que o seu pai significou para você à luz do diagnóstico do tumor no cérebro que iria matá-lo. Herman Roth morreu em outubro de 1989, aos 88 anos. Você não conseguia manter a forte presença do pai longe da sua ficção – a “decência determinada” dele foi a essência de muitos personagens seus –, mas agora dava ao mundo um retrato absoluto, franco e aberto de Herman. Michiko Kakutani escreveu, no The New York Times, que o livro “evitava os jogos de espelho defensivos que o autor gosta de fazer com fato e ficção”. Nessa época, você já estava havia catorze anos com a atriz Claire Bloom, e em abril de 1990 vocês se casaram. Mas mergulhar num casamento, depois do trauma com Maggie, não foi uma decisão fácil: você demorou três semanas para dizer sim a Claire. * Operação Shylock, apesar de vencer o prêmio PEN/ Faulkner do ano, foi recebido com cansaço pela crítica. Kakutani apontou seu “solipsismo, repetitividade e interesse obsessivo por si mesmo”. Se elogiou a ausência de jogos de espelhos em Patrimônio, aqui ela os classificou como “enfadonhos”. Claudia Roth lembra que John Updike apontou que alguns leitores já sentiam que seus últimos livros continham um “excesso de Roth” e que você, como 14
escritor, tornara-se exaustivo. Essa crítica o chateou, porque você respeitava muito a opinião de Updike, com quem tinha uma relação amigável. Antes de lançar Operação Shylock, você voltou a sofrer de fortes dores nas costas. Em março de 1993, na sua festa de 60 anos, várias fotos mostram você pressionando a coluna com as mãos. Você precisou parar de trabalhar no novo livro e se desestabilizou emocionalmente. Depressão. Depois de um tempo internado num hospital psiquiátrico, você teve alta e foi direto para Nova York, onde logo recomeçou a trabalhar no livro novo. E, no mês seguinte, entrou com um pedido de divórcio. Você disse para sua biógrafa que Claire lhe parecera ter pouca disposição para apoiá-lo nos momentos de dor e medo, e Claire reconheceu que o pânico que sentira a fez parecer “desprovida de compaixão”. “Tudo começou porque eu estava procurando um lugar para ser enterrado”, você disse sobre escrever O teatro de Sabbath, considerado por muitos sua obra-prima. A consciência da finitude vai passar a ficar mais aguda em todos os seus próximos livros. “O teatro de Sabbath é o livro mais vigoroso e emocionante de Roth”, escreve sua biógrafa. “É também uma obra-prima da literatura americana do século XX: fluente de vida, denso de caráter e sabedoria, confere às experiências mais profundas que enfrentamos – morrer, recordar, nos ampararmos mutuamente – o impacto surpreendente do primeiro contato, da primeira tomada incrédula de consciência”, completa. Titereiro, aos 64 anos Sabbath tem as mãos destruídas pela artrite. É arrebatado por um caso fora do casamento com a também infiel Drenka, e vivem uma história de amor por treze anos. Até que, aos 52, Drenka adoece e morre. A partir daí, Sabbath é jogado num turbilhão sujo e cômico, repleto de amargura, amor e morte. O teatro de Sabbath ganhou o National Book Award de 1995. Você escreveu a história de Sabbath com um entusiasmo que pavimentou o caminho para a trilogia sobre a América. Pastoral Americana venceu o Prêmio Pulitzer de 1998. Mas, entre um prêmio e outro, Claire Bloom publicou Leaving a Doll’s House, memórias que abordavam em vários capítulos o casamento com você. Antes do lançamento, o The New York Times já havia publicado 15
um artigo intitulado “Claire Bloom relembra Philip Roth com raiva”. Desde Portnoy a sua reputação não era tão atingida. Ainda assim, apenas uma reação o abalou: de novo, a de Updike. Em 1999, ele publicou na The New York Review uma única frase sobre o livro: “Claire Bloom, a ex-esposa ultrajada de Philip Roth, revela que ele, à medida que o casamento rapidamente se desfazia, se tornara neurastênico a ponto de ser hospitalizado, adúltero, duramente egoísta e financeiramente vingativo”. Você escreveu uma carta para a Review, dizendo que o verbo mais preciso para a frase seria “alega”, e não “revela”, e nunca mais falou com Updike.
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Em Casei com um comunista, o tema da masculinidade, tão importante para entender seus personagens homens, boa parte deles imbuídos de uma necessidade de se provarem fortes e másculos, aparece como em nenhum outro livro seu. A marca humana encerra a trilogia americana. Você queria explorar o “estado de ânimo moral” dos EUA ou, como escreve no começo do romance: “Se você não viveu 1998, você não sabe o que é santimônia”. O êxtase da santimônia é aquilo contra o qual sua obra se opõe desde o início. No meio de uma onda de puritanismo e da polêmica sobre o caso do presidente Clinton com a estagiária (A mancha humana seria a tradução mais literal do livro, em referência à marca no vestido de Monica Lewinsky), você antecipou um clássico comportamento na era das redes sociais: a sanha por justiçamento e as sinalizações públicas de virtude. O romance acompanha a derrocada de Coleman Silk, professor universitário acusado injustamente de racismo. * Complô contra a América é um exercício de imaginação poderoso – quem mais poderia imaginar a ascensão ao poder na América de um antissemita que via com bons olhos os objetivos nazistas? Assim, você colocou o piloto Charles Lindbergh na presidência dos EUA, derrotando Roosevelt na eleição de 1940. Você escreveu no Times que o romance tinha a seguinte mensagem: poderia ter acontecido algo parecido. “Todas as garantias são provisórias, mesmo aqui, numa democracia de duzentos anos”. O que você escreveria sobre o governo Trump? Depois de ganhar os mais importantes prêmios literários dos EUA, uma homenagem tão enorme quanto seu currículo inspirava estava prestes a ser feita a você: a publicação de suas obras completas pela Library of America, colocando-o ao lado de Melville, Henry James, Faulkner, James Baldwin, Eudora Welty e Saul Bellow. A honraria era ainda maior porque somente Welty e Bellow haviam recebido a distinção em vida, e agora você. E estar na companhia de Bellow era para você motivo de orgulho, pois, além da grande amizade que vocês haviam construído, o seu sentimento pela obra de Bellow 17
era de admiração. “Ele me fazia me sentir um amador”, você confessou. A ternura era tanta que, quando Bellow publicou o último romance, aos 84 anos, você abriu mão da franqueza com que lidava com o amigo para não magoá-lo, dizendo apenas que não conseguia avaliar o livro com isenção, pois “não tinha simpatia” pelo personagem. A morte de Bellow o abalou: “por causa dele, das doenças, da morte”. Dias depois do funeral dele, você começou a escrever um livro em que a primeira cena se passa num funeral: Homem comum, um romance breve porém forte sobre a morte, doenças e lembranças. “A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre”, diz uma frase do livro. Fantasma sai de cena também elabora, com mais energia e vigor, o fim. É com ele que você se despede de Zuckerman, agora mais velho, mais triste. No adeus de Zuckerman, que tanto foi usado por você para refletir sobre arte e vida, ele diz uma frase lapidar, capaz de realçar o quanto foi vivo para você: “A vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante”. Aos 74 anos, você já não tinha o mesmo vigor e não conseguia “complicar mais as coisas”. Ainda assim lançou Indignação. No final de 2008, concluiu um trabalho bastante breve, A humilhação, um romance sobre um ator que precisa lidar não só com o fim da vida, mas também com o fim do talento. Era uma época difícil, você perdia pessoas importantes e seu irmão, Sandy, também estava doente. E então, em 2009, Updike morreu, aos 76. Havia dez anos, desde o desentendimento em torno do livro de Claire Bloom, que vocês não se falavam. “Ele sentiu a morte de Updike como uma profunda perda”, escreveu Claudia, que perguntou se você lamentava ter deixado passar tantos anos sem reatar a amizade. Você respondeu, sem elaborar: “Sim”. Em entrevista ao Telegraph em 2008, Updike disse, sobre ter você por perto: “foi muito bom”. Você morreu aos 85 anos, em maio de 2018, em Nova York, de insuficiência cardíaca. Dizem que, quando decidiu que não escreveria mais nenhum livro, você colou no seu computador um post-it que dizia: “A luta contra a escrita terminou”. Peço emprestadas as palavras de Updike e digo: ter você por perto foi mesmo muito bom. 18
Para ir além
MARCADOS POR PANDEMIAS Desinformação, anticientificismo, curas milagrosas para um vírus que mata indiscriminadamente: parece o lema do século 21, mas é história que se repete, diz a cientista Cristina Bonorino
HENRIQUE SANTIAGO
“A história do livro é muito parecida com o que estamos vivendo hoje. Vejo um paralelo com a pólio, pois não se sabia nada sobre a doença antes da vacina”. Essas foram as primeiras palavras da imunologista e professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Cristina Bonorino, ao saber que conversaríamos nos próximos minutos sobre Nêmesis. Embora guarde poucas lembranças da leitura, a cientista não consegue não relacionar a pandemia de coronavírus com a ficção inspirada em uma história real: a epidemia de poliomielite. No momento em que essa entrevista foi feita, o Brasil ultrapassava a marca de 200 mil mortes pela covid-19 (essa estatística deve crescer ainda mais no momento em que você, leitor, estiver com este texto em mãos), e Cristina refletiu sobre doenças que devastaram a humanidade ao longo dos anos a partir do romance protagonizado por Eugene “Bucky” Cantor. 19
Enquanto cientistas do mundo inteiro fazem descobertas quase diariamente, a realidade em um passado não muito distante era outra. “Se pegarmos o livro do Roth, as pessoas não sabiam como a poliomielite era transmitida. Achavam que era por mosquito ou por crianças, era tudo na base do boato. As medidas eram baseadas na escassez de informação, que existia inclusive para quem tomava decisões. Hoje é inacreditável, porque se sabe de tudo com uma tremenda rapidez”, avalia a especialista. No entanto, o acesso à informação, ou o excesso dela, não necessariamente significa que sabemos de tudo. Existem, claro, os paladinos da desinformação que promovem o caos no meio do desastre, e eles podem estar na sua família, entre seus conhecidos ou até mesmo na presidência do seu país. Mas, novamente, esse fenômeno não é exclusividade dos nossos tempos.
Rodrigo Alves, o presidente vítima de gripe espanhola. 20
Fake news secular Há mais de cem anos, em 1918, a gripe espanhola desembarcou no Brasil de navio e deixou um rastro de pelo menos 30 mil mortes. Como prova de que o vírus não faz distinção social, a doença matou o presidente da República Rodrigues Alves, à época recém-eleito para seu segundo mandato. Na ausência de vacina, a população de São Paulo criou a sua própria cura: um remédio caseiro feito com cachaça, limão e mel. Caipirinha, alguém? A receita que tem o sabor da nossa bebida símbolo pode ter sido uma precursora da fake news anticientífica no Brasil, mas resultou em uma iguaria da nossa mixologia. Muito diferente das superdefendidas hidroxicloroquina e ivermectina, que não têm nenhuma comprovação científica de cura no tratamento do coronavírus. “A ideia da cachaça era boa, mas não para esse efeito. Quando a gente não entende o que está acontecendo, é isso que acontece”, diz, aos risos. A epidemia de poliomielite, retratada com as tintas da ficção de Roth, foi marcante para Bonorino. Ela vivenciou o avanço da doença no Brasil nos anos 1970: a famosa vacina da gotinha, desenvolvida pelo médico polonês
Jim Krum, 6 anos, observa a vacina da pólio ser inserida em cubos de açúcar, para vacinação em massa. EUA, 1962. Coleção Especial da Universidade do Texas, Arlington Libraries. CC-BY-NC 4.0
Albert Sabin, marcou época e evitou que milhões de crianças morressem ou desenvolvessem atrofias de pés e mãos, por exemplo. Por aqui não há registros da pólio desde 1989 – recentemente, o vírus foi detectado no Afeganistão e Paquistão. Se voltarmos ainda mais no tempo, quando os portugueses ainda não haviam “presenteado” nossos indígenas com sarampo ou rubéola, o cenário foi ainda mais devastador. É claro que não se pode dimensionar tragédias; entretanto a peste negra quase varreu a Europa do mapa no século 14. Estima-se que entre 75 milhões e 200 milhões de pessoas morreram da doença em uma época em que a ciência estava longe de ser tão desenvolvida quanto hoje. O surto foi creditado anos a fio a roedores e pulgas – ainda que pesquisadores em 2018 tenham “inocentado” os ratos e atribuído a real culpa aos piolhos. Surpreendentemente ou não, uma das medidas para controlar a transmissão da bactéria que deixava manchas negras na pele era a quarentena. Acredite: a frase “fique em casa” não é emblemática do terceiro milênio. “Na Idade Média era comum que as cidades se ‘fechassem’, um verdadeiro lockdown. É isso: até a gente saber o que está acontecendo, para tudo e tenta descobrir. A ferramenta é a mesma, mas olha os recursos que eles [europeus] tinham: zero. Ainda dominados por uma mentalidade obscurantista, em que se fazia aula de anatomia em bruxas que eram queimadas vivas em fogueiras.” Em meio a reflexões sobre ciência e literatura, Cristina Bonorino ainda recomendou uma leitura: Year of Wonders (sem tradução para o português), de Geraldine Brooks. O livro narra a saga de Anna para conter o avanço da peste negra em uma comunidade na Inglaterra no século 17. “É um livro maravilhoso, a TAG bem que podia lançar. Sugere para eles”, finaliza. 21
AVANÇANDO NA LEITURA Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.
Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se! Não esqueça de destacar a ilustração colecionável.
Ilustração do mês
Gabriel Diogo nasceu em São Paulo, é um designer que se encontrou na ilustração. Apaixonado por cores e texturas, desenha para se conectar com o seu lado mais fantasioso e introspectivo, tentando influenciar as pessoas da melhor maneira possível por meio da arte. @gabrieldiogo.ilustra A pedido da TAG, Gabriel representou o momento em que o senhor Cantor e o dr. Steinberg encontram-se e desfrutam de um saboroso pêssego. 22
PREFÁCIO Nêmesis
Nêmesis
POSFÁCIO
OLÁ, TAGGER As páginas que você lê daqui em diante foram escritas em janeiro de 2021, dias após o histórico anúncio do início da vacinação no Brasil. Não está claro como viveremos daqui para frente – mas seguimos certos de que o momento de nos abraçarmos da forma mais forte, mais física, está cada vez mais próximo. Como entender tudo o que aconteceu? Chegado o fim do caos, é hora de fazer assimilações. Comemorar, sim, a retomada da prerrogativa que nos move, de liberdade para todos. Mas examinar o luto, o mar de tristeza sobre o qual nos mantivemos flutuando, e apenas isso, por tanto tempo. É desses opostos que tratamos aqui: nossa curadora, Lilia Schwarcz, fala sobre as lições do tempo e sobre o legado da pandemia para a sociedade. Aprendemos? Pense por si. Já a epidemia de luto que nos acomete é analisada pelo viés da psicanálise com o olhar sensível de Christian Dunker aliado à sensibilidade do repórter Thiago Souza, que navega a obra de Philip Roth e sua relação com a perda. Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor, tagger. Naveguemos.
“Não há nem felicidade nem infelicidade neste mundo; há apenas a comparação de um estado com outro. Apenas um homem que sentiu o desespero final é capaz de sentir a felicidade suprema. É necessário ter desejado a morte a fim de saber como é bom viver. A soma de toda a sabedoria humana será contida nestas duas palavras: espera e esperança.”
DUMAS, ALEXANDRE. "O CONDE DE MONTECRISTO"
SUMÁRIO posfácio
4 Entrevista Lilia Schwarcz
9 Entender o imponderável
13 Epidemias se assemelham na contabilidade macabra
Entrevista
“NÃO PODEMOS NOS VACINAR CONTRA O AFETO” FERNANDA GRABAUSKA
Historiadora e antropóloga, professora universitária e, de certa forma, biógrafa do Brasil, a curadora Lilia Schwarcz pede especificamente que conversemos por videochamada. “Imagine, em outros tempos, para termos essa conversa, ou você teria que vir a São Paulo, ou eu a Porto Alegre”, diz, evocando a necessidade do hibridismo para aturar o novo normal. Lilia (autora de livros importantes como Brasil: Uma biografia e o mais recente A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil) é contundente como todo profissional da não ficção: o passado e suas repetições saem já encadeados em suas frases. Em quarenta minutos de conversa, a escritora falou do enfado com o isolamento, sobre o grande carnaval pós-gripe espanhola e sobre a vivência do luto para a edificação da solidariedade. Leia trechos: TAG – A indicação de Nêmesis nos chegou em meio à pandemia do novo coronavírus. Por que provocar o leitor com uma história tão evocativa do sofrimento atual? Lilia Schwarcz – Além de fazer essa indicação para a TAG, eu escrevi um livro com a Heloisa Starling sobre a gripe espanhola de 1918. Estamos vivendo um momento muito
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negacionista. Qual a diferença entre negação e negacionismo? A negação é uma resposta até saudável, pois todos queremos um corpo são. Então, a nossa primeira reação diante da doença é dizer: “comigo não, comigo não vai acontecer”. Porém, o que está acontecendo no mundo – e particularmente no Brasil – é um negacionismo, que é quando esse movimento de negação individual se torna uma resposta coletiva. Sou historiadora e antropóloga de formação, mas não consigo dormir sem ler literatura. Acho que a história não se repete, mas dá uma lição. Por isso, é muito importante, na minha opinião, que a gente aprenda com o tempo passado. Isso vai nos fazer mais solidários, vai nos fazer entender que já existiram momentos como este que estamos passando, maiores ou menores, com uma aceleração diferente ou semelhante, e que a humanidade sempre reagiu a isso. Eu sei que todo mundo está cheio de falar deste tema, que todo mundo não aguenta mais o isolamento. Então por que vem a gente falar neste assunto de novo? Porque uma doença coletiva, como esta, pede que a nossa relação com ela não seja só individual, mas da coletividade. Quanto mais a gente tratar da doença, quanto mais a gente refletir sobre a doença, melhor vamos superar este trauma dos 200 mil mortos. Dizem os analistas que, quando o trauma não é tratado, ele volta de uma forma muito pior. Portanto, pensar na doença é uma forma de lidar com ela.
Em termos de estratégia de enfrentamento e do modus operandi da História, na sua investigação para esse livro, o que você descobriu de paralelos entre a gripe espanhola e o que estamos vivendo? O Brasil é um país de grandes colunistas, a crônica é muito famosa. Eu notei que grandes colunistas não trataram da gripe espanhola. Eu escrevi uma biografia sobre o Lima Barreto e fui olhar e ele foi provocado pelo Monteiro Lobato em uma carta. Questionado se não iria escrever sobre a gripe espanhola, Lima respondeu que não, que era “mais carnavalesco”. Aí é tudo que um historiador quer. Eu queria entender tudo o que aconteceu, pois soube que o carnaval de 1919 foi o mais animado da época, uma vez 5
que quem não tinha morrido queria comemorar. Queria mostrar que estava vivo e que sobreviveu. A Covid-19 chegou de avião e a gripe espanhola, de navio, no navio Demerara. Ele aportou em Recife, desceu para Salvador, foi para o Rio de Janeiro e parou em Santos. De lá, o vírus interiorizou para São Paulo, foi para Rio Grande e pegou toda a região Sul, subiu para Belém e Manaus. Nós começamos a ver muitas coincidências com o período atual. No Rio Grande do Sul, com o fenômeno do caudilhismo, teve governador que falou para primeiro fazer a eleição e depois tratar da Espanhola, algo que vimos em muitos lugares agora. Eu moro em São Paulo e foi impressionante o que vimos aqui. Na segunda-feira após as eleições, nós entramos na fase vermelha de infecções, até então não tínhamos nada. Então, tal como hoje, teve muito negacionismo político naquela época. Também coincidências muito tristes. Manaus, que foi uma das cidades mais atingidas pela primeira onda de Covid-19 e que está sendo fortemente afetada novamente pela segunda onda, foi uma das capitais mais atingidas pela Bailarina, em 1918. Veja como são as recorrências da história. Eu estava estudando como se tratava a gripe espanhola e nos jornais havia muita propaganda de sal de quinino. Eu fui olhar na geladeira o que era e vi que era um composto da água tônica. Foi quando me lembrei que o sal de quinino é usado no tratamento da malária. Na época, nenhum governo, nenhum presidente de província, como eram chamados os governadores na época, recomendou o sal de quinino. Somente os jornais sensacionalistas recomendaram. Fui olhar um pouco mais e descobri que o sal de quinino é idêntico à cloroquina. Há cem anos, isso já não era recomendado, pois, se usado preventivamente para o tratamento de outras doenças que não a malária, o sal de quinino poderia causar sintomas como zumbido nos ouvidos, taquicardia e outros problemas cardíacos mais sérios. Ninguém recomendava. Eis que o nosso presidente se torna garoto-propaganda da cloroquina. Nós achamos uma farmácia, em Belo Horizonte, que vendia comprimidos de cloroquina. Vejam que não evoluímos muito. (...) O que eu diria, infelizmente, é que em uma questão nós retrocedemos em comparação com 1918: 6
a solidariedade. Porque não houve, em 1918, qualquer político que evitasse falar da morte ou respeitar o luto da morte, algo que estamos vivendo agora. Ou seja, um profundo desrespeito com a dor. Estamos falando em 200 mil mortos e, a esta altura, não há ninguém que esteja nos lendo que não conheça alguém falecido em decorrência da Covid-19. Quem sabe a gente não volta no tempo para aprender um pouco mais sobre esperança, solidariedade e cidadania?
Qual você acha que é o papel da literatura diante do fato histórico? Acho que a nova historiografia bebe muito da literatura. Em que sentido? Toda boa literatura é uma história bem contada. É uma história sem furo, que possui começo, meio e fim; que você anuncia logo no começo e depois vai desenvolvendo. Claro que temos literaturas que não são cronológicas, mas me refiro às estruturas narrativas que temos de aprender. História e Memória são categorias do conhecimento temporal, mas que não abrem mão de um pouquinho de imaginação. No fundo, cada um de nós volta para o passado com questões do nosso presente. A nossa literatura, de alguma forma, também é isso. Quando a gente pensa: por que vale a pena falar sobre a peste de novo? Porque a peste, pandemia e epidemia são temas antigos, mas que a literatura vai renovando. Ela tem essa potencialidade.
Vou lhe pedir para fazer um exercício de projeção. Supondo o lançamento de uma edição ampliada e revista do Brasil: Uma biografia, o que você espera que seja o caminho que nos guie para o futuro? Quando Heloisa e eu acabamos a primeira versão de Brasil: Uma biografia, era a época da eleição do Lula. Não porque existisse qualquer intenção celebratória, nós nem falamos do Lula. Mas todo historiador gosta de analisar processos que se encerram. Nenhum historiador gosta de fazer projeção, a história do “e se?”. Porém, Heloisa e eu fizemos um posfácio novo falando do impeachment de Dilma, o que foi a eleição de Bolsonaro. Nós fizemos isso 7
porque foi uma demanda das editoras estrangeiras e nós não achamos justo que os leitores brasileiros não tivessem uma versão em português para lerem. Portanto, esse posfácio foi disponibilizado gratuitamente no website da Amazon. Claro que paramos antes da pandemia. Acho que, quando formos fazer um capítulo a mais, ele será feito quando este processo estiver encerrado. Escrevi um livrinho chamado Quando termina o século 21, que faz um paralelo com a afirmação do historiador Eric Hobsbawm de que o século 20 só começou depois da Primeira Guerra Mundial. Por quê? Porque o século só termina quando uma de suas grandes utopias não dá certo. O século 19 achou que era o século da civilização, do progresso, da evolução. Eis que a Primeira Guerra Mundial foi um confronto bárbaro. Às vezes, amigos e ex-vizinhos se matavam em campo aberto! Eu diria que o nosso século 21 só vai iniciar após a pandemia. Por que eu acho isso? Porque teremos experimentado um movimento contra a nossa vocação. No século 20 pensamos que estávamos em total liberdade, libertos de amarras, que nada nos conteria. Eu espero que o século 21 acabe com todos mais conscientes da forma como estávamos liquidando com o planeta. Eu sou muito amiga do Ailton Krenak e ele sempre diz que o que nós da civilização ocidental, brancos, europeus e americanos não entendemos é que somos nós que estamos em extinção. A natureza vai se rearranjar. Então, a primeira coisa é que devemos perceber como estávamos usando o nosso limite, em termos de natureza, pessoal e como coletividade. Seremos melhores se aprendermos com datas que são muito tristes. Cada vez mais as pessoas se impressionam menos com o número de mortes. Não podemos nos vacinar contra o afeto. Estamos em isolamento social, mas não vivemos em estado de isolamento afetivo. Por que o século 21 só vai iniciar com o fim da pandemia? Porque aprendemos, a duras penas, que não somos imortais, que não somos imunes a doenças e que não somos eternamente jovens.
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Reportagem
ENTENDER O IMPONDERÁVEL O psicanalista e professor Christian Dunker ajuda a entender a angústia que sucede o morticínio em quatro fragmentos trançados à obra de Philip Roth.
THIAGO SOUZA
[1] “A vida é assim mesmo, tem sempre alguma coisa esquisita acontecendo”, diz Bucky Cantor, protagonista de Nêmesis, às crianças de um pátio de recreio em Newark quando a epidemia de poliomielite de 1944 dava os seus primeiros sinais e espalhava o terror que é a tomada de consciência de que somos mesmo vulneráveis diante do imprevisível. A Covid-19 alcançou os seis continentes da Terra. Chegamos a contar mais de mil mortos por dia durante meses. Luto e trauma coletivos que ainda estamos vivendo. A literatura – e todas as representações que faz da morte e do luto – pode nos oferecer não só caminhos para pensar essas questões, mas também possibilidades de recuperar o sensível. “A morte, como mostrou [o historiador] Ariès, para a experiência histórica do Ocidente, vai se tornando cada vez mais um acontecimento vergonhoso, silenciado em hospitais, asséptica e medicalizada, sem últimas palavras e rituais de despedida. Mas, se olharmos mais de perto, durante este tempo emergiu uma nova forma de falar dos que se foram, um novo suporte para as palavras que não podem ser ditas: a literatura”, comenta o psicanalista e professor da USP Christian Dunker. [2] Patrimônio é uma espécie de luto antecipado. Nele, Roth examina sua relação com o pai à luz do diagnóstico de um tumor no cérebro que seria velozmente mortal. Quando olha para as imagens da ressonância magnética do cérebro 9
do pai, o filho se dá conta de que “se tratava do cérebro dele, do cérebro do meu pai, daquilo que o fazia pensar da forma curta e grossa com que pensava, falar da forma enfática com que falava, raciocinar da forma emotiva com que raciocinava, decidir da forma impulsiva com que decidia”. O luto de Roth, com o pai ainda vivo, guarda algumas semelhanças com o luto que vimos de perto durante a pandemia. Examinar o relacionamento que tivemos com a pessoa de quem estamos nos despedindo nos faz trazer à consciência outros lutos, como explica Dunker. “Quantas vezes decepções de parte a parte nos fizeram realizar trabalhos de luto parcial, como reconhecer que nosso filho cresceu, que se tornou adulto, e que perdemos a criança adorável que tanto amamos um dia?” Montaigne (1553-1592) disse que filosofar é aprender a morrer, lembra o psicanalista: “Porque nos colocamos no plano das palavras que sobreviverão a nós, mas também porque estamos nos preparando a cada vez para perder a propriedade e o sentido de nossas palavras, a intencionalidade e o contexto de nossa experiência, que será, desde então, pertencente ao leitor e ao seu poder discricionário de decidir e mudar o sentido do que haveríamos de querer ter dito. É por isso também que o luto contemporâneo depende cada vez mais de experiências de leitura e escrita”. [3] Nêmesis fala de como circunstâncias maiores do que nós acabam sempre nos derrotando sem que possamos esboçar qualquer reação. A epidemia de poliomielite, a Segunda Guerra e suas vítimas, a doença e a morte: de onde vêm?, pergunta-se Bucky Cantor. Por que acontecem?, insiste em saber. É a mesma pergunta que parece a todos nós irresistível quando a tragédia nos encontra. Quando vai ao funeral de um dos seus alunos, uma criança até então saudável e que adorava esportes, o sr. Cantor vê o caixão dentro do carro fúnebre: “Aquela caixa em que um garoto de doze anos ficava com doze anos para sempre. Nós todos vivemos e envelhecemos a cada dia, porém ele permanece com doze anos. Milhões de anos se passam, mas ele tem ainda doze anos.” Por mais dolorosos que sejam, os rituais de despedida são o momento de se entregar às perguntas. “Precisamos 10
dos outros para ajudar a acreditar que aquele corpo que está ali jamais voltará à vida. (...) Precisamos dos outros para praticar o trabalho coletivo da memória sobre aquele que se foi para que tenhamos uma variedade de ângulos e perspectivas representativos para nos ajudar a descobrir algo sobre a essência do que se perdeu naquela perda. Precisamos dos outros para dividir o amor e o ódio, a culpa e a vergonha que sentimos por termos deixado o outro ir, ou por sentir que o outro nos deixou e agora estamos em uma nova etapa de solidão. Precisamos dos outros para ler nossas cartas de despedida, para sancionar as heranças recebidas ou recusadas, para decretar simbolicamente o fim do luto. Finalmente, precisamos dos outros para passar adiante e compartilhar o traço de memória sobre o qual se concentra o resíduo simbólico e transformativo que dá origem a uma nova identificação”, diz Dunker. Um dos aspectos mais sombrios da pandemia é que o doente internado acaba não podendo receber visitas no hospital, onde termina a vida sozinho. Alguns profissionais da saúde, sensibilizados, arranjam um jeito de dar ao paciente uma chance de se despedir dos familiares por vídeo, quando percebem que as chances de voltar de uma intubação não são boas. Alguns ficam muito tempo intubados, esgarçando o sofrimento da família. “Há muitas formas de perder ou de ir perdendo uma pessoa em vida”, sublinha Dunker, “e a pandemia nos trouxe algumas particularmente penosas, como a das pessoas intubadas, meses a fio, sem poder falar, nem se despedir, nem mesmo olhar o rosto por inteiro de outra pessoa antes de falecer. A morte solitária sempre foi um desafio literário, tanto para quem a vive quanto para os outros que, em nossa época, nos preocupamos muito em saber se aquela pessoa sofreu demasiadamente ou desnecessariamente durante essa passagem. Ainda que isso objetivamente nem sempre seja verdadeiro, temos esta crença de que nossa presença é em alguma medida um alívio e uma ação contra o processo da finitude da vida”. [4] A primeira frase de Homem comum diz: “Em torno da sepultura, no cemitério malcuidado...”. Esse é um romance 11
que trata da arrasadora luta que o corpo trava contra a velhice e as doenças. E é um livro que Roth começou a escrever logo após o funeral do amigo Saul Bellow. A elaboração do luto veio por meio de seu ofício, a escrita. Dunker diz que o luto público é a forma como uma vida se integra à cultura que a tornou possível: “Daí que, a rigor, todo luto seja justamente o longo processo pelo qual uma experiência humana, única e insubstituível, vem a tomar parte no que podemos chamar de cultura. Talvez não seja por outro motivo que as manifestações culturais mais antigas que conhecemos são inscrições funerárias. Talvez isso tenha uma relação direta com a propriedade irredutível da linguagem humana, em comparação com as linguagens animais, de representar o negativo. Uma epidemia como a Covid, assim como qualquer outra situação social de exceção que impeça, adie ou modifique esse processo, tem consequências psíquicas da mais alta importância. Pois modifica uma espécie de pacto simbólico fundamental entre mortos e vivos”. Embora aparente resignação frente ao inevitável, o Homem comum de Roth sente saudade da vida, ou das lembranças da vida. Para Dunker, “a literatura nada mais é do que o uso de um suporte simbólico que sobrevive ao tempo das pessoas, ou seja, ao tempo da escrita, ao tempo das inscrições da letra, para perceber que ela é um sistema que vai transmitindo e passando de geração em geração não apenas seus feitos e monumentos, mas o que a cada vez não foi possível dizer, ou seja, a verdade que não foi dita toda”. A obra de Philip Roth pode ser lida como uma meditação honesta sobre a finitude do ser humano e todas as decrepitudes atravessadas até chegar lá. Ainda assim, seus livros parecem vivos e provocadores. “É porque a intensidade mais perturbadora da vida é a morte. É porque a morte é tão injusta. É porque, para quem provou a vida, a morte não parece nem sequer natural”, ele escreveu em Homem comum. Roth sabia que, para pensar sobre a morte, a vida era a única saída para colocar as coisas em perspectiva. É como se Roth nos dissesse que a morte só é possível porque a vida o é ainda mais.
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Crítica
EPIDEMIAS SE ASSEMELHAM NA CONTABILIDADE MACABRA VITOR NECCHI
Há uma contagem funesta que assemelha as epidemias. O primeiro caso, tão único e distante, dá a falsa impressão de que a coletividade tem salvação, de que o inimigo tão diminuto não chegará perto. Os especialistas, no entanto, sabem que esse caso logo deixará de ser isolado para se transformar em múltiplos. Até chegar o dia em que o total de doentes e mortes escancara que o vírus não obedece a limites geográficos, classes, etnias ou qualquer outra condição. A percepção dessa similaridade surge já nas primeiras páginas de Nêmesis (2010), de Philip Roth (1933-2018), que trata de uma epidemia de poliomielite em Newark, estado de Nova Jersey, nos Estados Unidos. No verão de 1944, começo de junho, os médicos tentavam tranquilizar os 429 mil habitantes, afirmando que não havia um alastramento descontrolado da doença, mas as notícias sobre os números crescentes de novos casos e de óbitos denunciavam a gravidade da situação. O romance apresenta circunstâncias similares ao pesadelo que a humanidade vive desde 2020, quando a Covid-19, devastadora e letal, implodiu a percepção do tempo e a dinâmica cotidiana, transformando a realidade em um permanente sobressalto. No Brasil, a leitura impacta ainda mais porque se trata de um país à deriva no enfrentamento da pandemia. Um país que tem um presidente minúsculo e um general incompetente na condução do Ministério da Saúde. A história começa em Weequahic, bairro onde mora o virtuoso Eugene Cantor, 23 anos, apelidado de Bucky pelo 13
avô. Nele, mais de 140 crianças menores de 14 anos foram contaminadas apenas nas primeiras semanas de julho. Os estudantes estavam em férias, ávidos para explorar as possibilidades das ruas, o que aumentava as chances de contágio. Motivos para pânico sobravam, e Roth é preciso e objetivo ao destrinchar a moléstia. A poliomielite causa paralisia, deixando a criança aleijada ou incapaz de respirar sem o auxílio de um cilindro de metal. Em ocorrências mais graves, os músculos respiratórios param de funcionar, e a morte é certa. Chamavam de paralisia infantil porque se supunha que o vírus atacava principalmente crianças, mas qualquer pessoa corria risco. Não havia vacina que imunizasse ou remédio que curasse, mas se acreditava que as crianças estariam protegidas fora das cidades abrasantes. Então, as famílias com mais recursos se refugiavam no litoral, no interior ou nas montanhas. Foi em decorrência da decisão de ir trabalhar em um desses locais que os conflitos de Bucky se agigantaram. A história do rapaz domina as páginas. Míope, precisava usar lentes grossas, por isso foi um dos poucos jovens não escalados para os fronts da Segunda Guerra Mundial. Triste e envergonhado, chorou a noite toda quando os médicos o dispensaram na avaliação. Enquanto os dois melhores amigos e grande parte dos jovens saudáveis rumaram para combater, ele lecionava Educação Física e era admirado, até mesmo idolatrado, pela gurizada. Nas férias, trabalhava como fiscal do pátio. A ascendência sobre os garotos e a satisfação pelo papel cumprido, no entanto, não atenuavam a vergonha e a sensação de apequenamento. Quando os primeiros casos atingiram os pupilos, Bucky tentou acalmá-los com o pouco que se sabia na época e tentava represar o descontrole provocado pelo preconceito e pela desinformação. A ignorância produzia uma infinidade de profilaxias inócuas e receitas fajutas – outro ponto de similaridade entre as pandemias, reais ou fictícias. Aos pais beirando o descontrole, Bucky recomendava o procedimento mais importante para as crianças: lavar as mãos constantemente. E que todos se acalmassem. 14
Quando uma mãe questionou “por que a doença está atacando nossas lindas crianças judias?”, respondeu: “Não sou médico. Não sou cientista”. Às perguntas dos pais incrédulos e atraiçoados, silenciava. O que dizer frente ao horror, quando o fluxo previsível da vida é esmagado pela morte de um filho? Os mais velhos, como a avó dele, sobreviveram à epidemia de 1916 e lamentavam que a ciência, desde então, não descobrira cura ou prevenção. E nesse impasse entre vida e morte, o desespero insuflava estultices e preconceitos. Queriam até impedir que as domésticas negras entrassem na vizinhança, pois poderiam trazer germes da pólio dos lugares miseráveis onde moravam. E do lado de fora do pretenso gueto, o horror se agravava. Antissemitas diziam que a doença se espalhava porque era um bairro de judeus e por isso defendiam o isolamento. Houve quem propusesse queimar tudo, com os judeus dentro.
Deus
Nêmesis foi o último romance publicado por Philip Roth. Antes, escreveu Homem comum, Indignação e A humilhação. Em todos, tratou das escolhas que imprimem uma marca indelével e que definem a vida de uma pessoa. Nessa obra derradeira, Deus se impõe nos questionamentos de Bucky. Deus não impediu que a poliomielite atacasse as crianças judias de Weequahic. E, 23 anos antes, esse mesmo Deus não poupou a mãe do rapaz no parto, transformando-o em um bebê a ser criado pelos avós. E também haveria um dedo divino a engendrar o fato de o garoto ser filho de um fraudador. Confrontado a tudo isso, o pouco de fé que havia se esboroou. Atordoado com a proporção avassaladora que a doença adquiria e rememorando as questões determinantes de sua vida, Bucky percebeu que, se não fosse por Deus, as coisas certamente seriam diferentes. Não era um judeu que praticasse sua religião com regularidade, mas sempre a respeitou, até ser tomado por uma ira frente à situação que dia a dia piorava, atingindo não apenas os garotos do seu círculo próximo, dos quais sabia nome e sobrenome, mas muitos outros, em uma dimensão impossível de acompanhar. 15
Em uma pandemia, há um momento em que a dor pela morte deixa de ser detonada pelos afetos mais íntimos e se torna um processo coletivo de incredulidade, em que a amplitude dos óbitos supera a impessoalidade dos registros. A ira de Bucky não era contra os supostos disseminadores da doença. Os italianos, que muitos pensavam ter levado o vírus de propósito para o bairro judeu, as moscas consideradas transmissoras, o correio com suas cartas contaminadas, o dinheiro, o leite, o calor impiedoso ou ainda Horace, rapaz com limitações cognitivas que perambulava sujo em busca de apertos de mãos. Bucky não era convencido pelas causas elencadas por uma comunidade apavorada e enlutada. Ele se voltava contra Deus, o criador do vírus. O Deus que lhe deu a vida e, no mesmo instante, lhe tirou a mãe. E ele percebia duas guerras: a travada em fronts na Europa e no Pacífico e outra bem próxima, que ceifava as crianças de Newark. À primeira, foi impedido de ir. A segunda, começou a combater cuidando dos garotos, mas optou por trocar a cidade que a poliomielite convulsionou pela calmaria no topo das montanhas Pocono, aonde foi trabalhar em uma colônia de férias. Ainda que distante, não obteve alívio, mesmo com a alegria de ficar com a namorada, que já estava trabalhando lá. Sentia vergonha e remorso. Julgava que, enfeitiçado pelo medo, havia traído os meninos e a si próprio. O tanto de inexplicável que é o mundo, a infinidade de questões irrespondíveis – tudo isso agia em fluxos oscilantes no pensamento do rapaz, que não conseguia alcançar um estado de tranquilidade duradouro. A crueza da realidade desestabilizava, devido à força que determinados acontecimentos históricos têm sobre a vida das pessoas. Ele não precisava estar em sua cidade para saber que a sirene estridente das ambulâncias seguia ecoando seu rastro tenso pelas ruas. E de alguma forma, tacitamente, quase como um desígnio, alimentado pela culpa, se convenceu que teve papel ativo na desgraça de sua comunidade. E assim seguiu ao encontro do próprio infortúnio, mais um, porque a vida não economiza na aritmética das dores. 16
Pegue seu copo literário, sirva a bebida à sua escolha e se prepare. Em maio, a TAG brindará a mais um mês comemorativo. Qual a ocasião, você se pergunta? A literatura brasileira: vozes contemporâneas, vozes modernas, vozes antigas e dissidentes. A rica e diversa literatura de nosso país será homenageada em um mês repleto de eventos e conteúdos temáticos, que ampliarão de forma ainda maior o impacto da sua caixinha. O livro do mês é o vencedor da 5ª edição do Prêmio Kindle de Literatura, em uma parceria feita com o Grupo Editorial Record para celebrar e reconhecer escritores independentes do Brasil. Pela primeira vez na TAG, um júri escolheu a obra que chega aos associados. A banca curadora, composta por Adriana Carranca, Vanessa Ferrari e João Anzanello Carrascoza, elegeu um romance um tanto poético, um tanto perturbador, que mostra a decaída de uma personagem decidida a usar como instrumento de sua tristeza a felicidade de todos aqueles que a rodeiam. 17
Loja
Da esquerda para a direita, os jurados Van Ferrari, João A. Carrascoza e Adriana Carranca. Créditos: Dora Villela. Marcos Vilas Boas. Acervo pessoal.
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MÊS TEMÁTICO À VISTA