O pássaro secreto
PREFÁCIO
OLÁ, TAGGER É com o coração transbordando de orgulho e de alegria que apresentamos um mês de maio inteiramente dedicado à literatura do nosso país. Além de livros brasileiros inéditos em ambos os clubes, teremos conversas, teremos eventos e teremos aquilo que mais amamos: mais literatura. Temos um manifesto e um compromisso: o de fazer do Brasil um país de leitores – e desses leitores, leitores do Brasil. Você recebe na caixinha deste mês o vencedor do Prêmio Kindle de Literatura – o potente O pássaro da noite, da paraibana Marília Arnaud. Neste prefácio, portanto, você conhecerá um pouco do universo da protagonista, Aglaia Negromonte, e seus tropeços rumo à maturidade. Há dois vértices na história de Aglaia: a aparição inesperada de uma irmã cuidadosamente escondida da família e uma batalha às vezes incapacitante com as tristezas de crescer. O repórter Igor Natusch investiga essas temáticas em textos imbuídos em igual medida de pesquisa e sensibilidade. Ficou querendo mais? O mimo deste mês é especial: um livro de contos escrito especialmente para a TAG por grandes nomes – novos e consagrados – da literatura brasileira. Viva a literatura do Brasil! Boa leitura.
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Impressão Gráfica Ipsis maio de 2021
COLABORADORES
FERNANDA GRABAUSKA
RAFAELA PECHANSKY
LUISE FIALHO
Editora-chefe
Publisher
Engajamento
ANTÔNIO AUGUSTO
LIZIANE KUGLAND
Revisor
Revisora
PAULA HENTGES
KALANY BALLARDIN
Designer
Designer
GABRIELA BASSO Designer
VITÓRIA PACHECO
RAONE ARAUJO
Gestão de clientes
Designer
SUMÁRIO prefácio
5 O livro do mês
8 Unboxing
9 Entre iguais, a diferença
12 Somos todos loucos aqui
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O livro do mês
O QUE RESTA É CONTAR NOSSA HISTÓRIA Qual a jornada do herói possível para uma protagonista que recebe o nome de uma deusa do Olimpo apenas para acabar insegura, desamparada?
TATIANA CRUZ
Ilustração de Felipe Stefani
Na Física, conhece-se como buraco de minhoca uma equação de Einstein para a relatividade geral, um atalho a cortar tempo e espaço que abriria caminho para viagens espaciais. Em O pássaro secreto, caímos em um desses buracos. Do alto dos seus 40 anos, de algum lugar longe do trauma, a narradora do romance de Marília Arnaud, Aglaia Negromonte, nos atira em um túnel. Lá, nós a encontramos em uma adolescência marcada por transtornos psicológicos, baixa autoestima, ciúme, raiva e rompantes de vingança. Poderia ser apenas uma narrativa cronológica cuja trama dói só por se desenrolar como uma ferida aberta. A surpresa nos acomete ao nos vermos presos no pinball particular de memórias dessa narradora – em que cada memória lançada pode nos catapultar para outro buraco. Não é de imediato que a dor de O pássaro secreto nos arde. Ela cresce gradualmente: Aglaia forjou sua imaginação e sua inteligência dentro da biblioteca do pai, lendo obras complexas enquanto se alfabetizava. Shakespeare, Nietzsche, Hesse e outros sussurram aos ouvidos da Aglaia madura. E ela nos pega pela mão, conhecedora que é da potência de um bom romance de formação, para nos 7
envolver, primeiro na história de seu nome, em pormenores de seu nascimento. Ela nos apresenta a casa materna (ou seria paterna?), narrando-se menina ainda em idílio com a matriz... até o glitch. Até que tudo comece, gradativamente, a trincar. E daí, já estamos atados a ela. A família Negromonte é composta por um pai cuja estatura intelectual transborda: em casa, no teatro e no cinema, ele vive a vida como na dramaturgia. Heleno Negromonte está sempre atuando, seduzindo, professorando do alto daquilo que leu. Aglaia cresce vendo-o gigante. Para alcançá-lo, a menina batizada pelo pai com o nome da deusa da beleza não consegue encontrar no espelho imagem condizente com o mito. É uma menina apertada em roupas, sempre lutando contra a balança, mas que acaba descobrindo nos livros sua oportunidade de ser vista pelos olhos paternos. Vem da trindade de Graças da Mitologia Grega o primeiro buraco de minhoca, a primeira pista que essa narradora deixa para seguir. Qual a jornada do herói possível para quem recebe o nome de batismo de uma deusa do Olimpo e acaba uma menina insegura, envolta em transtornos alimentares graves? Quem consegue calcular o tamanho do tombo depois de tamanha subida até o ego paterno? E quando a trindade de Graças, não advinda do matrimônio – temor já alertado por Luísa, esposa de Heleno –, vem de uma traição? Thalie chega de chofre, a terceira Graça materializada em uma filha ocultada da família, de evidente beleza, vinda de outro continente, atravessando a já problemática Aglaia como uma punhalada. Antes disso, outro detalhe narrativo vale a atenção do leitor: Demian. Demian é o nome de um colega de escola que surge na vida de Aglaia renovando-lhe o ânimo de viver e o despertar do amor adolescente. Mas Demian também é o nome não só do consagrado romance de Herman Hesse como também do personagem que atua como uma passagem para que o protagonista da obra, Emil Sinclair, atravesse a adolescência, para perceber-se humano, mesmo que sombrio. Ambos os Demians, o de Marília Arnaud e o de Hesse, aludem à metáfora de uma ave que se debate querendo voar. Se Sinclair encontra no seu Demian um guia para o voo em busca da individualidade, 8
No nosso app, veja mais razões para ler O pássaro secreto
Aglaia acaba ficando presa à coisa, que é como chama a perturbação interior que a desassossega e desampara assim que entra em cena a meia-irmã francesa, a meia-irmã que não só é linda como também alcança fácil os amores de Heleno Negromonte e de Demian. Assim como Sinclair, Aglaia tem em Demian o catalisador de um processo de transformação, nela extremamente doloroso, da realidade como mero dispositivo: desencadeia-se seu mundo interior, simbólico, frágil, transbordando em uma série de ações destrutivas que nos dói e nos fascina acompanhar. O pássaro secreto é uma obra expressionista, exprime o interior do narrador como se abrisse um corpo ainda quente para que se enxergue a coisa, esse pássaro que é Aglaia. Em Demian, de Hesse, diz-se que nada pode deter um homem quando sua vontade é levada a cabo. O pássaro secreto, de Marília Arnaud, é essa vontade levada a cabo. Importante ressaltar que O pássaro secreto tem seus momentos de doçura. Por ser tão sombria e pesada a mente da narradora na competição com a irmã, é linda sua leveza quando em meio à natureza, no sítio da avó Sarita, em Saudade. O cheiro de cada flor, as horas na espreguiçadeira da varanda ouvindo histórias, os tons de todos os verdes… há horas em que enxergar a vida pelo olhar de Aglaia pode ser um deleite, a despeito da constante perturbação. Essa ambivalência se faz presente o tempo todo. “Julgar é uma das coisas que mais dá prazer ao ser humano”: ao citar Shakespeare, a narradora nomeia, cirúrgica, aquilo que nos acomete durante a leitura. Sim, julgamos Aglaia o tempo todo, mas empatizamos com sua dor: “o silêncio é um dos muitos disfarces usados pela culpa”, como diz, novamente, o bardo. Ao longo de sua trajetória, essa sensível narradora nos lança a outro buraco quando recorre às imagens de um precipício, de um abismo e de uma corda onde se equilibra para tratar de seus tormentos. A sua é uma estrada pavimentada pelo diálogo de Jung com a obra de Nietzsche. Se somos nós, ao mesmo tempo, o homem, a corda e o abismo, o que nos resta então é contar a nossa história. Do fundo de um Hades particular, Aglaia ainda segura uma corda. Ela tem uma história para contar. 9
MIMO
Unboxing
No mês da literatura brasileira, livros em dobro: junto com O pássaro secreto, você recebe As partes de uma casa, coletânea de contos escrita por grandes nomes da literatura brasileira contemporânea. Como quem caminha pelos cômodos de uma habitação, você lerá textos de Jeferson Tenório, Carol Bensimon e Miguel del Castillo, entre outros – o prefácio é de Itamar Vieira Junior.
PROJETO GRÁFICO Quer saber mais sobre o processo de criação da capa do mês? Confira no app TAG Curadoria
Peso e leveza convivem tanto na capa quanto na trama do livro do mês. A capa de O pássaro secreto traz arte de Felipe Stefani (São Paulo, 1975), profissional radicado no Rio de Janeiro que já ilustrou as obras de brasileiros como Marco Catalão e André Setti, bem como da Nobel Herta Müller. Em contraste com a delicadeza de uma mulher solitária, envolvida pelos pássaros da sua alma, a tipografia utilizada evoca o fardo da tristeza existencial de Aglaia.
NO APP Nunca serão só livros (você não achou que deixaríamos por isso, não é mesmo?): no nosso aplicativo, você pode conferir a agenda completa de eventos para este maio da literatura brasileira.
Vamos organizar nossa leitura? Acesse a jornada do mês: http://bit.ly/JornadaMaio21Cur
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Para ir além
ENTRE IGUAIS, A DIFERENÇA Refletir sobre o eterno dilema da relação entre irmãos é um dos mais fascinantes – e insolúveis – desafios da literatura
IGOR NATUSCH
“Meus irmãos: o que isso significa?” A pergunta de Aglaia, narradora-personagem de O pássaro secreto, longe está de ser banal – pelo menos para nós, que estamos do lado de cá desse eterno assombro diante do mundo que é a literatura. Não é a troco de nada que a humanidade se dedica, desde que desceu das árvores e talvez até antes disso, a empilhar palavras sobre o tema. Em uma questão que vai muito além da definição do dicionário, a resposta certamente não há de estar em duas frases sobre dividir o mesmo sangue ou crescer na mesma casa. Na Bíblia, a morte de Abel pelas mãos de Caim iniciou uma longa tradição de irmãos que passam irmãos no fio da espada. De fato, a relação fraternal surge na literatura como uma questão de vida, mas talvez especialmente de morte: qual é o destino de Antígona, uma das filhas do casamento incestuoso de Édipo e Jocasta, senão viver uma série de tragédias em torno de irmãos que matam, morrem e, mesmo mortos, não conseguem repousar em paz? A inclinação trágica, de qualquer modo, longe está de ser a regra. O conto de fadas João e Maria mostra o triunfo da camaradagem entre irmãos em mais de uma esfera: tanto na dupla infantil perdida na floresta, que consegue vencer 11
a bruxa má que deseja devorá-los, quanto na história de colaboração dos Irmãos Grimm, principais responsáveis por compilar a história popular e eternizá-la em palavra e papel. Um trabalho em equipe que, séculos depois, ganharia novo formato nos livros infantis Desventuras em série, de Daniel Handler: em um espírito desgraça-pouca-é-bobagem, o trio de órfãos Baudelaire combina esforços e habilidades contra o grotesco Conde Olaf, que faz de tudo para roubar a fortuna dos pequenos herdeiros. Irmãos que se ajudam e, inclusive, muitas vezes calham de gostar bastante uns dos outros. Uma das cenas inesquecíveis de Orgulho e preconceito, clássico de Jane Austen, acontece quando a romântica Elizabeth atravessa uma ampla área rural sozinha, sem esperar pela companhia de um homem, como pedia a etiqueta, movida pela urgência em visitar sua amada e doente irmã Jane. Em O apanhador no campo de centeio, obra maior de J.D. Salinger, a rebeldia adolescente de Holden Caulfield só encontra alguma calma na companhia da irmã mais nova, Phoebe, única pessoa com a qual nosso imaturo herói sente uma genuína conexão. Às vezes, irmãos são refúgio. Afinal, nem sempre a família é lugar de compreensão ou cuidado: por vezes, é 12
Na página oposta: ilustração de Alexander Zick para João e Maria
uma circunstância que oprime e contra a qual é necessário reagir. Um dos enredos que talvez passe quase despercebido em meio ao horror de A metamorfose, de Franz Kafka, envolve Gregor Samsa e sua irmã Grete: em um primeiro momento, a transformação do homem em monstruoso inseto aproxima ainda mais os dois, em oposição à repulsa quase imediata do restante da família. Da mesma forma, é das muitas diferenças entre Dmitri, Ivan e Aliêksei que surge a força narrativa e filosófica de Os irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski – mas, ao mesmo tempo, é no desespero que compartilham diante do corrompido pai Fiódor que os três irmãos, e a própria história, encontram sua coesão. A palavra “fraternidade”, surgida para falar da proximidade entre irmãos, virou sinônimo de amizade verdadeira e de carinho desinteressado. Mas, como muito bem sabe a literatura, nada garante que irmãos sejam sempre amigos. Pegando emprestado os nomes de dois irmãos rivais da Bíblia, Machado de Assis conta em Esaú e Jacó a história de Pedro e Paulo, irmãos gêmeos diferentes em praticamente tudo, menos no interesse por Flora, que nunca consegue decidir-se por um deles. Uma disputa semelhante torna-se uma cicatriz de ódio insuperável em Dois irmãos, de Milton Hatoum. E em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, o disparador da tragédia familiar é justamente a proximidade incestuosa entre os irmãos André e Ana – fazendo do filho pródigo que retorna ao mundo rural uma metáfora não de redenção, mas de degradação definitiva. O que significa, então, a irmandade? Para Aglaia, mulher que narra e vive o livro de Marília Arnaud, a relação com irmãos e irmãs é um caderno em branco, difícil de preencher; para outras tantas vozes, de outros tantos livros, é uma circunstância de vida que transita entre diferentes humanidades, sem fincar pé em nenhuma delas em especial. Talvez porque, no fim das contas, um irmão ou irmã seja um igual demasiado diferente, ou vice-versa – e a literatura, tão apegada a questões insolúveis, parece à vontade para nos responder dizendo que a pergunta, nesse caso, vai sempre um pouco além do que queremos saber. 13
Reportagem
SOMOS TODOS LOUCOS AQUI A palavra escrita e o transtorno mental conversam o tempo todo – seja com narradores problemáticos, seja com autores que lutam contra a própria mente
"Nós somos todos loucos aqui", diz o gato. "Eu sou louco. Você é louca." "Como você sabe que sou louca?", pergunta Alice.
IGOR NATUSCH
"Deve ser. Ou não estaria aqui." A citação de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, é tão poderosa que seu uso virou quase um bordão. Pudera: poucos momentos na literatura nos falam de forma tão precisa, e com tão poucas palavras, da loucura compartilhada entre uma pessoa e outra, entre um leitor e um livro. E também entre um livro e aquele que o escreve: em seus diários (parcialmente destruídos,
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Detalhe de ilustração de John Tenniel Reprodução
supostamente por iniciativa de sua família), Carroll surge como um homem em permanente angústia espiritual e obcecado pelos próprios pecados, reais ou imaginários – o que inclusive levou estudiosos a tecer insinuações, nunca comprovadas, de que o escritor sentia-se fisicamente atraído por crianças. No fundo, talvez seja isso: escrever livros (e também lê-los, por que não?) não é coisa de gente sã. Quiçá se possa inclusive falar em um acordo entre malucos, unindo autor, personagens e leitor. Se Dom Quixote não fosse louco de pedra, não teríamos história – e se o leitor ou leitora não se fizesse irmão de Sancho Pança, admitindo a loucura e interagindo com ela, o livro de Miguel de Cervantes não seria um dos clássicos maiores da literatura universal. Da mesma forma, Moby Dick, obra maior de Herman Melville, extrai sua força da insanidade do Capitão Ahab – consumido por uma obsessão vingativa com a qual, gostemos disso ou não, todos somos capazes de nos identificarmos. Se todo escritor ou escritora está, de um modo ou de outro, falando de si, nada mais natural que a literatura nos conte, o tempo todo, a respeito da turbulência na mente dos que a produzem. Vindo de uma família que, atualmente, se acredita que fosse portadora de transtorno bipolar (seu avô morreu em um hospício), Hans Christian 15
Andersen sofria de crises de depressão e via a si mesmo como um homem repulsivo, o que arruinou sua vida amorosa – como saber disso e não lembrar do enredo de O patinho feio, obra infantil mais memorável do dinamarquês? Um dos nomes máximos da ficção científica do século passado, Philip K. Dick era paranoico, sofria de alucinações auditivas e episódios de desordem dissociativa, nos quais acreditava ser duas ou mais pessoas ao mesmo tempo. Impossível não associar essas vivências com a profunda mistura entre delírio e realidade de O homem duplo, ou mesmo com a perseguição aos replicantes em Androides sonham com ovelhas elétricas?.
“NO FUNDO, TALVEZ SEJA ISSO: ESCREVER LIVROS (E TAMBÉM LÊ-LOS, POR QUE NÃO?) NÃO É COISA DE GENTE SÃ. QUIÇÁ SE POSSA INCLUSIVE FALAR EM UM ACORDO ENTRE MALUCOS, UNINDO AUTOR, PERSONAGENS E LEITOR.” Quem lê de forma cuidadosa O velho e o mar, obra que deu a Ernest Hemingway o Nobel de literatura, percebe que o livro é todo uma metáfora: o velho é o próprio Hemingway (ou qualquer um de nós, leitores) tentando dominar o peixe que se debate como a própria vida, recusando-se a ser dominado, a permitir-se fazer sentido. O que talvez seja menos claro é o quanto o autor estava falando de si mesmo. Tanto ele quanto o pai sofriam de hemocromatose hereditária, acúmulo excessivo de ferro nos tecidos que, entre outros problemas, aumenta o risco de transtornos mentais, como a depressão. Infelizmente, o 16
Hans Christian Andersen e Virginia Woolf
histórico de suicídio é alto na família Hemingway, e veio a incluir o próprio escritor, falecido em 1961. Reconhecida como uma das criadoras do fluxo de consciência enquanto recurso narrativo, Virginia Woolf sofreu durante toda a vida com transtornos mentais nunca devidamente diagnosticados, que resultaram em várias internações. Em seus diários, ela fala da escrita como uma forma de manter a sanidade – e foi, entre outras coisas, pelo temor de não mais conseguir escrever que a autora de Mrs. Dalloway acabou tirando a própria vida em 1941. Manter-se sã também era a busca literária de Sylvia Plath, que sofria de depressão. Notória escritora de si mesma, ela se destacou pelo caráter confessional de sua poesia, e seu romance A redoma de vidro transborda de elementos autobiográficos, quase como um diário de sua luta contra a doença que a afligia – e que acabou a levando ao suicídio aos 30 anos, em 1963. Na correspondência com a terapeuta e amiga Ruth Barnhouse, ela fala sobre o caráter abusivo de seu casamento com o também poeta Ted Hughes – que, pouco antes de morrer, apresentou sua visão do relacionamento no livro Cartas de aniversário, com versos sobre Plath escritos pelo período de 25 anos. Nada disso quer dizer, é claro, que a escrita seja um sintoma de loucura, ou que apenas pessoas com transtornos possam sentar diante de uma máquina ou página em branco para escrever. Mas, se a escrita nos aproxima da dor do outro, ela também pode nos ajudar a entender essa dor dentro de nós. Mesmo quando não se é propriamente um escritor. Em suas Cartas a Theo, o pintor Vincent van Gogh abre sua alma ao irmão e ao mundo – oferecendo a leitores e leitoras mais uma chance de perceber que um louco, na verdade, não é um louco: é uma pessoa que ama, sente, trabalha, cria. É um de nós, em suma. Todos somos loucos, diz o gato – e aqui estamos, diante da palavra escrita, buscando a nossa salvação.
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AVANÇANDO NA LEITURA Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se! Não esqueça de destacar a ilustração colecionável.
Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.
Ilustração do mês
Thaiz Zafalon é artista e ilustradora, apaixonada por criar. Explorando diferentes técnicas, segue elaborando e transformando a forma como expressa sua vivência no mundo através do imaginário. Conheça o trabalho de Thaiz no Instagram @thaizzafalon. A pedido da TAG, Thaiz ilustrou as duas irmãs e sua relação complexa.
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O pássaro secreto
POSFÁCIO
OLÁ, TAGGER Nosso posfácio, mais do que nunca, é um espaço para trocarmos impressões e conversar a respeito da obra do mês. Também, pudera: O pássaro secreto desbancou mais de 2,4 mil inscritos na quinta edição do Prêmio Kindle de Literatura. Por isso mesmo, chamamos dois dos integrantes da banca responsável por essa decisão tão importante para conversar sobre o livro que você acaba de ler – João Anzanello Carrascoza e Vanessa Ferrari falaram à revista da TAG a respeito de O pássaro secreto e do mercado da literatura no Brasil. Quem também conversa a fundo sobre a obra que deu à luz é a própria Marília Arnaud. Orgulhosíssima da conquista, ela conta à editora Fernanda Grabauska sobre seu percurso na escrita até o nascimento de Aglaia Negromonte. E você, o que pensou? Queremos saber: não deixe de espiar as discussões no aplicativo da TAG Curadoria. Lá, você discute o livro com outros taggers e fica por dentro da agenda super especial que temos para este mês que homenageia a literatura do Brasil. Boa conversa!
“Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo.” HERMAN HESSE, “DEMIAN”
SUMÁRIO posfácio
4 Entrevista Marília Arnaud
10 Entrevistas João Anzanello Carrascoza e Vanessa Ferrari
14 Crescer é horrível, Aglaia Negromonte
Entrevista
“CUIDEI APENAS DE OUVIR A VOZ DE AGLAIA DENTRO DE MIM”
FERNANDA GRABAUSKA
Assim como sua protagonista em O pássaro secreto, Marília Arnaud foi uma garota “imaginativa e curiosa”, como ela mesma descreve: “criar mundos me parecia mais fascinante do que qualquer brincadeira”, diz. A paraibana, primeira nordestina a vencer o prêmio Kindle, fala nesta entrevista a respeito de sua trajetória na escrita, sobre o mercado para autopublicação e sobre a história da enigmática Aglaia Negromonte. TAG – Queria que você começasse nos contando um pouco como foi que se descobriu escritora. Marília Arnaud – Tive o privilégio de nascer numa casa de muitos livros. Meu pai tinha uma boa biblioteca: Machado de Assis, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Erico Verissimo, Jorge Amado, Eça de Queirós, Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov, entre outros. Imaginativa e curiosa, lia o que me caísse nas mãos. Aos nove anos, já escrevia histórias que eram lidas para as colegas na hora do recreio. Criar mundos, vidas, paixões me parecia mais fascinante
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do que qualquer brincadeira. Mais tarde, quando entrei na universidade, passei a escrever crônicas e contos para jornais da minha cidade. Nessa mesma época, tive meus primeiros contos premiados em concursos literários locais e, logo em seguida, nasceu meu primeiro livro. De lá para cá, não parei mais. Você já havia sido publicada por editoras inclusive grandes, como a Rocco, no passado. O que fez com que se voltasse à publicação independente em O pássaro secreto?
Publicar livros é uma verdadeira via-crúcis para a grande maioria dos autores brasileiros. Apenas os bem vendidos possuem passe livre nas grandes casas editoriais. Penso que as editoras recebem livros demais, e não têm tempo nem pessoal para ler tudo que lhes chega. Há dez anos, passei a ser agenciada pela Valéria Martins e, nesse tempo, tive meus dois romances anteriores a O pássaro secreto publicados pelas editoras Rocco e Tordesilhas. Todavia, com a pandemia, e o mercado editorial em baixa, a publicação independente me surgiu como uma solução maravilhosa. A autopublicação na ferramenta KDP da Amazon é um processo relativamente simples, democrático, e sem nenhum custo para o autor, além de lhe valer o pagamento de 70% do valor das páginas lidas. No todo, uma experiência gratificante e, agora posso dizer, vitoriosa. Como foi sua experiência com o prêmio? Veio como uma surpresa? Além do óbvio da láurea, quais portas essa premiação abriu para você desde seu anúncio?
Não há nada que dê mais visibilidade a um autor do que um prêmio literário. Quando publiquei O pássaro secreto, tive a esperança de que pudesse chegar lá. Uma esperança frágil, como deve ter sido para todos os concorrentes, e foram muitos. Ao chegar aos finalistas, essa esperança se intensificou, e eu me disse que já era muito que a história da Aglaia houvesse impactado positivamente os leitores que a haviam escolhido entre tantas outras, leitores que por certo se sentiram afinados com a temática do romance, a 5
Rodolfo Athayde
forma com que foi narrado, linguagem etc. E, finalmente, ao me saber vencedora, tomei o maior e melhor susto da vida. Além do prêmio em dinheiro, a publicação pela Record e a edição especial pela TAG Experiências Literárias. O que mais eu poderia desejar? Desde então, tenho recebido muitas mensagens de leitores e colegas de ofício, todas carinhosas e celebrativas, além de convites para entrevistas, depoimentos, lives, algo a que não estou acostumada, e que venho tentando administrar da melhor forma. Como a história de Aglaia veio a ser? Como ela lhe surgiu?
Há alguns anos, escrevi um conto, o "Senhorita Bruna", cuja protagonista era uma menina que sente o mundo desmoronar com o surgimento inesperado de uma linda e gentil meia-irmã, e que se vê, da noite para o dia, dominada pelo ciúme, pela inveja e pela raiva. Depois de publicado, a menina do conto permaneceu comigo, até que, em 2017, surgiu a oportunidade de fazer uma residência 6
literária em um centro de artes na França. Apresentei um projeto de escritura de um livro juvenil, que acabou sendo aprovado. Durante a residência, escrevi grande parte do texto original, mas, ao voltar ao Brasil, vi-me insatisfeita com o resultado, já que a menina não me abandonara, seguia comigo, contando de si, construindo-se de uma forma bem mais complexa, que não poderia ser narrada num livro juvenil. Então, alguns meses mais tarde, retomei a escritura do romance e, no ano e meio seguinte, trabalhei incansavelmente a Aglaia de O pássaro secreto, até que ela, como protagonista e narradora, surgisse inteira, pronta para se dar a conhecer.
TERNURA E COMPAIXÃO, ESSES TÊM SIDO OS MEUS SENTIMENTOS EM RELAÇÃO A TODOS OS MEUS PROTAGONISTAS. MEU DESEJO É TOMÁ-LOS NOS BRAÇOS, ACARINHÁ-LOS, NINÁ-LOS. Para mim fica claro que, ao longo da história, a protagonista mergulha a fundo naquilo que lhe falta. Essa relação com as ausências (de carinho familiar, de beleza física, de amor romântico), esse mergulho franco num transtorno mental tão delicado de se retratar, como foi trazer isso para a página? O que você pesquisou, que tipo de exercício você fez para atingir a verossimilhança?
Alguns leitores podem enxergar Aglaia como uma menina com transtornos mentais graves, outros vão vê-la apenas como uma adolescente emocionalmente frágil, com problemas de ordem afetiva e de não aceitação de si mesma. Penso que a forma como as relações familiares são conduzidas pode ser bastante danosa na formação de uma criança, principalmente se essa criança é muito sensível e não consegue lidar com os problemas vivenciados em 7
casa, como, por exemplo, uma relação conturbada entre os pais. Os transtornos mentais na infância e adolescência são mais frequentes do que imaginamos, e continuam sendo um tema tabu nas famílias. Os pais não só demoram a perceber o que se passa com seu filho, mas relutam em tratá-lo, como se o reconhecimento desses transtornos pudesse diminuí-los em sua condição de pais. Na verdade, não fiz nenhuma pesquisa para a construção da Aglaia. Cuidei apenas de ouvir a sua voz dentro de mim. Meu processo de criação é puramente intuitivo (cerebral, só o trabalho com a linguagem). Pesquisei tão somente sobre tratamentos e funcionamento de clínicas psiquiátricas. Por que a decisão de não dar mais agência a Thalie na história? Ela parece jamais reagir aos ataques de Aglaia.
Como a história é contada sob o ponto de vista da Aglaia, não sabemos o que Thalie pensava, tampouco sabemos as razões que a levaram a se manter passiva diante de tantas humilhações e violências. Talvez, por se enxergar como uma filha espúria, fruto de um “erro” do seu pai, Thalie, intimamente, sofresse algum tipo de culpa. A culpa é um dos sentimentos mais presentes no coração do ser humano. Também é possível que sentisse piedade por Aglaia, que conseguisse enxergar na meia-irmã o que os demais familiares não viam, a insuficiência, a fragilidade psíquica.
Também fico curiosa de saber quais são os seus sentimentos pela sua protagonista. O leitor fica ambivalente, às vezes querendo consolá-la e às vezes com muito medo dela. O que você sentiu ao terminar a história?
Ternura e compaixão, esses têm sido os meus sentimentos em relação a todos os meus protagonistas. Meu desejo é tomá-los nos braços, acarinhá-los, niná-los. São como filhos que criei com um cuidado amoroso, e que, crescidos, ganham o mundo, sem que eu possa impedir que sofram. Sim, são eles que me sopram suas histórias, suas dores, temores e desamparos. Com Aglaia não foi diferente, tanto que, ao final de O pássaro secreto, chorei com ela, e por ela, 8
por sua inadequação, sua incapacidade em lidar com a realidade, com um mundo que lhe grita “não”. O certo é que há muito em Aglaia que desconheço. Há muitos silêncios na sua mente perturbada. Por último, qual a sua dica para quem deseja empreender a autopublicação?
Para a autopublicação, é necessário que o livro esteja de fato pronto, ou seja, que tenha sido escrito, reescrito, e reescrito tantas vezes se fizerem necessárias. O autor não pode se iludir com o texto fácil, aquele que lhe vem de primeira. Deve igualmente trabalhar a linguagem, ler, reler, saborear as palavras, sentir o ritmo da frase. E revisar, revisar até a exaustão. Por fim, pedir a amigos ou amigas que leiam seu livro e lhe passem impressões honestas, de preferência pessoas que tenham a leitura como hábito. Entregá-lo a um leitor especializado, um crítico literário, um professor de literatura, mesmo que você tenha eventualmente de pagar por isso, também é recomendável.
O primeiro livro que li: Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato O livro que estou lendo: Terra dividida, de Eltânia André O livro que quero ler: O homem sem qualidades, de Robert Musil O livro que gostaria de ter escrito: Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar O último livro que me fez chorar: O olho mais azul, de Toni Morrison O livro que não consegui terminar: Sierra de Gredos, de Peter Handke O primeiro livro que comprei: Felicidade clandestina, de Clarice Lispector, aos 14 anos O livro que dou de presente: Liturgia do fim, de minha autoria 9
Entrevistas
JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA FALA SOBRE O PÁSSARO SECRETO FERNANDA GRABAUSKA
João Anzanello Carrascoza Marcos Vilas Boas 10
Aglaia Negromonte ergueu-se soberana entre milhares de outros protagonistas dentro de milhares de outras histórias. “A protagonista tangibiliza questões psíquicas profundas que, no entanto, estão na ordem da vida contemporânea. Um feito valioso nesta era de materialidades e ubiquidade midiática, que alija o indivíduo de sua razão íntima”, afirma o escritor João Anzanello Carrascoza. O paulista, autor da Trilogia do adeus, foi um dos jurados que sagrou vencedora a história de Marília Arnaud. TAG – Como foi a experiência de avaliar os finalistas do prêmio? João – Foi obviamente desafiante, sobretudo pela qualidade ficcional dos cinco finalistas, definidos nas etapas anteriores de julgamento, que envolveu muitos leitores críticos qualificados. A eles, agradeço por encaminhar obras já sólidas, bem resolvidas literariamente. Os
romances finalistas eram muito diversos, em termos temáticos e estilísticos, o que denota uma pluralidade de recortes, vozes e imaginários do Brasil. O que destacou O pássaro secreto a ponto de levar o prêmio? A primorosa construção da protagonista da trama e o registro narrativo seguro e lírico – raro nas histórias longas, materializadas pelo diapasão épico. A progressão dos acontecimentos no tempo justo, a tessitura bem engendrada do enredo (que, assim, contempla a complexidade humana) e a suspensão do previsível contribuíram para a alta voltagem ficcional que O pássaro secreto consubstancia como seus diferenciais mais expressivos. Quais as suas considerações a respeito do final da obra, especificamente? Uns versos do poeta João Cabral de Melo Neto, sobre a formosura da vida, dizem que a vida é bela como uma porta abrindo-se para muitas saídas. Marília Arnaud encontra uma saída bonita, entre as muitas possíveis, abertas ao longo da narrativa, para o desfecho de seu romance – e o pássaro segue seu voo. Você trabalha lecionando na área da comunicação. Qual seu conselho para quem quer sair do texto como ofício assalariado e enveredar pela ficção? Como perder o medo de inventar? Escrever ficção, mesmo com as artimanhas e os ardis narrativos, é uma forma de se expor, de correr riscos, de fazer ecoar seu brado (que, às vezes, é também de quem silencia pela inabilidade da escrita) sobre os telhados do mundo, para lembrar o poeta Walt Whitman. Com medo ou sem medo, fabular por meio da literatura é essencial para quem deseja mergulhar no universo do sensível.
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VANESSA FERRARI FALA SOBRE ESCREVER E PUBLICAR “É um modo simples e rápido de ter o seu livro publicado, além de ser fácil de comprar”: a escritora, editora e crítica Vanessa Ferrari é sintética a respeito das vantagens da autopublicação. Nesta conversa com a TAG, ela fala mais a respeito de ser jurada do prêmio Kindle e do papel de editoras na curadoria de obras, além de lançar um apelo a escritores e aspirantes: “o ofício do escritor não é escrever, mas reescrever”.
TAG – Como você se sentiu ao tomar parte em uma premiação como essa, que funciona como uma alavanca do cânone para autores independentes? Como você vê a importância disso? Vanessa – Uma premiação como essa dá visibilidade principalmente ao autor no começo de carreira. Além do prêmio em dinheiro, a publicidade, ele terá o seu livro publicado por uma boa editora. E, claro, ser premiado é uma delícia, mesmo entre aqueles que dizem não se importar. Mas, veja, isso não pode ser a meta do escritor. Conseguir escrever um ótimo livro, ter uma obra consistente é o que realmente interessa. Se o prêmio vier, ótimo, se não, paciência. Não é a ausência de um prêmio no currículo que fará o bom escritor abandonar a carreira.
Vanessa Ferrari Dora Villela 12
Qual a importância da autopublicação para escritores iniciantes? A trajetória do escritor é lenta e exige paciência. Escrever um livro, submeter para avaliação das editoras, ser recusado, insistir na publicação e, finalmente, ser publicado, é uma jornada. A autopublicação é um caminho mais curto. Nesse meio tempo, o autor vai entender se ele é um escritor de um único livro ou se vai levar a profissão
adiante. Esse é o momento em que se separa o fetiche de ter um livro publicado e o interesse pela profissão. O ofício do escritor não é escrever, mas reescrever. Você percebe um aumento de novos nomes na literatura? Sim, e acho que esse é um movimento que vem há alguns anos. É ótimo ter mais pessoas escrevendo e tentando publicar os seus livros. O que precisamos agora é que esses escritores busquem aprimorar as técnicas narrativas. Digo isso porque mais importante que contar uma história é entender a língua como ferramenta estética, e, esse ajuste fino se dá na reescrita e no estudo dos guias de escrita, por exemplo, que ajudam a aprimorar a nossa percepção das nuances narrativas, que não tem nada a ver com não cometer erros gramaticais. Há também os cursos livres e outros de pós-graduação, como o do Instituto Vera Cruz, onde sou professora e posso atestar a seriedade e a eficiência do método. E a reclusão do último ano amplificou esse cenário? A pandemia intensificou a escrita e também a leitura, como atestam os números de vendas do mercado editorial. O mais curioso, no entanto, é que li muitos livros com temas urgentes: a ditadura que enfiamos debaixo do tapete, as inseguranças de um mundo de ponta-cabeça, as questões feministas, e por aí vai. Me parece que, através da escrita, as pessoas estão tentando organizar o caos em que estamos metidos. Na outra ponta, isso minimiza o papel das editoras ou você crê que elas se mantêm soberanas na curadoria? Soberanas eu não diria, mas as editoras sempre vão ter um papel importante de curadoria. Para o leitor, isso é maravilhoso, porque há um filtro de qualidade, de temas e a busca por novos autores, além de vários departamentos trabalhando para os livros da casa. A boa notícia é que publicar um livro deixou de ser exclusividade delas. Hoje temos a autopublicação, a edição de autor (paga por ele mesmo), a edição compartilhada (a editora e o autor dividem os custos), pequenas editoras de nichos. São várias frentes que se somam. 13
Crítica
CRESCER É HORRÍVEL, AGLAIA NEGROMONTE FERNANDA GRABAUSKA
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Deixar de ser criança dói. Freud já falava das infinitas possibilidades de angústia quando se vai aprendendo a estar no mundo. Nossas expectativas de cuidado são rompidas; nossas redes de proteção, esfaceladas. Com sorte, primeiro temos o amparo de pais, de irmãos – somos todos potencialidade, algo novo como símbolo daquele que pode ser qualquer coisa no mundo. Mas decepcionamos. E não só decepcionamos, como somos decepcionados. Crescer é isto, afinal: decepcionar e decepcionar-se. E é a crueza dessa evolução o ponto de partida de Marília Arnaud em O pássaro secreto. A narradora, Aglaia Negromonte, tem com o que se preocupar desde o início de sua trajetória: apesar do nome de divindade, cresce ouvindo que é uma garota rechonchuda, desprovida de grandes atrativos visuais. O fato a atormenta de forma constante com lembretes de colegas da escola e da mãe, que tenta remediar seu “problema” com regimes
e comprimidos. Aglaia, no entanto, tenta buscar equiparação com a deusa grega da inteligência ao educar-se diligentemente na biblioteca do pai. É esse pai que parece presidir o domínio de luta da infância de Aglaia: tão sedutor quanto inteligente, ele faz de sua atenção a moeda de troca daquela casa em que ninguém é completamente feliz, apenas ele. A completude da felicidade de Heleno Negromonte é que começa o desmonte pessoal de Aglaia, uma espiral de medo e ações desmedidas que é o tour de force do romance. Aquele homem que parecia presidir seu Olimpo particular teve outra família, outra filha, em outro país. Consternado, mas não muito, faz a devassa na vida da família para incluir a integrante até então oculta daquele conjunto. A francesinha Thalie jamais chega a falar muito: com seus olhos de corça, ela seduz o elenco inteiro de personagens com uma facilidade impressionante – exceto Aglaia, que, ao não conseguir se render ao charme da meia-irmã, perde tudo, inclusive o equilíbrio mental. Na entrevista que você leu neste posfácio, a autora Marília Arnaud afirma que quis investigar as ações da infância regidas por uma certa falta de filtro. Aglaia não necessariamente é detentora de uma neurose, como se pode pensar: a falta de cuidado por parte da família é o que lhe torna desmesurada. Imagine a tristeza incapacitante de perder tudo: um pai amado, o amor de mãe e irmãos, o único amigo – tudo isso para alguém que você jamais se vê sendo. Aglaia jamais será Thalie, mas ninguém parece conseguir explicar que não há problemas nisso.
CRESCER É ISTO, AFINAL: DECEPCIONAR E DECEPCIONAR-SE. 15
As maldades da protagonista não são inatas: são fruto de um núcleo de adultos que parece ter prazer em comparar as duas garotas. Que, de tão perdidos nos próprios problemas – um acidente de trajeto que provoca a falência do casamento, a traição no leito matrimonial, a fascinação pela neta recém-descoberta e sua cara de santa –, deixam de perceber o quão desguarnecidas estão aquelas irmãs. E daí é tarde até para resolver a relação com Demian, o verdadeiro fiel da balança daquela relação. Fascinado por Thalie, o garoto não quis deixar de ser amigo de Aglaia, mas Aglaia, já sem nada, não o quis dividir. Talvez você não tenha dado fim em um cachorro, em um cavalo. Talvez você não tenha atorado os cabelos do irmãozinho com uma tesoura. Mas você provavelmente já sentiu um desespero similar ao da narradora de O pássaro secreto, que tenta se entender, mas é reprimida, que parece não poder ser algo que não bela como a outra. Aglaia esteve sozinha desde muito cedo e encontrou consolo apenas nas páginas dos livros. Não houve rede que aparasse sua queda. E o resultado é uma história por vezes doce, mas constantemente apavorante por sua possibilidade de fruição no real. Todos quisemos nos rebelar contra o desamor e a frustração. A dor do crescimento de nossos ossos é nula se comparada à do coração quando vê que tornar-se quem se é é um caminho solitário. Crescer é horrível, Aglaia Negromonte, mas foi pior para você.
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Próximos meses
VEM POR AÍ Junho
A curadoria fica a cargo da espanhola Rosa Montero (A louca da casa, A ridícula ideia de nunca mais te ver). A autora indica à TAG uma saga familiar riquíssima em descrições, que mostra o apogeu e a derrocada de uma linhagem de aristocratas catalães até o início da Guerra Civil Espanhola. Hashtags: #dramafamiliar #romance #lírico #segredos
A curadora de junho: a escritora Rosa Montero Donostia Kultura, CC-BY-SA 2.0
Julho No aniversário da TAG, quem faz a curadoria é a gente. E, falando em presente, fique atento: o mimo para a nossa festa é extra especial! Hashtags: #passado #áfrica #família #amoresperdidos
Agosto Um romance pungente sobre luto, amor e superação é a escolha da escritora e professora cearense Socorro Acioli (A cabeça do santo, A bailarina fantasma). Hashtags: #luto #amorpróprio #prachorar #prasorrirtambém
Quer descobrir ainda mais? Entre no nosso app e saiba mais sobre as surpresas a caminho! 17
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