Outubro de 2014 Os Tigres de Mompracem
Para cada associado, um livro doado! Uma homenagem às crianças não poderia esquecer as verdadeiras! É por isso que, para cada associado do mês de outubro, uma criança recebeu de presente um livro de Emilio Salgari, em versão ilustrada e adaptada. (confira mais na página tal!)
REDAÇÃO
Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Tomás Susin dos Santos tomas@taglivros.com.br
REVISÃO ORTOGRÁFICA
Antônio Augusto Portinho da Cunha Adriana Kirsch Trojahn
PROJETO GRÁFICO
Casa Elétrica casaeletrica@casaeletrica.com
ILUSTRAÇÃO DA CAPA Laura D. Miguel lauradep@gmail.com
IMPRESSÃO
Gráfica da UFRGS
TAG Comércio de Livros Ltda.
Rua Celeste Gobbato, 65/203 - Praia de Belas. Porto Alegre-RS. CEP: 90110-160 contato@taglivros.com.br
AO LEITOR
O
utubro é o mês das crianças, e é em homenagem a elas que elaboramos o kit deste mês! Você já deixou de ser criança, é verdade, mas ainda possui aquele lado brincalhão, puro, sonhador, infantil. Afinal, desejou receber o kit desse mês, e esperamos que sua criança interior divirta-se ao viajar nas aventuras de Emilio Salgari, assim como se divertiram Umberto Eco, Gabriel Garcia Márquez, Jorge Luís Borges, entre tantos outros que já mergulharam em suas histórias e até hoje não escondem admiração ao autor. Aliás, escolhê-lo _ apenas um nome, em meio a tantas opções _ não foi tarefa fácil. Sorte nossa termos tido a ajuda do professor e escritor Javier Naranjo. Esperamos que a revista lhe transmita um pouco da grandiosidade desse autor italiano, explicitando alguns dos porquês que justificaram a escolha e, principalmente, conduzí-lo através desse magnífico universo cheio de navios, carabinas, amores e batalhas que é a infância. Equipe TAG
Indicação do Mês
A INDICAÇÃO DO MÊS
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Casa das Estrelas O indicante: Javier Naranjo O livro: Os Tigres de Mompracem A Lenda Salgari
ECOS DA LEITURA
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A melhor definição de amor vem de uma menina de cinco anos Eu fico com a pureza Palavra de criança O herói de Umberto Eco Pós-Leitura Super-herói
A INDICAÇÃO DE NOVEMBRO
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Frei Betto
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CASA DAS ESTRELAS Era Dia das Crianças em 1998, e a festa estava sendo preparada no colégio El Triángulo, em uma zona rural no Estado de Antioquía, na Colômbia. Os professores organizavam jogos – pistas escorregadias, competições, partidas de futebol. As mães fizeram tortas e refrescos. Os salões e o auditório estavam decorados com flâmulas e bandeirinhas de cores vivas. Enquanto isso, esperando o início da festa, Javier Naranjo e seus alunos estavam na aula de criação literária. Logo antes de terminar a aula, e após os jogos de palavras e as invenções de histórias, o professor aproveitou a data para desafiar seus alunos: – Que dia é hoje? – perguntou Javier. – Dia das Crianças! – responderam os alunos, que não passavam dos 12 anos de idade. – Muito bem! Dia das Crianças. E o que é uma criança? Após algum tempo pensando, um dos pequenos veio com a resposta. – Uma criança é um amigo que tem o cabelo curtinho, não toma rum e vai dormir mais cedo. A definição continha uma inocência tão sábia e despertava uma curiosidade tão instigante que o professor passou a colecionar esses aforismos poéticos de seus alunos. Anotava-os em seus cadernos e os levava para casa como se fossem tesouros. Para ele, as crianças têm uma lógica diferente, outra maneira de entender o mundo, outra maneira de habitar a realidade e de nos revelar muitas coisas que esquecemos. Amor? É quando batem em você e dói muito. – Viviana Castaño, 6 anos Igreja? Onde as pessoas vão perdoar Deus. – Natalia Bueno, 7 anos Dinheiro? Fruto do trabalho, mas há casos especiais! – Pepino Nates, 11 anos Deus? O amor com cabelo grande e poderes. – Ana Milena Hurtado, 5 anos
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Mais de dez anos depois, Javier finalmente compilou as definições em um livro, que chamou de Casa de las Estrellas. A inspiração para o nome veio de Carlos Gómez, 12 anos, que definiu dessa forma a palavra Universo. Por isso o subtítulo: Casa das Estrelas, o Universo Contado pelas Crianças. Universo de quinhentas definições para as cento e trinta e três palavras que compuseram o livro que surpreendeu ao ser destaque na Feira Internacional do Livro que ocorreu em Bogotá, capital da Colômbia, em abril de 2013. Surpreendeu, pois sua primeira edição fora lançada em 1999, sem muito alarde, e só obteve sucesso e reconhecimento após a reedição e relançamento na Feira.
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FOTO: MATACANDELAS
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O INDICANTE: JAVIER NARANJO Javier Naranjo Moreno é um professor, escritor e poeta colombiano, nascido em Medellín, no ano de 1956. Javier é também responsável por projetos culturais – diretor da Biblioteca e Centro Comunitário Rural Laboratório Del Espíritu, em El Retiro, província de Antióquia, onde idealizou e organizou o livro Casa das Estrelas; foi diretor da Casa de la Cultura de El Carmen de Viboral; e fundador do grupo literário SAVIA. É autor de alguns livros, entre os quais Orvalho (1990), Silabario (1994), Lugar de Cuerpo Ciego (2006), Gulliver (2006), A la Sombra Animal (2011), De Parte Del Aire (2011), além de inúmeras antologias. Produziu, também, uma cartilha denominada El Diario de Mammo (2009), escrita para o Museu de Arte Moderna de Medellín, com o objetivo de aproximar as crianças da arte. É também colaborador em revistas e jornais internacionais de poesia, e tem alguns de seus livros traduzidos, como Casa das Estrelas, publicado no Brasil em 2013. Apesar disso, Javier ainda não é muito conhecido além das fronteiras de seu país. A poesia de Javier Naranjo percorre o limbo entre a luz e a sombra, entre este e o outro mundo. Como resultado, traz certa ambiguidade, uma maneira de pensar o sonho. Nesse sono de vigília, o poeta vê o mundo e o questiona, olha para si próprio e se desconhece. Sob esse aspecto, as mínimas e cotidianas coisas nos enchem de perplexidade. E como ele percorre o caminho dos sonhos, evita pisar nas folhas. Seus poemas são escritos com pincel e com névoa. – Pedro Arturo Estrada, poeta colombiano. Em um mundo adulto que ostenta seus saberes e os projeta às crianças por meio de ensinamentos, currículos e regras, Javier busca respeitar a voz infantil – que muitas vezes é escarnecida por não se enquadrar
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em nossos pobres modelos mentais, menosprezada por sua falta de rigor, de disciplina ou de conhecimento gramatical, quando é justamente o abandono das palavras, a liberdade de associação, e a indiferença ao uso justo e normativo da linguagem que fazem com que as crianças ocasionalmente criem textos plenos de riqueza. “Creio que deveríamos repensar a forma como nos relacionamos com esses ‘loucos baixinhos’”, sugereJavier, “quem dera pudéssemos escutá-los e vêlos, para entender seus medos e aliviar suas dores, e para relembrar a beleza, o assombro de estarmos vivos, a poesia”.
Os livros que Sartre leu quando criança foram os livros que nós lemos aqui na América Latina, os quais eu mesmo li quando criança: Emilio Salgari, sem o qual não haveria literatura italiana, francesa, espanhola ou latino-americana. – Carlos Fuentes, escritor mexicano
O escolhido foi o escritor italiano Emilio Salgari, considerado, ao lado do francês Júlio Verne, um dos grandes precursores dos romances de aventura, tendo marcado gerações com suas expedições corsárias. Javier não escapou dos encantos literários do escritor, e guarda em sua biblioteca até hoje os livros das séries O Corsário Negro e Os Piratas da Malásia. O mestre das aventuras deixou também sua influência estampada na infância – e vida adulta – de grandes senhores da literatura, como Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia Márquez, Umberto Eco e Carlos Fuentes. Apesar de ter sido mais lido que Dante Alighieri, grande poeta italiano, Emilio Salgari foi barrado na alfândega brasileira do desinteresse literário, não tendo muitas chances de imprimir sua marca por aqui. Mas agora o escritor italiano recebe mais uma chance, pois é ele quem trazemos hoje até vocês. Não apenas até vocês. Se a TAG tem o objetivo de compartilhar com seus associados experiências literárias enriquecedoras, nada mais justo que, em homenagem ao Dia das Crianças, estendamos essa
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experiência aos nossos “loucos baixinhos”. Uma pesquisa apontou que oitenta e sete por cento dos nãoleitores nunca recebeu livros de presente quando eram crianças. É por isso que, para cada associado ativo do mês de outubro, uma criança receberá de presente um livro do Emilio Salgari, em versão ilustrada e adaptada. Se criança é “um humano feliz”, conforme definição de Jhonan Agudelo, um dos alunos de Javier, esperamos que com nosso presente essa felicidade seja intensificada. Mais que uma homenagem, é uma chance de alterarmos essas tristes estatísticas e proporcionarmos experiências salgarianas às nossas crianças – a que ainda vive dentro de nós e as que convivem conosco.
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O LIVRO: OS TIGRES DE MOMPRACEM Emilio Salgari nasceu no dia 21 de agosto de 1862, em Verona, na Itália. Era filho de pequenos comerciantes, mas foi a profissão de seu tio que despertou no pequeno os interesses que vieram a definir o enredo de suas obras. Seu tio era um marinheiro dálmata – navegava pela região que corresponde à costa leste do Mar Adriático, conhecida como Dalmácia – e desde cedo nutria a imaginação de seu sobrinho contando histórias sobre piratas e aventuras marítimas. Ainda muito jovem para flutuar pelos oceanos, Salgari encontrou nos livros uma forma de viajar, e passou grande parte da juventude lendo romances de aventura de Thomas Mayne, Gustave Aimard e James Fenimore Cooper. Assim que a idade lhe permitiu, foi obter seu título de capitão e vivenciar o que havia ouvido e lido por tantos anos. Nas palavras de Emilio Salgari: “Aos quatorze, entrei na Academia Naval de Veneza e obtive meu certificado de capitão com dezessete anos de idade, e então comecei a viajar pelos sete mares. Aos vinte e seis, larguei o timão e me tornei editor do La Nuova Arena, onde escrevi minhas primeiras histórias. Aos trinta e dois, me aposentei do jornalismo e me dediquei integralmente a escrever romances. Dois anos depois, fui condecorado pela Rainha Margarida de Saboia por minhas contribuições à literatura”. – Emilio Salgari
O autor afirmava ter viajado pelo oeste estadunidense, tendo por lá encontrado Buffalo Bill, o ícone do Velho Oeste americano. Dizia ter explorado o Sudão, amado princesas indianas e navegado pelas longínquas ilhas do leste. Foi um homem de ação, que dizia ter explorado o mundo e vivido muitas aventuras, usando-as como inspiração para os mais de oitenta romances e centenas de pequenas histórias que cativaram centenas de milhares de leitores ao redor do mundo. Em encontros sociais nos quais era anfitrião, recebia seus hóspedes com as histórias de suas
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expedições e com artefatos que delas trazia. Durante o século XX, as ilustrações das contracapas de seus livros retratavam Emilio vestido com seu uniforme de capitão, e assim ficou conhecido como alguém repleto de experiências exóticas, tendo vivido uma vida invejada e admirada por muitos. Pena que pouco disso é verdade1. Conheceu Buffalo Bill, mas durante um evento em Verona, e não em uma expedição pelos Estados Unidos. Ingressou na Academia Naval, mas não obteve as notas suficientes para se tornar capitão. Sua viagem mais significativa a bordo durou três meses, provavelmente na condição de passageiro, não tendo navegado para além do Mar Adriático. Quando voltou, mostrou a seus amigos diversos artefatos – quase todos comprados de comerciantes da costa italiana. Quanto às suas histórias, vinham de seu tio e de outros navegantes. Seus conhecimentos, de enciclopédias, mapas e jornais. Talvez tenha sido justamente esse contraste entre a vida que ele gostaria de ter tido e a vida que de fato ele teve que serviu de combustível para sua imaginação. Extrapolou os limites de sua realidade e projetou em seus livros o retrato de sua vida não vivida, de uma realidade imaginada – que, por ser imaginada, continha as aventuras mais incríveis. Com sua imaginação, transformou seus desejos em sonhos. Com seu talento, seus sonhos em livros, para então compartilhá-los. A “lenda Salgari” retumbou tão forte que seus editores contrataram outros escritores para produzir conteúdo utilizando-se de seu nome. Através de suas publicações, contou a história de um italiano que viajou até o Polo Norte, em 1899, em Viagem ao Polo Austral; previu a velocidade das viagens aéreas e a transmissão de notícias em tempo real pela televisão, apesar de ter descrito aviões que batiam asas, em As maravilhas do ano 2000; revelou aspectos da estrutura social e política do Sião, a atual Tailândia, em O Elefante Branco; viajou pelo Velho Oeste, retratou a insurreição Mahdista do 1 Informações retiradas da ROH PRESS, editora independente especializada nos romances de aventura de Emilio Salgari.
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Sudão, apresentou a geografia das ilhas ao sul da América do Sul, a Terra do Fogo, entre tantos outros enredos, personagens e histórias que percorriam o globo para encontrar o cenário de seus romances. Tudo isso com muita ação, mudanças drásticas de situações, personagens fortes e, nas palavras do escritor Vittorio G. Rossi, “acima de tudo, proporcionando excitação e estimulando a imaginação dos leitores ao produzir um forte contraste com a literatura estagnada da época”. Emilio Salgari pode não ter baseado seus romances em vivências, o que não o impediu de neles abundar diversíssimas informações sobre povos, costumes, línguas, regiões geográficas, artes náuticas e aeronáuticas, fauna e flora dos lugares onde transcorrem os enredos. Embora a obra estivesse voltada a um público juvenil, foi também recepcionada pelo público adulto,dada a complexidade informativa que subjaz aos enredos e à recriação do contexto histórico, geográfico e etnográfico.
Durante minha infância, obtive as melhores informações sobre países distantes não de livros didáticos, mas através da leitura das aventuras de Emilio Salgari, Júlio Verne e Karl May. – Umberto Eco Os heróis salgarianos são quase sempre piratas, fora-da-lei, bárbaros, que lutam contra a ganância, o abuso de poder, a corrupção e a colonização. A ausência de atitudes discriminatórias ou pejorativas relativamente aos diversos povos do globo é marca admirável na obra de Salgari. Em um período histórico no qual a colonização vigorava, o autor transcendeu o preconceito étnico e criou para suas histórias heróis negros (como em seu romance O Escravo de Madagascar), índios, hindus, chineses, além de conceber suas personagens femininas com muito respeito e igualdade, dando a elas um protagonismo e uma valentia nunca vistas – as heroínas do autor caçavam, carregavam armas, lutavam com espadas e tinham poder de voz.
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No verão de 1904, aos cinco anos de idade, minha mãe presenteou-me com os livros das séries Os Piratas da Malásia e O Corsário Negro, que possuo até hoje. Aos cinco, portanto, entrei no exótico mundo que Salgari criou com seus incontáveis romances. Acho que ainda prefiro suas histórias aos trabalhos mais populares e sofisticados de Júlio Verne – Jorge Luis Borges Em meio à diversidade e abundância de publicações, seus trabalhos de maior destaque são as séries lembradas por Borges: Os Piratas da Malásia e O Corsário Negro. A primeira apresenta como protagonista o herói Sandokan, um malaio príncipe de Marudu, um reino que fica próximo da costa setentrional da ilha de Bornéu, a terceira maior ilha do planeta. Invejando seu crescente império, ingleses e holandeses se uniram para destronar Sandokan, exterminando suas riquezas, seus homens e sua família. Jurando vingança, fugiu à ilha de Mompracem, onde recrutou homens e se dedicou a piratear os navios rivais, tornando-se o pesadelo de seus colonizadores, o terror dos mares, o Tigre da Malásia. Apesar de não ter sido o primeiro romance da série a ser publicado, é em Os Tigres de Mompracem que Sandokan aparece pela primeira vez, por isso sendo considerada a obra que dá início à série Os Piratas da Malásia, composta por onze volumes independentes, dos quais os primeiros cinco estão disponíveis em língua portuguesa. Ao lado de Sandokan está Yanez de Gomera, um imperturbável português de traços característicos, sempre com o dedo no gatilho e um cigarro à boca, que dizem ter sido inspirado no próprio autor, que projetava a si mesmo na personagem. Sandokan, Yanez e seus leais guerreiros se lançavam em aventuras perigosas, combates sanguinários e saques vingativos, até o dia em que o Tigre se mostrou humano ao se apaixonar pela encantadora Marianna, descendente de seus rivais ingleses. Após ter conquistado os mares, esquece o ódio à raça branca e o sentimento de vingança que o movia até então e parte para conquistar o coração de sua amada.
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Ainda me vejo pequeno, sentado em frente à minha cama com um livro do Emilio Salgari e meu almoço, postos um ao lado do outro. Ao meio dia, chegava do colégio e ia para meu ritual diário. Meus pais sentavam-se à mesa e respeitavam minha cerimônia. Engolia minha comida enquanto navegava com Sandokan, o pirata, e combatíamos juntos os temíveis estranguladores Thugs. O Tigre da Malásia, Mompracem. Mompracem, Tremal Naik. Palavras, só palavras. Mas ah!, como são saborosas quando mastigadas! Nenhuma comida pode ser mais prazerosa que a reverberação dessas palavras no paladar e seus ecos no coração. Necessitava desses livros, não podia soltá-los. Havia, porém, uma dificuldade: os livros não eram meus, pois meus pais não podiam comprá-los. Um vizinho me emprestava,com uma condição: tinha que levar-lhe revistas de quadrinhos, das quais sempre gostei muito: Pato Donald, Tio Patinhas, Batman, Super-Homem, Tarzan. Agora, tantos anos depois, penso que o que eu buscava, enquanto lia todos os livros que encontrava pela frente, era saborear, sentir a poesia, poder entender este mundo fascinante e ferido, este lugar que chamamos de realidade. De Javier Naranjo para TAG
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A LENDA SALGARI
Exímio espadachim Conforme sua popularidade crescia, editoras e escritores rivais passaram a tentar difamá-lo. Assim que um repórter descobriu que Salgari nunca havia passado nas provas para tornar-se capitão, difamou-o ao chamá-lo de “menino da cabine”, divulgando a farsa em um artigo. Enfurecido, Salgari, exímio espadachim, desafiou-o a um duelo na manhã seguinte, e com poucos golpes de espada enviou o repórter ao hospital. Apesar de vitorioso, foi preso por duelar e passou seis dias encarcerado, o que o tornou ainda mais popular quando o fato veio a público. El Corsário Che Guevara Paco Ignácio Taibo II, biógrafo de Che Guevara, observou que o anti-imperialismo do revolucionário poderia ser considerado de origem salgariana, já que Che Guevara leu mais de sessenta romances do autor.
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Homenagem a Emilio Salgari: concedida pela cidade de Verona. Nessa casa nasceu, em 21 de agosto de 1862, Emilio Salgari, romancista e poeta de aventura. Ele inspirou as gerações mais jovens à generosidade e ao conhecimento de todas as terras e pessoas. Verona perpetua a memória de seu trabalho. 25 de abril de 1959 (tradução livre) Família Em 1892, casou-se com a atriz de teatro Ida Peruzzi, mesmo ano em que o casal teve sua primeira filha, Fátima. Depois vieram três meninos: Nadir, em 1894, Romero, em 1898, e Omar, em 1900. Exploração Apesar de seu estrondoso sucesso, o fraco tino comercial de Salgari foi explorado por seus editores, que praticamente o obrigaram a dedicar-se à escrita (uma das causas da enorme quantidade de romances publicados) em troca de pouco mais do que o suficiente para viver. Dizem que, como comemoração ao sucesso comercial de Os Tigres de Mompracem, Salgari ganhou de seus editores uma garrafa de vinho barato e um bolo, além de seu salário habitual. Suicídio A dramaticidade aventuresca de Salgari não o abandonou nem no momento de sua morte. Sua esposa, após período internada por doença mental, veio a falecer, e deixou para Emilio e seus filhos muitas dívidas e sofrimento. Como a morte de um herói narrada nos livros de aventura, Emilio Salgari cometeu o seppuku, tradicional suicídio dos samurais e guerreiros japoneses, rasgando seu pescoço e seu ventre com uma espada. Foi embora no dia 25 de abril de 1911, aos 48 anos de idade.
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ecos da leitura
IMAGEM: CAROL W.
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A MELHOR DEFINIÇÃO DE AMOR VEM DE UMA MENINA DE CINCO ANOS Texto de autoria de Fábio Bibancos, extraído da coluna Abra a Boca!, da Folha de São Paulo.
Uma das grandes surpresas do ano para mim foi o livro “Casa de las estrellas, el universo contado por los niños”, do colombiano Javier Naranjo. Ele nos faz refletir sobre como nós, adultos, esquecemos dos significados das coisas, e no limite, da vida. Lembrei disso porque esta semana a minha amiga Angela Dip (atriz e comediante brasileira) me mandou a definição de amor de uma criança de cinco anos. Ela não faz parte do livro, mas bem que poderia: O QUE É O AMOR REBECA - 5 ANOS AMOR É QUANDO VOCÊ PERDE UM DENTE MAS NÃO TEM MEDO DE SORRIR PORQUÊ VOCÊ SABE QUE OS SEUS AMIGOS AINDA VÃO TE AMAR MESMO SE TIVER FALTANDO UMA PARTE SUA.
Machado de Assis um dia disse que “a melhor definição de amor não vale um beijo”.Pois eu acho que esta, se não vale um beijo, vale um sorriso.
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EU FICO COM A PUREZA
“Eu fico com a pureza das respostas das crianças: é a vida! É bonita e é bonita!” O que é, o que é? Gonzaguinha
Inspirada por Javier Naranjo, a artista plástica gaúcha Carol W. entrou em contato com o professor colombiano para saber como conquistar a confiança das crianças, criando um ambiente que estimulasse a manifestação espontânea de seus pensamentos. “Basta falar de igual para igual, oferecendo seu carinho e atenção”, aconselhou Javier, com sua habitual simplicidade. Com uma caixinha colorida cheia de palavras nas mãos e os conselhos de Javier na cabeça, Carol visitou nove escolas para conversar com crianças de cinco a onze anos de idade e criar sua própria versão do Casa das Estrelas. Queria não só as definições, mas participar ela mesma do convívio com os baixinhos e sentir a experiência de vê-los pensar sobre as palavras. Recolheu centenas de definições escritas pelas próprias crianças em pequenas folhas de papel, muitas vezes acompanhadas de desenhos ou inocentes erros de português e gramática. Então, selecionou as que mais a sensibilizaram para, a partir delas, desenvolver projetos artísticos que culminariam na exposição “Eu fico com a pureza”, denominação inspirada na música de Gonzaguinha, que ocorreu em outubro de 2013, em Porto Alegre, e contou com a presença de Javier Naranjo. As definições divergiram das crianças colombianas – a palavra universo não foi definida como “a casa das estrelas”, mas como “o vento que dá frio” – e o produto final não foi um livro, mas uma exposição de quadros, esculturas de papel machê, entre outros produtos. A atenção dada ao pensamento das crianças, a beleza das definições, a pureza de suas respostas, e o encantamento gerado, porém, foram os mesmos. Ilustração de Carol W. selo7.com.br/carolw | carolw.pro.br
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PALAVRA DE CRIANÇA Um ano antes da publicação do Casa das Estrelas, em 1998, a primeira edição de um livro chamado Palavra de Criança estava sendo lançada pela editora Pensamento. A autora é Patrícia Gebrim, uma dentista que abandonou a profissão para se dedicar à Psicologia, área na qual é formada e trabalha há mais de quinze anos. As palavras contidas no livro, porém, não vêm dos livros acadêmicos ou dos casos em consultório. O livrinho encanta pela simplicidade das palavras de alguém que se permitiu escrever de forma pura e simples sobre as questões relevantes da vida, como o amor, o tempo, o convívio e a felicidade.
Preço de capa: R$ 22,50 Editora: Pensamento Edição: 1ª edição 1998 – 9ª impressão 2013 Número de páginas: 56 Acompanha 45 cartas coloridas
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O HERÓI DE UMBERTO ECO A influência de Emilio Salgari no escritor Umberto Eco é visível durante a leitura do seu romance A Misteriosa Chama da Rainha Loana, no qual podemos encontrar elogiosas observações dirigidas ao autor. “No dia seguinte lá estava eu de novo remexendo no armário, encontrando todos os romances de Salgari, com capas floreadas, onde entre volutas delicadas aparecia Sandokan, com sua cabeça feroz de príncipe malaio enxertada em um corpo felino, a voluptuosa Surama e os prahos dos Piratas da Malásia. Era difícil dizer se estava descobrindo alguma coisa ou simplesmente ativando minha memória cartácea, pois de Salgari sempre se fala até hoje, e críticos sofisticados dedicam-lhe grandes artigos prolixos e gotejantes de nostalgia. Até meus netinhos cantavam ‘Sandokan, Sandokan’ nas semanas anteriores, parece que viram na televisão. O que acontecia no mundo quando um rapaz da Itália lia Salgari, onde muitas vezes os heróis eram de cor e os brancos malvados? Salgari deve ter confundido bastante os meus primeiros contatos com a antropologia cultural.”
Umberto Eco então expõe quatro dos livros de Emilio Salgari que ainda percorrem sua memória, entre eles O Tigre de Mompracem. Desse livro, o autor expôs a ilustração da capa original e também um trecho da obra, para então compará-lo com outro clássico literário: “Quem era o meu herói? Sherlock Holmes, que lia uma carta diante da lareira, educadamente atônito por efeito de sua solução a sete por cento, ou Sandokan, que se lacerava furiosamente o peito pronunciando o nome da adorada Marianna?”
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PÓS-LEITURA Sandokan existiu? E James Brooke, seu rival? Onde ficava a ilha de Mompracem? Quem eram os daiaques? Se os enredos salgarianos eram consequência de sua imaginação, o contexto em que transcorriam possuía bases na realidade. Apesar dos imprecisos registros históricos, é possível especular a origem de alguns personagens e a veracidade de alguns elementos da trama, para aqueles leitores que quiserem entender um pouco mais a respeito do contexto em que se passa a história: Os daiaques Os daiaques,povo do qual pertencia alguns personagens do livro, são os nativos de Bornéu. Divididos em diversas tribos e aldeias (os kampongs), ainda usavam ferramentas de pedra e metal em 1950. Eram caçadores de cabeças e exibiam as caveiras dos inimigos penduradas nas suas casas como sinal de bravura, e praticavam ocasionalmente o canibalismo. Depois da segunda guerra mundial,a caça às cabeças foi proibida, mas em 1999 ainda houve registros de canibalismo. A ilha de Mompracem Mompracem aparece em algumas cartografias dos séculos XVI a XVIII, mas não consta nos mapas atuais. Uma vez que nas navegações antigas eram frequentes os erros de localização, é possível que a ilha tenha sido renomeada. A hipótese mais provável é que Mompracem seja a ilha de Pulau Mangalum, assim como se pode observar na comparação entre os mapas.
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James Brooke James Brooke, o inimigo de Sandokan, foi umcomerciante e ex-oficial do exército britânico queinvadiu a ilha em 1838, apoiando o sultão de Brunei, enquanto este disputava os poderes da ilha contra os daiaques. Vencedor, o sultão agradeceu a James Brooke cedendo-lhe o estado de Sawarak e dando-lhe o título de rajá. Sandokong e a bandeira do tigre Alguns estados, porém, ainda eram dominados pelas tribos locais e pelos piratas. É o caso de Marudu (Sabah), o estado que possuía como lugar-tenente um sujeito chamado Sandokong, e sua bandeira parece ter sido vermelha com uma cabeça de tigre ao centro, exatamente igual à de Sandokan nas novelas de Salgari. O contexto histórico em que se origina Sandokan, o príncipe destronado Após a vinda de James Brooke, e sob a justificativa de combater os daiaques e os piratas, uma campanha de ocupação dos pequenos estados costeiros de Bornéu foi iniciada, entre eles Marudu, de Sandokan. A partir daí, possivelmente imaginando Sandokan destronado pelos invasores, começa a história do nosso vingativo pirata.
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SUPER-HERÓI A criança é inocente porque desconhece a realidade, e assim ignora os limites que ela impõe. Sem parâmetros que distinguem o possível do impossível, ela imagina que pode ser os jogadores de futebol que vê na televisão e os heróis que lê nos livros. O tempo passa, e conforme a criança cresce, percebe que não está entre os melhores do time da escola, e com isso desiste da ideia de ser jogador. Percebe que não pode voar e usar superpoderes, mas precisa estudar para passar na prova, e desiste de ser super-herói. Estudando para as provas, percebe que não vai muito bem em matemática, então desiste da ideia de ser engenheiro. Pensa então em tornar-se músico, mas descobre, com os conselhos de seus familiares, que o mercado é difícil, que as notas musicais têm dificuldades de se transformarem em dinheiro, e renuncia também à música. Continua crescendo, percebendo, e aprendendo que a vida real, como dizem, “não é um moranguinho”. Nesse momento, começam a chamá-lo de adulto. Com os pés fixados no chão, não corre o risco de cair das alturas de seus vôos imaginários e se machucar. Precaução que certamente esconde sabedoria, mas também oculta um terrível medo de tentar voar. “O medo ameaça: se você ama, terá Aids. Se fuma, terá câncer. Se respira, terá contaminação. Se bebe, terá acidentes. Se come, terá colesterol. Se fala, terá desemprego. Se caminha, terá violência. Se pensa, terá angústia. Se duvida, terá loucura. Se sente, terá solidão.” – Eduardo Galeano, escritor uruguaio
E se imagina, terá frustração, porque a realidade virá novamente fazê-lo perceber seus limites. Assim, o medo de voar exclui todas as possibilidades de,eventualmente, conseguir fazê-lo. Afinal, a armadura do guerreiro o protege das feridas, mas também o impossibilita de abraçar, de acariciar, de sentir os cheiros
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sutis e de olhar ao redor. A criança é o guerreiro vulnerável, sem armaduras contra as frustrações da vida. Assim viveu Emilio Salgari, que inundou com suas fantasiasnão somente as páginas de seus livros, mas também sua própria vida. Basta observarmos as lendas por ele criadas para confundir, e aproximar, a realidade com sua imaginação;ou a dramaticidade da sua morte, como quem estivesse desempenhando um papel em um ato teatral. Talvez esse seja o grande ensinamento do autor. Não o de distorcer a realidade, mas o de encará-la com olhos infantis, sob o prisma da fantasia que é o enredo que ele escolheu para viver sua vida. Rubem Alves certa vez comentou que “a leitura nos aliena do medíocre da vida para que, desse lugar, alienado, fora, tenhamos a condição para saber quais transformações podemos fazer sobre a realidade para que ela seja uma resposta ao nosso desejo de prazer, de amor”. Talvez a literatura – e também a arte, a poesia, o teatro – seja buscada porque, muitas vezes, é nos livros que podemos encontrar enredos, histórias, fantasias e emoções que não encontramos na nossa vida diária. A exemplo de Salgari, talvez a lição seja transformar as emocionantes histórias e as incríveis aventuras que se passam nas nossas cabeças em enredo para vivermos uma vida significativa, uma vida que seja nossa resposta aos nossos desejos de prazer e de amor. E, quando a realidade nos mostrar que “não é bem assim”, que não desistamos de seguir como os roteiristas do nosso próprio destino. Talvez não consigamos voar, mas ainda podemos ser super-heróis.
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A INDICAÇÃO De NOVEMBRO
FOTO: DUDVA
O livro indicado por Frei Betto é considerado uma verdadeira obra-prima do século XX. Apesar de se tratar de um romance histórico, é contado em primeira pessoa por um importante personagem da história romana, que logra nos transportar para a sua época de maneira tão intensa que, durante a leitura, nos sentimos seus contemporâneos e passamos a compartilhar suas aflições e alegrias. Permeado por indagações filosóficas e histórias da atribulada vida do personagem, em alguns momentos nos parece que estamos lendo uma sequencia de aforismos, de tão bem elaboradas que são algumas de suas passagens.
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O INDICANTE: FREI BETTO
Este delicioso livro deve ser lido por todos. É um resgate histórico primoroso, que levou à autora 27 anos de pesquisas para que pudesse concluí-lo.
O nosso indicante do mês de novembro de 2014 é o renomado teólogo e escritor mineiro FREI BETTO. Desde a época da ditadura militar, quando foi encarcerado e passou por oito presídios, Frei Betto já escreveu mais de cinquenta livros, além de ter exercido o cargo de assessor especial do Presidente Lula. Já recebeu diversos prêmios, dentre eles o José Martí, por “oposição a todas as formas de discriminação, injustiça e exclusão”.
Informações completas a respeito do indicante do mês e do livro recomendado podem ser encontradas em www.taglivros.com.br ou então na revista do próximo mês.
SÃO AS CRIANÇAS QUE
VEEM
AS
COISAS
- PORQUE ELAS AS VEEM SEMPRE PELA PRIMEIRA VEZ COM ESPANTO,
COM ASSOMBRO DE QUE ELAS SEJAM DO JEITO COMO SÃO.
OS ADULTOS, DE TANTO VÊ-LAS, JÁ NÃO AS VEEM
MAIS. AS COISAS - AS MAIS MARAVILHOSAS - FICAM BANAIS.
SER ADULTO É SER CEGO.
-Rubem Alves, Do Amor à Beleza.-