Abr2015 "Neve"

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Abril de 2015 Neve


REDAÇÃO

Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Tomás Susin dos Santos tomas@taglivros.com.br

COMERCIAL

Álvaro Scaravaglione Englert alvaro@taglivros.com.br Pablo Soares Valdez pablo@taglivros.com.br

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ILUSTRAÇÃO DA CAPA Laura D. Miguel lauradep@gmail.com

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AO LEITOR

A

lém de levar grandes livros aos nossos associados, a TAG também busca trazer novas ideias debatidas ao redor do mundo, a partir da apresentação de curadores provenientes de áreas não tão conhecidas pelo público em geral. Neste mês, selecionamos Sarah Hrdy, uma das antropólogas mais respeitadas do mundo, que alterou o modo como a biologia evolutiva é vista atualmente. A cientista relatou que o livro selecionado lhe abriu uma janela para novos horizontes, ao mesmo tempo em que a entreteve com sua narrativa simples e envolvente. Em Neve, o livro indicado, Orhan Pamuk, agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, não encanta apenas por sua história, mas também pela profundidade cultural que carrega. Enquanto Duas Narrativas Fantásticas, livro enviado em março, constitui uma pequena obra, de rápida leitura, Neve acompanhará o leitor por mais tempo, ao longo de mais de quatrocentas páginas. Um ano atrás, em abril de 2014, faleceu o grande escritor colombiano Gabriel García Márquez. Dedicamos a última seção desta revista para fazer uma homenagem a esse eterno personagem da literatura mundial. Equipe TAG



A INDICAÇÃO DO MÊS

05 09

A curadora: Sarah Hrdy O livro indicado: Neve

ECOS DA LEITURA

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Atatürk Mortes por honra Salman Rushdie Especial Gabriel García Marquez

A INDICAÇÃO DE MAIO

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Cíntia Moscovich


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Indicação do Mês

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A CURADORA: SARAH HRDY

Em Solar, livro enviado pela TAG em fevereiro, Michael Beard, personagem principal, envolve-se em uma discussão acirrada a respeito do fato de que poucas mulheres têm obtido destaque no campo das ciências exatas. Beard defende que o reduzido número de mulheres é consequência de seu interesse inato pelas ciências humanas, enquanto muitos jovens do sexo masculino apresentam a vontade de aprofundaremse nos mais diversos campos da ciência. Dessa forma, pessoas do sexo masculino teriam mais facilidade e aptidão para exercerem papéis de cientistas. A antropóloga Sarah Hrdy, porém, certamente não corresponde à descrição de Michael Beard.

Em 1969, no ano em que me formei, não havia uma única professora em Harvard, e fui a primeira aluna do meu professor a se formar. Não existiam mulheres em quem se espelhar no campo da Ciência. Acreditava-se que as mulheres iriam ser mães e cuidar de seus filhos todo o tempo possível, enquanto os homens trabalhavam em áreas que as mulheres tinham tanta aptidão quanto. Eu simplesmente não me via assim. -Sarah Hrdy Aos dezoito anos, Hrdy decidiu estudar Filosofia na faculdade, enquanto participava de cursos de escrita criativa. Em uma dessas aulas, interessou-se pela civilização maia, o que a levou a tentar escrever um romance sobre o assunto. A decisão levou Hrdy a inúmeras pesquisas sobre o folclore do povo maia, a fim de que pudesse retratá-lo de maneira mais verossímil em seu romance. Ao final, notou que sentira mais prazer realizando as pesquisas do que escrevendo o livro – tanto que acabou abandonando a faculdade, optando pelo curso de Antropologia.


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A nova área conduziu a curiosidade de Hrdy para além da civilização maia: logo se percebeu explorando o problema da saúde nos países pobres. Decidida a produzir filmes que educassem as pessoas sobre assuntos relacionados à higiene, ingressou em um curso de cinematografia Apesar do desapontamento com a qualidade do aprendizado obtido, foi durante essas aulas que Hrdy descobriu o assunto que viria a ser foco de seu trabalho por anos. Para exemplificar algumas técnicas de filmagem, sua professora trouxe aos alunos um vídeo que retratava o modo como os macacos indianos de cara preta, chamados langurs, lidavam com o problema da superpopulação em sua comunidade: quando os números entre os macacos ficavam muito altos, os langurs machos matavam os bebês. Enquanto seus colegas atentavam para o enquadramento da câmera, Hrdy ficou fascinada – e horrorizada – com o modo como aquela comunidade de macacos se comportava. Visando a aprofundar seus estudos sobre o tema, Sarah ingressou em Harvard, onde obteve seu PhD, que resultou no livro The Langurs of Abu (1977). A partir da relação entre os macacos langurs, os estudos de Hrdy subiram alguns degraus na cadeia evolutiva, passando à análise da relação entre pais e filhos. Foi o resultado dessas investigações que tornou Sarah Hrdy mundialmente reconhecida, especialmente com sua pesquisa sobre o papel da mãe na criação. Em seu último livro, Mothers and Others (Mães e Outros, tradução livre), Hrdy estuda pelo prisma da sociobiologia a interdependência existente entre mães e seus filhos. Contrariando a crença popular, Hrdy defende que o tão falado “instinto materno” não é inato, e sim construído ao longo da vida da mulher pelas circunstâncias que lhe são impostas – tanto externas quanto internas.

Mothers and Others nos leva para o coração do que significa ser humano. -Times Higher Education


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Defensora ferrenha do papel fundamental da cooperação na evolução dos seres humanos, a antropóloga atesta que as crianças só se desenvolveram de maneira apropriada devido ao auxílio de outros que não sua mãe, discordando da teoria individualista que tanto impera na sociedade ocidental. Por acreditar nas novas perspectivas obtidas pelas crianças a partir do contato mais próximo com terceiros, e valorizar o tempo que a mãe ganha para suas próprias necessidades, Hrdy advoga em favor de retirar do papel da mãe o protagonismo em cuidar dos filhos. Sarah Hrdy passa boa parte de seu tempo estudando formas de tornar o cuidado apropriado de crianças mais acessível a todos, buscando maneiras de reorganizar a sociedade de modo que o senso de comunidade exerça um papel mais importante – e seja devidamente valorizado.

Sarah Hrdy é uma das mentes mais originais e influenciadoras na antropologia evolutiva. -The New York Review of Books

Nascida em Dallas, Texas, em 1946, Sarah Blaffer Hrdy é uma das antropólogas e primatologistas mais reconhecidas da atualidade. Suas contribuições para a biologia evolutiva trouxeram-lhe grande reconhecimento, figurando na lista das vinte e uma pessoas mais influentes nessa área. Atualmente, Hrdy é professora na Universidade de Cornell e professora emérita na Universidade da Califórnia. Membro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, Hrdy recebeu em 2001 o Prêmio Howells por suas “incríveis contribuições à Biologia e Antropologia”. NEVE, DE ORHAN PAMUK, foi o livro indicado por Sarah Hrdy à TAG. “Orhan Pamuk é um grande contador de histórias. O livro inicia com um viajante solitário percorrendo de ônibus o frio e a neve, o que é exatamente o que eu estava fazendo quando comecei a ler a obra. Mas o que eu mais gostei do livro foi a janela que me abriu para a sociedade turca, suas aspirações, tensões políticas e religiosas, sobre as quais eu sabia tão pouco.”


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FOTO: MAKA GOGALADZE

Orhan Pamuk


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O LIVRO INDICADO: NEVE Onze milhões de livros. Parece muito? Isso é o que só o escritor turco Orhan Pamuk vendeu nos últimos anos, em mais de sessenta línguas. Nascido em 1952, em Istambul, Pamuk é o primeiro – e único – turco a ser agraciado com o Prêmio Nobel.

Em minha infância, eu lia romances não somente para entender e aproveitar aquelas histórias e fantasias, mas também para aprender sobre o mundo. Os livros foram enciclopédias para mim. -Orhan Pamuk

A experiência como leitor tornou-se sua principal arma como escritor, e talvez o preponderante motivo de sua condecoração: a capacidade de inserir em seus livros fortes aspectos culturais da Turquia, retratando ao mundo as nuances locais de maneira que apenas um nativo conseguiria. Como declarou o comitê sueco, “na busca por retratar a alma melancólica de sua cidade natal, Pamuk descobriu novos símbolos para os combates interculturais”. Quando jovem, Pamuk sonhava em ser artista. Ao mesmo tempo em que cursava Arquitetura, dedicava seu tempo à pintura. Aos vinte e dois anos de idade, porém, abandonou o sonho e decidiu estudar Jornalismo na Universidade de Istambul. Encantado com sua facilidade para escrever, aos vinte e três anos iniciou sua aventura como escritor. Seu primeiro livro, O Senhor Cevdet e Seus Filhos, foi lançado apenas sete anos depois, em 1982. Nos anos seguintes, Pamuk lançou diversas obras, muito bem recebidas pelo público turco. Apenas em 1990, com o lançamento de O Livro Negro, começou a chamar a atenção da crítica internacional, e teve alguns de seus livros anteriores traduzidos para outras línguas.


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Meu Nome é Vermelho, uma de suas obras de maior sucesso, foi publicada em 1998, retratando, em meio a uma história de amor, a maneira como os artistas persas e otomanos percebiam o mundo não-ocidentalizado. Esse livro recebeu inúmeros prêmios ao redor do mundo, em países como França, Itália e Estados Unidos. Suas obras costumam retratar as enraizadas tensões entre Ocidente e Oriente, ressaltando as disputas políticas e religiosas. O autor declara-se um “muçulmano cultural”, que se identifica com os aspectos históricos de sua religião mas não acredita em uma conexão pessoal com Deus.

Eu acredito intensamente que a arte do romance está baseada na capacidade humana, apesar de limitada, de se identificar com ‘o outro’. Apenas seres humanos podem fazer isso. Requer imaginação, um tipo de moralidade e um esforço interno de tentar entender aquele que é diferente de nós, o que é uma raridade. -Orhan Pamuk Em 2005, Pamuk foi processado por ter, durante uma entrevista a um jornal suíço, responsabilizado o governo turco pelo genocídio de armênios no país no início do século XX. Suas declarações repercutiram, e Pamuk foi fortemente criticado, levando alguns grupos extremistas a queimar seus livros em locais públicos. Após algumas ameaças de assassinato, o autor viu-se obrigado a fugir do país para evitar complicações. Quando retornou, em uma entrevista à BBC, relatou que estava apenas defendendo a liberdade de expressão (ou a falta dessa), considerada por ele a única esperança de a Turquia fazer as pazes com sua triste história. “O que aconteceu com os armênios em 1915 é um fato gigantesco, e ficou escondido da nação turca todo esse tempo; é um tabu. Mas nós temos de ser capazes de falar sobre o passado”. Ironicamente, embora estivesse defendendo a liberdade de expressão, Pamuk foi processado por “insultar explicitamente a República da Turquia”. Quando isso aconteceu, oito escritores mundialmente


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renomados – entre eles, José Saramago, Gabriel García Marquez e Umberto Eco – assinaram uma carta em conjunto protestando contra essa acusação, declarando que era uma violação dos direitos humanos. Apesar desses conflitos, Pamuk atesta não possuir qualquer interesse político. De acordo com o próprio autor, seu primeiro e último livro com algum cunho político é Neve, lançado em 2002, e indicado por Sarah Hrdy à TAG. Quando publicado em inglês, em 2004, foi eleito um dos dez melhores livros do ano pelo The New York Times.

Neve proporciona uma visão mais apurada sobre a dicotomia Ocidente-Oriente, e dá vida aos personagens, fazendo com que me questionasse sobre quais aspirações levaram-nos a agir da maneira como agiram. Desde Neve, já li diversos outros livros de Pamuk, mas esse ainda é o meu preferido. -Sarah Hrdy Assim que iniciamos a leitura, notamos o jogo que Pamuk faz com as palavras: o personagem principal chama-se Ka, o título do livro em turco é Kar (Neve) e a cidade em que se passa a história é Kars. Com a morte de sua mãe, Ka, um poeta turco exilado na Alemanha há doze anos, volta a Istambul para acompanhar o enterro. Intrigado pelo alto número de suicídios cometidos por jovens muçulmanas em Kars, fronteira com a Geórgia, Ka decide viajar a essa cidade para tentar entender o que estava acontecendo, sob a justificativa de escrever uma reportagem a um jornal turco sobre as eleições municipais que estavam por vir. Quando chega a Kars, após perigosa viagem de ônibus durante uma tempestade, as estradas são bloqueadas pela neve, e a cidade encontra-se sem meios de comunicação com o mundo exterior. Com a viagem, Ka possui também um interesse pessoal: Ipek, um antigo amor, está vivendo em Kars, trabalhando no hotel de seu pai – justamente onde se hospeda o poeta, que almeja conquistar a moça e levá-la para Alemanha.


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Em meio às conversas de Ka com o povo local para entender o que levou tantas mulheres ao suicídio, Pamuk retrata a cultura local com maestria. Ambientanos, então, na pequena cidade de Kars: muita pobreza, grande número de desempregados povoando as casas de chá, partido islamita ganhando força, cidade em polvorosa pela apresentação de teatro que está por vir. Com as estradas fechadas, presenciamos o aumento dos conflitos entre religiosos radicais e secularistas – quem defende a separação entre o governo e as entidades religiosas. Logo, os embates levam a assassinatos e sequestros, e Ka encontra-se envolvido nesse tumultuoso cenário.

Quando pessoas como nós dizem que estão sendo heroicas, isso normalmente significa que estamos prestes a matar uns aos outros ou a matar a nós mesmos. -Trecho retirado do livro Durante os três dias em que se passa a história, Ka é acometido de grande inspiração, e acompanhamos seus pensamentos e sentimentos enquanto escreve seus poemas – acredita-se que seja um retrato do modo como o próprio Pamuk considera seu processo de escrita. O título do livro não é apenas uma alusão às condições meteorológicas de Kars. Em meio às atrocidades, Ka encontra na neve uma fonte de tranquilidade e paz – e é o título que dá ao primeiro poema que escreve em Kars. Na Turquia, Neve foi criticado por caricaturar o povo turco. É verdade que Pamuk utiliza-se de estereótipos para muitos de seus personagens, mas a impactante força do livro recai no que ele está querendo mostrar a partir das situações em que se envolvem, e não em sua verossimilhança. Os embates entre religiosos e secularistas são ilustrados com uma riqueza que seria difícil encontrarmos em algum jornal ou livro de nãoficção; em uma cena emocionante, Pamuk expõe a conversa de um homem prestes a ser assassinado com um extremista religioso – o que esclarece um pouco do que defende cada um dos lados.


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Desde o lançamento de Neve, Pamuk já publicou cinco obras. Istambul (2005) é o livro de suas memórias, em que reconstitui a importância de sua cidade natal para sua formação cultural e literária. O grande divisor de águas para que Pamuk recebesse o prêmio Nobel, porém, foi Neve. Ao final do livro, o leitor é levado a aperceber-se de quanto conhece sobre a cultura turca, passando a ver com outros olhos os conflitos OcidenteOriente, tão presentes nos dias atuais. Ao lembrarmos do que ocorreu na sede da revista parisiense Charlie Hebdo, em janeiro último, percebemos que a ficção de Pamuk não está tão distante da realidade.

Mas num país brutal como o nosso, onde a vida humana pouco vale, é tolice se deixar destruir por causa das próprias crenças. Crenças, grandes ideais... só quem vive nos países ricos pode se dar a esses luxos. -Trecho retirado do livro


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Ecos da Leitura

ecos da leitura


Ecos da Leitura

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Atatürk, primeiro presidente da República da Turquia, é citado diversas vezes durante o livro Neve. O primeiro eco deste mês conta quem foi e quais suas proezas, merecendo o destaque de Orhan Pamuk. Durante o livro, acompanhamos o interesse de Ka pelo alto número de suicídios cometidos por jovens muçulmanas na cidade de Kars. Pamuk baseia-se nas Mortes por Honra que realmente ocorreram na cidade de Batman no início dos anos 2000, e trazemos a vocês dois casos que horrorizaram os jornais internacionais nessa época. As conexões entre Ka e o escritor britânico Sir Salman Rushdie é o que compõe o terceiro eco deste mês, trazendo informações a respeito de sua atribulada – e perigosa – vida. Para finalizar, não podíamos deixar de homenagear o eterno Gabriel García Márquez. Abril marca um ano de seu falecimento, e reunimos alguns fatos curiosos sobre a trajetória do escritor colombiano em um Especial Gabriel García Márquez. Equipe TAG contato@taglivros.com.br


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ATATÜRK Quem já viajou à Turquia deve ter se perguntado quem foi Atatürk, denominação do maior aeroporto do país, em Istambul. Ao longo de Neve, esse nome é mencionado diversas vezes, sempre invocando suas conquistas para a Turquia e à grande evolução pela qual passou o país enquanto foi presidente. Reunimos, então, uma breve história da vida de Atatürk, para que você possa aproveitar melhor as passagens que se referem ao ex-presidente durante a leitura do livro deste mês.


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Nascido em 1881, no antigo Império Otomano, com apenas o nome de Mustafa, foi enviado para uma escola militar quando criança. Aos doze anos, um professor de matemática passou a chamá-lo de Kemal, que significa “perfeição”, devido à sua excelente performance acadêmica. Desde jovem, Mustafa Kemal sonhava em transformar seu país. Aos vinte anos, envolveu-se com o grupo revolucionário conhecido como Jovens Turcos, e participou do movimento que depôs o sultão Abdulhamid II, em 1909. Após a Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano vivia em constantes conflitos entre turcos, gregos e armênios. Mustafa Kemal desejava a independência da Turquia, e liderou o que foi chamada, posteriormente, de Guerra de Independência Turca. Suas campanhas militares bemsucedidas asseguraram a liberação do país e a proclamação da república. Mustafa Kemal foi eleito, então, o primeiro presidente da Turquia. Assim que assumiu o poder, lançou um programa revolucionário de reforma social e política, visando à modernização da Turquia. Para ele, a modernização dependia de tornar o país secularista e com instituições aos moldes ocidentais. Sua reforma incluía a emancipação das mulheres – removendo a obrigação de usarem mantos e dando-lhes o direito ao voto –, a abolição de todas as instituições islâmicas e a inserção de um código legal ocidental, alterando o calendário e o alfabeto para os utilizados na maior parte do Ocidente. Como política externa, Mustafa Kemal buscava a neutralidade, estabelecendo relações amigáveis com todos os países vizinhos. Os princípios das reformas de Kemal costumam ser chamados de “kemalismo”, e ainda constituem a base política do Estado. Em 1935, quando os sobrenomes foram introduzidos à cultura turca, foi chamado de Atatürk, que significa “pai dos turcos”. Faleceu em dez de novembro de 1938.


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MORTES POR HONRA A onda de suicídios de mulheres que estava ocorrendo em Kars, motivo pelo qual Ka viaja até a cidade, é frequentemente comparada durante a narrativa à que realmente ocorreu na cidade de Batman, na Turquia, no início dos anos 2000. O local é outro, mas o enredo é o mesmo: entre 2000 e 2006, houve mais de cento e sessenta suicídios, sendo que mais de cem deles foram cometidos por mulheres, número três vezes maior do que a média mundial. Como Neve foi escrito em 2002, Pamuk referia-se apenas ao início desse triste episódio. Derya, uma garota de dezessete anos, recebeu de um tio a ordem de se matar. Sabe como veio essa ordem? Como mensagem de texto no celular. “Você manchou nosso nome. Mate-se e limpe o nome da família ou nós vamos matá-la antes.” O crime que ela cometera foi apaixonar-se por um garoto que conhecera na escola. Derya diz, porém, que sabia dos riscos: sua tia tinha sido assassinada por seu avô quando descobriu que ela encontrara-se com um garoto. Consumida pela vergonha, Derya decidiu atender aos pedidos da família. Primeiro, atirou-se de uma ponte, mas sobreviveu. Depois, tentou se enforcar, mas salvaram-na antes que morresse. Por fim, cortou seus pulsos com uma faca de cozinha, mas não foi o suficiente para que acabasse com sua vida. Hoje, Derya vive em um abrigo para mulheres vítimas de abuso, e mudou seu sobrenome, para que a família não a perseguisse. “Enquanto as famílias não confiarem em suas filhas e não as tratarem do mesmo modo como tratam os filhos, coisas ruins vão continuar a acontecer.” Outro episódio foi o da jovem Elif, de dezoito anos, que ouviu de seu pai que deveria se suicidar para “evitar que ele recebesse uma sentença de morte por assassinar a própria filha”. Elif atesta que quase seguiu a recomendação. “Eu amava muito meu pai, estava pronta para cometer o suicídio por ele. Mesmo que eu não


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tivesse feito nada de errado. Mas não consegui, eu amo demais a vida para fazer isso.” Aos olhos do pai, ela tinha feito algo errado: por desejar concluir sua educação, recusara casar-se com o homem arranjado por seu pai, muito mais velho do que ela. O caso de Elif e de Derya são apenas dois exemplos das dificuldades enfrentadas pelas mulheres na Turquia, em pleno século XXI. A ONU não os considera suicídios, e sim “mortes por honra”, ou seja, situações em que a pessoa é obrigada a se suicidar para honrar sua família. Este é o contexto da cidade de Kars, onde se encontra o poeta Ka ao longo do livro Neve. Orhan Pamuk baseia-se em fatos reais para transmitir ao leitor as aflições de um povo que convive com problemas que nos parecem tão distantes.

Os livros fazem com que você entenda os problemas de outras pessoas, passando a ver o mundo através de seus olhos, colocando-se na sua pele. -Orhan Pamuk


20 Ecos da Leitura

SIR SALMAN RUSHDIE

QUEIMAR UM LIVRO NÃO SIGNIFICA DESTRUÍ-LO. UM MINUTO DE ESCURIDÃO NÃO NOS TORNARÁ CEGOS.

Salman Rushdie

FOTO: DAVID SHANKBONE


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Enquanto Ka, personagem principal de Neve, era um exilado fictício, outro proeminente escritor muçulmano teve de se exilar para fugir das intimidações dos fundamentalistas. Sir Salman Rushdie, britânico-indiano, convive com ameaças de morte há mais de quinze anos. Nascido em 1947 em Mumbai, na época em que a Índia pertencia à Grã Bretanha, em uma família muçulmana liberal e abastada, Rushdie estudou por um tempo na Índia, no Paquistão, e por fim mudou-se para a Inglaterra, onde se formou com louvor na Universidade de Cambridge. Durante seu tempo livre, enquanto trabalhava como escritor de anúncios publicitários, redigiu o que se tornou o sucesso Os Filhos da Meia-Noite (1981), vencedor do Man Booker Prize daquele ano. Sempre com fortes vieses culturais, suas obras posteriores passaram a atrair a atenção da crítica internacional, e receberam inúmeros prêmios literários. Mas foi com Versos Satânicos (1988) que o nome de Rushdie passou a figurar em diversos jornais ao redor do mundo – no entanto, não apenas pela qualidade do seu mais recente livro. Desde seu lançamento, os movimentos extremistas islâmicos viram no livro uma depreciativa caracterização do profeta Maomé, e a obra foi banida em doze países, incluindo a Índia, país de origem do autor. O maior problema, contudo, surgiu quando Aiatolá Khomeini, Líder Supremo do Irã à época, pronunciou-se publicamente exigindo uma fátua – decisão jurídica baseada na lei islâmica –, declarando que Salman Rushdie deveria ser executado, acusado de “blasfemar contra o Islã”. Após esse pronunciamento, a violência irrompeu ao redor do mundo: livrarias foram bombardeadas, e livros de Rushdie eram retirados para serem queimados em público. Pessoas ligadas à publicação do livro, como editores e tradutores, foram alvo de ataques, o que resultou em algumas mortes. Tentativas de assassinato obrigaram Rushdie a tornar suas aparições em público mais esparsas, sempre rodeado de seguranças. Após anos em exílio, foi com espanto que o público do estádio Wembley presenciou a subida de Rushdie ao palco em meio a um show da banda U2, em 1993. Os próprios artistas ficaram incrédulos pelo fato de Rushdie, fã declarado da banda, arriscar-se tanto. Quando o serviço secreto pediu a Rushdie que criasse um codinome para utilizar durante o tempo exilado, pensou em dois escritores que amava, Conrad e Tchekhov. Foi na combinação do primeiro nome desses dois grandes escritores que saiu seu alias: Joseph Anton, que também serviu de título para seu livro de memórias, lançado no ano de 2012. Em 2007, Rushdie foi condecorado pelo governo britânico como Cavaleiro Celibatário, adicionando o título de Sir ao seu nome. Diversas nações islâmicas protestaram, e o grupo Al-Qaeda declarou que essa nomeação era um “insulto ao Islã”. Ainda hoje, Rushdie não se encontra em total segurança – existem diversas sentenças de morte de diferentes grupos extremistas, que prometem recompensas milionárias para o assassino.


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ESPECIAL GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

Exatamente um ano atrás, em abril de 2014, faleceu um dos grandes ícones da literatura sul-americana. Gabriel José de la Concordia García Márquez, com oitenta e sete anos, sucumbiu a uma pneumonia, após passar anos enfrentando a demência. Imaginando García Márquez como nosso curador, questionamo-nos: que livro ele indicaria aos nossos associados? Foi pensando nesse cenário hipotético e buscando responder a essa pergunta que elaboramos essa singela homenagem a um dos maiores escritores latinoamericanos da história.


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24 Ecos da Leitura

Gabo, como era conhecido, nasceu em 6 de março de 1927, na cidade de Aracataca, Colômbia. Seus pais mudaram-se para Barranquilla, mas o garoto permaneceu em sua cidade natal com os avós, o coronel veterano Nicolás Márquez e Dona Tranquilina, que desempenharam papel fundamental na formação do escritor. Passou a infância fascinado com as histórias que seu avô, herói dos colombianos liberais, contava sobre a Guerra dos Mil Dias, e com a forma envolvente com que sua avó narrava as mais diversas e fantasiosas histórias. Gabo conta que, na época, sua avó “tratava o extraordinário como algo completamente natural”, não importando quão improvável soasse, e que foi essa a fonte de toda a visão mágica, supersticiosa e sobrenatural da realidade que empregou em suas obras. Quem já leu Cem Anos de Solidão, reconhecerá a maneira de contar histórias surreais de maneira perfeitamente verossímil que García Márquez herdou da sua avó. Além do coronel Nicolás Márquez e de Dona Tranquilina, outra figura teve papel de influenciar aquele que viria a ser considerado o pai do realismo fantástico: Franz Kafka. Conta-se que, ao ler a célebre frase de abertura do clássico Metamorfose, “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”, exclamou “Então eu posso fazer isso com as personagens?! Criar situações impossíveis?” Infelizmente, não tivemos a oportunidade de conversar com Gabriel García Márquez sobre seus livros favoritos. Qual o título que seria escolhido é impossível saber; fica, entretanto, a sugestão de ler (ou reler) A Metamorfose e imaginar o jovem Gabo animado com a perspectiva de escrever um conto fantástico.


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Em 1982, Gabriel García Márquez recebeu o prêmio Nobel de Literatura – de acordo com o escritor uruguaio Eduardo Galeano, "em nome dos poetas, mendigos, músicos, profetas, guerreiros e malandros da América Latina.” Em 2002, publicou o livro de memórias Viver para Contar. Destinado a ser o primeiro de uma série de três volumes, Márquez adoeceu logo após a publicação, e não conseguiu concluir os outros dois. Com histórias divertidas da vida do escritor, o livro foi muito apreciado pela crítica. García Márquez foi amigo do ex-presidente cubano Fidel Castro, pelo que foi duramente criticado. Em uma entrevista, Gabo afirmou que sua amizade era puramente intelectual. “Quando nos encontramos, conversamos apenas sobre Literatura.” Quando jovem, foi muito próximo do escritor peruano Mario Vargas Llosa, também vencedor do prêmio Nobel de Literatura. Após alguns anos, desentenderam-se sobre posições ideológicas, e Vargas Llosa foi visto desferindo um soco na face de García Márquez em público. Por criticar o imperialismo americano, García Márquez teve seu visto para entrar no país negado por muitos anos. Quando Bill Clinton assumiu a presidência, porém, concedeu o visto ao colombiano, e declarou que Cem Anos de Solidão era seu livro preferido. Quando García Márquez faleceu, o então presidente da Colômbia Juan Manuel Santos declarou: “Cem anos de solidão e tristeza pela morte do maior colombiano de todos os tempos”.


Que graça tem ler um livro e não falar com ninguém sobre ele?


Por isso, para 2015, preparamos uma surpresa: quem indicar um amigo para fazer parte do clube, vai receber um carimbo ex libris exclusivo para personalizar sua biblioteca! Basta solicitar ao seu amigo que escreva que foi indicado por você na hora do cadastro. Assim, você nos ajuda a expandir o clube e nós, de forma singela, retribuímos um pouco a sua confiança!

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28 Indicação de Maio

A INDICAÇÃO De MAIO

O livro indicado por Cíntia Moscovich à TAG retrata os sentimentos de um filho com seu pai à beira da morte – mas não um filho qualquer. O autor, considerado um dos melhores escritores vivos, é tido como recluso e rabugento por muitos críticos, e nessa obra abre seu coração em relatos íntimos, com uma narrativa simples e envolvente. Apesar do tema trágico, não é empregado um tom depressivo para a história, e o humor ácido do autor está presente até o último momento. Agraciado com o Prêmio Pulitzer, dois National Book Award e um Man Booker International Prize, o autor do livro enviado em maio já está aposentado. A indicação de Cíntia Moscovich é perfeita para quem quer ser iniciado em sua prolífica obra.


Indicação de Maio 29

A CURADORA: CÍNTIA MOSCOVICH

Garanto que jamais se lerá algo tão tocante sobre a morte de um pai e sobre o entendimento de um legado. Cíntia Moscovich é escritora, jornalista e mestre em Teoria Literária. Dentre inúmeros prêmios literários conquistados, destaca-se o primeiro lugar no Concurso de Contos Guimarães Rosa, instituído pelo Departamento de Línguas Ibéricas da Radio France Internationale, de Paris – ao qual concorreu com mais de mil outros escritores de língua portuguesa - e o Prêmio Jabuti pela categoria Contos, em 2005. Em 2013, recebeu os prêmios Portugal Telecom e Clarice Lispector. Os leitores não encontrarão cenas de violência, tragédia ou aventura nas obras de nossa curadora de maio: Cíntia Moscovich foca nas angústias inerentes ao ser humano, retratando a sensibilidade de homens e mulheres para lidar com suas rotinas, frustrações e alegrias. Simplicidade que já conquistou leitores na Itália, Estados Unidos, Argentina e Espanha. Informações completas a respeito do curador do mês e do livro recomendado podem ser encontradas no www.taglivros.com.br ou então na revista do próximo mês. Caso já tenha lido o livro, envie e-mail para contato@taglivros.com.br para conhecer as alternativas.


contato@taglivros.com.br www.taglivros.com.br facebook.com/taglivros @taglivros

-Salman Rushdie-


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