"Línguas" TAG Curadoria - Agosto/2024

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TAG — Experiências Literárias

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Publisher Rafaela Pechansky

Edição e textos

Rafaela Pechansky e Tatiana Cruz

Colaboradoras Laura Viola e Sophia Maia

Designer Bruno Miguell Mesquita

Capa Elisa v. Randow

Revisores Antônio Augusto e Liziane Kugland

Impressão Impressos Portão

Olá, tagger

Um livro de Domenico Starnone é o sonho de consumo de qualquer publisher de um clube do livro. Um dos maiores escritores italianos da atualidade, Starnone atinge o suprassumo da delicadeza com seus personagens que navegam o mundo equilibrando seus sentimentos, obsessões e traumas, temas ideais para colocar à mesa conversas que reverberam além da história em si. Quando Maria Bopp — também conhecida como a Blogueirinha do Fim do Mundo (aquela que tirou sarro das falas misóginas de um certo ex-presidente do Brasil) — indicou um livro inédito de Starnone, seu autor favorito, nós mal acreditamos na nossa sorte. O livro estava prestes a sair pela editora Todavia, então nós imploramos aos nossos amigos que parassem as máquinas e segurassem o lançamento para que pudéssemos enviar Línguas em primeira mão para os associados da TAG. Como eu disse no início do texto: este livro é um sonho de consumo para uma publisher que conhece seus leitores e sabe que suas estantes estão repletas de obras italianas de qualidade.

Além disso, adicione ao livro do mês: a relação complexa entre uma avó carinhosa e um neto sonhador, a reflexão importante sobre o poder das palavras, dos dialetos e das línguas, e uma Nápoles caótica, pano de fundo desta história arrebatadora.

Buona lettura a tutti!

Experiência do mês

Uma garota linda e misteriosa. O duelo tragicômico entre dois amigos. Uma avó aprisionada ao passado. O idioma doméstico e a língua das ruas. As verdades e mentiras pronunciadas ao longo do amadurecimento de um garoto em Nápoles.

AGOSTO 2024

História encantadora na voz única de um dos maiores escritores contemporâneos, Línguas nos mostra que as crianças podem ser cruéis e amar de forma tão apaixonada quanto os adultos — e às vezes até mais. Com este romance enganadoramente simples, Domenico Starnone constrói uma história de notável profundidade psicológica e quase infinitos graus de encantamento.

Seu livro além do livro: para ouvir,

DOMENICO STARNONE

LÍNGUAS

guardar, expandir, crescer.

“É impossível não ficar fascinado pelo poder da palavra de Starnone.” GLORIA MARIA GHIONI

“Porque a literatura está sempre lá, em equilíbrio entre a mentira e a morte, onde Domenico Starnone faz dançar sua linda menina.” LA STAMPA A própria vida

Mimo

Jorge Luis Borges escreveu: “A própria vida é uma citação”. No fundo, todo leitor é um pouco colecionador de citações. O mimo do mês é um caderno para você anotar aquelas que, de tão memoráveis, merecem ser eternizadas em um espaço próprio. Com uma curadoria de citações da TAG nas páginas, você também pode usá-lo para escrever anotações, ideias, levando ainda mais a literatura para o seu dia a dia.

Jorge Luis Borges

capturar de forma evocativa a essência da narrativa. A resposta foi destacar a menina que dança graciosa, simbolizando a leveza e a alegria da infância, enquanto o fundo vermelho sugere a intensidade das emoções e obsessões que permeiam a história. Os movimentos da menina dançando na capa refletem tanto a beleza quanto a complexidade das memórias e sentimentos que o protagonista nutre ao longo da trama.

Para quem sabe que o livro sempre rende boas conversas

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Para ajudar a embalar a sua leitura

sumário

Por que ler este livro

Dor de amor? Dúvidas na vida? Nosso consultório literosentimental responde com dicas de livros 04 06 12 18 20 22 24 27 28

Bons motivos para você abrir as primeiras páginas e não parar mais

O autor

Um retrato caprichado e uma entrevista com quem está por trás da história

A curadora

Conheça Maria Bopp, que escolheu seu livro do mês

Cenário

De onde veio, do que fala, o que é o livro que você vai ler

Universo do livro

Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

Da mesma estante

Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês

Leia. Conheça. Descubra.

Identidade e linguagem na obra de Italo Calvino

Vem por aí

Para você ir preparando seu coração

Madame TAG responde

“Este livro é como o ritual de sedução de um ilusionista que finge mostrar o truque e, depois, quando a pomba voa para fora do chapéu, simplesmente sorri, faz uma reverência e vai embora.”
Elena Stancanelli

Por que ler este livro

Emocionante e inesquecível — ideal para os admiradores de Natalia Ginzburg e Italo Calvino —, o livro do mês é uma jornada através do tempo e das memórias. Ambientado no sul da Itália, Línguas revela as camadas profundas da existência humana ao mesmo tempo que celebra a força das lembranças e das conexões que moldam a nossa identidade e persistem além da mortalidade.

scummigliarsi: DESTAMPAR A LÍNGUA

A morte de uma língua tem um preço impagável, e Domenico Starnone está aqui para provar

Conceição Evaristo, em suas escrevivências, costuma dizer que a língua culta oculta, referindo-se ao arcabouço de histórias que acabam de fora da literatura canônica — preponderantemente branca, ocidental e heteronormativa. Domenico Starnone não é necessariamente uma exceção à regra, pois, homem, branco e europeu, é também um dos italianos vivos mais lidos no mundo — só no Brasil, já são cinco romances traduzidos, contando este que TAG traz com exclusividade para seus associados. Mas o que Starnone e a tese de Conceição Evaristo estariam fazendo, então, juntos em um mesmo parágrafo? Nascido e criado em meio ao dialeto napolitano, numa porção da Itália historicamente vista como mais atrasada em relação ao norte desenvolvimentista e intelectual, o escritor de Línguas acaba ilustrando, em suas tramas, a força da declaração de Evaristo. Na corda bamba de personagens às voltas com fantasmas do passado, Starnone deixa escorrer, por entre protagonistas eruditas e uma escrita precisa, um subdrama que se confunde com a língua falada, seus dialetos, não letramentos, em um lugar de afeto e memória presente tanto em sua obra quanto em sua biografia.

Domenico Starnone nasceu em 1943, em Nápoles, e atualmente vive em Roma, onde atua como escritor, roteirista e jornalista. Embora acumule uma obra de mais de uma dezena de romances, tendo sido reconhecido com o Prêmio Strega, um dos mais prestigiados da Itália, num longínquo ano de 2001, é apenas em 2017 que seus títulos começam a chegar ao Brasil, com o romance Laços, pela Todavia. A quebra desse hiato de 16 anos coincide com rumores de que seu nome estaria diretamente ligado a uma certa best-seller internacional, conferindo apetite voraz por sua obra, traduzida para o português pelo experiente e premiado tradutor Maurício Santana Dias, o mesmo que assina a tradução de livros a cuja autora Starnone evita estar relacionado.

Os títulos do autor publicados no Brasil parecem reunir algumas semelhanças curiosas: são todos curtos e envolventes, a ponto de você devorá-los em poucos dias. Nas cinco obras, vemos narradores homens, mais velhos, cultos, revisitando fantasmas do passado, que, muito além de uma mera coincidência, residem na cidade da infância e da juventude do autor, salpicados pelo dialeto local, que, segundo a Unesco, é atualmente uma língua ameaçada, usada apenas como idioma oral em situações informais. Misturando influências do latim, grego, espanhol, do francês e do próprio italiano sem que nada disso seja mutuamente compreensível, o dialeto presente em Línguas — e nos demais títulos do autor — é forjado na recuperação desse manancial linguístico, em uma constante oposição ao lugar que a norma culta tem nas ambições das personagens, que geralmente voltam do norte para o sul para algum resgate sentimental.

É que, falando em sentimento, é de lá mesmo, do dialeto, dessa língua quase morta, informal, das entranhas de uma Itália ancestral, que vem o material do drama starnoniano, como nesta passagem do livro em que o narrador reflete sobre o dialeto da avó, narrador esse, estudante de glotologia, que surge como uma personificação do próprio autor, compartilhando a ânsia de documentar e salvaguardar uma língua (sentimentos) sob ameaça: “Com estudo, com exercício, eu teria podido organizar os ecos da menina milanesa, dar a eles uma forma justa e durável, eram um dom precioso para quem quisesse pôr-se à prova. Mas aqueles sons atropelados de minha avó não eram redutíveis a nenhuma página bela e límpida, a literatura se retraía, se retraía o alfabeto, até a grafia fonética. Houve um momento — tive a impressão — em que não era mais apenas ela quem falava, também falava sua mãe, sua avó, a bisavó, e diziam palavras que soavam pré-babélicas, palavras da terra, das plantas, dos humores, do sangue, dos trabalhos, o vocabulário das labutas que enfrentaram, o vocabulário das doenças graves das crianças e dos adultos”.

Muito além de suposições pós-leitura, essas impressões humildemente aqui expostas, no entanto, parecem encontrar eco nas declarações do próprio autor em entrevista recente, datada de 2 de junho de 2024, ao periódico Corriere della Sera, na ocasião do lançamento do seu novo livro, A humanidade é uma aprendizagem (Einaudi) — título aqui em livre tradução —, ainda sem previsão de chegar ao país, no qual o autor abre o seu laboratório de influências e inspirações. Questionado sobre a importância do dialeto na sua vida e na escrita, o Starnone devoto de Amicis a Tozzi, de Meneghello a Natalia Ginzburg e La Capria, muito Calvino, esse Starnone erudito, ao refletir sobre o dialeto, mira o coração: “Cada vez que procuro, digamos, representações psíquicas primárias, primeiro encontro substantivos e verbos dialetais. Quando escrevo, às vezes aproveito e faço uma espécie de trampolim para o italiano e, às vezes, procuro reproduzir só o som. Não importa. Quem entende, entende”.

Três perguntas para Domenico Starnone

O grande tema deste livro é a obsessão do protagonista, que passa a vida perseguindo a ideia de uma garota idealizada. Como essa história foi construída? O que vem primeiro: a ideia de trabalhar em alguns conceitos ou a própria trama?

O que estimula a fantasia e faz nascer a história é justamente a indeterminação das memórias iniciais.

Construo geralmente minhas histórias a partir de pequenas memórias da infância. São imagens vagamente definidas, eu mesmo não sei bem a que tempo pertencem e em qual cadeia de eventos reais devem ser colocadas. Descubro isso aos poucos e, quando me sinto pronto, começo a escrever. Neste caso, a imagem inicial é a de uma menina brincando, na varanda, de ser bailarina. Provavelmente tínhamos ambos cerca de dez anos, provavelmente aquela menina foi de férias para o mar e nunca mais voltou, morreu afogada. Digo 'provavelmente' porque não tenho certeza de que a menina que dançava na varanda seja a mesma que morreu afogada. Mas isso não é importante. O que estimula a fantasia e faz nascer a história é justamente a indeterminação das memórias iniciais. Você as revolve na cabeça e, então, surgem outros elementos: a avó, sua linguagem, suas histórias terríveis, os jogos, a escola, a universidade, o cemitério. A menina, em suma, é um ímã para materiais narrativos brutos que aos poucos se encaixam uns nos outros e se tornam uma narrativa.

Línguas retoma alguns temas presentes nos seus livros, como a questão familiar e essa peculiar estranheza entre as gerações — como as crianças veem seus avós e vice-versa, por exemplo. Existem temas ou motivos recorrentes nos seus romances que sente particularmente próximos à sua experiência pessoal ou à sua visão de mundo? Bem, sim, como poderia ser de outra forma? As angústias da infância, a experiência precoce da morte, a relação complexa com a figura materna, a mistura de amor, ódio e violência na vida de casal e nas famílias, a convivência difícil entre a linguagem das experiências primárias — sexo, agressividade, violência — e a linguagem dos contos e romances, o papel da escola, a dificuldade de dar forma literária ao real que não se deixa dobrar à ordem linear da escrita. São temas que atravessam todos os meus livros.

Como vê a evolução da literatura italiana contemporânea? Está em uma fase de pesquisa. Continuamente saem bons livros tanto de autores antigos quanto de jovens que seguem direções muito diversas. Mas o que importa são as novas gerações. Em que direção se moverão, quais fios quebrarão e quais reconectarão, por enquanto é difícil dizer.

MINHA ESTANTE

O primeiro livro que eu li: O último dos moicanos, de James Fenimore Cooper.

O livro que estou lendo: O polaco, de Coetzee.

O livro que mudou minha vida:

O processo, de Franz Kafka.

O livro que eu gostaria de ter escrito: A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector.

O último livro que me fez rir: La ricreazione è finita, de Dario Ferrari.

O último livro que me fez chorar: Infelizmente, não consigo chorar quando leio.

“Starnone propõe um jogo com a escrita dele. Me sinto incrivelmente entretida e provocada ao mesmo tempo.”

Maria Bopp, a curadora do mês, fala sobre a sua relação com a profissão de atriz, redes sociais e seu encantamento com a literatura

Como você enxerga o papel da cultura na sua plataforma como influenciadora?

Trabalhei muitos anos com uma preparadora de elenco que diz que atores são bombeiros das emoções. Um bombeiro vê uma casa em chamas e vai na direção do fogo, quando todo mundo corre na direção contrária. Os atores veem emoções extremas, de dores excruciantes a euforias avassaladoras, e querem explorá-las. Querem colocar seu corpo a serviço dessas sensações. Assim, o lastro de experiências que se tem como artista é ampliado. Fazer e consumir arte, em qualquer forma, me faz mais porosa e, por consequência, mais empática. Também me abriu a possibilidade de enxergar o humor como uma poderosa ferramenta de crítica. A cultura provoca, inquieta, não nos deixa resignar. Nos aguça a sensibilidade e cutuca pontos nevrálgicos que o cotidiano deixa entorpecer.

A curadora do mês

Nome: Maria Bopp

Nascimento:

São Paulo, 25 de junho de 1991.

Profissão:

Atriz e roteirista brasileira.

Duas ou três coisas sobre ela:

1 FIM DO MUNDO

Em fevereiro de 2020, Maria divulgou um vídeo despretensioso no Instagram. Anunciando um tutorial de maquiagem em tom extremamente irônico, ela não poupou críticas ao então presidente Jair Bolsonaro e suas falas machistas. Em 24 horas, o vídeo alcançou quase 850 mil visualizações. Seus seguidores pularam de 39 mil para quase 100 mil. Maria passou a ser conhecida também pelo nome que adotou: "Blogueirinha do Fim do Mundo".

2 ME CHAMA DE BRUNA

Maria foi protagonista da série Me chama de Bruna, sobre a prostituta

Raquel Pacheco (mais conhecida como Bruna Surfistinha), no cinema interpretada por Deborah Secco, e campeã de audiência da Fox durante cinco anos. O último capítulo foi ao ar no fim de janeiro de 2020, depois de quatro temporadas.

3 PODCAST

Produzido pela Wondery, estúdio de podcasts da Amazon, o podcast Má Influência conta histórias de figuras importantes e suas gambiarras para conseguir fama, fortuna e poder. Ao lado da humorista

Babu Carreira, Maria desvendará casos intrigantes de personagens reais do mundo da moda e da indústria da música, entre outros, que usaram sua influência para aplicar golpes inimagináveis.

©Vinicius Mochizuki

O seu trabalho explodiu em um contexto de pré-pandemia, falando sobre temas urgentes, políticos e polêmicos de forma criativa e irônica, o que ressoou com muita gente. Pode contar um pouco sobre como foi essa experiência de viralizar num momento como aquele?

Eu postei o meu primeiro vídeo da Blogueirinha do Fim do Mundo em fevereiro de 2020, um mês antes do "fim do mundo" chegar no Brasil. O primeiro vídeo já viralizou e teve milhões de visualizações em diferentes redes sociais. Isso já tinha me animado a seguir com a personagem. Mas, quando a pandemia começou, percebi que os vídeos ganharam um novo contorno. Até a escolha do nome da personagem fez mais sentido. Passei não só a fazer críticas ao governo da época, mas também a provocar diretamente as celebridades da internet que usaram sua influência de forma egoísta e irresponsável em um período tão amedrontador. E o que antes era só um desabafo pessoal virou uma projeção de uma indignação coletiva. No geral, a repercussão de todos os vídeos foi muito positiva. Uma atriz que respeito muito me disse que meus textos ajudavam a organizar o caos daquele momento. Ouço variações desse comentário até hoje e fico feliz que eu tenha feito uma contribuição de leveza em uma época tão sombria. Também foi curioso que me tornei "famosa" trancada em casa. Lembro do momento em que eu fui reconhecida por uma desconhecida enquanto passeava com o meu cachorro, mesmo usando uma máscara cobrindo metade do meu rosto, sendo que eu raramente era abordada na rua antes disso. Realmente, a pandemia foi um divisor de águas na minha vida. Acho que na vida de todo mundo, na verdade.

Sabemos que você é uma leitora ávida. Como os livros influenciam sua perspectiva sobre diversos assuntos e seu trabalho como influenciadora? Tem vezes que, ao ler, sinto um zoom in na minha mente, pela capacidade da literatura de sintetizar pensamentos íntimos em uma sequência de poucas palavras, de traduzir sensações que até então me pareciam muito próprias e específicas em um parágrafo. Amo a sensação de ler algo e pensar: "eu sempre pensei isso e nem sabia". E então releio e

releio aquela frase e me sinto menos sozinha. É um alívio quando alguém elabora nossa intimidade melhor que nós mesmos. Por outro lado, tem vezes que sinto essa mesma lente dando um zoom out, quando a literatura oferece uma outra perspectiva sobre algum assunto, uma dimensão mais profunda de uma temática cotidiana. Adoro quando uma porta se abre e eu penso: "eu nunca tinha pensado nisso antes". Tanto a lente zoom in quanto a zoom out resultam no mesmo efeito: ler me tira o senso de autoimportância. Me deixa menos ensimesmada. Que, inclusive, eu diria que é a sensação oposta que tenho ao passar muitas horas nas redes sociais. Como influenciadora, apontar a câmera pra si, mostrar seu dia a dia e vomitar achismos aparentemente basta. Isso sempre me incomodou. Se eu ganhei alguma credibilidade com a Blogueirinha do Fim do Mundo é porque às vezes eu lia três livros para escrever um roteiro. Nossa visão empírica é limitada e ler inegavelmente expande nosso horizonte.

Se eu ganhei alguma credibilidade com a Blogueirinha do Fim do Mundo é porque às vezes eu lia três livros para escrever um roteiro.

Em um mundo cada vez mais digital, como você vê a importância da literatura e da cultura impressa? Qual você acredita ser o futuro do livro? Ler se tornou uma boia de salvação para me manter no presente. Consigo assistir a um filme enquanto distraidamente pego o celular. Talvez eu perca uma frase ou outra, mas ainda consigo acompanhar a história. Sinto que, com livros, não. Ou estou lendo ou não estou, minha quebra de atenção é imediata.

Assim, ler se tornou um antídoto pra um mundo digital que gera uma concentração fragmentada e também romantiza um cotidiano multitarefas para otimização de tempo.

Claro que um livro não deixa de ser um livro mesmo não estando em sua versão impressa. E-books ou audiolivros são maneiras adaptadas de ainda consumir literatura nos novos tempos. Mas acredito que ler um livro físico continua sendo uma das maneiras mais efetivas de descompressão.

Você pode contar um pouco sobre a sua relação com Domenico Starnone? Qual o primeiro livro do autor que você leu?

Conheci o Domenico Starnone depois que ouvi a fofoca literária de que ele poderia ser a pessoa por trás do pseudônimo da Elena Ferrante. Como eu amo a tetralogia napolitana, fiquei curiosa e quis conhecê-lo. O primeiro que li foi Laços, na praia, em umas férias de verão — que inclusive é o momento que mais tenho prazer em ler. Engoli Laços em um dia, sinto que é meu preferido até hoje. Mas em todos os livros do Starnone, tenho a sensação de ser uma leitura aparentemente leve, mas extremamente profunda e excitante. São histórias que instigam e fogem, revelam e escondem, intimidam e atraem. É quase uma batalha de forças, de vai e vem. Starnone propõe um jogo com a escrita dele. Me sinto incrivelmente entretida e provocada ao mesmo tempo.

E, agora, mais especificamente sobre o livro do mês: Línguas. Por que você decidiu indicá-lo? Línguas carrega essa assinatura do Starnone que citei acima. Mimi, um garoto obcecado pela morte, gruda o rosto na janela pra observar sua vizinha do apartamento da frente dançando na varanda, em uma relação platônica, idealizada e etérea. Enquanto isso, passa seus dias sendo mimado pela avó, na manifestação de um afeto palpável, aterrado e material. A avó presta atenção no neto, que presta atenção na vizinha. E parafraseando uma cena do filme Lady Bird: atenção e amor são a mesma coisa. Os olhares dos

personagens passeiam entre si e é interessante acompanhar como esse garoto, que, na segunda parte do livro, já é um jovem adulto, lida com a transformação de seus amores — e de suas atenções. Também é bonito quando os personagens percebem os filtros que vestiam nos óculos da infância: um pedaço de papelão era uma espada de verdade, o dialeto napolitano soava como um perfeito italiano. Mas o grande tema do livro é a morte e como cada personagem se relaciona com ela: a vizinha flerta com a morte enquanto dança no parapeito. A avó é íntima da morte, pois perdeu muitos conhecidos pra ela. Há quem decide trabalhar no cemitério e burocratiza a morte. Mas e como lida com o fim quem passou a infância obcecado em resgatar heroicamente os mortos no além-túmulo? Lendo o livro, lembrei dessa frase melancólica que diz que só morremos definitivamente quando alguém na Terra fala nosso nome pela última vez. Pensando assim, escrever um livro sobre alguém é uma possibilidade de tornar uma pessoa imortal. Mas o protagonista Mimi também se depara com a efemeridade da linguagem. Afinal, línguas se transformam, expressões são suprimidas, palavras são incorporadas em outras, dialetos são extintos. A imortalidade de um amor é uma ilusão então? Nada dura pra sempre?

Esse livro é uma ótima companhia. É profundo, sensível e existencial. As últimas frases do livro são tão lindas que me deixaram com um nó na garganta. Espero que seja uma leitura prazerosa para todos.

MINHA ESTANTE

O primeiro livro que eu li: Flicts, de Ziraldo.

O livro que estou lendo: Poeta chileno, de Alejandro Zambra.

O livro que mudou minha vida: O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez.

O livro que eu gostaria de ter escrito: A amiga genial, de Elena Ferrante.

O último livro que me fez rir: A origem do mundo: uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado, de Liv Strömquist.

O último livro que me fez chorar: Amigos, amores e aquela coisa terrível, de Matthew Perry (biografia).

O livro que dou de presente: Pra quando você acordar e Afetos colaterais, os livros da minha mãe, Bettina Bopp.

Duas cidades na gangorra da língua

A suposta rivalidade entre norte e sul tempera a obra de um dos maiores autores contemporâneos da Itália

Línguas é também um livro sobre um lugar. E não um único lugar, e sim dois. E não meras coordenadas geográficas no mapa italiano, e sim dois espaços simbólicos que pendem entre o primitivo e a civilização, nesse exagero mesmo de extremos. Assim como nas demais obras de Domenico Starnone, o título deste mês da TAG, que, em uma livre tradução, seria algo como Vida mortal e imortal da menina de Milão, traz Nápoles como destaque em tudo que lhe é autêntico, bem como em sua melhor antítese, a cidade milanesa, ao norte do país. É que não há uma Nápoles para o menino Mimi que não passe por uma idealizada Milão, personificada na figura de uma menina que fala um italiano perfeito.

Não é segredo que norte e sul da Itália nutrem uma certa rixa temperada por séculos de história, guerras e preconceitos. Tendo Roma como ponto neutro, por assim dizer, quem vive para cima do mapa costuma chamar os sulistas de terrone, referindo-se de forma pejorativa à tradição agrícola local, com habitantes que, segundo alguns nortistas, seriam atrasados, ligados à terra, barulhentos e supersticiosos. Para o grupo oposto, a recíproca hostil, é claro, também é verdadeira, vindo daí a expressão polentone, que teria sido cunhada pelos sulistas para desaprovar o suposto costume do povo do norte de comer muita polenta, iguaria essa que, segundo os sulistas, seria inferior, típica de pessoas frias, orientadas apenas para o trabalho e sem interesse nos prazeres da vida. Mito ou verdade? Não se sabe ao certo, o que se afirma apenas é que a pretensa rivalidade entre Itália meridional e setentrional nasceu antes mesmo do processo de unificação do país, a partir de 1860, quando

o sul foi anexado ao que hoje se chama nação italiana, dando início a um processo de migração de sulistas para o norte em busca de melhores condições de trabalho.

Nas obras de Starnone, essa antítese se repete como palco central de quase todas as tramas: veem-se protagonistas absorvidos no conflito entre o ideal intelectual e a família proletária, a ascensão social vista como uma traição às origens (que geralmente retornam como fantasmas, literais ou figurados), a obsessão em fugir de um dialeto que consideram vulgar em busca de um italiano de livro, a fossa dos mortos como superstições primitivas e a erudição como imortalidade e senso civilizatório. Uma mesma cidade, uma mesma rua, e duas casas, duas famílias, dois universos: a avó de Mimi, suas fantasias e dialetos, ante a menina milanesa com seu italiano e sua avó de livro.

Se o dialeto é a língua das emoções primárias, como ódio, amor, sexo e violência, conforme já declarou Starnone, Nápoles é seguramente um cenário afetivo. E o autor não faz mistério disso. Em alta na literatura, no cinema e no streaming — vide o boom de reservas de viagens para a região depois do lançamento, este ano, de Ripley, série da Netflix —, a Nápoles que Starnone persegue tenta sempre estar alguns decibéis abaixo do sentimentalismo exagerado, em uma narrativa precisa, ao estilo de seu conterrâneo e um de seus autores preferidos, o já falecido Raffaele La Capria. A esse propósito, em entrevista recente, datada de 2 de junho de 2024, ao periódico Corriere della Sera, Starnone não nega que procurou inspiração no autor e em sua forma de descrever a cidade natal de ambos: “Sim, procurei, mas temo que, por medo de me perder, tenha esfriado demais meus verdadeiros sentimentos em relação à cidade”, disse.

Esfriar, difícil. Embora enxuto, seu texto é de uma poesia quente e envolvente, viva como a gangorra da língua, ora idealizada nas letras clássicas, ora desvairada no dia a dia do dialeto ancestral. Starnone é como seus personagens, não trai suas origens, até porque, como ele mesmo diz na entrevista, nem poderia: “Lutei para descobrir (sua relação com Nápoles), tinha empurrado para o fundo. Então me pareceu que eu tinha de ir e olhar ali mesmo”.

Universo do livro

Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

1

LÍNGUAS

conta uma história de amor que começa na infância como Vidas passadas

Um amor de infância fica encantado no tempo depois que a protagonista é obrigada a mudar de país, levando o casal a refletir sobre o impacto das decisões no passar da vida.

2

que mostra também como uma língua é um elemento de pertencimento cultural como Expatriadas

Um grupo multifacetado de mulheres expatriadas em Hong Kong unido por uma mesma tragédia e distanciado por suas classes sociais.

3

que tem uma senhora mais velha e muito simples tendo uma influência importante na vida da personagem como

Viva: a vida é uma festa

Um jovem aspirante a músico proibido de exercer sua arte embarca numa jornada à terra dos mortos para provar seu talento e desvendar um mistério de família.

cuja trama se passa em Nápoles e seus arredores como LÍNGUAS, de Domenico Starnone

Um jovem sociopata se muda de Nova York para uma idílica Itália, transformando uma oferta de trabalho em um golpe mortal. 4 5 6

cuja heroína tem também na figura da avó um elemento que a liga a uma grande aventura que se passa numa ilha como Ripley

onde o protagonista se sente encorajado por uma ancestral a uma busca sobrenatural como Moana

Incentivada pela excêntrica e sábia avó, uma jovem parte em uma missão para salvar o seu povo e, durante a jornada, conhece o poderoso semideus Maui.

Da mesma estante

Livros que poderiam estar na mesma prateleira que o livro do mês

A ILHA DE ARTURO, Elsa Morante Carambaia

384 pp.

Em Procida, ilha na região de Nápoles, o menino Arturo vive uma vida de liberdade e imaginação, sem escola, mas plena de livros e natureza selvagem. Temas como misoginia, homossexualidade, amores interditados e narcisismo permeiam uma narrativa que mistura realismo e tons de fábula, nostalgia e ilusão.

ASSOMBRAÇÕES, Domenico Starnone

Todavia

144 pp.

Daniele Mallarico é um ilustrador de sucesso que sente que sua reputação e sua habilidade artística estão desaparecendo. Quando sua filha o chama a Nápoles por alguns dias para tomar conta de Mario, seu neto de quatro anos, Mallarico é confrontado por angústias e assombrações.

A ESTRANGEIRA, Claudia Durastanti

Todavia

256 pp.

De Roma a Londres a Nova York, da infância ao futuro, esse romance é uma aventura muito pessoal que combina novas e velhas migrações. Filha de pais surdos que se opõem à sensação de isolamento com uma relação tão apaixonada quanto raivosa, a protagonista vive uma infância febril, mas capaz de deixar raízes em todos os lugares.

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ANCESTRAL, Goliarda Sapienza Âyiné

200 pp.

Versátil e curiosa, profundamente envolvida na arte, Sapienza sempre buscou, em seus gestos e em sua escrita, um contato direto com a realidade, alimentada pelo desejo da descoberta, do conhecimento feito de erros e de experiência.

Ancestral fala de um passado individual cronologicamente datado que remete à memória da infância, aos afetos, à paisagem da Sicília.

O LEOPARDO, Lampedusa

Companhia das Letras 384 pp.

Ambientado num universo intensamente melancólico e sensual e repleto de elementos de ironia e humor, O Leopardo acompanha a história de Dom Fabrizio Salina e de sua decadente família aristocrática siciliana — cujo brasão carrega inscrito o Leopardo que dá nome ao livro —, ameaçados pelas forças revolucionárias e democráticas durante os embates dessa transição.

INTÉRPRETE

DE MALES, Jhumpa Lahiri

Biblioteca Azul 200 pp.

Vencedora do Prêmio Pulitzer de melhor ficção, a coleção de contos de estreia de Jhumpa Lahiri é sobre a hibridez que permeia as relações humanas. Ganhando cada vez mais espaço nas livrarias, o tipo de literatura de Jhumpa está voltado para a vivência entre duas culturas distintas e para as relações determinadas por esse processo.

LEIA. CONHEÇA. DESCUBRA:

Italo Calvino

Italo Calvino é uma figura fundamental da literatura contemporânea, cuja importância ressoa não apenas nas letras italianas, mas também em todo o panorama literário mundial. Assim como o autor do mês, suas obras exploram temas complexos, como identidade e linguagem, sendo um convite à reflexão da existência humana.

©Johan Brun

Nome

Italo Calvino

Nascimento

15 de outubro de 1923, Santiago de las Vegas, Cuba

Morte

19 de setembro de 1985, Siena, Itália

Um dos mais importantes escritores do século 20, é tão grande que é difícil definir: em romances, contos e ensaios, inaugurou um jeito de fazer literatura que mistura muita erudição com grandes porções de imaginação.

Morou em Turim, cidade que deu lugar ao encontro de toda uma geração de escritores italianos igualmente brilhantes. Com Natalia Ginzburg, Cesare Pavese e outros autores notáveis, colaborou com a lendária editora Einaudi.

A convivência com intelectuais de esquerda veio naturalmente, e ele também foi uma voz essencial da luta antifascista e militou no Partido Comunista depois que a guerra acabou. A preocupação política norteou, principalmente, os primeiros livros.

Se seus primeiros narram a guerra e a Resistência num clima bem próximo do neorrealismo italiano, aos poucos vai se tornando dono de uma voz absolutamente única.

No final da década de 1960, mudou-se para Paris, onde passou a frequentar o grupo de escritores Oulipo. É a partir dessa influência, e também do cinema, que cria um imaginário original, com humor e inteligência como poucas vezes se viu.

Além dos romances, Calvino sempre escreveu ensaios, que estão entre os mais bonitos do século: erudição, humor, humanismo, um imenso amor pela arte e um olhar para o futuro que pode nos guiar até hoje.

Clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

PARA COMEÇAR

TODAS AS COSMICÔMICAS

Edição comemorativa com ilustrações de Marcelo Cipis, traz as deliciosas e loucas elucubrações sobre a origem do mundo e a organização do universo. Pura diversão da linguagem.

AS CIDADES INVISÍVEIS

Livro que concentra todas as experiências e conjecturas de Calvino numa surpreendente e brilhante coleção de histórias que farão parte do seu imaginário para sempre.

POR QUE LER OS CLÁSSICOS

Ensaios lindíssimos, em que o autor parece conversar muito de perto, mostrando como ninguém o poder e o encanto da literatura na vida.

PARA SE APAIXONAR DE VEZ OBRA-PRIMA

No próximo mês

Encontre as 9 PALAVRASque dão dicas do spoiler do próximo mês.

Uma saga familiar essencialmente brasileira será enviada em setembro na Curadoria. O livro que venceu o Prêmio Kindle de Literatura promete entrar para o rol de clássicos modernos e na lista de favoritos dos associados da TAG.

- miséria - ditadura - Nordeste - Brasília - Rio de Janeiro - gerações - desigualdade - segredos familiares

Brasil

Madame TAG responde

Querida Madame TAG, acontecerá na primeira semana de agosto o encontro presencial dos membros da empresa em que trabalho. Muitos de nós trabalhamos remoto. Tenho uma colega que vive no RS e foi por puro acaso/milagre que, pouco antes dos desastres ambientais devido às chuvas, ela decidiu ir visitar os pais numa região mais segura, e até hoje não teve como voltar para casa. Tomara que, neste encontro presencial promovido pela empresa (a propósito, trabalhamos com reflorestamento para combater mudanças climáticas), eu possa encontrá-la e dar um abraço. Quero muito presentear com um livro que possa trazer as palavras de conforto que nunca consegui dizer. Conto com sua sabedoria para escolher esse livro, Madame TAG!

TAG — Experiências Literárias

Tv. São José, 455

Porto Alegre, RS (51) 3095-5200 (51) 99196-8623 contato@taglivros.com.br www.taglivros.com @taglivros

Querida leitora, preciso admitir que você me arrancou uma lágrima. Um acontecimento raríssimo! É muito nobre e sensível da sua parte querer oferecer palavras de conforto à sua colega em um momento tão difícil. Eu, Madame TAG, sou gaúcha e acompanhei de perto as consequências dessa tragédia. E sabe o que fez muita diferença nesse momento? Ter a consciência de que eu, meus amigos e família não estávamos sozinhos. Espero que você consiga encontrar a sua colega e dar o sonhado abraço apertado. Além disso, presentear com um livro sempre é um gesto lindo, que pode ser uma maneira muito especial de demonstrar seu apoio e empatia. Pensando aqui com meus botões sobre sugestões que podem trazer conforto e esperança, alguns que me vêm à mente são: Cadê você, Bernadette?, Ruína y leveza e Extremamente alto & incrivelmente perto. O que esses livros têm em comum? Personagens que, em meio ao sofrimento (cada um, em cada livro, com as suas particularidades e contextos), encontram nas relações humanas um caminho vital para seguir em frente. São livros que oferecem uma sensação de calor, positividade e conforto, tornando-os perfeitos para sua colega, que vai apreciar imensamente esse abraço literário.

Publisher Rafaela Pechansky Edição e textos

Rafaela Pechansky e Tatiana Cruz

Colaboradoras Laura Viola e Sophia Maia

Designer Bruno Miguell Mesquita

Capa Elisa v. Randow

Revisores Antônio Augusto e Liziane Kugland Impressão Impressos Portão

Quer um conselho de Madame TAG? Escreva para madametag@taglivros.com.br

“Tudo uma questão de amor: quanto mais você ama uma recordação, mais forte e estranha ela se torna.”
– VLADIMIR NABOKOV

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