ELA SE CHAMA RODOLFO
DEZ 2023
olá, tagger Olá, tagger D
ezembro chega implacável, fechando mais um ano em que vivemos tantas coisas, deixamos outras para trás, nos transformamos, transformamos, ao menos um pouco, o mundo ao nosso redor. Dezembro chega fechando o ano, claro, mas cheio de promessas para o ano que vem chegando. É um pouco essa a sensação do livro do mês, Ela se chama Rodolfo. Na história, o que não falta são portas que se abrem e se fecham, às vezes emperradas, às vezes se escancaram e mostram todo um horizonte pela frente. E, se a gente quiser levar a metáfora adiante, é isso mesmo o que faz a melhor literatura: encerra ciclos e abre outros, num caminho que pode ser tortuoso ou calmo, mas certamente sempre transformador. Pois você, leitor, está convidado a fazer parte dessa viagem. Com Murilo, um sujeito triste e perdido, você vai conhecer uma cidade que é Porto Alegre, mas que são tantas. E vai descobrir aos poucos que todas as cidades são a mesma, com suas hostilidades e boas surpresas. E ainda — e talvez seja a descoberta mais importante — que o que faz o caminho são as pessoas. Que seja uma boa viagem!
DEZ 2023 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200
taglivros contato@taglivros.com.br www.taglivros.com
QUEM FAZ
RAFAELA PECHANSKY
ANA LIMA CECILIO
SOPHIA MAIA
LAURA VIOLA
Publisher
Editora
Colaboradora
Colaboradora
BRUNO MIGUELL
LIZIANE KUGLAND
ANTÔNIO AUGUSTO
Designer
Revisora
Revisor
Impressão Ipsis Capa TAG
Preciso de ajuda, TAG! Olá, eu sou a Sofia, assistente virtual da TAG. Converse comigo pelo WhatsApp para rastrear a sua caixinha, confirmar pagamentos e muito mais! +55 (51) 99196-8623
16 11 8 6 4
Por que ler o livro
Entrevista com o curador
O livro indicado
28 24 22 18
Ilustração do mês
posfácio
Entrevista com a autora
Para ir além
Os melhores de 2023
Agenda
sumário
prefácio
Experiência do mês
4 EXPERIÊNCIA DO MÊS
VAMOS LER
Ela se chama Rodolfo Criamos esta experiência para expandir a sua leitura. Entre no clima de Ela se chama Rodolfo colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code abaixo ou procurar por “taglivros” no Spotify.
jan
jul
fev
ago
mar
set
abr
out
mai
nov
jun
dez
2023
Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares! Escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.
PODCAST
O APP
PLAYLIST
EXPERIÊNCIA DO MÊS
projeto gráfico Ela se chama Rodolfo é um livro urbano, contemporâneo, de algum modo jovem e muito dinâmico — o tempo todo, os personagens se deslocam pela cidade. Apesar do trânsito, a narrativa elege seus lugares preferidos, e, ainda que muito particulares, muito ligados à geografia de Porto Alegre, eles são universais, ou no mínimo brasileiros. Por isso, para a capa, o designer Bruno Miguell propôs uma ilustração de uma cena bem brasileira que povoa as páginas do livro: uma mesa de boteco, exatamente como as que Murilo frequenta — no inesquecível bar Reunião. Alguns podem até dizer que uma mesa de plástico com um casco de cerveja em cima, na sua transitoriedade frágil, é mais representativa do Brasil do que qualquer símbolo nacional. O trocadilho visual ficou na textura de casco de tartaruga que ele imprimiu no casco de cerveja — porque seria impossível não citar Rodolfo na capa. Para completar esse pack de brasilidades, a estampa da caixa foi baseada no padrão do centro histórico, que dá um toque antigo, meio de conto de fadas contemporâneo. Agora é só sentar e pedir um copo!
mimo Para este calendário, resolvemos ter como temática algo construído, também, por vocês: através das notas atribuídas no aplicativo da TAG, selecionamos os doze projetos gráficos mais amados da nossa trajetória. Para o ano que se inicia, desejamos que o calendário seja seu aliado no dia a dia e que te inspire a viver novas histórias - por aqui, faremos de tudo para que o próximo ano seja repleto de narrativas maravilhosas e, claro, belas capas.
5
6 POR QUE LER O LIVRO
“Talvez seja este o grande trunfo do livro: abrir-se para o acaso que nos leva a conhecer pequenas histórias —sonhos, afetos, perdas e fracassos— de personagens também transitórios. É da universidade desses encontros com desconhecidos que vem a força de Ela se chama Rodolfo.” Jornal Estadão
“Só ao terminar você compreende como todas as peças deste livro se encaixam de forma brilhante.” Antônio Xerxenesky
POR QUE LER O LIVRO
Por que ler o livro Esse é um livro profundamente contemporâneo. O cenário é a cidade, com seus prédios, caminhos, desencontros, isolamentos; seus personagens são pessoas que se batem nas esquinas e se encontram e desencontram no fluxo das avenidas, e suas questões principais são a dureza da vida, a cidade cruel, a infelicidade no trabalho, a falta de dinheiro e a solidão. Mas, como acontece em todas as grandes cidades, é nesse cenário inóspito que brota, de onde menos esperamos, a simpatia, a solidariedade, uma mão estendida. E saber olhar para quem está à nossa volta talvez seja a maior riqueza que podemos levar para a vida. É um pouco isso o que o livro ensina.
7
8 ENTREVISTA COM O CURADOR
“A primeira experiência de ler esse livro é doida” entrevista com Tobias Carvalho, o curador do mês Como foi ler Ela se chama Rodolfo pela primeira vez? A primeira experiência de ler esse livro é doida. No começo a gente não sabe sobre o que o romance é. Aos poucos vamos entrando em contato com os personagens — pelos olhos do Murilo — e vamos entendendo que são os outros que nos revelam sobre o próprio Murilo. O tema da identidade vai girando, ganhando tração: primeiro no título, depois sob a forma de uma tartaruga, ou então em cartas e também nos vários diálogos que o Murilo trava. Em vários momentos durante a leitura, achamos que agora sabemos para onde a história vai, e a Julia Dantas está sempre um passo à frente. Eu gosto de livros de estrutura inteligente, linguagem precisa, história envolvente. Mas pra mim também é importante que a história me pegue no lado emocional. Que me faça sentir. Acho que Ela se chama Rodolfo cumpre todos esses requisitos. Fiquei absolutamente surtado quando terminei de ler. Desde então venho indicando pra todo mundo.
ENTREVISTA COM O CURADOR
O curador do mês, Tobias Carvalho. Crédito: Marco Antônio Filho
9
Você lê muita literatura contemporânea. Quais livros e autores têm influenciado a sua escrita? Ultimamente, tenho lido autores que buscam decodificar a maneira como a minha geração vive. Sally Rooney, Brandon Taylor, Naoise Dolan — tenho gostado desses gringos, da maneira como eles bebem dos clássicos oitocentistas, da trama do casamento: Jane Austen, Edith Wharton, Henry James. A estrutura do romance é antiga: relacionamentos, traições, personagens fortes, panoramas psicológicos, o indivíduo num embate interno com a sociedade. A diferença é que hoje em dia os dilemas são um pouco diferentes — o casamento já não é tão central; o tédio já não existe; a sexualidade e o gênero fluem em várias direções. Mas o amor não mudou muito. E isso é bem legal de se documentar. Você lançou seu primeiro romance — e terceiro livro — neste ano. Em Quarto aberto há uma discussão muito rica sobre relacionamentos no geral — amorosos, fraternais, platônicos — e como os jovens estão se relacionando no século 21. O livro da Julia também discute esses temas, principalmente o da amizade, e como esses laços se desenvolvem e são aprofundados. Você enxerga um paralelo entre as duas obras? Com certeza, sim. Não quero cair no clichê de dizer que o amor é a resposta pra tudo, mas, expandindo um pouco o conceito de amor, as relações humanas são
10 ENTREVISTA COM O CURADOR
o que nos fazem suportar este mundo cada vez mais louco. Em Quarto aberto, o personagem principal se envolve com um casal, e isso atrapalha o relacionamento aberto que ele tem com o próprio namorado; só que esse namorado é a única família que ele tem, de modo que ele vai, ao longo do livro, sentindo uma necessidade crescente de conexões sólidas com os outros, com a família, consigo mesmo. Nesse sentido, a jornada é bem parecida com a jornada do Murilo, o personagem de Ela se chama Rodolfo. Murilo percebe que a tão sonhada identidade só é possível através dos outros. Na minha cabeça, isso também é uma história de amor. Por que é t ão complicado se relacionar nos dias de hoje? E por que relacionamentos abertos ainda são um tabu? Ah. Muita gente, muita opção, poucas obrigações. A nossa experiência é tão fragmentada que vai se tornando difícil ler um romance inteiro, ver um filme comprido, engatar num relacionamento longo. Mas por isso acho que faz sentido que haja novos tipos de relações. O tema do relacionamento aberto desperta bastante paixão nas pessoas. O importante é se dar conta que esse modo de se relacionar veio para corrigir algumas imperfeições da monogamia, mas não todas. Na verdade, os relacionamentos abertos têm as suas próprias imperfeições. O mais legal, talvez, seja que esse modelo obriga as pessoas a discutir a relação, firmar acordos, conhecer melhor o parceiro e a si mesmas, sem apenas aceitar os tratos implícitos da sociedade, que muitas vezes acabam nos machucando até mesmo sem que a gente saiba.
MINHA ESTANTE O livro que estou lendo: As pequenas chances, Natalia Timerman O livro que mudou a minha vida: A educação pela pedra, João Cabral de Melo Neto O livro que eu gostaria de ter escrito: Norwegian Wood, Haruki Murakami O último livro que me fez rir: O cheiro do ralo, Lourenço Mutarelli O último livro que me fez chorar: Dias de se fazer silêncio, Camila Maccari O livro que dou de presente: As perguntas, Antônio Xerxenesky
O LIVRO INDICADO 11
Ela se chama Rodolfo: Julia Dantas e as buscas da literatura brasileira contemporânea GUILHERME ALMEIDA
N
o calor escaldante do verão de Porto Alegre, Murilo parece ter chegado ao fundo do poço: está triste, sem dinheiro e prestes a ficar sem ter onde morar. Abandonado pela namorada, Gabbriela, e com dívidas que não lhe deixaram outra saída a não ser alugar de uma desconhecida um apartamento cuja porta não abre. Depois de muito esforço, Murilo vence a porta emperrada, entra na sala da nova casa e logo tem uma surpresa. Ele não está sozinho: vai passar a dividir o teto com Rodolfo, uma pequena tartaruga. Escritor frustrado que trabalha como porteiro noturno, Murilo consegue o email da dona do apartamento, Francesca, com quem passa a se corresponder e criar um vínculo. Seguindo as orientações de Francesca, ele percorre Porto Alegre em busca de um novo lar para Rodolfo. Das ruas barulhentas do centro à calmaria da zona rural de uma cidade multifacetada, Murilo tenta, em vão, encontrar alguém que aceite ficar com a pequena tartaruga que só anda em linha reta e de quem, gradualmente, torna-se cada vez mais próximo. A cada negativa que recebe dos possíveis novos tutores de Rodolfo, ele escreve um novo email para Francesca, cuja escrita rebuscada, de quem pertence a outra época, e histórias inusitadas sobre personagens anônimas da América do Sul provocam nele uma gradual mudança interna. Aos poucos, Murilo dá novos rumos à sua busca dupla: de um novo lar para Rodolfo e da tão sonhada reconciliação com Gabbriela, que se mudou para uma comunidade espiritual em Goiás.
12 O LIVRO INDICADO
Essas buscas são atravessadas pelas mudanças na vida do porteiro noturno, especialmente referentes ao papel de novas relações além daquelas com Francesca e Rodolfo. Se antes o namoro com Gabbriela era o centro de sua rotina, a reaproximação com a irmã, Lídia, e a inesperada moradia compartilhada com Camilo, ambos também enfrentando conflitos conjugais, fazem com que Murilo repense prioridades e se reencontre consigo mesmo. Espécie de road book dentro da mesma cidade, mas apresentando-a em camadas e enquanto personagem importante na obra, Ela se chama Rodolfo compõe com Ruína y leveza, de 2015, o conjunto de romances de Julia Dantas, ambos voltados para os deslocamentos internos e externos feitos por suas personagens principais. Se Ela se chama Rodolfo apresenta as andanças de Murilo e seu improvável animal de estimação pelos extremos de Porto Alegre, Ruína y leveza mostra a viagem da publicitária Sara pelo Peru após uma decepção amorosa. Apresentando as descobertas de Sara ao percorrer um país muito além da imagem turística de Machu Picchu, o primeiro romance de Julia Dantas dialoga com as vivências latinas da autora, que estudou crítica de arte na Argentina e viveu um ano no Peru em dois períodos, no último deles também passando temporadas na Colômbia e no Equador. Ela se chama Rodolfo por sua vez, reflete a relação da autora com Porto Alegre, sua cidade natal, desde que retornou a ela e onde fez mestrado e doutorado em escrita criativa na PUCRS. Dessa forma, a obra de Julia Dantas dá centralidade aos percursos de suas protagonistas: é uma literatura de buscas, que combina o pessoal e o político em um diálogo constante entre as buscas individuais e os encontros e problemas coletivos. Se decepções amorosas e desentendimentos entre amigos e familiares ocupam grande espaço nos dois romances, ambos também situam suas personagens em um plano maior, debatendo questões de gênero, desigualdade social e violência.
O LIVRO INDICADO 13
“A obra de Julia Dantas dá centralidade aos percursos de suas protagonistas: é uma literatura de buscas, que combina o pessoal e o político em um diálogo constante entre as buscas individuais e os encontros e problemas coletivos.”
14 O LIVRO INDICADO
Os livros de Julia Dantas dialogam com algumas das principais tendências da literatura brasileira contemporânea, especialmente a de ficção longa. Em um cenário de aumento de pluralidade de autorias, em termos de gênero, raça e geografia, os debates em torno das noções de centro e periferia ganham maior destaque. Dessa forma, a hegemonia da literatura urbana escrita e protagonizada por homens de classe média e alta dos grandes centros brasileiros, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo, vem perdendo força. Agora, as buscas de mulheres e homens de todas as partes do país são escritas por essas mulheres e esses homens e transformadas em livros que atingem um público muito maior do que há poucos anos. As premiações literárias e as vendas dos livros de ficção demonstram isso: gradualmente, é cada vez maior o número de livros sucesso de público e crítica escritos por mulheres e homens de diferentes raças, gêneros e regiões. As margens, portanto, são levadas ao centro, dando assim maior protagonismo para as diferenças, as desigualdades e as violências de um país enorme, complexo e cujo passado e presente muitas vezes parecem se misturar. Promovendo o diálogo entre esses brasis do presente e do passado, a literatura brasileira contemporânea reflete as tensões e crises atuais do momento político e econômico do país, dialogando cada vez mais com os anseios de leitoras e leitores de compreender essas problemáticas em histórias que combinam as esferas pública e privada. O pessoal e o político se complementam: em tramas como a de Murilo, Francesca e Rodolfo, o indivíduo está sempre menos sozinho do que imagina, de diferentes maneiras.
16 ILUSTRAÇÃO DO MÊS
Ilustração do mês
"Quando estão de volta ao Partenon, escolhem um boteco com mesas na calçada para resolver com cerveja a frustração de não ter passado Rodolfo adiante. Sentam-se no bar chamado Reunião porque Camilo gostou da piada. Murilo põe Rodolfo sobre a mesa e observa-o, sem surpresa, caminhar em frente. Mal acabam de pedir a primeira quando Lídia aparece na esquina."
!
POSFÁCIO Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.
18 ENTREVISTA COM A AUTORA
“Os animais vivem apenas no presente, e acho que essa é a sabedoria que a companhia deles nos traz, a sabedoria de estar onde se está e viver o que se vive.” entrevista com Julia Dantas, a autora do mês Ok, a primeira pergunta não tem como ser diferente: COMO surgiu a ideia do Rodolfo? Em qual momento você pensou: “um dos personagens dessa história vai ser uma tartaruga”? Eu queria ter uma história mais mágica pra contar, mas a verdade é esta: eu sabia que Murilo precisava encontrar um ser vivo, pois só assim o achado despertaria nele a disposição ao cuidado e a abertura para todos os trânsitos que esse achado engendra. A partir daí, comecei a pensar em animais portáteis (não seria fácil pegar um ônibus carregando um coelho ou uma capivara, por exemplo) e, dentre as opções que me ocorreram, a tartaruga era a mais carregada de símbolos e potência. Elas vivem num casco, uma analogia evidente com Murilo; é bastante difícil determinar o sexo de uma tartaruga, o que também me interessava; elas podem viver mais que nós, o que me parece se aproximar do final do livro; elas são lentas, mas, como ensina a fábula com a lebre, devagar se vai ao longe; e, por fim, elas aparentam placidez, mas eu convido o leitor a buscar na internet as palavras tartaruga-ataca-pomba-porto-alegre (imagens fortes para quem por ventura tiver uma pomba de estimação). Sei que essa resposta pode ser algo decepcionante — poxa, era só um bicho portátil —, mas faço aqui uma breve defesa da portabilidade. Walter Benjamin era fascinado por tudo que era pequeno, enxergava nas miniaturas uma condensação de sentido. Anne Boyer
ENTREVISTA COM A AUTORA 19
Julia Dantas, autora de Ela se chama Rodolfo. Crédito: Davi Boaventura
escreveu que "as palavras são úteis para subverter o mundo, pois são econômicas, ordinárias e portáteis”. Existe importância em pensar no que queremos e conseguimos carregar conosco. O Rodolfo tem uma personalidade toda própria que vai se revelando muito bem através de sutilezas ao longo da narrativa. Essa construção exigiu algum tipo de pesquisa específica? Como é a tua relação com animais no geral? Como o vídeo que eu mencionei logo antes talvez indique, eu vivo numa cidade onde os lagos são povoados por tartarugas. Na infância, encontrava grande diversão em parar ao lado dos laguinhos e procurar as tartarugas nadando, observar as tartarugas tomando sol, aprender que as tartarugas daqui são, na verdade, cágados (um engano que também se reflete em inúmeros momentos do livro). Então elas habitam um lugar bastante bonito da minha memória, esse lugar de observar outra criatura e esquecer de si (e qual o papel de uma escritora se não esse?). Isso dito, nunca tive uma tartaruga, mas cresci com cachorros e hoje tenho uma vira-lata que me obriga a sair de casa, caminhar, estar no mundo, assim como Rodolfo faz com Murilo. Os animais vivem apenas no presente (dizem, eu tenho dúvidas, mas vou abraçar a ideia momentaneamente), e acho que essa é a sabedoria que a companhia deles nos traz, a sabedoria de estar onde se está e viver o que se vive.
20 ENTREVISTA COM A AUTORA
Ruína y leveza é um livro que podemos ter na vida. A gente nunca discute muito a identidade latino- pode ter certeza se nossos parentes americana; Ela se chama Rodolfo se relacionam conosco por gosto ou fala do brasileiro que tent a por obrigação, e os laços românticos sobreviver ao Brasil e às suas tendem a ser menos duradouros ou contradições. Qual você acha que carregados de normas e expectativas é o ponto de ligação entre essas sociais. A amizade é o espaço onde duas histórias? podemos de verdade ser livres, e Bom, o ponto de ligação principal é olha que eu digo isso com a sorte de que, embora a gente esqueça disso amar e ser amada pela minha famícom frequência, o Brasil é parte da lia e pelo meu companheiro, mas o América Latina, e nós somos muito vínculo que minhas amigas e amigos mais parecidos com nossos irmãos e me oferecem é de uma lealdade e vizinhos do que com os colonizadores generosidade sem paralelos. Então a de além-mar. É um continente que vive inspiração vem daí, das amizades de na ambiguidade de sermos herdeiros infância, das amizades temporárias tanto de opressores quanto de oprimi- das viagens, das amizades de agora dos, de exploradores e sobreviventes. e das que ainda virão. E embora Não é uma herança fácil de se carregar, possa haver diferenças no modo e nós, brasileiras e brasileiros, pode- como a amizade se manifesta entre ríamos aprender muito com nossos diferentes gêneros, idades, culturas, vizinhos sobre práticas de manuten- me parece que há sempre esse nó ção da memória, pois estamos num fundamental que é escolher manterpaís onde o passado teima em que- -se perto de alguém. rer voltar. “Todos caminhamos sobre ossos”, escreveu a Mariana Enríquez, Escrever um personagens trans é enquanto Juan Rulfo descreveu os algo que exige coragem e delicadeza mortos que se reviram quando pegam (você tem ambos, na minha opinião). umidade “e despertam”. A gente tenta Como foi esse processo? esquecer disso no Brasil, mas são os Primeiro, obrigada, que linda junção, mesmos ossos, os mesmos mortos coragem com delicadeza. Sempre li despertos. Em Ela se chama Rodolfo, muito sobre as experiências de vida minha esperança é que a personagem de pessoas trans, pois vejo nelas algo Francesca consiga fazer essas costuras, que me parece justamente a essência lembrar Murilo de que somos parte da coragem, algo que diz “eu não vou deste solo. Nosso norte é o Sul, pintou me submeter a ser quem eu não sou, ao revés o Joaquín Torres García. eu não vou dar ouvidos a nenhum imperativo que não venha de denA amizade — e principalmente a tro”. Acho que poucas coisas podem amizade masculina — é um tema ser mais inspiradoras do que essa pouco discutido na literatura. rebelião a favor de si, a favor da sua Onde você buscou inspiração para verdade. Então, mesmo não tendo a escrever essa história? experiência na pele, eu estudei, eu li Eu acredito que os laços de amizade os livros e vi os filmes e entrevistei são os mais transformadores que e fui aos bares de pessoas lgbtqia+,
21
eu conversei e me aproximei dessa vivência com toda a admiração e respeito que eu tenho por quem busca viver de modo genuíno. Além disso, contei com a leitura de uma querida amiga trans que me ajudou a averiguar se eu não estava cometendo nenhum deslize nem tropeço. Foi um processo bonito, ao qual eu dediquei bastante tempo, e espero que o livro honre não apenas as pessoas trans, mas todas as pessoas que dão as costas às imposições reducionistas do conservadorismo. Que tenhamos todes um casco forte e uma alma alegre. Você est á trabalhando em novos projetos no momento? Sim! Em breve vou lançar um livro ainda sem título, mas que trata, essencial ou centralmente, das dúvidas de uma mulher a respeito de ser mãe. É o primeiro livro que vai ter um quê autobiográfico, embora ele também inclua alucinações, cenas distópicas, sonhos e pesadelos latino-americanos, o que, nesta época e neste continente, não chega a fugir do realismo. Mas em resumo é isso. Em palavras cruas, é a história de uma mulher que, ao não saber o que quer, flerta com o desequilíbrio. Em palavras mais bonitas, é uma investigação a respeito da natureza dos desejos.
A ESTANTE DA AUTORA O primeiro livro que eu li: Impossível lembrar (cresci numa casa povoada por livros), mas lembro de ler e reler Ou isto ou aquilo, da Cecília Meireles, e Flicts, do Ziraldo. O livro que estou lendo: The Subversive Scribe, da Suzanne Jill Levine, sobre como a tradução é também um ofício de criatividade e escrita. O livro que mudou a minha vida: Foram muitos em diferentes momentos, mas lembro de ler Pergunte ao pó, do John Fante, e me assombrar com o fato de que um romance podia ser daquele jeito. Desde então, acredito que os romances podem ser de qualquer jeito, o que mudou minha vida. O livro que eu gostaria de ter escrito: O jogo da amarelinha, do Julio Cortázar, porque brilhante e engenhoso mas também lúdico. O último livro que me fez rir: Meus documentos, do Alejandro Zambra, que releio volta e meia porque uso em aulas e me faz rir todas as vezes. O último livro que me fez chorar: Terra fresca da sua tumba, da Giovanna Rivero, porque nesses contos as personagens caminham contra e ao lado e dentro da morte. O livro que dou de presente: Qualquer um de poemas da Ana Cristina Marques, porque ela vê o mundo de um jeito que eu gostaria de ver.
22
A voz de Rodolfo
C
onvidamos Júlia Dantas para entrar na cabeça de Rodolfo, a tartaruga, acessando seus pensamentos e descrevendo um pouco o seu entorno repleto de humanos. Este foi o resultado (inédito e exclusivo para os associados):
PARA IR ALÉM 23
continuam.esparramados.pelo.espaço,eles.sofrem. muito.com.o.calor,a.ausência.de.cascos.os.deixa. excessivamente.permeáveis— alternam-se.em.jogar.quadrados.de.água.congelada. aqui.dentro—assim.me.confundem.mas.sei.que.dão.o. seu.melhor,é.preciso.ter.paciência.com.eles —estão.abatidos.porque.não.aguentam.a.passagem.do. tempo,exasperam-se.com.o.dia.que.acaba.mas.também. com.os.dias.que.não.chegam,detêm-se.quando.deveriam.andar.e.caminham.quando.deveriam.permanecer —é.porque.são.grandes— eles.têm.muito.recheio.e.muitos.objetos,assim.não. conseguem.sair.do.lugar—o.excesso.não.deixa.neles.o. vazio,.e.sem.vazio.não.podem.ser.suas.próprias. casas,eu.vou.lhes.mostrar,
24 OS MELHORES DE 2023
Os melhores de 2023 Você sabia que agora a TAG, do jeitinho que você conhece, se juntou com a Dois Pontos, a melhor livraria online do Brasil? É uma união de sinergia, que juntou um monte de gente que ama os livros para fortalecer nossa jornada de incentivar a leitura, dar dicas de livros e fazer você encontrar o livro que procura e aquele que nem sabia que estava procurando. Em dezembro, é a hora perfeita para fazer um balanço, e convidamos o pessoal da TAG e da Dois Pontos para dizer quais foram os livros que leram em 2023 de que mais gostaram.
OS MELHORES DE 2023 25
Karen Miyashiro, gerente de marketing É um livro estranho, cheio de histórias estranhas, que às vezes parece ficção científica, porque conta sobre pequenos dispositivos eletrônicos que as pessoas “adotam” e que fazem ligação aleatoriamente com outras pessoas ao redor do mundo. Mas, se a gente pensar bem, é sobre nossa relação com a tecnologia, em tudo que ela pode ser incrível e doentia, nos ajudar muito ou ser terrível para a nossa vida. Devorei em dois dias.
Pedro Tejera, analista de dados MIGRAÇÕES
s e
ar
á
?
Charlotte McConaghy
Ao longo da história, acompanhamos a protagonista Franny junto à última migração das aves árticas, em um mundo (não tão) distópico em que as catástrofes ambientais estão em estado avançado. Nessa jornada, percebemos que ela também está em busca de si mesma, de entender seu caminho até ali e as relações que desenvolveu e que foram importantes em sua formação. Achei lindo como a autora conseguiu mostrar que os eventos da vida pessoal de Franny conseguiram ser tão importantes e impactantes quanto eventos de ordem maior (como a destruição da natureza pelo ser humano).
Brisa Espinheira, gerente comercial Fiquei deslumbrada com esse livro lindo, passado no sertão da Bahia, que conta a história de um matriarcado que enfrenta diversas lutas, mas que sempre encontra na solidariedade (principalmente das mulheres) a salvação e a humanidade. Me lembrou muito o Torto arado, do Itamar Vieira Junior, e acho que todo mundo que gostou desse certamente vai se apaixonar por essa história.
26 OS MELHORES DE 2023
Sophia Maia, assistente de conteúdo Eu tinha esse livro na minha estante há, no mínimo, uns três anos. Já tinha tentado ler antes, mas não me pegou. No início do ano, estava dando bastante atenção aos meus livros atrasados e resolvi pegar esse novamente, e foi a melhor coisa que fiz! É uma história muito envolvente de investigação com os protagonistas-detetives Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander. A história não deixa um nó solto, é incrível!
Ana Lima Cecilio, gerente de comunicação Esse livro é um arrebatamento. Primeiro pela história, passada num matadouro no Brasil profundo, em que quatro amigos sobrevivem em meio a violências, mas descobrindo formas de continuar de pé. Mas sobretudo pela linguagem, que é viva, poderosa e acompanha cada parte do livro como se encarnasse o que é contado. Literatura viva, que tem cheiro, carne e sangue. E um final arrebatador.
Marcos Becker, CFO Arthur C. Clarke
ENCONTRO COM RAMA
ENCONTRO COM RAMA Arthur C. Clarke
Estava escolhendo um livro para ler nas minhas férias e queria um mais leve, pra entreter e ajudar a desconectar do trabalho. Encontro com Rama prende desde o início, quando narra que um objeto (inicialmente não se sabe o que é) entrou no nosso sistema solar e pode se chocar contra a Terra. O desenrolar da história mostra a criatividade brilhante e o conhecimento científico de o Arthur C. Clarke. Ao mesmo tempo, a atmosfera do livro me fez sentir como se estivesse vivendo aquela missão. Esse é um dos maiores clássicos de ficção científica, e ler um clássico é sempre bom!
Porque nunca é tarde para ouvir o que elas têm a dizer Essa é uma coleção de livros escritos por mulheres notáveis que buscavam ser visíveis em um mundo que fechava os olhos para elas. Prepare-se para conhecer o cotidiano feminino ao longo de grandes acontecimentos históricos, reconstruindo a história pelos olhos dessas personagens tão impressionantes.
Gara n a suata coleç ão!
Direcione a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou acesse doispontos.com.br
28 AGENDA
vem aí Guia de perguntas sobre Ela se chama Rodolfo
1. Quais você acha que são os principais temas abordados na obra de dezembro?
janeiro
encontros TAG:
2. Ela se chama Rodolfo é um romance contemporâneo que tem como cenário o cotidiano. Quais você diria que são as potencialidades desse tipo de narrativa?
4. Que reflexões podemos fazer sobre relacionamentos contempo râneos a partir da leitura? 5. Qual desfecho você gostaria de imaginar para as personagens de Ela se chama Rodolfo?
fevereiro
3. Ainda que Murilo e Rodolfo sejam os protagonistas, somos apresentados a vários personagens bem marcantes. Quais chamaram mais sua atenção e por quê?
Clássico nos Estados Unidos e inédito no Brasil, o livro traz a história emocionante de uma jovem heroína que luta para entender o que significa o amadurecimento, dentro de um sistema e de uma sociedade que faz de tudo para que ela permaneça invisível. Um livro terno, ainda que duro, e recheado de descobertas inesquecíveis. Para quem gosta de: livros emocionantes, dramas transformadores, livros narrados por crianças, narrativas delicadas Romance de formação que não deixa nada a dever para grandes clássicos, como As ilusões perdidas e O vermelho e o negro, mas aqui deslocado para a China. Um jovem vem do campo para conquistar o direito a vida digna em uma Beijing das décadas de 1920 e 30, numa alucinante viagem de crescimento, descoberta, temor e maravilhamento. Certamente, será uma aventura inesquecível. Para quem gosta de: romances de formação, países distantes, romances históricos, histórias de vida.
“Mais uma vez me deparo com a famosa definição de amor de Rilke: duas solidões que se protegem, se complementam, se limitam e se inclinam para a outra.” – SIGRID NUNEZ