"Este lado de Providence" TAG Curadoria - Novembro/2024

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TAG — Experiências Literárias

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Publisher Rafaela Pechansky

Edição e textos Débora Sander, Rafaela Pechansky e Tatiana Cruz

Colaboradoras Laura Viola e Sophia Maia

Designers Bruno Miguell Mesquita e Lu Kohem Capa Gabriela Heberle

Revisores Antônio Augusto e Liziane Kugland Impressão Impressos Portão

Olá, tagger

Quais sentimentos batem por aí quando você pensa em família? As respostas podem variar um tanto, pois poucas palavras reúnem sentidos tão múltiplos e paradoxais quanto essa. Família compreende amor, intimidade, partilha, pertencimento? Talvez algum ressentimento, vulnerabilidade, inevitáveis traumas. Não raro, opressão, ou até violência mesmo. Acontece também de ser tudo isso junto. Bem ou mal, está lá a raiz da nossa experiência no mundo.

Se a gente começa esta conversa com tantas divagações, caro leitor, é porque o livro deste mês dá uma boa chacoalhada nas concepções e ideais que se pode ter de família. Este lado de Providence, da americana Rachel M. Harper, é a história de uma mulher que sai de Porto Rico, tentando escapar de um passado traumático, e se muda para os Estados Unidos em busca de um futuro mais tranquilo e feliz com os filhos. Arcelia Perez leva a vida possível em Providence com Cristo, Luz e a pequena Trini, mas seus próprios vícios e as circunstâncias sociais, raciais e econômicas parecem intransponíveis no lado menos privilegiado da cidade.

Você vai sentir raiva e compaixão, vai encontrar beleza em lugares improváveis, vai querer abraçar alguns personagens e dizer algumas verdades na cara de outros. Mas toda essa intensidade vai valer a pena. No fim, a gente constata que as coisas não são tão simples, e talvez sejam essas as histórias que mais ajudam a enfrentar a vida.

Boa leitura!

Experiência do mês

NOVEMBRO 2024

Seu livro além do livro: para ouvir, guardar, expandir, crescer.

Mimo

Mimar pelo paladar é um clássico atemporal, e mimar pela poesia é a linguagem do amor que nos conecta a vocês, taggers. Por isso, escolhemos um doce e um verso que têm nosso coração para compor o mimo deste mês! No postal que acompanha seu alfajor, a gente conta por que a Odara faz parte da história da TAG e celebra esse pedaço tão especial de Porto Alegre, a Casa de Cultura Mario Quintana, lar do querido poeta gaúcho e um dos símbolos de resiliência do nosso estado, que segue caminhando para se reconstruir.

Projeto gráfico

Pássaros têm a vantagem de poder transitar livremente entre os diferentes lados de uma cidade. Cruzam fronteiras, sobrevoam muros, constroem pacientemente seus ninhos, voam em círculos ou para além do alcance da nossa visão, cantam no próprio idioma, indecifrável e universal. No começo da narrativa de Este lado de Providence, uma das personagens diz, enigmática, que “Os presentes estão com os pássaros”. Por isso foram eles os escolhidos pela designer Gabriela Heberle para anunciar os regalos que este livro carrega. Vamos abri-los!

Para ajudar a embalar a sua

sumário

Por que ler este livro

Dor de amor? Dúvidas na vida? Nosso consultório literosentimental responde com dicas de livros 04 06 12 18 20 22 24 27 28

Bons motivos para você abrir as primeiras páginas e não parar mais

A autora

Um retrato caprichado e uma entrevista com quem está por trás da história

A curadora

Conheça Julia Dantas, que escolheu seu livro do mês

Cenário

De onde veio, do que fala, o que é o livro que você vai ler

Universo do livro

Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

Da mesma estante

Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês

Leia. Conheça. Descubra.

Identidade e linguagem na obra de Toni Morrison

Vem por aí

Para você ir preparando seu coração

Madame TAG responde

“Um livro tão poderoso que é como se uma camada completamente nova da experiência americana tivesse sido exposta ao nosso olhar... não há uma linha desperdiçada, e cada palavra soa verdadeira.”

- Alice Walker

“A grande conquista de Harper é a de regente de coro: a organização do timbre e do ritmo, mantendo as vozes honestas e claras, e, de alguma forma, direcionadas ao amor.”

- Justin Torres

de tal poder que é como se uma completamente nova da experiência americana tivesse sido exposta à nossa nenhuma linha é desperdiçada e palavra soa verdadeira.”

— Alice Walker

fugiu de Porto Rico para escapar de um casamento fracassado e de um histórico de abusos, encontrar seu pedaço do “sonho amerido lado errado de Providence. Apesar dos pequenos, Arcelia segue um caminho que a leva uma agonizante abstinência de drogas. Mas desafio surge quando ela é libertada e deve permanecer limpa e reunir a família que sua ausência. Esta poderosa história de esredenção revela o lado obscuro de uma cidade mesmo as realidades mais sombrias não os laços entre mãe e filhos.

Este lado de Providence

Este lado de Providence

Por que ler este livro

Mãe amorosa e dependente química, Arcelia Perez é um ser humano falho e ambivalente, e seus filhos precisam amadurecer rápido demais. Logo no início do livro, sua prisão desencadeia um ciclo doloroso de separações familiares, que o leitor acompanha através de cinco vozes narrativas brilhantemente construídas. Entre adaptações e rearranjos, a força das conexões humanas persiste como brotos selvagens que nascem em rachaduras de concreto, fazendo surgirem pontes para que cada personagem encontre algum tipo de cura através da palavra.

“Beleza e verdade são necessárias na literatura, mas é um equilíbrio delicado.”

Em entrevista exclusiva para a TAG, Rachel M. Harper fala sobre a construção das vozes narrativas em seu livro, os desafios e alegrias da escrita, a questão da imigração nos Estados Unidos e a importância de clubes de leitura como este aqui.

Quando li em uma entrevista de Rachel M. Harper que ela cresceu em uma casa embalada por leituras de poesia e pelo som do jazz, Este lado de Providence ganhou ainda mais sentido. Na ocasião, a escritora afirmou que, para ela, ler e recitar poesia é uma prática espiritual. Não à toa, ela presenteou os personagens de seu livro com valiosos e variados encontros com a literatura e a escrita, tão necessárias quanto mais a vida nos parece dura.

Nascida em Boston, filha do aclamado poeta americano Michael S. Harper, a autora cresceu em Providence, capital do estado de Rhode Island, cercada pela profundidade do pensamento e das referências literárias do pai, um entusiasta da diversidade cultural. Lá, viveu em vários bairros e conviveu com diferentes grupos étnicos e raciais, inclusive a comunidade porto-riquenha, acompanhando e vivenciando os recortes socioculturais da cidade e seus personagens da vida real.

©Sam Zalutsky

Foi de todo esse repertório da autora que mais tarde surgiram Arcelia, Cristo, Luz e outras figuras complexas e cativantes que protagonizam a história que convidamos você a ler neste mês. Ao perseguir as camadas de beleza e verdade que se revelavam em cada um deles, conta Harper, o enredo ganhou vida própria.

Formada pela Brown University e pela University of Southern California, a escritora, roteirista e professora vive hoje em Los Angeles. Além de Este lado de Providence, publicou Brass Ankle Blues e The Other Mother. Seus romances venceram ou foram finalistas de diversos prêmios literários nos Estados Unidos. Seus contos foram indicados ao prêmio Pushcart, que elege anualmente as melhores publicações de pequenas editoras, e foram publicados em diversas antologias e revistas.

Chegar perto da beleza e da verdade, suspeitamos, tem muito a ver com reconhecer que o belo e o verdadeiro não são categorias estáticas. Cultivar um caldo diverso de belezas e verdades sempre em transformação, nutrir coletivamente a curiosidade pelo que é múltiplo, ousar imaginar verdades diferentes quando a realidade não nos basta. Veja abaixo a entrevista exclusiva da autora para a TAG!

Este lado de Providence aborda temas desconfortáveis, mas muito necessários. Foi uma experiência de escrita desconfortável para você como autora? Como você equilibra o peso da realidade com um pouco de beleza na literatura? Sim, foi difícil em alguns momentos, mas parecia muito necessário. Eu queria contar a história de uma maneira honesta e autêntica, e isso significava revelar verdades incômodas. Claro, me senti desconfortável algumas vezes, mas nunca era mais do que o que meus personagens estavam enfrentando. Arcelia, Cristo e Luz lidaram com muito mais desconforto do que eu jamais lidei, então tentei lembrar disso sempre que tinha vontade de recuar. Beleza e verdade são ambas necessárias na literatura, mas é um equilíbrio delicado. Eu tento colocar o suficiente de cada uma para me manter honesta — verdade o bastante para que meus leitores possam confiar em mim e beleza o bastante para sempre deixá-los com esperança.

Como você se relacionou com cada uma das vozes narrativas em seu livro? Houve algum ponto de vista especialmente difícil de construir? Eu me senti muito confortável com todos os narradores, como se os conhecesse na vida real, então cada voz era familiar para mim. Gostava de me mover de uma para outra porque sentia falta delas quando estava escrevendo outra voz e sempre ficava feliz em retornar. Dito isso, levou tempo para acertar as vozes e marcar as distinções entre os diferentes membros da família. Foi difícil descobrir a voz de Lucho, não porque eu não a conhecesse, mas porque eu simplesmente não tinha certeza do quanto de si mesma ela queria revelar ao leitor. Eu sabia que queria que ela falasse, de certa forma como uma confissão, mas também senti que ela guardaria algo para si, então tive que ser muito cuidadosa para calibrar corretamente sua voz, seu tom. Foi um desafio, mas acabou sendo um dos meus capítulos favoritos do livro.

A situação dos imigrantes latinos nos Estados Unidos é um tema central em seu livro e um debate social muito presente na sociedade americana. Como você avalia o progresso dessas discussões nos últimos anos?

É uma situação muito complicada, e não acho que tenhamos feito o suficiente para transformar o debate em uma conversa. Acho importante, como cidadãos e como seres humanos, estarmos em diálogo uns com os outros, conversar e compartilhar histórias, tentar conhecer uns aos outros e encontrar um terreno comum apesar das nossas diferenças. Os Estados Unidos são uma terra de imigrantes, construída por imigrantes, mas alguns são mais bem-vindos do que outros. Por quê? Quem nós acolhemos e quem afastamos? Essas são perguntas que me interessam, para nos fazer conversar e compartilhar perspectivas, mas eu não tenho todas as respostas. Sou escritora, não sou política. Como Tchekhov disse, “o papel do artista é fazer perguntas, não respondê-las”.

Estou curiosa para saber: você sempre teve aquele final poderoso em mente ou a ideia surgiu enquanto você escrevia a história?

Eu sabia o final antes de escrever o romance. Geralmente faço muitos esboços antes de começar o processo de escrita, e é importante para mim saber o destino antes de iniciar a jornada. Eu deixo espaço ao longo do caminho para surpresas, mas a história geral, incluindo os principais pontos da trama e a resolução final, é algo que defino muito cedo, para não me apegar ou ficar sentimental e depois recuar do final correto quando chego lá. O melhor final nem sempre é o que eu gostaria pessoalmente, mas é o que melhor resolve a história e deixa o leitor com a mensagem que quero transmitir. Às vezes, também é bastante difícil de aceitar.

Qual é a maior lição e o maior desafio que a escrita trouxe a você?

A maior lição é sobre perdão. Escrever me permitiu passar muito tempo com meus personagens, essas pessoas inventadas, mas eles me ensinaram muitas coisas sobre pessoas reais e lutas reais. Todos cometemos erros e todos precisamos aprender a perdoar — uns aos outros e a nós mesmos. Meus personagens me ensinaram isso. O desafio é saber fazer isso na minha vida real. Para todos nós: como pedir perdão e como perdoar aqueles que erraram com a gente.

Como você vê a importância dos clubes do livro hoje em dia e qual é o assunto mais importante deste livro que você gostaria que seus leitores discutissem? Eu amo clubes do livro e vejo sua importância como mais vital do que nunca.

Neste mundo moderno, cheio de dispositivos e mídias sociais ininterruptas, muitos de nós passamos horas e horas sozinhos. Mas, com um clube do livro, as pessoas são incentivadas a se conectar e compartilhar seus sentimentos pessoalmente, em uma conversa sobre experiências compartilhadas, tudo através da história contada no livro que todos leram. É muito poderoso ter esse tipo de experiência comunitária.

Há muitos temas importantes neste romance, mas um no centro é a pergunta que me fiz antes de escrevê-lo: o que faz uma família? É sangue ou são experiências comuns (como trauma ou pobreza), ou é amor, ou esperança? Como uma família permanece unida se estiver fisicamente separada? Eles podem permanecer conectados, e o que acontece se/quando essa conexão é perdida? O que se perde quando uma família se desfaz?

MINHA ESTANTE

O primeiro livro que eu li: As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain

O livro que estou lendo: Praisesong for the Kitchen Ghosts, de Crystal Wilkinson

O livro que mudou minha vida: The Outsiders, de S. E. Hinton

O livro que eu gostaria de ter escrito: O quarto de Giovanni, de James Baldwin

O último livro que me fez rir: Wow, No Thank You, de Samantha Irby

O último livro que me fez chorar: Men We Reaped, de Jesmyn Ward

Livro que eu dou de presente para as pessoas: Adé: A Love Story, de Rebecca Walker

Livro que não consegui terminar: O pintassilgo, de Donna Tartt

“A literatura é capaz de nos mostrar que, onde pensamos já ter visto tudo, sempre há mais camadas por desvendar.”

A curadora deste mês, Julia Dantas, fala sobre o poder das narrativas para iluminar o invisível e lembrar sempre de aprofundarmos nosso olhar e nossa percepção — seja sobre a cidade, as pessoas com seus vícios, a experiência sensível da vida.

Este lado de Providence é um livro que recusa heroísmos e vilanias, desafiando nosso anseio em simpatizar demais ou de menos com algum personagem. Como foi a sua experiência de leitura e como fluiu a sua relação com cada um deles?

Acho que um dos maiores presentes que a literatura dá é nos colocar nessa posição de ambiguidade e contradição. Quando lemos, costumamos ser mais generosos com os personagens do que somos capazes de ser na vida real. Estamos mais abertos às complexidades, a entender os percursos de vida dos personagens e enxergar o que os levou a tomar decisões possivelmente condenáveis. E, quando entendemos o percurso de alguém, podemos não concordar com suas escolhas, mas julgamos menos. Então me parece que o desafio não é simpatizar com personagens que erram — isso a gente faz quase no automático

A curadora do mês

Nome:

Julia Dantas

Nascimento:

Porto Alegre, 1º de junho de 1985

Profissão:

Escritora e tradutora

Duas ou três coisas sobre ela:

1 PERSONAGENS INQUIETOS

Seja viajando pela

América Latina ou desbravando os muitos cantos de Porto Alegre, os dois primeiros livros de Julia têm protagonistas que elaboram seus movimentos pessoais em recorrentes deslocamentos geográficos. Ruína y leveza (2015) foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

Ela se chama Rodolfo (2022) venceu os prêmios da Associação Gaúcha de Escritores e da Academia RioGrandense de Letras.

2 NOVO LIVRO

Ela acaba de lançar pela editora Dublinense seu terceiro romance, A mulher de dois esqueletos. A trama é centrada em um dilema criativo da protagonista: entre momentos de alucinação e aterramento, sonhos íntimos e coletivos, uma escritora de quase 40 anos dialoga consigo mesma sobre a possibilidade de conciliar a criação de um filho e a criação artística.

3 ELABORAÇÃO COLETIVA DO TRAUMA

Depois das marcas que as enchentes de maio deixaram, em maior ou menor grau, em todo o Rio Grande do Sul, Julia foi uma das vozes da literatura a ajudar a organizar os sentimentos que essa experiência suscitou. Em relatos marcados por coragem, força, e lucidez, ela expôs o que sentiu e vivenciou durante e após ter sua casa invadida pela água.

©Davi
Boaventura

quando lê um livro como este —, o verdadeiro desafio é segurar essa disposição quando saímos da leitura e voltamos ao mundo real. Parafraseando Guimarães Rosa, o que a vida pede da gente é coragem, e acho que podemos pensar que é a coragem de manter com os outros a mesma abertura que temos com os personagens de ficção.

Trazendo aqui também uma pergunta que fizemos à própria Rachel M. Harper: qual você considera que é o tema mais importante que este livro suscita para discussão e reflexão? À primeira vista, o mais evidente, por estar mais na superfície, é o vício — seja nas drogas ou presente em outras compulsões. Ao lado disso, é inseparável a vulnerabilidade social, pois sabemos que uma pessoa rica com o mesmo vício de Arcelia teria muito mais acesso a tratamentos e apoio. Mas, para mim, o ponto mais importante se relaciona à tua primeira pergunta: o fato de que todos os seres humanos, sem exceção, têm uma vida interior muito mais rica e muito mais profunda do que pode parecer ao primeiro olhar. As pessoas doentes que vivem em alguma “cracolândia”; os criminosos, que prejudicam outras pessoas; as crianças, que não raro têm sua inteligência subestimada: anjos ou vilões, independentemente do que sentimos por eles, todos os seres humanos têm uma vida interior. E eu não quero soar ingênua, é evidente que há pessoas más e pessoas que precisam ser contidas por mecanismos sociais, eu só quero dizer que mesmo elas têm uma vida interior. E acho que só a partir do momento que reconhecermos isso, seremos capazes de criar melhores mecanismos sociais, mecanismos que sejam capazes de honrar o desejo de uma das personagens: “não acho que sobreviver seja o bastante. Tem que haver algo melhor”.

Entre os vários pontos de vista que a autora desenvolve, dois são de crianças — que tiveram que amadurecer cedo demais, é verdade. Talvez esse seja um dos tipos de voz narrativa mais desafiadores de equilibrar. Como você acha que essa perspectiva contribui com a experiência de leitura?

Eu adoro narradores infantis, acho que existe uma riqueza no olhar das crianças que nós vamos perdendo ao longo da vida, pois elas ainda não têm os mesmos preconceitos que a gente absorve conforme envelhece. Além disso, as vozes que ela cria são muito convincentes e verossímeis, tanto nos momentos de maturidade quanto nos momentos de raiva, silêncio ou medo, e nos permitem relembrar nossas crenças de quando crianças. Para a experiência de leitura, essas vozes ampliam o mosaico de visões que a autora constrói para dar conta das inúmeras facetas desta história.

Poderíamos traçar um paralelo entre o seu segundo livro, Ela se chama Rodolfo, e o romance de Rachel M. Harper: são histórias que percorrem grandes cidades, lançando um olhar sobre a solidão dos personagens e os contrastes de experiências num mesmo território urbano. Como você acredita que a literatura pode movimentar a relação com o lugar onde a gente vive, seja lendo uma narrativa ambientada na nossa própria cidade ou num lugar onde nunca estivemos? A literatura é capaz de nos mostrar o invisível, e isso vale para as emoções ou os conflitos, mas também para aquilo que está sob nossos olhos e não enxergamos. Quantas pessoas ignoramos todos os dias no caminho para o trabalho? Quantos momentos extraordinários ocorrem ao nosso redor sem que a gente perceba? Quantos detalhes passam despercebidos porque estamos com pressa ou porque supomos já conhecer a cidade onde moramos? Me parece que a literatura é capaz de movimentar essa crença equivocada e nos mostrar que, onde pensamos já ter visto tudo, sempre há mais camadas por desvendar.

Um dos aspectos que me marcou em Este lado de Providence foi a forma como a autora fez cada personagem encontrar uma forma própria de se relacionar com a literatura e a escrita. Às vezes parece que se relacionar com a arte é um luxo restrito a poucos, apesar de ser uma via tão rica de expressividade, alívio de angústias, busca por sentido e prazer. Você acha que cultivar o hábito da leitura e da escrita pode ser pra todo mundo?

Com certeza. A ideia de que a literatura não é pra qualquer um é uma visão elitista de quem ou teme a literatura ou quer mantê-la restrita para preservar algum status imaginário. Tanto a leitura quanto a escrita deveriam ser ferramentas de fácil acesso a todos, pois ambas são capazes de aprofundar nossa percepção do mundo e de nós mesmos. Claro que, para isso, precisamos de políticas públicas que fomentem a formação de leitores, pois não é um hábito que se cria naturalmente: nos tornamos leitores por exemplo ou incentivo. É um prazer que exige esforço, então não basta abrir bibliotecas, é necessário promover eventos, mediações, clubes e encontros entre leitores.

Para além da profundidade afetiva e social da trama, esta é uma história sobre identidade e diversidade cultural. Tem outros livros que você indicaria que também transitam numa intersecção de culturas?

Começo pela indicação que vem dentro do próprio livro: uma das personagens lê A casa na rua Mango, da Sandra Cisneros, um livro brilhante não apenas porque traz histórias peculiares e envolventes de uma zona habitada por imigrantes, mas pelo seu projeto estilístico que transita entre o romance e o conto. Outra excelente obra, que eu tive a honra de traduzir, é Cinzas na boca, da Brenda Navarro, um romance que acompanha uma família mexicana nos EUA. Para seguir com latino-americanos, o livro de contos Terra fresca da sua tumba, da Giovanna Rivero, é uma reunião de histórias sobre identidade, migração e fronteiras.

MINHA ESTANTE

O livro que estou lendo: O que é meu, do José Henrique Bortoluci, que estou lendo devagar para durar mais.

O livro que mudou minha vida:

São muitos, mas hoje vou citar outra personagem criança muito marcante: a Mafalda, dos quadrinhos do Quino. Lia quando eu era criança e leio com a mesma admiração hoje.

O livro que eu gostaria de ter escrito: Também são muitos, mas penso em Primavera silenciosa, da Rachel Carson, um livro de não ficção que mudou o modo como a população geral enxergava os agrotóxicos. Gostaria de ter escrito algo tão revolucionário e relevante.

O último livro que me fez rir: Flores para Algernon, do Daniel Keyes, que está longe de ser uma comédia, mas nos faz rir do nosso próprio ridículo.

O último livro que me fez chorar: Infinita, da Camila Maccari, um romance sobre presença, corpo, violência e desejo.

O livro que dou de presente:

Já falei aqui da Ana Martins Marques, e outro presente frequente são os livros do Eduardo Galeano, estudioso (e criador) da nossa identidade latino-americana.

Luz e sombra nas grandes cidades

No romance de Rachel M. Harper, os personagens têm suas vidas marcadas pelos contrastes entre os dois lados de Providence, separados por um rio e por um abismo material, social e simbólico

Para quem vive na parte mais privilegiada de uma cidade, pode ser fácil se acostumar a desviar o olhar da corriqueira segregação social urbana. O livro deste mês nos leva à capital do estado de Rhode Island, nos Estados Unidos, e, ao contar as histórias de lá, nos lembra de desacomodar os contrastes presentes no lugar onde nos encontramos.

Fundada em 1636, Providence está entre as cidades mais antigas do país e foi uma das primeiras a desenvolver sua indústria. Porém, na metade do século 20, o setor manufatureiro entrou em declínio, impactando a economia local. Nesse período, com o aumento de vagas e a baixa no valor dos aluguéis, a cidade tornou-se um polo de imigração. Com o aumento da desigualdade social, coube aos imigrantes e à população mais pobre ocupar o outro lado do rio.

É essa segregação que dá título ao livro deste mês: o lado leste, onde se concentra a população de maior renda, é a paisagem mais conhecida pelos visitantes e turistas, e também a mais distante da realidade material e simbólica dos personagens da narrativa, ambientada na parte oeste da cidade.

EUA e Porto Rico: uma história de dominação

Considerado até hoje como território norte-americano não incorporado, Porto Rico é um território insular no Caribe que nunca conquistou totalmente o status de uma nação independente. Depois de quase 400 anos de colonização espanhola, as ilhas foram ocupadas pelos Estados Unidos em 1898. Desde 1917, todos os cidadãos porto-riquenhos passaram a ter cidadania americana, um movimento indissociável da necessidade de reforço do exército quando o país entrou na Primeira Guerra Mundial.

Nesse complexo emaranhado histórico, as instabilidades socioeconômicas americanas, como a Grande Depressão dos anos 1930, tiveram impactos significativos sobre a realidade porto-riquenha. Em 1952, o arquipélago teve sua Constituição aprovada, mas até hoje os poderes do governo local são limitados e as principais tomadas de decisão acontecem em Washington.

A prolongada dependência política e econômica gerou um fluxo migratório intenso, contínuo e bastante complexo: em 2021, a população de 3,2 milhões de habitantes em Porto Rico já era muito menor do que os 5,8 milhões de porto-riquenhos e seus descendentes vivendo nos Estados Unidos, segundo dados do Pew Research Center. Trata-se da segunda maior população hispânica vivendo no país, atrás apenas dos mexicanos.

Apesar da cidadania americana garantida no papel, os boricuas nunca foram de fato integrados culturalmente ao país. Assim como acontece com imigrantes latinos de outras nacionalidades, a comunidade porto-riquenha enfrenta violentas barreiras de discriminação racial e linguística. No poema “Nuyorican”, do poeta Tato Laviera, ele expõe o paradoxo diaspórico de pertencer a duas nações e sentir-se apartado de ambas. Leia um trecho abaixo, disponibilizado no artigo “Porto-riquenhos em Nova York: discursos diaspóricos e mapas adjacentes”, de Sonia Torres.

yo soy tu hijo de una migración, pecado forzado, me mandaste nacer nativo en otras tierras, por qué, porque éramos pobres, ¿verdad? porque tu querías vaciarte de tu gente pobre, ahora regreso, con un corazón boricua, y tú, me desprecias, me miras mal, me atacas a mi hablar, mientras comes mcdonalds en discotecas americanas, y no pude bailar la salsa en san juan, la que yo bailo en mis barrios llenos de tus costumbres así que, si tú no me quieres, pues yo tengo un puerto rico sabrosísimo en que buscar refugio en nueva york, y en muchos outros callejones que honran tu presencia, preservando todos tus valores, así que, por favor, no me hagas sufrir, ¿sabes?

(Laviera, 1985)

Universo do livro

Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

1

ESTE LADO DE PROVIDENCE

explora o tema da dependência química a partir de várias perspectivas, como o filme

RÉQUIEM PARA UM SONHO

3

que tem uma professora idealista e resiliente, como ESCRITORES DA

LIBERDADE

2

que se desenrola em torno de dilemas enfrentados por famílias disfuncionais, como o aclamado

PRECIOSA

4

mostrando o potencial transformador da educação, como o livro AMERICANAH, de Chimamanda Ngozi Adichie

Este lado de Providence

5

que toca em vários tabus da sua época, envolvendo questões de raça e sexualidade, como TERRA ESTRANHA, de James Baldwin

em que uma mãe luta para prover uma vida digna para seus filhos, como ESTE LADO DE PROVIDENCE, de Rachel M. Harper

6

que leva o público a refletir sobre a solidão diante de um sistema que muitas vezes falha com a sua população, como a série MAID

Rachel M. Harper
Este lado de Providence
Rachel M. Harper

Da mesma estante

Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês, para quem quiser continuar no assunto.

TRAMAS URBANAS

Uma seleção de livros onde a cidade tem um papel central, ambientados longe das paisagens de cartão-postal

LUUANDA,

José Luandino

Vieira

Companhia das

Letras, 144 pp.

Em três contos, o escritor luso-angolano retrata o cotidiano dos habitantes de bairros pobres de Luanda durante o período colonial. Com uma linguagem rica e expressiva, marcada pela tradição oral, o autor expõe os laços, conflitos e sonhos dos angolanos num contexto de opressão.

A AMIGA GENIAL, Elena Ferrante

Biblioteca Azul, 336 pp.

Quase uma personagem na tetralogia da escritora italiana, a Nápoles de Lenu e Lila se desvela a partir do bairro periférico onde elas vivem. Na trajetória dessa amizade de muitas camadas, está sempre presente a cidade, suas dimensões e limites materiais e imaginados.

OS SUPRIDORES, José Falero

Todavia, 304 pp.

No limite da intensa e mal paga rotina de trabalho em um supermercado, a dupla de amigos Pedro e Marques começa a vender maconha para finalmente sair da pobreza. Na crua e envolvente narrativa de Falero, revela-se uma Porto Alegre em muitos sentidos distante dos recortes da classe média.

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MÃES E FILHOS POSSÍVEIS

Na crueza da vida real, retratos corajosos e perturbadores de vínculos fundamentais em toda a sua complexidade

UMA DUAS, Eliane Brum

Arquipélago, 192 pp.

Em seu romance de estreia, a jornalista Eliane Brum explora a difícil relação entre as personagens, mãe e filha. De forma visceral e sem eufemismos, ela retrata os laços de ódio e afeto que unem e separam essas mulheres.

AÇÚCAR

QUEIMADO, Avni Doshi Dublinense, 272 pp.

Quando sua mãe começa a sofrer de Alzheimer, Antara precisa transpor seus ressentimentos para oferecer a ela um cuidado que nunca recebeu. A convivência forçada e a hostilidade entre as duas leva a protagonista a um reencontro com as cicatrizes do passado.

POR FAVOR, CUIDE DA MAMÃE

Shin Kyung-Sook

Intrínseca, 240 pp.

A história de uma família em busca da matriarca desaparecida. Ao percorrer as ruas de Seul, cada membro revela memórias e segredos, em uma jornada emocional que apresenta a identidade de uma mãe que, silenciosamente, sustentou todos eles.

LEIA. CONHEÇA.

DESCUBRA: Toni Morrison

Autora de uma obra incontornável para pensar a história afro-americana e a experiência negra nos Estados Unidos, a ganhadora do Nobel de Literatura é referência fundamental em narrativas contemporâneas sobre raça e identidade, como o livro deste mês. Seu romance de estreia, O olho mais azul , é citado na obra de Rachel M. Harper.

©Timothy Greenfield-Sanders

Nome

Nascimento

18 de fevereiro de 1931

Lorain, OH, EUA

Morte

5 de agosto de 2019

Nova York, NY, EUA

Escritora, editora, professora, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, do Pulitzer e de tantos outros reconhecimentos. São feitos impressionantes, mas o grande arrebatamento, quando falamos de Toni Morrison, é o encontro direto com a força de sua obra — corajosa, original, profunda, inteligente e de imensa importância social e literária.

Nascida em 1931, filha de um soldador e uma dona de casa, foi a segunda entre quatro irmãos. No começo dos anos 50, formou-se em Letras na Universidade Howard e cursou seu mestrado na Universidade Cornell, com uma dissertação sobre Virginia Woolf e William Faulkner. Na década seguinte, atuou exclusivamente como professora universitária e casou-se com o arquiteto jamaicano Harold Morrison, com quem teve dois filhos.

Após a separação, em meados dos anos 60, mudou-se para Nova York, onde trabalhou durante quase 20 anos como editora na Random House. Teve um papel fundamental na publicação e disseminação de escritores negros, como Angela Davis e Toni Cade Bambara. Nessa época, tornou-se amiga de James Baldwin, parceria que perdurou até a morte dele, em 1987.

Em 1970, publicou o magnífico romance de estreia O olho mais azul. Nos anos que se seguiram, lançou Sula (1973), A canção de Solomon (1977) e Tar baby (1981). Em 1988, ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção por Amada (1987), seu livro mais celebrado.

Em 1993, tornou-se a primeira mulher negra a ganhar o Nobel de Literatura. Em um discurso inesquecível, ela demarcou a potência coletiva daquela conquista, um prêmio que contemplou, junto com ela, milhões de pessoas invisibilizadas pela História.

Toni Morrison faleceu em 5 de agosto de 2019, aos 88 anos, em Nova York. Em romances, contos, peças de teatro e livros infantis, explorou de forma única e inesquecível temas como a identidade afro-americana, a escravidão, o racismo, o trauma, a memória e a maternidade.

“Se há um livro que você realmente quer ler, mas ainda não foi escrito, então você deve escrevê-lo.”

O OLHO MAIS AZUL

No romance de estreia da autora, uma menina negra sonha em ter olhos azuis, símbolo que parece ser a promessa de beleza e aceitação. Ambientada na década de 1940, a obra explora o racismo, a opressão e a autoestima da população negra em uma sociedade profundamente segregada.

AMADA

Sethe, uma ex-escravizada, é assombrada pelo fantasma de sua filha morta. Baseada em uma história real, essa é uma narrativa brutal, poética e poderosa sobre a insistência da memória e a ferida aberta da escravidão recém-abolida nos EUA de 1873.

JAZZ

Em uma narrativa não linear, que flui no ritmo anunciado pelo título, a escritora nos leva ao Harlem da década de 1920, em Nova York. O assassinato de uma jovem pelo amante dá início a uma retrospectiva de fatos narrados por um mosaico de vozes.

PARA SE APAIXONAR DE VEZ
OBRA-PRIMA

Vem

No próximo mês

Encontre as 8 PALAVRASque dão dicas do spoiler do próximo mês.

Vencedora do Prêmio Literário José Saramago, uma epopeia familiar brasileira calcada na realidade e atravessada pela fantasia, marcada por tragédia e toques de humor.

Madame TAG responde

Sempre gostei de ler, mas não tinha tempo nem concentração. Há 5 anos, estabeleci a meta de ler um livro por mês. Ao final de um ano, já tinha ultrapassado essa meta. O prazer de ler voltou e, com a assinatura da TAG nos dois clubes, só aumentou. Hoje, não consigo ir dormir sem ler algumas páginas. As histórias ficam em minha mente e, nos mais diversos assuntos, tenho sempre uma lembrança de algum livro ou citação. Porém tenho uma dificuldade: a de memorizar títulos e autores. Pela sua experiência, tem alguma sugestão para me dar? Fico embaraçada quando menciono algum livro e não consigo dizer o título ou o autor. Como vou recomendar a leitura se não dou referências reais para a pesquisa?

Cara esquecida,

Sugiro que você guarde seu embaraço para situações mais graves, afinal, o maior desafio você já superou ao reservar um pedaço inegociável do seu dia para a leitura. Não lembrar do título ou do nome do autor não faz de você uma leitora menos atenta. O que importa de verdade no encontro com um livro é aquilo que ele nos fez sentir, as montanhas que moveu dentro da gente. Além disso, aprender a rir das nossas faltas é fundamental para conviver melhor com elas, que não costumam ter o bom senso de desaparecer da noite para o dia (falo por experiência própria).

Mas precisamos ser práticos: ninguém poderá seguir suas dicas se você não souber dizer mais do que “é aquele livro da capa vermelha”. Então, que tal começar uma caderneta de favoritos? Escolha um modelo compacto e leve-o com você para onde for. Imagine que bela marca registrada, chegar sempre ao encontro dos seus com o caderninho debaixo do braço! E quem sabe? Com o tempo, talvez você nem precise mais dela.

Quer um conselho de Madame TAG?

Escreva para madametag@taglivros.com.br

“Foram os livros que me ensinaram que as coisas que mais me atormentavam eram as mesmas que me conectavam com todas as pessoas que estavam ou que alguma vez tinham estado vivas.”

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