"Meu pai e suas apostas" TAG Curadoria - Janeiro/2024

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JAN 2024 Meu pai e suas apostas



Ao leitor

“O

livro é a melhor invenção do homem.” A citação de Carolina Maria de Jesus, em Quarto de despejo, abre uma conversa muito rica para explicar por que estamos aqui (aqui, num clube de livros, puxando esta conversa com você). O que nos faz gostar tanto de livros e acreditar neles como instrumento de crescimento da gente e transformação do mundo é o fato de ser pelos livros que temos a possibilidade de viver outras vidas, de sentir outras dores, de compreender outras alegrias — mas, principalmente, de entender profundamente outros modos de vida.

O livro deste mês, que inexplicavelmente ficou tanto tempo inédito no Brasil, foi fundamental para a formação de uma identidade negra norteamericana pulsante, que lida com as injustiças, mas afirma sua riqueza e sua força. É preciso olhar para as injustiças como elas são, mas resgatar o que há de humano e vivo em todas as suas possibilidades. E a novidade deste livro, publicado em 1970 e que se passa em 1930, é olhar para essas vidas pensando para além das estatísticas, porque a literatura, Louise Meriwether nos ensina, é sempre sobre pessoas.


JAN 2024

Experiência do mês Mimo

Um ano que começa é como um livro que se abre, e se é natural que a gente fique ansioso e animado para botar os novos planos em prática, também é normal que dê aquela sensação de não saber por onde começar. Foi nisso que pensamos ao construir o planner deste ano, recheado de começos de livros irresistíveis — que, claro, são também um convite — e dicas preciosas de leitura para você mergulhar de vez no universo literário.

Projeto gráfico

Todo projeto gráfico deste livro foi construído em torno de uma fotografia de um autor desconhecido. Tirada no Harlem, em Nova York, na década de 1930, é o retrato perfeito de um casarão ocupado como moradia coletiva por famílias de pessoas negras, provavelmente vindas do Sul dos Estados Unidos para fugir do racismo que restou depois da Guerra da Secessão – como é a maioria das personagens do livro.

PODCAST

APP

PLAYLIST

Para quem sabe que o livro sempre rende boas conversas

Visite o app para saber mais sobre o livro e participar da comunidade

Para ajudar a embalar a sua leitura

TAG — Experiências Literárias Tv. São José, 455 – Porto Alegre, RS (51) 3095-5200 (51) 99196-8623 contato@taglivros.com.br www.taglivros.com @taglivros

Publisher Rafaela Pechansky Editora Ana Lima Cecilio Colaboradoras Laura Viola e Sophia Maia Designer Bruno Miguell Mesquita Capa Fotografia de Gordon Parks Revisores Antônio Augusto e Liziane Kugland Impressão Ipsis


sumário

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Por que ler este livro Bons motivos para você abrir as primeiras páginas e não parar mais

A autora Um retrato caprichado da cabeça por trás da história

Entrevista com a curadora Um pouco mais sobre a escolha da curadora

Cenário De onde veio, do que fala, o que é o livro que você vai ler

Universo do livro Pistas para você se achar, se perder, conhecer e imaginar

Da mesma estante Livros que poderiam estar por perto, por um motivo ou por outro

LCD James Baldwin Conheça um dos escritores mais importantes do século 20, que foi padrinho do livro do mês

Vem por aí Para você ir preparando seu coração

Consultório literosentimental Dor de amor? Dúvida de para onde ir? Madame TAG responde com dicas de comportamento e livros


4 Por que ler este livro

“Somos dignos, ouço Meriwether dizer, e toda a verdade de nossas vidas, nossos sonhos e nossas lutas são dignos de um livro. Somos dignos de proteção, cuidado, amor e ternura. Todos os dias o mundo mente sobre nós. Então, todos os dias, devemos dizer a verdade.” Deesha Philyaw, The Paris Review

“A maior conquista do romance está no forte senso de vida negra que ele transmite: a vitalidade e a força estão por trás do desespero. Celebra os valores positivos da experiência negra: a ternura e o amor que muitas vezes estão subjacentes à superfície abrasiva dos relacionamentos (...); o humor que há muito é uma parte importante do kit de sobrevivência negro e o heroísmo das pessoas comuns.” Paule Marshall, The New York Times


Por que ler este livro 5

Por que ler este livro A partir de um cenário muito particular — o Harlem dos anos 1930, sofrendo os impactos gigantescos da Grande Depressão — e do ponto de vista de uma menina de 12 anos, Louise Meriwether constrói uma história absurdamente universal. Contando seu cotidiano enfrentando a miséria em que ela e a família vivem, e que se agrava a cada mês, com os esforços da mãe para manter a família funcionando e do pai para não perder jamais a dignidade e o orgulho de sua história, este é mais do que um romance: é um monumento à humanidade, à solidariedade e à união das pessoas que só têm umas às outras para sobreviverem.


6 A autora

Louise Meriwether e o outro lado do American way of life Escrevendo sobre a vida no Harlem, ela foi responsável pela construção da identidade do negro americano.

Louise Meriwether morreu aos 100 anos, em outubro de 2023, enquanto a TAG preparava esta edição. Essa vida centenária foi repleta de conquistas e significados, e deixa um legado de memória, luta contra as injustiças e afirmação de uma humanidade pulsante e poderosa. Meu pai e suas apostas é um livro que bebe da sua própria experiência. Como Francie, Louise cresceu no Harlem durante a Grande Depressão, causada pela Crise de 1929 nos EUA, e viu o empobrecimento cada vez mais radical da sua família, que lutou como podia contra o racismo e uma sociedade que oprimia alimentando esperanças impossíveis de ser alcançadas. Como Francie, seu pai cuidava de apostas ilegais, foi zelador e tocava piano em festas informais; sua mãe trabalhou como empregada doméstica e seus irmãos viveram num tênue equilíbrio entre a delinquência e os estudos. Como Francie, Louise acreditou que poderia sair daquela roda viva cruel e buscar algo mais para sua vida. Mas Louise, ao contrário de sua protagonista, conseguiu. Se no romance a relação de Francie com a leitura aparece discretamente, ela foi fundamental na formação de Louise. Ela lia folhetins e jornais, frequentava muito as bibliotecas e devorava romances populares — talvez venha dessa leitura ligeira sua imensa capacidade de escrever fluentemente, de manter a atenção do leitor em sua história. Depois de terminar o ensino médio em Manhattan, ela se mudou para Washington para trabalhar como escriturária da Marinha. De volta a Nova York, matriculou-se na Universidade de Nova York e lá recebeu o diploma de bacharel em inglês em 1949.


A autora 7


8 A autora

Um ano depois, ela se casou com Angelo Meriwether, um professor (de quem se divorciaria alguns anos depois), mudou-se para St. Paul, Minnesota, e depois para Los Angeles, em 1957. Louise não teve filhos. No início da década de 1960, Louise começou a trabalhar como repórter no Los Angeles Sentinel, um jornal pensado e editado por pessoas negras. Foi trabalhando lá que ela entrevistou James Baldwin, Malcolm X e Muhammad Ali. Depois de fazer mestrado na Universidade da Califórnia, em 1965, deu aulas durante um período numa escola da Louisiana, uma das muitas no sul dos EUA criada especialmente para estudantes negros, e retornou a Los Angeles em agosto de 1965.

Depois de publicar Meu pai e suas apostas, escreveu livros infantis sobre importantes personalidades negras norte-americanas: Robert Smalls, líder de uma revolta de escravizados em 1862; o médico pioneiro Daniel Hale Williams; e Rosa Parks, uma das mulheres fundamentais na luta pelos direitos civis. “Acho importante informar os jovens sobre as contribuições feitas por outros negros americanos. Se você pensa que nunca fizemos nada de valor, pode facilmente acreditar que somos inferiores.” Em 2000, Louise publicou outro romance adulto, Shadow Dancing, uma história de amor entre uma jornalista e um diretor de teatro no Harlem. Também foi professora de redação criativa na Sarah Lawrence College e na Universidade de Houston.

Sempre militando pelos direitos civis e na luta antirracista, juntou-se ao Watts Writers Workshop, um coletivo fundado Louise Meriwether, ao lado de outras por Budd Schulberg, um brilhante rotei- autoras fundamentais, como Maya rista de grandes sucessos em Hollywood Angelou e a ganhadora do prêmio que ajudou a construir um coletivo de Nobel Toni Morrison, foi mais que roteiristas negros para formular um uma escritora excepcional, que soube cinema negro que não fosse um pastiche, traduzir sua experiência pessoal mas tivesse lugar de fala. num relato essencial para que todos nós que a lemos hoje consigamos Foi durante essa oficina com os rotei- sentir profundamente a realidade ristas que Louise escreveu Meu pai e que ela conta, levando a sério, com suas apostas, num mergulho na sua força e ternura, a perspectiva das infância profunda, resgate da história meninas negras que cresciam, se dos EUA durante a Grande Depressão formavam e viviam a despeito de e contribuindo com a formação da his- uma sociedade que sempre fechou tória do negro nos EUA. os olhos para elas.


A autora 9

Contracapa da edição em inglês de Meu pai e suas apostas


10 Entrevista com a curadora

A família negra como estratégia de resistência Como Meu pai e suas apostas permanece atual pelas violências sempre infringidas às existências negras

Publicado em 1970, o livro já completou 50 anos. Ele é de uma atualidade surpreendente, mas talvez retrate alguma realidade que não existe mais. O que você acha que se mantém e o que é diferente nos anos 1960/70 e hoje? Ele aborda a vulnerabilidade que perpassa a vida de uma garota. Ela está sempre perto de ter sua vida desencaminhada, circundada por poucos afetos, pela violência do seu bairro e pela ameaça da destruição da família, que é tudo que possui. A forma como ela coloca seu projeto estético em diálogo com essas questões sociais é suficiente para que ela continue sendo lida. Uma questão que considero essencial na obra são os esforços do mundo branco para destruir famílias negras. Esse processo começa na escravidão negra, quando, entre tantos abusos, era suprimida a união das famílias de africanos e seus descendentes, as mulheres precisavam abdicar de seus próprios filhos, e aos homens se mantinha o lugar de reprodutor e não de pai. Isso se mantém na atualidade com os salários mais baixos para as pessoas negras de mesma escolaridade que as brancas, as más condições de vida e de serviços de educação e transporte nos bairros mais pobres e a violência cotidiana, seja do racismo ou da criminalidade com que é preciso se acostumar. A pauperização das famílias negras é uma estratégia perfeita, pois destrói o passado e o futuro de diversas gerações e mantém a segurança do privilégio e da supremacia branca em todos os campos.


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©Gustavo Schossler


12 Entrevista com a curadora

A Louise Meriwether, ainda que sobrevivência. Eles perceberam, por até agora inédita no Brasil, foi exemplo, como as engrenagens do fundamental para uma série de racismo fazem com que a literatura discussões que pautaram o movi- negra seja percebida como panflemento negro nos EUA. Qual foi o tária, enquanto a literatura branca é seu primeiro contato com a autora? toda construída em ideários da branEm quais outras vozes você ouve quitude sem que seja marcada dessa mais a influência dela? forma. Como criar um projeto estético Conheci Meriwether por meio de James que dialogue com essa tradição? Como Baldwin, que é um autor que venero. elaborar uma tradição negra em que a Depois que a li, fui pesquisar sobre sua qualidade literária e o apuro estético vida e me identifiquei muito com sua contribuam para o orgulho negro? Eles jornada de jornalista e escritora. Assim fizeram as perguntas importantes e como Baldwin e Toni Morrison, sua bolaram respostas, em consenso e ficção é um tipo de literatura que gosta por meio do dissenso também. Foram de se construir em alegorias que nos corajosos e lúcidos com relação ao que entregam grandes projetos estéticos. as pessoas brancas desejam das pesNão vejo paralelo hoje com o que esses soas negras e às limitações das muito autores fizeram, pois a maioria dos bem e muito mal-intencionadas. No autores hoje está mais preocupada mundo do livro, o negro é o outro. E, em analisar o impacto psicológico quando entramos no mercado editorial, do racismo nos sujeitos individuais, é como se operássemos uma gentrifisem a ambição que pautava os autores cação ao contrário, por isso gosto de já clássicos e que foi motor para as ter o máximo de informações sobre o melhores obras que já li. Mas é evi- mercado editorial e da arte, pois esse dente que a influência dela pode ser é o único caminho para minha obra notada em alguns livros contempo- e atuação não serem esvaziadas por râneos, quando mergulham nas rela- ilusões e falsas teorias que o mercado e ções familiares e na vida das mulheres as agências literárias vendem como lei. negras, ou no jornalismo atuante de Quando eu falo em sucesso, não estou mulheres negras que trabalham pela me referindo meramente ao sucesso comercial, que muitos autores afrodefesa dos direitos humanos. -americanos não tiveram, mas à consO movimento pelos direitos civis trução de um projeto estético sólido nos EUA está ligado a uma produção voltado à comunidade negra e não aos cultural fundamental, muito rica e desmandos de um mercado editorial que chega até nós com muita força. que insiste em fetichizar e limitar o Como você acha que se dá essa rela- pensamento e as vidas negras. As obras relevantes permanecem e provocam ção entre cultura e política? Não existe uma ponta sem a outra. E impacto, tendo ou não feito sucesso o sucesso dos autores afro-america- comercial ou tido o apoio de determinanos, desde o Harlem Renaissance até dos grupos dirigentes. A literatura não nossos dias, foi perceber que a luta é para agradar e acomodar opressões, coletiva é o único caminho para a nossa pelo menos a de qualidade nunca é.


Entrevista com a curadora 13

A curadora do mês Fernanda Bastos Nascimento: Porto Alegre, 1988 Profissão: Jornalista, tradutora, editora

© Gustavo Schossler

O que faz hoje: Uma das curadoras da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, Fernanda é autora de livros de poemas e pesquisadora de Comunicação. Uma curiosidade: Fernanda nasceu em 1988, centenário da abolição da escravatura no Brasil.

Duas ou três coisas sobre ela: 1 FLIP

2 POESIA

3 EDITORA

Desde 2022, Fernanda é uma das curadoras da Flip, a maior festa literária do Brasil. O modelo de curadoria coletiva, de que ela participa, é um jeito de descentralizar a curadoria e fazer a festa ainda mais plural, olhando para o Brasil como um todo.

Fernanda é poeta, autora de quatro livros. Nos seus poemas, memória, família e a ancestralidade feminina são temas que formam uma poesia forte, que pensa o mundo e o indivíduo com um grande apuro de linguagem.

Fernanda tem uma pequena editora, a Figura de Linguagem, em que, junto com o marido, Luiz Mauricio Azevedo, cuida de todos os aspectos da produção editorial, publicando livros que contribuem para o debate cultural do país.


As obras relevantes permanecem e provocam impacto, tendo ou não feito sucesso comercial ou tido o apoio de determinados grupos dirigentes. A literatura não é para agradar e acomodar opressões, pelo menos a de qualidade nunca é.


©Nicolle Ortiz

Entrevista com a curadora 15

O livro é um exemplar muito típico do chamado Renascimento do Harlem. O movimento, claro, foi importantíssimo por trazer à tona uma produção riquíssima de uma época em que tanta coisa boa foi criada e que nos influencia até hoje. Você acha que há paralelo com algum momento histórico no Brasil? Não, ainda temos um longo caminho para reconhecer a tradição em autores como Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis, Cruz e Sousa e Auta de Souza. Muita gente quer ser a tradição literária negra no Brasil, de forma individual, porque vende muito ou porque é muito elogiada no campo, sem atentar para a necessidade de refletirmos sobre a qualidade da produção de uma tradição que vem se erguendo com muita dificuldade, mesmo sem reconhecer que é tradição negra. Se temos essa questão da negação da literatura negra e da dificuldade de obter espaço no mercado editorial, nosso caminho terá de ser outro que os dos afro-americanos. Teremos de fazer do nosso jeito brasileiro, mas a construção coletiva, que é diferente do estabelecimento de panelinhas ou construção de coros estéticos e dirigentes, ainda é pouco ambicionada por quem chega nos melhores postos.

MINHA ESTANTE O primeiro livro que li: O menino maluquinho, do Ziraldo. O livro que estou lendo atualmente: Feminismo glitch, da Legacy Russell. O livro que mudou minha vida: Jazz, da Toni Morrison. O livro que eu gostaria de ter escrito: Bagagem, da Adélia Prado. O último livro que me fez rir: Autobiografia precoce, da Pagu. O último livro que me fez chorar: Constelações, da Sinéad Gleeson. O livro que dou de presente: Baldeação, do Luiz Mauricio Azevedo


16 Cenário

Renascimento do Harlem: uma revolução cultural Num período que foi um farol de criatividade, expressão e transformação, um movimento cultural surge no coração da cidade de Nova York nas décadas de 1920 e 30.


Cenário 17

Jazz, cinema, literatura. Moda, comportamento, orgulho negro, a luta pelos direitos civis. Tudo isso em meio à Lei Seca, ou Grande Proibição, uma lei nos EUA que proibiu a venda de bebidas alcoólicas de 1920 a 1933 e que, ao contrário de moralizar os costumes, acabou por dar espaço ao crescimento do crime organizado, dos grupos mafiosos e de um dos maiores volumes de contrabando da história. Se nosso imaginário do que foi o Harlem nos anos 1930 tem das melhores trilhas sonoras que a humanidade já conheceu — de Count Basie a Duke Ellington —, o estilo das roupas e uma linguagem própria que pode ser ouvida nas canções e no sotaque dos guetos negros até hoje, essa efervescência surge exatamente como resposta a uma das maiores violências humanas: a escravidão. Conhecido como Renascimento do Harlem, o período brotou sobretudo como resistência: algumas décadas depois do fim da escravidão nos EUA, grande parte da população negra no sul do país procurou o norte com a esperança de estar a salvo da violência estrutural do racismo sulista, numa cidade mais cosmopolita, e passou a ocupar um bairro cujos preços despencaram por conta da Crise de 1929. No norte da ilha de Manhattan, vivendo uma espécie de apartheid velado, essa população pôde enfim resgatar sua ancestralidade e cultura, se embeber do seu orgulho e produzir essa arte tão rica, fruto do seu passado africano unido às adaptações de um país que se modernizava a cada dia. Entretanto, quando chega a Crise de 1929, a bolsa de valores cai, o dinheiro desaparece e a crise econômica, implacável, fará sentir seus efeitos justamente na população mais precarizada, aquela que ainda não se firmara no mundo do trabalho depois do fim da escravidão e que ainda engatinhava em autonomia ecônomica e autossuficência, a despeito da imensa riqueza cultural.


18 Cenário

LANGSTON HUGHES Um dos representantes mais importantes do movimento é Langston Hughes, poeta e ativista que aliava uma poesia brilhante com uma inabalável consciência política. Hughes tinha uma paixão pela escrita desde pequeno, mas foi durante sua estadia em um navio mercante que ele teve uma revelação: deixou seu emprego e jogou seus pertences no mar, escolhendo seguir sua verdadeira vocação como escritor. Hughes, com sua habilidade distinta de transmitir a experiência afro-americana, capturou o espírito de uma geração e tornou-se uma das figuras mais icônicas do movimento.

A VIDA EM COMUNIDADE A efervescência cultural vinha da convivência, é claro, e intelectuais, artistas, músicos e escritores se reuniam em bares, como os lendários Café Society e Cotton Club. Ali, ideias fluíam, o jazz embalava as conversas, e os artistas encontravam inspiração mútua. Muitos consideram esses lugares um caldeirão de criatividade que deu vida a muitas das obras-primas do movimento. Esses bares se orgulhavam de receber com o mesmo respeito negros e brancos, o que pode não parecer grande coisa hoje, é verdade, mas na época era bastante revolucionário.

UM HINO Claude McKay, figura notável do Renascimento do Harlem, é lembrado por sua poesia impactante e seu compromisso com a exploração da identidade negra e a luta contra o racismo. McKay nasceu na Jamaica e, após se mudar para os Estados Unidos, tornou-se um dos primeiros escritores a abordar essas questões de maneira franca e poderosa em sua obra. Seu poema "If We Must Die" é um hino de resistência que ecoa até hoje. Publicado em 1919, em resposta aos violentos motins raciais da época, o poema destila uma mensagem de coragem e dignidade em face da opressão. McKay convoca os afro-americanos a resistirem à opressão e a lutarem por seus direitos, independentemente das adversidades que enfrentem. A mensagem de união e resistência de "If We Must Die" ressoa não apenas com a comunidade afro-americana, mas com todos aqueles que se esforçam por justiça e igualdade.


Cenário 19

DUKE ELLINGTON, A PONTE O jazz americano é mais que um estilo musical, em grande parte pelo poder social que ele concentrou nessas primeiras décadas do século 20, e justamente nesse território, o Harlem. Resistência, orgulho da história negra, mas também sedução, diversão e infinita capacidade criativa, foi a porta de entrada de muitos brancos para a deslumbrante cultura negra. Nessa corte de homens nobres que ostentavam sua história num dos ritmos musicais mais ricos da história, havia um rei que se destacava. Ou melhor, um duque. Duke Ellington criou e foi o porta-voz de todo um imaginário, imprimindo em notas, arranjos e ritmos a força de uma cultura que sofria silenciamento havia séculos. Depois de Duke Ellington, o silenciamento ficou inviável.

O ESPÍRITO DURADOURO DO RENASCIMENTO DO HARLEM O Renascimento do Harlem, apesar de ter florescido há mais de um século, ainda exerce uma influência profunda na cultura contemporânea. Suas contribuições para a música, literatura, arte e ativismo continuam a inspirar artistas e pensadores de todas as origens. Celebração da resiliência e da criatividade humanas em face da adversidade, suas histórias curiosas e inspiradoras são um testemunho vivo do poder da expressão cultural para transcender fronteiras e moldar o curso da história. À medida que exploramos essa época vibrante, somos lembrados de que, mesmo nos momentos mais sombrios, a luz da criatividade e da cultura pode brilhar intensamente.


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Universo do livro Pistas para você se achar, se perder, conhecer e imaginar Amigas adolescentes descobrindo a vida como a Série: A amiga genial, Elena Ferrante

Um retrato da vida na miséria como o Livro: Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus

Retrato da vida em uma vizinhança como o Filme: Se a rua Beale falasse

Descoberta da sexualidade como o Filme: A última sessão de cinema


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Uma reflexão sobre a masculinidade dos homens negros como o Livro: A gente é da hora, bell hooks

Fotografia de um bairro como no Filme: Identidade

A trilha sonora ideal seria Ella Fitzgerald

Poderia ser uma fotografia de Sade Boyewa El


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Da mesma estante Livros que poderiam estar por perto, por um motivo ou por outro

SER NEGRO NOS EUA

O OLHO MAIS AZUL, Toni Morrison Uma adolescente negra em formação, com medos e traumas, precisa aprender a encarar seu corpo e sua identidade de outra forma.

MERIDIAN, Alice Walker Segundo romance de Alice Walker, traz uma personagem apaixonante contando sua história de amor, de militância, de crença e de esperança.

SE A RUA BEALE FALASSE, James Baldwin Uma história de amor que vai muito além: é sobre raça, sobre consciência de si, sobre desigualdade social, sobre injustiça e sobre fome de justiça. Comovente e importante, escrito lindamente.


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A VIDA POR OLHOS ADOLESCENTES

A VIDA MENTIROSA DOS ADULTOS, Elena Ferrante Ferrante, que já tinha mostrado essa sensibilidade na célebre tetralogia, aqui explora a relação de uma menina com os pais — e com tudo ao redor.

A CASA DOS COELHOS, Laura Alcoba A ditadura argentina vista pelos olhos de uma criança vivendo a clandestinidade entre o medo, a esperança, a confiança e uma luta impressionante para sobreviver.

MEU PAI, MINHA MÃE, Aharon Appelfeld Um menino judeu pressente, com seus olhos infantis, a chegada do nazismo na Alemanha. Apavorante, claro, mas extremamente humano.


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© Tullio Saba

LEIA, CONHEÇA, DESCUBRA: James Baldwin

James Baldwin foi fundamental na descoberta de Louise Meriwether: ele logo viu o imenso valor de seu livro, que mostrava como nunca antes, com verdade e valor literário, a vida de homens e mulheres negros nos EUA das primeiras décadas do século 20. Aqui, um pouco mais sobre o autor do prefácio da primeira edição de Meu pai e suas apostas.


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Nome James Arthur Baldwin

Nascimento Nova York, 2 de agosto de 1924

Morte Saint-Paul-de-Vence, 1 de dezembro de 1987

Principais temas Luta racial, questões sobre sexualidade e identidade

Romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e um profundo observador da sociedade, James Baldwin foi um dos autores americanos mais importantes do século 20, em grande parte por ser a voz antirracista, transformando sua luta em literatura. Nascido no Harlem, em Nova York, experimentou, de um lado, a efervescência da cultura negra nos guetos, e de outro, a violência e o preconceito contra seu povo. Testemunhou assassinatos de amigos, como Martin Luther King e Malcolm X, e conheceu a fundo a pobreza. Neto de escravos, era o mais velho de nove irmãos e nunca conheceu o pai biológico. A mãe se casou novamente quando ele ainda era criança. O padrasto, de quem herdou o sobrenome, era um pastor na igreja pentecostal do Harlem. Durante a adolescência, Baldwin chegou a seguir os mesmos passos, mas logo seus textos chamaram a atenção de professores e, mais tarde, do famoso escritor Richard Wright. Aos 24, Baldwin se mudou para Paris, de onde poderia ver (e criticar) sua terra natal com certo distanciamento. De lá, seguiu para a Suíça, onde terminou seu primeiro livro: Go Tell it on the Mountain, de 1953. Ainda sem tradução para o português, o romance autobiográfico descreve como foi crescer no Harlem, em um gueto. O primor e a profundidade com que narrou a experiência foram arrebatadores.


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Dali em diante, entre viagens, destinos e escritos diversos, Baldwin criou uma literatura engajada, inundada de críticas sociais e absolutamente penetrante. Escreveu ficção e não ficção sobre temas até então praticamente intocados, como homossexualidade e relações interraciais. Escreveu sobre a vida como a tinha experimentado, com todas as suas dores, dificuldades e paixões. Para muitos, as palavras de James Baldwin fizeram coro essencial aos movimentos em prol dos direitos civis. Por seu trabalho na resistência nos anos 60, chegou a ser capa da revista TIME. Morreu aos 63, por conta de um câncer.

PARA COMEÇAR

SE A RUA BEALE FALASSE Uma história de amor que vai além: fala sobre raça, consciência de si, desigualdade social, injustiça e fome de justiça. Comovente e importante, escrito lindamente.

“Se escrevo tanto sobre a condição do negro, não é por achar que não tenho outro assunto, mas só porque foi esse o portão que me vi obrigado a destrancar para que pudesse escre­ver sobre qualquer outra coisa."

OBRA-PRIMA

NOTAS DE UM FILHO NATIVO Reunião de ensaios que impressiona pela atualidade. A partir da própria experiência, narra com inteligência e sensibilidade o que representa ser um escritor negro e homossexual.

PARA SE APAIXONAR DE VEZ

O QUARTO DE GIOVANNI História de amor tocante, em que a descoberta é a grande protagonista: a descoberta de uma cidade, a descoberta do outro e, sobretudo, a descoberta de si mesmo. Lírico e verdadeiro.


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Vem por aí Pela curadoria do Pedro Pacífico, do canal @bookster, a comovente história de um garoto tentando se encontrar numa metrópole frenética — mas certamente muito diferente de qualquer metrópole do Brasil ou da América Latina. Para se emocionar conhecendo outras culturas.


28 Consultório literosentimental

Madame TAG responde Correio Litero-sentimental Querida madame TAG, meu marido é um sujeito culto, que adora ler, mas não tem sido uma boa pessoa: trata os outros mal, não percebe o quanto é grosseiro e o quanto pode machucar as pessoas. Quais livros Madame indica para que ele se torne uma pessoa melhor? Querida Maria, que coisa desagradável é a falta de educação! E ainda mais quando vem de alguém que, lendo, provavelmente tenha conhecido a delicadeza de um Riobaldo. Mas pelo visto seu escolhido está mais para a brutalidade do Hermógenes. Você pode começar por um livro intrigante e longo, como O despertar de tudo. Certamente vai ficar envolvido na leitura de tal modo que te garantirá uns dias de paz. E aí emenda em Guerra e paz, Ulysses, e outros catataus que o tirariam do convívio social por um bom tempo. Outro caminho é ir injetando pequenas doses de poesia contemporânea: Ana Martins Marques, bem ministrada, é certeira para descobertas inusitadas; Bruna Beber, em pequenas doses, anima o paciente com alegrias cotidianas; e Gregório Duvivier, sem moderação, fornece ao doente grandes porções de felicidade. E a pessoa feliz, você sabe, tende a ser mais delicada, mais aberta. “Gente certa é gente aberta”, como diz o imenso poeta Erasmo Carlos. Quer um conselho de Madame TAG? Escreva para madametag@taglivros.com.br



“Você acha que sua dor e seu desgosto não têm precedentes na história do mundo, mas então você lê.” – JAMES BALDWIN


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