"Primeiro sangue" TAG Curadoria - Maio/2024

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MAI 2024 Primeiro sangue

TAG — Experiências Literárias

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Publisher Rafaela Pechansky

Edição e textos Ana Lima Cecilio Colaboradoras Laura Viola e Sophia Maia Designer Bruno Miguell Mesquita Capa Gabriela Heberle

Revisores Antônio Augusto e Liziane Kugland Impressão Impressos Portão

Olá, tagger

Resgatar a nossa história é a melhor maneira de conhecermos a nós mesmos. Seja um passado de penúria, seja um de opulência, estejam nossos antepassados entre heróis de guerra ou vilões da história, é sempre importante conhecer como trilhamos os caminhos que nos trouxeram até aqui.

Este livro tem origem no diário do pai da autora, e sua história, ainda que recortada das páginas de um diário incompleto (e qual diário é totalmente completo?), remete a uma Europa que lutava entre a aristocracia decadente e uma burguesia que conquistava mais espaços, e um colonialismo que insistia em tomar conta de outras culturas como se lhe pertencessem.

Olhar para esse mundo é conhecer a história pelos olhos de quem a viu de perto, entender suas razões e conhecer mais sobre o mundo.

Experiência do mês

MAIO 2024

Seu livro além do livro: para ouvir, guardar, expandir, crescer.

Mimo

Marcador de páginas

Um marcador de páginas é um instrumento mágico que te ajuda a não cometer o crime terrível que é dobrar as páginas de um livro. Quando ele é charmoso, então, é um estímulo a mais para você correr as páginas. A gente pensou num gatinho, esse animal amoroso e quentinho, para te observar a cada página. Faça bom uso dele!

PODCAST

Para quem sabe que o livro sempre rende boas conversas

Projeto gráfico

A primeira parte do livro é uma memória de infância – crianças que dividem caoticamente um castelo decadente durante as férias de inverno. As crianças correm, brincam e vivem profundamente aqueles dias. É exatamente o clima evocado na ilustração de Johan van Hell utilizada pela designer Gabriela Heberle. Como num antigo álbum de fotografias de família.

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PLAYLIST

Para ajudar a embalar a sua leitura

APP

sumário

Por que ler este livro

Bons motivos para você abrir as primeiras páginas e não parar mais

A autora

Um pouco mais sobre a escritora que sempre estampa o próprio rosto nos livros que publica

A curadora

Conheça Adriana Lisboa, que escolheu seu livro do mês

Cenário

De onde veio, do que fala, o que é o livro que você vai ler

Universo do livro

Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

Da mesma estante

Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês

Leia. Conheça. Descubra.

Marguerite Duras e uma trajetória similar

Vem por aí

Para você ir preparando seu coração

Madame TAG responde

Dor de amor? Dúvidas na vida? Nosso consultório literosentimental responde com dicas de livros

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“Amélie Nothomb está no seu melhor: cruel, terna, engraçada.”
Nathalie Crom, Télérama
“Dar o prestigioso prêmio Renaudot a Primeiro sangue em 2021 foi totalmente merecido. O pai de Nothomb teria aprovado.”
Nick Hammond
Por que ler este livro
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Por que ler este livro

Um livro que tem a ternura das férias escolares quando a gente é criança, ainda que não seja nas situações ideais. Que tem o carinho dos avós, tão diferentes entre si, mas cada um com uma carga de afeto própria. Que reconstrói um amor de juventude, com tudo que tem de medo e susto, e coragem e ímpeto. E que passa por tudo isso com a leveza de um diário antigo. Que seja, por aí, também uma boa memória.

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Dar a cara a tapa

A literatura no centro da vida, e a vida no centro da literatura de Amélie Nothomb Amélie Nothomb é uma escritora aristocrata – se é que isso existe hoje em dia. Nascida no Japão, em 1968, filha de um embaixador belga, foi criada por governantas japonesas até os cinco anos de idade e tem orgulho de dizer que suas primeiras palavras foram em japonês.

Também pela profissão do pai, passou grande parte de sua infância em outros países. Graças a essa experiência multicultural, Amélie é fluente em várias línguas, incluindo francês, japonês, inglês, mandarim e outras, o que influenciou muito sua escrita.

Quando voltou à Bélgica, Nothomb estudou filologia românica na Universidade Livre de Bruxelas e, em seguida, mudou-se para o Japão, onde deu início a sua carreira como escritora. Seu primeiro romance, Higiene do assassino, de 1992, teve um sucesso imenso, lançando-a definitivamente à carreira literária.

Conhecida pela escrita perspicaz, que muitas vezes explora temas como identidade, cultura e poder, faz seus romances refletirem sua própria experiência, vivendo em diferentes partes do mundo e lidando com as complexidades das relações humanas.

A autora 6
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Ao longo de sua carreira, Nothomb produziu uma extensa bibliografia, com mais de trinta romances e diversas obras de não ficção. Ela é uma das escritoras belgas mais renomadas e suas obras foram traduzidas para várias línguas ao redor do mundo. Amélie Nothomb continua a escrever e receber reconhecimento por seu trabalho literário até os dias atuais.

Com uma intensa produção – ela publica praticamente um livro por ano, desde 1991 –, já ganhou prêmio importantes, causou polêmicas e pelo menos um de seus livros, Medo e submissão, vendeu mais de 400 mil exemplares. Além de romances, escreveu contos, novelas, peças de teatro, roteiros e letras de música.

Medo e submissão traz as marcas da literatura e da obra de Nothomb: uma narrativa autobiográfica, que aqui conta sua experiência durante um ano trabalhando em uma empresa japonesa, em que ela julga seus pares com algum distanciamento, mas sem medo de viver aquele mundo com entrega e sinceridade.

Nothomb brinca o tempo todo com uma ambiguidade entre sua biografia e uma personagem que ela criou para si mesma, e, assim, fatos de sua vida constantemente são o ponto central dos enredos de seus livros. Algumas vezes, a confusão é tamanha que as capas de seus livros sempre trazem uma foto sua, um close do rosto, com maquiagem pesada e um olhar bastante expressivo.

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A força do modo de narrar

Adriana Lisboa, a curadora do mês, conta o que a encanta na literatura e como é preciso dar liberdade ao leitor

Uma das vozes mais elegantes da literatura brasileira contemporânea, Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro, mas logo ganhou o mundo, morou no Japão, na França, nos EUA. Talvez venha daí sua literatura sensível, complexa, que pensa profundamente sobre identidade, pertencimento e deslocamento. Em mais de 20 anos escrevendo e traduzindo, é autora de romances, contos, poesia e literatura infantil, e suas obras já foram traduzidas para mais de 10 idiomas. Seu trabalho recebeu inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio Literário José Saramago e o Prêmio Oceanos, e ela é frequentemente elogiada por sua habilidade de criar narrativas que são ao mesmo tempo profundamente pessoais e universalmente ressonantes.

Os temas recorrentes na obra de Adriana Lisboa são a migração, a identidade e a busca por pertencimento. Seus personagens muitas vezes são indivíduos que estão em trânsito, seja física ou emocionalmente, e suas histórias exploram as tensões entre o familiar e o estrangeiro, o passado e o presente, e o individual e o coletivo. Adriana é conhecida por sua prosa lírica e introspectiva, que muitas vezes é comparada à poesia. Sua escrita é marcada por uma atenção meticulosa aos detalhes e uma habilidade de evocar atmosferas vívidas e emocionais. Ao mesmo tempo, ela é capaz de abordar questões complexas de forma acessível e envolvente, o que a torna uma autora popular tanto entre leitores quanto entre críticos.

Conversamos com ela sobre a escolha de Primeiro sangue para o livro do mês, mas também sobre como ela enxerga a literatura.

Entrevista com a curadora
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©Sierra Nichols

A Amélie Nothomb é uma autora que faz uma literatura com fortes doses de ensaio pessoal. Este livro é baseado nos diários do pai dela. Você também é uma autora que transita muito bem por alguns gêneros literários. Você sente alguma identificação com a prosa dela?

Normalmente a minha literatura não tem muito de pessoal (não mais do que qualquer obra ficcional tem de seu autor). Mas em 2022 publiquei um ensaio autobiográfico que também se relaciona à memória do pai – e da mãe, no meu caso –, Todo o tempo que existe. É bastante distinto do trabalho de Amélie Nothomb, mas posso dizer que há, na obra dela, uma espécie de recusa do excesso de drama, mesmo em situações de alto potencial dramático, que é um exercício que sempre tentei fazer na minha própria escrita, com mais sucesso aqui, menos sucesso ali.

O que mais te chamou a atenção na escrita de Amélie Nothomb? Você já a conhecia ou este foi o primeiro livro?

Já tinha lido dois romances seus, A metafísica dos tubos e Dicionário de nomes próprios, mas há muitos anos. Fazia tempos que não tinha contato com sua obra. Aprecio a simplicidade em literatura e essa é uma das características que mais me atraem na obra de Amélie Nothomb.

Ela também tem um senso de humor rigorosíssimo (e muitas vezes sombrio) que admiro, sobretudo por considerar o ponto certo do humor muito difícil de alcançar em literatura. Na obra de outros autores, tantas vezes ele resvala para uma espécie de ironia arrogante, ou mesmo algo mais infantil, uma tentativa demasiadamente óbvia de fazer graça. Amélie Nothomb encontra um tom que considero exato e que serve para desbastar o drama sem trivializá-lo.

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A curadora do mês

Nome:

Adriana Lisboa

Nascimento:

Rio de Janeiro, 25 de abril de 1970.

Profissão:

Escritora e tradutora.

Uma curiosidade:

Sua vasta produção literária inclui 8 romances, 4 livros de poesia, 1 de ensaio, 2 de contos e 5 infantojuvenis.

Duas ou três coisas sobre ela:

1 TRADUÇÃO

Como tradutora, trouxe para o Brasil autoras como Marguerite

Duras, Emily Brontë, Margaret Atwood, e os autores Maurice Blanchot, Cormac McCarthy e Lezama Lima.

2 PRÊMIOS

Vencedora de dois prêmios Jabuti –de Romance e de Contos –, ainda ganhou o Prêmio Saramago e, com ele, um grande elogio do próprio: “é uma escritora para o presente e para o futuro”.

3 MÚSICA

Bacharel em música/ flauta transversa, começou a trabalhar com música aos 18 anos, cantando MPB na França, e mais tarde foi professora de flauta transversa e teoria musical no Rio.

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O que você considera imprescindível para que um livro seja bom? E o que, para você, configuraria um mau livro?

Em primeiro lugar, poderia dizer que tenho horror ao livro-panfleto. Vivemos tempos em que a escrita de ficção vem sendo bastante confundida com seus temas. Os livros estão deixando de ser “como” para ser “o quê”. Penso na lição valiosa de Mallarmé, repetida por Manuel Bandeira: não é com ideias que fazemos poemas, mas com palavras. Claro, não se trata da defesa de um estetismo vazio. E muito menos de um elitismo – longe de mim achar que se deve “escrever bonito”. Mas não podemos perder de vista que a literatura é feita de palavras: isso é incontornável. A força da literatura que nos toca não está tanto no que ela narra, mas no modo como narra. A mesma história pode ser contada de forma inesquecível por este autor e se tornar uma bobagem na mão de outro.

A força da literatura que nos toca não está tanto no que ela narra, mas no modo como narra. A mesma história pode ser contada de forma inesquecível por este autor e se tornar uma bobagem na mão de outro.
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O livro, apesar de retratar um período histórico específico e começar com uma cena muito tensa, em frente a um pelotão de fuzilamento, não explica o contexto em que se deu. Você acha que a literatura tem essa responsabilidade?

De modo algum. Na verdade, acho que a literatura tem muito poucas responsabilidades. Pessoalmente, sou uma grande admiradora das lacunas, das elipses, dos textos que nos deixam espaço livre para respirar. Ter tudo explicado minuciosamente às vezes me parece uma falta de respeito com a inteligência do leitor.

Ser curadora da TAG é uma deliciosa responsabilidade. O livro que você indica vai parar na casa de milhares de pessoas! O que você gostaria que ficasse dessa leitura? Uma vez ouvi uma entrevista com a artista multidisciplinar estadunidense Kiki Smith em que surgiu a pergunta: “Como você espera que as pessoas se sintam diante do seu trabalho?”. Com voz tranquila e gentil, a artista respondeu que não esperava que as pessoas se sentissem de nenhuma maneira em especial – isso não lhe dizia respeito, ela complementou. Fiquei muito impressionada com essa resposta incomum, e acho que poderia adaptá-la aqui: espero que cada pessoa que enveredar por esse livro encontre ali, pelo menos, uma boa leitura. O resto realmente será a experiência e a resposta à sensibilidade de cada uma, de cada um.

MINHA ESTANTE

O primeiro livro que eu li: Não me lembro bem, mas acho que deve ter sido algum da coleção VagaLume da Editora Ática, que adorava. Antes disso, as revistas em quadrinhos da Turma da Mônica.

O livro que estou lendo: Estou às voltas com a obra de Proust, que é algo que faço de tempos em tempos –no momento, relendo O caminho de Guermantes.

O livro que mudou minha vida: Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

O livro que eu gostaria de ter escrito: Qualquer um dos livros de poesia de Carlos Drummond de Andrade.

O último livro que me fez rir: O verão sem homens, de Siri Hustvedt.

O último livro que me fez chorar: Não sou muito de chorar com livros, mas a Septologia de Jon Fosse me comoveu bastante.

O livro que dou de presente: Corola, poemas de Claudia Roquette-Pinto.

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Do congo à Bélgica ao Congo de novo

Caminho percorrido pelo livro dá pistas importantes para entender o declínio da aristocracia europeia e a colonização na África

A cena que abre Primeiro sangue é uma daquelas que pedem, que imploram, por um desdobramento: um sujeito, o narrador, está em frente a um pelotão de fuzilamento, naquela cena clássica de “ver a vida passar pela frente”. Sabemos que ele tem um papel de liderança, porque se preocupa com “seus homens”, sabemos que está preso há algum tempo, sabemos que está cansado de negociar sua própria vida e a vida dos seus. A cena será retomada, é verdade, mas, logo veremos, este não é um romance histórico, e por isso paira certo mistério até entendermos do que se trata o pelotão de fuzilamento.

OUTRO PELOTÃO

O leitor atento já pegou uma primeira referência, e não é a única referência literária deste livro. Outro livro brilhante que começa com um personagem na frente de um pelotão de fuzilamento é Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Também lá, a cena é um convite para voltar aos primórdios da vida do coronel Aureliano Buendía, e essa cena, tão cheia de promessa de morte, é, na verdade, uma celebração da vida.

Mas deixemos de lado as aventuras da família Buendía, porque nosso livro do mês se passa do outro lado do Atlântico. E, se a história é quase toda desenrolada na Bélgica, com referências riquíssimas de um continente que começava a ver a decadência da aristocracia antiga, o tal pelotão de fuzilamento fica em outro continente, no Congo.

Cenário
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DO OUTRO LADO DO MAR

O Congo, ou República Democrática do Congo, como é denominado desde 1997, é um país na África Central que passou por inúmeras reviravoltas, sejam disputas entre seus colonizadores, sejam rebeliões internas. Se hoje é a nação francófona mais populosa do mundo, isso se deu devido à colonização francesa, e depois belga, que passou por cima de mais de duzentos grupos étnicos nativos. “Passou por cima” não é um termo exatamente científico, mas faz muito sentido.

País riquíssimo em recursos naturais, foi explorado com os requintes de crueldade que os países europeus geralmente dedicam às suas colônias durante séculos, e foi um dos países em que mais seres humanos foram sequestrados e escravizados. Sempre em meio a disputas territoriais dos países colonizadores, que cobiçavam suas riquezas, acabou sendo concedido ao rei da Bélgica Leopold II como possessão pessoal em 1885, quando a Conferência de Berlim dividiu a África entre várias potências europeias.

Leopold II, que muitos afirmam ser o mais sanguinário genocida da história, ordenou a fundação de entrepostos comerciais no rio Congo, que foram utilizados como postos de dominação da população, e a execução de um genocídio como poucas vezes visto. Era o início da dominação cruel que matou milhares de congoleses e que só terminaria com a ampla divulgação dessa brutalidade no Ocidente, forçando Leopold a deixar de ser proprietário do território, ainda que o país seguisse como colônia da Bélgica.

Mas a dominação, sempre de olho na incessante exploração dos recursos naturais, seguiu, e com ela todo um sistema de injustiças e exploração brutal dos seres humanos. Pode-se imaginar, portanto, o legado de tensão étnica e social que ficou no país e que seguiu castigando a população mesmo depois da independência – e poderíamos dizer que até hoje.

Foi apenas em 1960 que o Congo Belga tornou-se independente, como resultado de um processo tumultuado e desafiador de várias facções, a mais importante liderada por Patrice Lumumba. A instabilidade política vinda das dificuldades econômicas e dos conflitos entre diversos grupos étnicos e facções políticas parecia não ter fim, e o conflito tenebroso deu a pauta de toda a nação.

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A CRISE

Ainda que o Congo seja um país que parece viver numa crise perene, com períodos de mais ou menos conflagrações, a chamada Crise do Congo é localizada entre 1960 e 1966. Começou com a revolta contra a tutela belga, passou pelo processo de independência e seguiu firme até a tomada de poder por Joseph Mobutu.

Reivindicações anticoloniais, a morte de cerca de 100 mil pessoas, conflitos tribais, intervenção das Nações Unidas, a posição de pivô de mais um cabo de guerra entre EUA e URSS durante a Guerra Fria e um levante separatista interno: tudo isso fez parte do cenário da crise. Nesse ambiente perturbador, duas mortes pontuaram momentos decisivos: o assassinato, em 1961, do primeiro-ministro Patrice Lumumba, e a morte do secretário geral da Onu Dag Hammarskjöld num acidente de avião.

As rebeliões eram lideradas por Moïse Tshombe, líder da província separatista de Katanga, que jamais aceitara o insistente domínio belga. O primeiro-ministro Lumumba, depois de liderar uma série de manifestações contra o domínio belga, acabou entrando em acordo com a Bélgica e passou a fazer parte de um governo um tanto conciliador. Mas Lumumba, que tinha pendores de

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esquerda, de preocupação com o povo, foi fortemente combatido com o apoio dos EUA, até ser assassinado, em 1961.

Tendo em vista a situação de pressão por que o Congo estava passando, o governo pediu a ajuda das autoridades da ONU, que autorizaram o envio de forças de paz, sem entretanto qualquer

êxito no apaziguamento da crise. Os Estados Unidos, sempre com o temor de que a ideologia socialista se expandisse no continente (como, aliás, fez nos países latino-americanos), incentivaram fortemente a destituição do socialista Lumumba, que foi logo substituído pelo general Joseph Mobutu.

Em 1964, o país parecia caminhar para alguma estabilidade, e as forças de paz da ONU começaram a deixar o território. Mas a tranquilidade durou pouco: Moïse Tshombe, que havia se tornado primeiro-ministro após a independência, em 1960, e viveu uma liderança marcada por controvérsias e instabilidade política, foi deposto em 1964 por um golpe militar liderado pelo general Joseph-Désiré Mobutu, que mais tarde se tornaria o ditador do país.

Mas Moïse Tshombe não aceitaria tão fácil e tentaria ainda uma vez retomar o poder dos rebeldes, que haviam invadido prédios oficiais e estavam mantendo oficiais belgas como reféns. A Bélgica então enviou um grupo de paraquedistas para apoiar Tshombe e proteger os interesses belgas. Sua presença, portanto, causou controvérsia e levou a uma série de confrontos violentos com as forças da ONU e com os rebeldes congoleses.

Pois é exatamente nesse cenário que se passa a primeira – e a última – cena do livro. Patrick Nothomb, o pai de Amélie e de quem ela pegou emprestado o diário, era um diplomata belga que serviu como embaixador da Bélgica em vários países, incluindo o Congo. Ele ficou conhecido por seu papel na crise política do Congo em 1964. Enviado para lá como embaixador em 1963, pouco antes do golpe militar, foi acusado, durante a crise, de apoiar Tshombe e os paraquedistas. Sua atuação durante esse período é lembrada como controversa e contribuiu para a deterioração das relações entre a Bélgica e o Congo. Nothomb também serviu como embaixador em outros países, incluindo a França e a Itália, e foi membro do Parlamento Europeu.

A história contada neste livro é a trajetória de Patrick Nothomb até essa cena dramática. Que agora você possa acompanhá-la melhor.

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Universo do livro

Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

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PRIMEIRO SANGUE começa com um personagem em frente a um pelotão de fuzilamento como

Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez

Todo o imaginário latino-americano encarnado na vida dessa família: maldições, amor, humor, magia, política, fantástico. Um monumento da literatura.

que conta a vida de uma família muito diferente como

Capitão fantástico

Filme sensível e divertido sobre um pai que resolve criar seus filhos longe dos males da sociedade contemporânea.

que é muito sensível ao narrar a infância como Anos incríveis

Série sobre um adolescente, na década de 1960, crescendo entre o surgimento do amor livre, do rock and roll, de rupturas familiares e do movimento hippie.

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que acompanha o amadurecimento do personagem principal como

Boyhood

A história de um filho de pais separados que vai crescendo durante o filme, dos 6 aos 18 anos, e que levou 12 anos para ser filmada.

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que tem uma história de amor cheia de desencontros como

PRIMEIRO SANGUE, DE AMÉLIE NOTHOMB

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que mostra como a memória de infância é fundamental na vida como

Cisne negro

De olho no posto de primeira bailarina, Nina força seus próprios limites e começa a mergulhar perigosamente no lado obscuro de sua personalidade.

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que é um clássico da literatura incontornável como

Cyrano de Bergerac

Um sujeito feio, tímido e com uma imensa capacidade poética conquista sua amada mandando cartas anônimas.

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que tem uma mãe narcisista terrível como Hamlet

(a rainha Gertrudes, mãe de Hamlet)

A obra-prima de Shakespeare traz a trágica história do príncipe da Dinamarca entre um padrasto terrível e uma mãe ausente.

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Da mesma estante

Livros que poderiam estar na mesma prateleira que o livro do mês

A HISTÓRIA POR OLHOS INFANTIS

A ditadura argentina, a Segunda Guerra Mundial ou o tráfico de drogas, tudo ganha outra perspectiva quando visto por uma criança

A CASA DOS

COELHOS, Laura Alcoba

Paris de histórias

128 pp.

Tradução de Natália Bravo

Filha de um casal de montoneros argentinos, a pequena narradora precisa se adaptar à vida clandestina com a mãe.

MEU PAI, MINHA MÃE, Aharon Appelfeld

Carambaia 232 pp.

Tradução de Luiz S. Krausz

Numa comunidade judaica, um menino observa, sem compreender totalmente, a ameaça nazista que fecha o cerco.

FESTA NO COVIL, Juan Pablo Villalobos

Companhia

das Letras 96 pp.

Tradução de Andreia Moroni

Aos olhos do filho, o pai, um dos maiores narcotraficantes do mundo, é sempre uma espécie de herói.

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GARANTA SEUS LIVROS AQUI:

Lá no site, além de aproveitar seu desconto de associado TAG, você tem mais informações sobre os livros – além de muitas outras dicas!

EM NOME DO PAI

Livros de ficção e não ficção que acertam contas e honram a memória de onde viemos

O QUE É MEU, José Henrique Bortoluci

Fósforo 144 pp.

Não só dá conta da pluralidade caótica do Brasil, como traz um encontro de gerações e conflitos de classe, tudo com rigor e afeto.

QUEM MATOU

MEU PAI, Édouard Louis

Todavia 72 pp.

Tradução de Marília Scalzo

Narrativa breve e dilacerante, que reflete sobre a relação com o pai, fraturada pela indiferença, pela vergonha e pelo conflito.

TRISTE NÃO É AO

CERTO A PALAVRA, Gabriel Abreu

Companhia

das Letras 208 pp.

Um mosaico que extrapola a forma narrativa para construir um retrato delicado sobre legado, memória e amor na relação entre mãe e filho.

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LEIA. CONHEÇA. DESCUBRA: Marguerite Duras

Como Amélie Nothomb, Marguerite Duras teve uma infância no Extremo Oriente. Também como ela, transformou suas experiências pessoais em literatura. E fez muito mais: escreveu roteiros, dirigiu filmes e elaborou literariamente a relação entre colônia e colonizados com uma delicadeza sublime, tornando-se uma das vozes mais poderosas da língua francesa.

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Nome

Marguerite Germaine

Marie Donnadieu

Pseudônimo

Marguerite Duras

Nascimento

4 de abril de 1914

Saigon, Cochinchina, Indochina Francesa

Morte

3 de março de 1996 (81 anos)

Nacionalidade

Francesa

Autora de quase 50 romances

Roteirista de quase 20 filmes

Filha de pais franceses, Marguerite nasceu na Indochina, hoje Vietnã, então colônia francesa. Foi lá que passou a infância e a adolescência, até se mudar para Paris para cursar a universidade.

Essa vivência asiática foi essencial para a construção de seu imaginário e serviu de base para sua ficção, toda ela muito alimentada pela própria memória. Em O amante, talvez sua obra-prima, são lembranças de sua adolescência que contam uma história de amor arrebatadora e que lhe deu notoriedade e o prêmio Goncourt, o mais prestigioso da França.

Feminista antes do feminismo, criou personagens mulheres que encarnam o silêncio e a falta, justamente para manifestar a necessidade de expressão das mulheres.

A presença da psicanálise também é fundamental para guiar seus textos, principalmente no ensaio Escrever, em que narra seu processo de escrita.

Autora de quase cinquenta romances, Duras nunca se filiou a nenhum movimento literário, mas pairou entre o nouveau roman e o existencialismo. Escrevendo no pós-guerra, retratou personagens que tentavam se reconstruir depois de tanto sofrimento, mas que carregariam a marca da dor pelo resto da vida.

Autora também de contos, peças e roteiros para o cinema, criou uma tensão no seu estilo, em que a relação entre imagem e palavra estimula a imaginação do espectador/leitor. Esse modo de misturar linguagens é importantíssimo no seu processo criativo, e o resultado é uma obra visual, musical e literária, sem fronteiras entre essas manifestações.

Leia. Conheça. Descubra.
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A relação entre o texto, os diálogos e as imagens nunca é óbvia. Há sempre entrelinhas, intertextos, subentendidos –que, no cinema, são mostrados, por exemplo, com os autores se preparando para a cena. É um modo de manifestar a própria construção da obra – e é muito bonito de ver.

Com livros inesquecíveis sobre paixões avassaladoras, Duras escreve como poucos autores sobre o amor, sua descoberta e o sofrimento que eventualmente vem com ele. Retratista das grandezas e das misérias da vida, pinta o ser humano do século 20 com generosidade e muita sabedoria.

HIROSHIMA

MEU AMOR

Roteiro original do filme, que traz a arrebatadora história de amor entre um japonês e uma francesa no cenário de desolação pós-bomba atômica. Inesquecível.

Escrever era a única coisa que preenchia a minha vida e a encantava. Foi o que eu fiz. A escrita jamais me abandonou.

O AMANTE

Sobre o amor e a descoberta, mas também sobre aprender a ser individualmente, sobre colonialismo. Um livro cheio de assunto, numa das mais belas prosas do século 20.

ESCREVER

Um ensaio clássico sobre a literatura, o ato de escrever –mas sobretudo sobre a vida. Para virar livro de cabeceira e transformar a visão de mundo.

PARA COMEÇAR PARA SE APAIXONAR DE VEZ OBRA-PRIMA
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Vem por aí

No próximo mês

Um acontecimento global encerra uma mulher madura e um jovem bastante imaturo num melhor lugar, com um objetivo comum: cuidar da sobrevivência de uma estranha ave. Bem-humorado e genial, vai ser uma leitura inesquecível.

Encontre as 9 PALAVRASque dão dicas do spoiler do próximo mês. pandemia - maternidade - encontro - covid - adversidade - comunhão - vulnerabilidade - força - união

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Madame TAG responde

Querida Madame TAG, trabalho com uma colega extremamente manipuladora. “Ela é tão boazinha, tão galera, chata pra c******!” Como me fortaleço diante de uma mente com tanta estratégia para manipular?

Querida Isabela, que coisa horrenda é a manipulação, a falta de caráter e, por que não dizer?, a maldade humana. A intriga envenena, prejudica, traz ruídos desnecessários e revela coisas que deveriam permanecer ocultas, não é mesmo? Pois bem. Você me pede conselhos para se fortalecer, e, ainda que eu pudesse te sugerir artimanhas como esparadrapo no umbigo, banho de sal grosso & outras ervas e, principalmente, distância, eu ainda acho que a literatura é o melhor remédio.

Talvez você deva conhecer Cecília, a médica mal amada de A pediatra, de Andréa del Fuego, para se familiarizar com a fragilidade dos manipuladores. Outro personagem que, por ser tão odioso, nos ensina muito a lidar com ele é o narrador terrível de E quem é Meryl Streep, do libanês Rachid Al-Daif (e só de me lembrar deste senhor já sinto engulhos). Para seguir falando em narradores detestáveis, sempre podemos penetrar na mente doentia de um abusador do naipe do narrador de Degenerado, da argentina Ariana Harwicz. Ou lembrar de um manipulador que, pelo menos, é charmoso, como o Tom Ripley, da Patricia Highsmith. Mas se quiser mergulhar numa intrigueira clássica, dessas por quem cultivamos um ranço secular, passar por O primo Basílio, de Eça de Queirós, é obrigatório – e duvido que você não faça um muxoxo de desprezo ao se lembrar de Juliana. Minha querida Isabela, você deve estar se perguntando por que, como remédio para o seu problema, eu estou te sugerindo chafurdar em livros de personagens tão horrendas. É porque é preciso, meu anjo. Não se combate o inimigo sem conhecê-lo, como nos ensina o pai da estratégia política, o italianíssimo Maquiavel. Pois às vezes é preciso ser um pouco maquiavélico mesmo. Boa sorte, meu bem.

Quer um conselho de Madame TAG? Escreva para madametag@taglivros.com.br

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“Quando somos jovens, inventamos futuros diferentes para nós; quando somos velhos, inventamos passados diferentes para os outros.”
– JULIAN BARNES

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