"A outra volta do parafuso" TAG Curadoria - Outubro/2023

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OUT 2023 A OUTRA VOLTA DO PARAFUSO

OLÁ, TAGGER Olá, tagger

Uma mesma categoria literária pode nos surpreender com sua própria diversidade. É o caso daqueles livros comumente definidos como “clássicos”. Muitos deles, afinal, desafiam convenções. A outra volta do parafuso, que você tem em mãos agora, foi publicado por Henry James em 1898 e ainda suscita debates sobre sua natureza. Trata-se de uma obra de terror ou seria um suspense psicológico?

Essa ambiguidade, central para a compreensão da trama, é um dos elementos que a tornam tão instigante ainda hoje, como você poderá constatar ao ler suas páginas, assim como os textos de apoio preparados pela TAG. Seja qual for sua classificação, certo é que traz uma narrativa arrepiante — uma ótima pedida para este mês de Halloween.

A obra foi uma indicação do professor e tradutor brasileiro Caetano W. Galindo, que nos brinda com um prefácio escrito especialmente para nossa edição e dá mais detalhes, em entrevista a seguir, de seu fascínio por Henry James. Publicamos ainda uma reportagem sobre o autor e sua produção multifacetada, cuja atualidade, também mostramos, resulta em uma série de adaptações de sucesso.

Boa leitura!

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OUT 2023
posfácio 18 22 O autor do mês Para ir além 28 Agenda prefácio 10 Entrevista com o curador
8 16 Por que ler o livro O livro indicado Ilustração do mês
Experiência do mês sumário
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4

VAMOS LER A outra volta do parafuso

Criamos esta experiência para expandir a sua leitura. Entre no clima de A outra volta do parafuso colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!

Leia até a página 47

Uma história dentro de outra e uma atmosfera misteriosa. É

assim que Henry James começa a sua narrativa. Aos poucos, vamos conhecendo os principais personagens, e a governanta já começa a ter algumas visões inquietantes. Será que ela fez bem em aceitar o convite para trabalhar na mansão?

Leia até a página 84

Depois de conversar com a sra. Grose, a protagonista faz descobertas perturbadoras e sente que precisa proteger as crianças. Há dúvidas, aliás, se elas também veem as aparições. O que você está achando da história até aqui? Comente lá no app!

Leia até a página 108 Com a sra. Grose como sua única confidente, a governanta segue cada vez mais obcecada em suas investigações sobre o passado da mansão. Apesar das atitudes suspeitas de Miles, a governanta segue em sua missão de proteger as crianças.

Leia até a página 139

Miles tem sido fonte de muita preocupação para a governanta. A tensão se acentua, e a linha entre realidade e imaginação fica cada vez mais tênue. Há uma conspiração em andamento? A governanta pode confiar nas crianças? Será que nós mesmos podemos confiar nela?

OUVIR PLAYLIST ACESSAR O APP 4 EXPERIÊNCIA DO MÊS

projeto gráfico

O projeto gráfico deste mês foi produzido por Bruno Miguell, do time da TAG. Quando damos “outra volta no parafuso”, deixando-o cada vez mais apertado na superfície, estamos progressivamente aumentando a tensão. Foi essa a sensação que almejamos passar com a capa: tensão, com uma pitada de luxo e dúvida. Para isso, a ideia foi criar um mosaico a partir de diversas cabeças de parafuso, no qual, a depender da sua posição, você é capaz de ver diferentes formas virem à tona. E você? O que você vê? Será que, como a protagonista do mês, podemos confiar no que está diante dos nossos olhos?

Na luva, uma homenagem às edições desta obra que antecederam a da TAG, com sua aparência mais clássica. E, para não deixar nenhuma tábua solta, a cada página que você avança na leitura é possível acompanhar um parafuso sendo apertado, simbolizando a crescente tensão narrativa criada por Henry James.

mimo

No clima de Halloween, convidamos você a se aventurar pela coletânea Contos de horror da América Latina, produzida especialmente para a TAG. Ao desbravar os dez textos do livro, você encontrará desde autores que tiveram seus nomes consagrados no horror, como o uruguaio Horacio Quiroga, até ilustres escritores que estavam a passeio no gênero, como Machado de Assis e Júlia Lopes de Almeida, não com menor maestria.

A outra volta do parafuso pode ter terminado, mas a experiência não!

Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos. OUVIR

Leia até a página 154 Com a sra. Grose e Flora longe do radar, a governanta tenta se mostrar firme diante de Miles. O confronto entre eles é o mote de um desfecho eletrizante!

2023 jul fev ago mar set abr out mai nov jun dez jan
PODCAST 5 EXPERIÊNCIA DO MÊS
“Uma narrativa maravilhosa, sombria, venenosa.”
Oscar
Wilde
“James é um desses autores incontornáveis.”
6 POR QUE LER O LIVRO
Caetano W. Galindo

POR QUE LER O LIVRO

Clássico do gênero gótico, A outra volta do parafuso, publicado em 1898, oferece uma experiência de leitura envolvente e perturbadora, com uma narrativa habilmente construída por Henry James, um dos principais autores de língua inglesa de todos os tempos. Entre mistério e terror psicológico, com personagens complexos, o livro aposta em elementos como a ambiguidade, mantendo os leitores presos até a última página com sua trama repleta de enigmas.

7 POR QUE LER O LIVRO

MATHEUS LOPES QUIRINO

Em história de terror sofisticada, que influenciou diversas produções do gênero, Henry James mostra os mistérios que assombram uma jovem governanta

No apagar das luzes do século XIX, nasce uma história de terror sofisticada, com todos os atributos para ser passada adiante. Em vez de sangue, presas e monstros cinematográficos, a fórmula parte de uma reunião de amigos ao redor da lareira na véspera de Natal, quando Douglas, o narrador encarregado de assustar seus ouvintes, conta o caso de uma babá em Bly, cidadezinha nos arredores de Londres, que teve a vida virada do avesso ao aceitar o emprego como tutora de duas crianças em um casarão assustador.

A jovem insegura fica encantada pelos irmãos Flora e Miles, tão polidos e de aparência angelical. O que poderia dar errado, afinal? Ao decorrer daqueles dias em companhia da dupla, além da inevitável solidão noturna, uma surpresa começa a rondá-la e a roubar seu sono. “Havia um segredo em Bly — um mistério de Udolpho ou um parente louco, inominável, mantido num confinamento insuspeito”, pensa com seus botões a narradora, em referência ao suspense característico da romancista britânica Ann Radcliffe (1764–1823), pioneira do gênero gótico.

Ao longo da narrativa, um encontro inesperado progride, grave, como os acordes de um rabecão em uma faixa fúnebre. Pouco a pouco, a presença da morte é sentida pela moça, a faz “prender a respiração e gelar”, escreve Henry James para acentuar o vazio que corroía a personagem.

O LIVRO INDICADO 8
Mente vazia, oficina do diabo

Esse estado de vigília e terror psicológico inspirou uma série de escribas da literatura em língua inglesa. Desde Edith Wharton (1862–1937), autora do romance

A época da inocência, passando pela “freak” Carson McCullers, grande nome do gótico sulista, e por ficcionistas e críticos como o professor David Lodge, até autores pop, como Kevin Wilson, que escreveu Nada para ver aqui (já enviado pela TAG Curadoria), sobre a saga de uma babá e suas crianças numa trama sobrenatural. Qualquer semelhança não é mera coincidência — temos cá outro admirador de James.

Ao longo de A outra volta do parafuso, o leitor precisa seguir os passos empertigados da narradora, já que seu campo de visão passa a ser limitado por presenças misteriosas. As crianças sabiam de tudo?

Ao começar a ligar os pontos, a protagonista entra em um jogo enlouquecedor para tentar salvar seus pupilos. Nesta novela, James comprova como mente vazia é oficina do diabo.

O LIVRO INDICADO
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“Esse estado de vigília e terror psicológico inspirou uma série de escribas da literatura em língua inglesa.”

“O livro simplesmente me encantou”

Caetano W. Galindo relembra como entrou em contato com A outra volta do parafuso, avalia as qualidades da produção de Henry James e destaca outras leituras marcantes

JÚLIA CORRÊA

Atrajetória de Caetano W. Galindo, professor e tradutor brasileiro, nascido em Curitiba, em 1973, é marcada pela dedicação a obras, por assim dizer, monumentais. É o caso de Ulisses, de James Joyce, e Graça infinita, de David Foster Wallace, cujas traduções lhe renderam o Jabuti e outros prêmios, como o da Associação Paulista de Críticos de Arte.

Ao ser convidado para ser curador da TAG, no entanto, Galindo apostou em uma narrativa bem mais breve. Como relata no prefácio escrito para a nossa edição, ele foi arrebatado por A outra volta do parafuso ao desbravar, em seus tempos de estudante, a antiga coleção da Abril Cultural. E, como confirma a seguir, o livro continua a seduzi-lo, muito pela riqueza e pela ambiguidade de uma narrativa em que, apesar da brevidade, Henry James imprimiu tamanha profundidade.

Na entrevista concedida à nossa revista, Galindo destaca o prazer das releituras, dá mais detalhes de sua admiração por James — um autor “incontornável” — e fala sobre seu lançamento mais recente, o livro Latim em pó, em que propõe um “passeio pela formação do nosso português”.

ENTREVISTA COM O CURADOR
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Para os leitores que não conhecem Henry James, como você resumiria a importância do autor na história da literatura?

Nossa! Muita coisa. Além de um escritor poderosíssimo, dono de um estilo muito pessoal e refinado, e de uma super capacidade de observação social e psicológica, ele teve um papel central no processo de meio que finalizar a transição do romance de forma de entretenimento a forma de arte. Isso acontece especialmente quando ele revê sua obra para a publicação no que ficou conhecido como New York Edition e acaba escrevendo prefácios novos aos livros, onde analisa essas obras como estruturas literárias, como artefatos concebidos segundo regras estritas, artísticas. É um momento crucial da história do romance como gênero; um momento que vai possibilitar muito do que o modernismo viria a fazer com a forma, por exemplo.

Você conta que descobriu o livro ao desbravar aquela antiga coleção da Abril Cultural. Qual a relevância do autor e, especificamente, de A outra volta do parafuso na sua formação?

James é um desses autores incontornáveis. Mas a obra dele como um todo não é algo a que eu continue voltando. Isso só aumenta, pra mim, o fascínio desse pequeno romance, que eu nunca esqueci, e ao qual eu vivo retornando. Tem alguma coisa daquele “porque sim”, do Montaigne, quando ele define os motivos da amizade dele com La Boétie dizendo, “porque era ele,

ENTREVISTA COM O CURADOR
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O curador do mês, Caetano W. Galindo. Crédito: Cristovão Tezza

porque era eu”. O livro simplesmente me encantou, já de cara. E continua me seduzindo. Mas tem muito, também, da riqueza e da ambiguidade da narrativa, do quanto ele consegue produzir de profundidade a partir de um modelo “de gênero”. Sempre me interessam essas situações em que um grande artista decide enfrentar um gênero “menor” (entre muitas aspas).

No prefácio para a nossa edição, você comenta como livros pequenos como este são “relíveis”. No geral, como você descreveria o prazer de voltar a certas obras? Além de A outra volta do parafuso, quais livros você relê com frequência?

O prazer de reler (ou rever) obras boas é o de reencontrar o conhecido e encontrar o desconhecido que, sempre, vai estar espreitando de algum lugar ali dentro. Esses livros nunca são os mesmos quando a gente volta a eles!

Acho que o romance que eu releio com mais frequência é O Leilão do Lote 49, de Thomas Pynchon. Gosto muito de reler as narrativas breves de Melville, também, Benito Cereno, Bartleby, Billy Budd. A obra de

ENTREVISTA COM O CURADOR
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Crédito: Arquivo pessoal

Joyce eu releio sem parar, por motivos profissionais. Nem conta mais! Reli com grande prazer O Leopardo, de Lampedusa. E mesmo obras grandes eu releio, via de regra ouvindo o audiobook. O Sherlock Holmes completo, por exemplo, eu li em português aos 14 anos, reli em inglês aos 24 e depois ouvi de novo em áudio (narrado por ninguém menos que Stephen Fry), aos 44. E mais ou menos nessa época eu também li e depois ouvi toda a tetralogia napolitana da Elena Ferrante.

Uma das questões mais debatidas sobre o livro é se os acontecimentos sobrenaturais seriam reais ou fruto da imaginação da personagem. Nesse sentido, como você avalia os aspectos psicológicos trabalhados por James? O que diferencia A outra volta do parafuso de outras obras classificadas como “góticas”? Olha, em termos “reais”, eu sou um ateu materialista completo. Então, pra mim, toda história de fantasmas é uma alegoria. Mas mesmo se a gente for pensar no mundo “interno” ao livro, eu diria que é mais interessante, estruturalmente, pensar que os fantasmas são reais apenas como construtos da imaginação de uma pessoa, e da projeção desses medos sobre outras (as crianças, e nós, os leitores). E no fundo é essa a riqueza maior da discussão ali: sobre como podem ser reais essas projeções, e que efeitos terríveis elas podem ter. Esse é na verdade o grande mérito das grandes histórias góticas, ou de vampiros, ou de ficção científica: o quanto elas servem como lente de aumento pra gente poder ver a nossa própria realidade. Mentir pra dizer a verdade, afinal, é o que faz toda a grande literatura.

O que explica, na sua opinião, as tantas adaptações de A outra volta do parafuso ? Você nota algo no texto que o torne propício para a linguagem cinematográfica?

A brevidade, em primeiro lugar. Segundo, o fato de que o ponto de maior interesse do livro é a existência ou não das “aparições”, o que coloca problemas complicadíssimos pra um meio visual como o cinema. Isso, em geral, vai afastar os maus adaptadores, que vão fugir dessa esparrela, mas pode atrair os bons, que vão ter que dobrar a aposta e fazer algo novo em cima do livro.

Há uma série de obras que investigam a própria biografia de Henry James, como O mestre, de Colm Tóibín. Por que a figura do autor é tão fascinante?

Ele tem seus mistérios, né. Muito disso advém, no nosso tempo, da sexualidade talvez irresolvida de James. Em tempos de uma maior liberdade de manifestação sexual, a figura de um grande herói de seu tempo que pode ter passado a vida toda sem conseguir nem mesmo entender uma parcela importante do seu mundo afetivo, de desejos, em função do que a sociedade lhe interditava diz muito a nós até hoje. E talvez diga ainda mais por causa daquele manto de mistério. Oscar Wilde também nos fascina, como um hom o ssexual que se viu condenado à prisão por isso. Mas James nós não entendemos.

Pode nos falar um pouco de Latim em pó, livro que você lançou este ano? Como você o concebeu e como tem sido a recepção da obra?

Claro que posso! O livro foi concebido como minha contribuição

ENTREVISTA COM O CURADOR
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O primeiro livro que eu li: Ixe.. Sabe que eu nunca pensei nisso. Vou dizer Marcelo, Marmelo, Martelo, da Ruth Rocha, que é o primeiro livro que eu lembro de ter adorado.

O livro que estou lendo: Finnegans Wake, do Joyce, de novo, para preparar um curso de pósgraduação; O Presidente Pornô, da Bruna Khalil Otero, por diversão; Eliot after ‘The Wasteland’, de Robert Crawford; Canto para Govinda, de Jayadeva; e ainda estou lentamente lendo o Mahabharata, numa tradução inglesa do século XIX.

O livro que mudou a minha vida: Ulysses, de James Joyce.

O livro que eu gostaria de ter escrito: Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro… mas essa pergunta é matreira pacas. Dos que eu li nos últimos anos, por exemplo, acho que o que eu mais queria ter escrito é Lab Girl, da Hope Jahren, que é um livro de memórias pessoais! Que, logo, só ela podia escrever! Acho que o livro que eu gostaria de ter escrito, portanto, deve ser o Latim em Pó!

O último livro que me fez rir: Chuva de papel, da Martha Batalha.

O último livro que me fez chorar: Arrabalde, do João Moreira Salles.

O livro que dá de presente: O palácio da memória, do Nate DiMeo.

O livro que eu não consegui terminar: Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (ainda!).

pessoal ao projeto Língua

Brasileira , do diretor de teatro Felipe Hirsch, que me chamou pra colaborar com ele na elaboração de um espetáculo sobre a história do português ainda antes da pandemia. O projeto já gerou a peça Língua Brasileira , o disco de Tom Zé, com o mesmo nome, um evento no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o documentário Nossa Pátria Está Onde Somos Amados , filmado ali. Voltando desse evento, eu decidi que queria expor a minha visão de tudo isso num livro que também resumisse meus vinte e cinco anos de aulas sobre o tema na UFPR. O livro, na verdade, é a versão enxugada da minha disciplina de Língua Portuguesa V, ao menos nas versões mais recentes dessa disciplina. A recepção tem sido maravilhosa. Acho que ninguém podia imaginar que tanta, mas tanta gente se interessaria por um livro com esse tema. Mas nós descobrimos que assim que as pessoas encontram essa história, do surgimento da linguagem humana até aqui, com toda sua violência, suas maravilhas, seus entrecruzamentos e fertilizações, e tudo isso escrito numa linguagem de conversa, para todos os leitores, elas parecem descobrir que precisavam saber aquilo!

MINHA ESTANTE 14

Ilustração do mês

Ilustração de 1898 assinada por Eric Pape para acompanhar o texto de Henry James na revista Collier's.

Crédito: Beinecke Rare Book & Manuscript Library, Yale University

“Mesmo agora, não posso dizer o que me determinou ou me guiou, porém segui direto pelo saguão, segurando a vela no alto, até deparar com a janela que assomava sobre a curva da escada. Naquele ponto, eu me vi de repente consciente de três coisas. Tinham me ocorrido de maneira praticamente simultânea, sucedendo-se em lampejos. Com um floreio ousado, minha vela se apagou, e eu percebi, à janela sem cortina, que o crepúsculo complacente da madrugada a tornava desnecessária. Sem ela, no instante seguinte, eu soube que havia uma figura na escada. Falo como se tudo houvesse ocorrido em sequência, mas não houve um lapso de segundos em que eu me preparara para meu terceiro encontro com Quint. A aparição chegara ao patamar da escada, na metade da subida, e, portanto, se encontrava no ponto mais próximo à janela, onde, ao deparar comigo, se deteve na hora e me olhou fixamente, como havia feito da torre e do jardim.”

16 ILUSTRAÇÃO DO MÊS

POSFÁCIO

Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página.

A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.

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Um camaleão vestido de preto

MATHEUS LOPES QUIRINO

Henry James exerceu com devoção o ofício de escritor por toda a vida e deixou uma obra prolífica, entre romances, contos, novelas e peças de teatro

“Diga a eles para seguirem, para serem fiéis [aos escritos deixados], me levarem a sério.” Foram essas as últimas palavras de Henry James, um dos grandes mestres da narrativa em língua inglesa. Depois de sofrer dois derrames e ficar de cama por meses, James não resistiu a complicações de uma pneumonia em fevereiro de 1916, às vésperas de completar 73 anos. Nos últimos tempos de sua vida, debilitado, o escriba estava preocupado com o destino de sua obra. Mudou seu testamento; mandou o famoso retrato pintado pelo amigo John Singer Sargent (1856–1925) para a National Portrait Gallery, e o destino de sua vasta correspondência foi a biblioteca da Universidade de Harvard, onde cursara direito por um breve período, entre 1862 e 1863, quando largou a carreira de jurista para seguir sua paixão: a literatura. James exerceu com devoção o ofício de escritor por toda a vida. Deixou uma obra prolífica: 24 romances, incluindo dois inacabados, e centenas de contos, novelas e peças de teatro. Isso no campo da ficção. Como crítico literário e ensaísta, somam-se outras centenas de textos, com boa parte deles publicados na imprensa. São livros de não-ficção, artigos e reportagens que levam o leitor ao primeiro ofício exercido pelo autor — o de jornalista.

Escritor compulsivo e missivista confesso, é pelas cartas que descobrimos uma série de aspectos

O AUTOR DO MÊS
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importantes da vida privada de James, como suas opiniões sobre comportamento, desaprovações, impressões sobre figurões, correspondências literárias e até mesmo “affairs”. No livro O Mestre, publicado em 2004, o escritor irlandês Colm Tóibín percorreu cinco anos da vida de James a partir de meados da década de 1890, com flashbacks de sua juventude na Europa. Com base em um rico material episolar descoberto (hoje concentrado em Complete Letters, da Nebraska Press), Tóibín joga luz em um tema por muito tempo passado batido sobre a vida do autor: sua homossexualidade, até hoje colocada em xeque por críticos e leitores. Autoproclamado “solteirão convicto”, James se beneficiou de uma ambiguidade lançada à sua reputação. Amigo de Oscar Wilde (1854–1900), James desaprovava o estilo de vida do autor de O retrato de Dorian Gray, embora tenha o ajudado nos dias de penúria no fim da vida. Não é novidade que a hipocrisia inglesa destruía artistas do período que ousaram cometer algum tipo de “transgressão” — no sentido político e estético da palavra —, afrontando o mito da

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Retrato de Henry James por John Singer Sargent. Crédito: National Portrait Gallery

“moral e dos bons costumes”. James não quis arriscar como Wilde, e sua ousadia ficaria registrada apenas na literatura. Uma pena.

Nascido na cidade de Nova York em 15 de abril de 1843, Henry James fez parte de uma elite cultural muito influenciada pelo cânone europeu. Seu pai, um filósofo que deu ao filho o mesmo nome de batismo, incentivava o menino a consumir grandes nomes da literatura, como os franceses Flaubert, Balzac e Maupassant, seus “autores de cabeceira”. A França foi um refúgio para o jovem norte-americano que, antes de fixar-se na Inglaterra até o fim de seus dias, viveu entre idas e vindas em Paris, lá chegando no início da década de 1860 para morar no badalado Quartier Latin.

A estada na Europa marcou seu texto e ponto de vista cultural pelo resto da vida. Se Paris é uma festa, James soube aproveitá-la, à sua maneira, sempre com discrição. Algumas outras obras importantes do autor se passam na cidade, como o conto “Madame de Mauves”, e o breve romance The Reverberator, sobre um jovem jornalista correspondente na capital francesa, além do livro de viagens A Little Tour in France e, claro, Os embaixadores.

Pertencente a uma das últimas fases do autor, Os embaixadores parte do choque cultural entre o protagonista Lewis Strether e Chad, filho de sua noiva, encantado por Paris. Carregado de um humor mórbido, como aponta a crítica, o autor passa a limpo os modos de vida europeu e americano, bem como suas contradições e semelhanças. Já o romance Retrato de uma senhora, de 1881, apontado como sua primeira obra-prima, mostra uma das características marcantes nos primeiros trabalhos ficcionais de James: o conformismo. Diferente de Os embaixadores, que mostra a visão de um autor mais maduro, Retrato de uma senhora acompanha a derrocada da heroína errante Isabel Archer, que sempre lutou contra o arquétipo de boa esposa.

Essa perspectiva fatalista de, certa forma, acompanhou o autor em uma série de histórias sobre personagens que perdem suas ilusões, como é o caso de John Marcher na novela A fera na selva, de 1903. Nela, o protagonista passa a vida ruminando seu momento final — e esquece de vivê-la, fadando sua companheira ao desgosto. Na literatura de James, as mulheres têm ares de protagonista, roubam a cena.

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Como em A outra volta do parafuso, uma das obras que conduzem o leitor até uma espécie de encruzilhada. A dúvida é uma característica do enredo em algumas das novelas do inglês, pontua o professor da USP e crítico literário Marcelo Pen. O especialista em James frisa que o escritor norte-americano radicado na Inglaterra ousou ao “chamar o leitor para participar da história, para tomar certas decisões”, afirma à TAG. Existe um debate acalorado da crítica sobre o livro, que se estende desde o século passado, uma espécie de dúvida machadiana a respeito da veracidade do relato da protagonista, atormentada por espectros misteriosos. “A maioria das histórias de fantasmas de James parte dessa irresolução sobre a existência de manifestações sobrenaturais, nas quais ele descreve a história a partir de um ponto de vista”, conta o pesquisador. Se esse caráter narrativo é motivo de assombro em pleno século XXI, o cinema é uma das linguagens a se beneficiar desse dilema.

ADAPTAÇÕES

Quando A outra volta do parafuso ganha adaptações no cinema, a noviça Deborah Kerr estrela o longa de Jack Clayton, Os inocentes, de 1961. Na década seguinte, foi a vez da novela Daisy Miller estrear no cinema, em 1974. Pelas mãos do diretor Peter Bogdanovich, a jovem Cybill Shepherd viveu os dramas de uma abastada americana na flor da idade e teve sua carreira projetada em Hollywood. A lista se alonga para o homônimo A outra volta do parafuso, de 1999, dirigido por Antoni Aloy, com Sadie Frost como a jovem babá dos irmãos Flora e Miles, entre tantos outros títulos que datam até o ano de 2020, com a massificação de narrativas de James para a Netflix, como na série A maldição da mansão Bly (leia mais na página a seguir).

Foram diversas obras adaptadas por diretores franceses, ingleses, americanos… e brasileiros (basta conferir Através da sombra, de Wilson Lima Jr., mais uma releitura de A outra Volta do parafuso, de 2015), sem contar curtas, peças de teatro e experimentações audiovisuais que têm inspiração no universo de terror Jamesiano. Tamanho interesse mostra que, mesmo se tratando de uma narrativa do século XIX, a literatura do autor sobrevive pelo irresistível charme dos fantasmas das coxias.

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Fascinação duradoura

Por que a narrativa sinistra de Henry James ainda inspira tantas adaptações?

Inédita na Netflix, A maldição da mansão Bly é a mais recente de uma longa lista de adaptações de A outra volta do parafuso (1898), de Henry James, que começou em 1954, com a ópera de Benjamin Britten. Desde então, houve mais de 25 outras adaptações. A fascinação duradoura dos adaptadores pela “pequena ficção irresponsável” de James pode ser resumida em uma palavra: ambiguidade.

É a história de uma jovem governanta que começa a suspeitar que sua antecessora falecida, a Srta. Jessel, e o falecido valete Peter Quint, estão exercendo uma influência contínua sobre suas crianças órfãs, Miles e Flora. Essa influência não é apenas espectral, mas possivelmente de natureza sexual.

Como previa a primeira linha de James, “a história nos mantivera aflitos”, e seus leitores rapidamente se dividiram em dois campos principais. Os leitores metafísicos escolheram “acreditar na governanta” e acreditar nos fantasmas, enquanto os leitores psicológicos — o mais famoso deles foi o escritor americano Edmund Wilson em seu ensaio de 1934 — sustentaram que “os fantasmas não são fantasmas reais... mas meras alucinações da governanta”. Ela, por sua vez, era um “caso neurótico de repressão sexual”, possivelmente agindo a partir de um desejo sublimado por seu empregador, o tio das crianças.

No entanto, nem as leituras metafísicas nem as psicológicas conseguiram dar conta dessa história, cujos

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Texto publicado originalmente na revista The Conversation, em 12 de outubro de 2020. 22

detalhes teimosamente se recusam a ser explicados. Se Quint é uma alucinação, como a sra. Grose consegue identificá-lo pela descrição da governanta? Mas, igualmente, se ele tem uma existência independente, por que, como observou a acadêmica de literatura Sheila Teahan, a governanta o associa ao ato de escrever? A governanta sugere que Quint é tão real quanto “as letras que escrevo nesta página”, implicando que ele é uma construção criativa dela.

A novela de James, portanto, exige uma terceira abordagem, da qual o livro da crítica literária Shoshana Felman, Turning the Screw of Interpretation (Girando o parafuso da interpretação, em tradução livre), de 1977, é um dos melhores exemplos. Em vez de tentar tornar a história consistente, essa leitura reconhece que sua ambiguidade é fundamental para o seu efeito.

Com isso em mente, o apelo de A outra volta do parafuso aos adaptadores pode parecer paradoxal. Como a realidade objetiva dos fantasmas pode permanecer incerta quando os vemos andar, falar e, no caso de Britten, cantar uma ópera de 12 tons? No entanto, os adaptadores usaram uma variedade de estratégias inovadoras para manter a ambiguidade do texto. O termo é definido de forma útil em um contexto cinematográfico pelo diretor Alexander Mackendrick, não como “falta de clareza”, mas como um contraste entre “significados alternativos, cada um claro”.

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AMBIGUIDADE NA TELA

Atenção: os parágrafos a seguir podem conter spoilers dos filmes citados

O diretor Jack Clayton recrutou Stanley Kubrick para reescrever o roteiro original de Os inocentes (1961) com uma clara missão: maximizar a ambiguidade da história. No filme resultante, a cena no lago oferece pelo menos dois significados alternativos para a aparição da srta. Jessel.

Vemos a governanta (Deborah Kerr) reagir a uma figura parada entre os juncos, mas alguns quadros depois, Jessel desaparece. Ela apareceu e depois desapareceu, ou a governanta simplesmente a imaginou? O rosto perturbado de Flora é inconclusivo, reagindo tanto à agitação da governanta quanto a qualquer aparição.

Em Os outros (2001), uma adaptação oblíqua, o criador Alejandro Amenábar adota uma postura inovadora em relação à realidade dos fantasmas. Presa em uma casa isolada na ilha de Jersey no pós-segunda guerra mundial, Grace (Nicole Kidman), uma fervorosa católica, contesta as afirmações de seus filhos

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Deborah Kerr em Os inocentes, de 1961. Crédito: Reprodução

de ouvir fantasmas. Descobrimos que, na verdade, eles estão ouvindo os novos proprietários da casa e que são as crianças e sua mãe que são os fantasmas. Sobrecarregada pela tristeza pela morte de seu marido, Grace, acabamos descobrindo, sufocou as crianças antes de se matar.

Os outros combina assim leituras metafísicas e psicológicas de sua fonte. Os fantasmas são, de certa forma, “reais” (embora não como acreditamos), ao mesmo tempo que a figura da “governanta”, Grace, também é estabelecida como não confiável.

Na adaptação da BBC de 2009, dirigida por Tim Fywell, a governanta (Michelle Dockery) é uma paciente em uma instituição mental do pós-Primeira Guerra Mundial, uma narrativa emoldurada que convida os espectadores a questionar a legitimidade de seu testemunho. Contudo, quando, depois de se implicar na morte de Miles, ela é levada em uma van de prisão para ser executada, seu psicólogo tem brevemente uma alucinação de que o guarda é Peter Quint. Esses detalhes me deixaram perguntando, assim como o psicólogo parecia estar, se a governanta era realmente culpada ou estava sendo silenciada prematuramente e de forma irreversível.

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Cena de Os outros, de 2001.
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Crédito: Reprodução

O teaser de A maldição da mansão Bly reprisa a assustadora canção "O Willow Waly", de Os inocentes, prestando homenagem a essa adaptação fundamental. A frase “nós deitamos, meu amor e eu, debaixo do salgueiro que chora”, cantada no soprano de Flora (Amelia Bea Smith), captura de forma arrepiante a preocupação da narrativa com a inocência da infância exposta à sexualidade adulta. Em muitas das adaptações, esses arrepios são agravados pela nossa incapacidade de confiar completamente no que vemos, gerando perguntas não respondidas que mantêm a roda das adaptações girando.

Provavelmente veremos muitas mais traduções para a tela e mais apropriações literárias, das quais o livro A Jealous Ghost (2005, sem publicação no Brasil), de AN Wilson, e A menina que não sabia ler (2010), de John Harding, são exemplos. Os espectadores e leitores continuarão a constatar o que Virginia Woolf constatou em 1921: esta é uma história que “ainda pode nos assustar no escuro”.

PARA IR ALÉM
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Victoria Pedretti estrela A maldição da mansão Bly, produção da Netflix. Crédito: Reprodução

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Guia de perguntas sobre A outra volta do parafuso

1. O que você pensa sobre os eventos sobrenaturais do livro? Acredita que os fantasmas sejam reais ou apenas fruto da imaginação da governanta?

2. Como você vê a posição das crianças? Acha que elas tinham consciência do que acontecia na mansão?

3. Qual é a sua interpretação sobre o desfecho da narrativa?

4. O que você achou do formato adotado por James para contar a história? Na sua visão, o que a distingue de outras narrativas de terror?

5. Você já conhecia a produção do autor ou alguma adaptação de sua obra para o cinema? Leia as matérias das páginas 18 e 22, confira curiosidades sobre Henry James e discuta o que mais chama a atenção em seu estilo literário.

Escrito por um autor que também é poeta e dramaturgo, o livro de novembro traz a emocionante e dolorida história de amor e amizade entre um grupo de negros escravizados em meados do século XIX.

Para quem gosta de: ficção histórica; realismo mágico; literatura afro-americana

Se você gosta de literatura brasileira contemporânea, prepare-se para acompanhar uma curiosa e comovente narrativa escrita por uma autora gaúcha, que inclui uma tartaruga (isso mesmo!) em sua história.

Para quem gosta de: literatura brasileira; ficção contemporânea; histórias de amizade

AGENDA
dezembro
novembro
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“Palavras não têm o poder de impressionar a mente sem o horror extraordinário de sua realidade.”
– EDGAR ALLAN POE

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