Agosto de 2014 O FĂsico
REDAÇÃO Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Tomás Susin dos Santos tomas@taglivros.com.br
REVISÃO ORTOGRÁFICA Antônio Augusto Portinho da Cunha Adriana Kirsch Trojahn
PROJETO GRÁFICO Casa Elétrica casaeletrica@casaeletrica.com
ILUSTRAÇÃO DA CAPA Laura D. Miguel lauradep@gmail.com
IMPRESSÃO Gráfica Centhury
TAG Comércio de Livros Ltda. Rua Celeste Gobbato, 65/203 - Praia de Belas. Porto Alegre-RS. CEP: 90110-160
AO LEITOR
E
m 2006, a revista britânica The Economist publicou um artigo intitulado “Brazil, a nation of non-readers”, afirmando que o Brasil está, entre trinta países pesquisados, na vigésima sétima posição em relação à intensidade do hábito de leitura. Dos brasileiros autoproclamados leitores, metade não soube nomear o último livro lido ou admitiu não estar lendo nenhum. O solo da literatura no Brasil é árido: poucos são os livros, autores e leitores que aqui florescem. É nesse berço nem tão esplêndido que nasce a TAG, um clube de Experiências Literárias. Por quê? Porque se esperarmos nosso país tornar-se referência no cenário da leitura, duas coisas podem acontecer: ou ele nunca se tornará; ou a TAG não poderá desfrutar da satisfação de ter sido parte das causas desse acontecimento. Portanto, se há no país hectares e hectares de solo infértil à literatura, queremos encontrar os metros quadrados de leitores e, com vocês, construir experiências literárias enriquecedoras. Esperamos, em primeiro lugar, que essa experiência lhe satisfaça, querido leitor. É com esse objetivo que empregamos cada gota do nosso suor na elaboração desses materiais. Em segundo, e como consequência, que façamos uma revolução literária e transformemos a TAG no maior clube de leitura do país.
A INDICAÇÃO DO MÊS
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Os outros de nós mesmos O indicante: Mario Sergio Cortella O livro: O Físico Noah Gordon e suas obras
ECOS DA LEITURA
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A trajetória de Rob Travessia A humanidade que não se constitui como humanidade
A INDICAÇÃO DE SETEMBRO
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Daniel Pink
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OS OUTROS DE NÓS MESMOS Capítulo do livro Qual é a tua obra?, de Mario Sergio Cortella, cedido pela Editora Vozes à TAG.
A ética é, antes de mais nada, a capacidade de protegermos a dignidade da vida coletiva. Afinal de contas, nós, homens e mulheres, vivemos juntos. Aliás, para seres humanos, não existe vivência, existe apenas convivência. Nós só somos humanos com outros humanos. A nossa humanidade é compartilhada. Ser humano é ser junto. Isso significa que é preciso que saibamos que a nossa convivência exige uma noção especial da nossa igualdade de existência, o que nos obriga a afastar do ponto de partida qualquer forma de arrogância. Gente arrogante é gente que acha que já sabe, repitamos. Gente arrogante é gente que acha que já conhece. Gente arrogante é gente que acha que ela é o único tipo de ser humano válido que existe. Gente arrogante se relaciona com o outro - por conta do dinheiro que carrega, por conta do nível de escolaridade, por conta do sotaque que usa - como se o outro não fosse outro. Fosse menos. Isso apequena a vida e apequena a alma, se se entender a alma como a sua identidade. Gente arrogante é incapaz de prestar atenção. Você está dialogando com o arrogante, ele não presta atenção no que você está falando. Ele fica pensando enquanto você fala. Ele não quer nem saber o que você está falando. Ele só está esperando você parar para ele continuar falando. O arrogante esquece uma frase do grande teólogo catarinense Leonardo Boff, que diz que “um ponto de vista é a vista a partir de um ponto”. A ética, entre outras coisas, nos obriga a perceber essa multiplicidade de pontos de vista. O arrogante acha que só tem um ponto de vista que vale: o dele. O arrogante é incapaz de ter uma das coisas importantes e que será a razão central da ética: a visão de alteridade. É a capacidade de ver o outro como outro, e não como estranho. Os latinos tinham uma expressão
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para “eu” que era ego. E usavam duas para falar de nãoeu: uma é alter, que significa “o outro”, mas usavam também alius, para indicar “o estranho”. Palavras em português que vêm de alius: “alienado”, “alheio”, “alien”, “alienígena”. Nos filmes de faroeste mais antigos, o nome que se dava para quem não era daquele lugar era “forasteiro”, “estrangeiro”. Aliás, em inglês se usa isso até hoje: stranger ou foreigner. Aquele que não é daqui, aquele que não é como nós, aquele que é, talvez, menos. Visão de alteridade é a capacidade de ver o outro como outro, e não como estranho. Há pessoas que só conseguem olhar o outro como estranho, e não como outro. Aliás, quem são os outros de nós mesmos? O mesmo que nós somos para os outros, ou seja, outros. A arrogância é uma coisa absolutamente complicada para isso, porque ela acaba marcando alguém pela incapacidade de ter a visão de alteridade. Quer ver um exemplo? Trabalhei três anos no Rio Grande do Norte, ajudando a fazer uma cartilha de alfabetização, que é usada lá até hoje. Uma cartilha chamada Raízes, para a qual eu trabalhava como consultor; não era eu que estava escrevendo. Houve uma época em que as cartilhas eram feitas no Sul e no Sudeste e mandadas para o Nordeste. O que trazia uma estranheza, pois as pessoas de lá não conseguiam aprender a ler e a escrever. Não dá para alguém no sertão do Cariri aprender a ler vendo a palavra e o desenho “lasanha”, que é uma coisa típica de uma região povoada por descendentes de italianos. E havia as professoras de lá, de Caicó, de Mossoró, de Pau dos Ferros, de CearáMirim. Numa tarde de sábado, estávamos nós fazendo uma coisa que eles chamam de merendar. E lá pelas tantas eu falei: “Eu gosto demais de trabalhar com vocês, mas tem uma coisa que eu acho uma delícia aqui no nosso trabalho: o sotaque de vocês”. E elas falaram: “Que sotaque? A gente não tem sotaque, é você que tem sotaque”. Um ponto de vista é uma vista a partir de um ponto. Só é possível falar numa ética que promova a vida digna coletiva se eu for capaz de olhar o outro como
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outro, e não como estranho. Aliás, é necessário afastar qualquer forma de arrogância, porque coloca essa condição negativa: supor que só exista um jeito de ser. E a fratura ética se origina, em grande parte, da arrogância e da ganância. Não confunda ambição com ganância. A ambição faz a humanidade crescer, a ganância faz a humanidade regredir. Ambiciosa é a pessoa que quer mais, gananciosa é a pessoa que só quer para si. A humanidade cresce porque as pessoas são ambiciosas, querem mais trabalho, mais lucratividade, mais conhecimento. A ganância, junto com a arrogância, são mecanismos de apodrecimento ético. Nós, humanos, somos um animal arrogante. Tão arrogantes que achamos que somos proprietários do planeta. Não somos. Somos usuários compartilhantes. Quais foram os animais mais poderosos do planeta antes de nós? Os dinossauros. Dominaram o planeta por 110 milhões de anos. Nós estamos dominando há quarenta mil anos e estamos achando que podemos fazer qualquer coisa. Aliás, para cada ser humano no planeta há sete bilhões de insetos. Já imaginou se, para entender o que estamos fazendo com o planeta partilhado, hoje à noite só os seus vierem lhe visitar?
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FOTO: ARQUIVO PESSOAL
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O INDICANTE: MARIO SERGIO CORTELLA Com linguagem fluida e agradável, Mario Sergio Cortella traz, em suas obras, temas de relevância filosófica – como a ética – de forma que mais se assemelha a uma conversa entre amigos. Simplicidade, porém, que não deixa de carregar a profundidade de seus pensamentos. Além do livro do qual o capítulo supraexposto foi retirado, Cortella estendeu seus questionamentos em diversas outras publicações, explicitando o papel fundamental da filosofia nas decisões que tomamos, tanto em nossa vida pessoal quanto profissional. O filósofo e escritor nasceu em 1954, em Londrina, no Paraná. Na juventude, experimentou a vida monástica em um convento da Ordem Carmelitana Descalça, mas abandonou a perspectiva de ser monge para seguir a carreira acadêmica. Foi Secretário Municipal de Educação, em São Paulo, de 1991 a 1992. Tornou-se doutor em Educação pela PUC-SP em 1997, sob a orientação de Paulo Freire, que se orgulhava ao descrever Cortella como “um dos poucos filósofos brasileiros que pensa o novo”. Dedicou grande parte de sua vida ao estudo do pensamento filosófico e do sistema educacional. Escreve regularmente artigos em revistas e jornais de circulação nacional, e é autor de diversos livros, ou “provocações filosóficas”, como ele mesmo costuma chamar.
Um livro bom é um livro insatisfatório. Na hora em que você termina de ler, fica olhando para aquelas páginas, querendo que continuassem. -Mario Sergio Cortella, Qual é a tua obra?
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O FÍSICO, DE NOAH GORDON, foi o livro indicado por Mario Sergio Cortella à TAG. O filósofo relata que leu a obra em duas oportunidades: a primeira, quando foi lançado no Brasil, em 1988, aos 34 anos de idade; a segunda, vinte anos depois, em 2008, quando ministraria um curso sobre Filosofia Medieval e queria “mergulhar um pouco no clima”. Cortella conheceu Noah Gordon por intermédio de debates que o americano promoveu nos anos sessenta e setenta sobre Ética em Pesquisa. “Quando O Físico foi lançado em português”, lembra Cortella, “resolvi passear nele e foi especial”. Para o filósofo, as principais mensagens extraídas a partir da leitura do livro estão relacionadas ao valor da persistência, à necessidade de humildade em um mundo intercultural e à importância do pensamento mais racionalizado no campo da Medicina.
Uma obra encantadora, não só por ser bem tecida na linguagem, mas porque traz temas que não podemos secundarizar, como a necessidade de formação sólida, a convivência multicultural e os tropeços e êxitos nas trilhas da vida que recusa a mediocridade. -Mario Sergio Cortella
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Trecho retirado do documentário Eu Maior (www.eumaior.com.br), iniciativa brasileira lançada em 2013, que traz uma reflexão contemporânea sobre autoconhecimento e busca da felicidade, por meio de entrevistas com expoentes de diferentes áreas, incluindo líderes espirituais, intelectuais, artistas e esportistas. Mario Sergio Cortella foi um dos participantes.
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O LIVRO: O FÍSICO Eleito um dos dez livros mais amados de todos os tempos*, The Physician foi lançado em 1987 por Noah Gordon, escritor norte-americano nascido em 1926. Conforme o próprio autor considera, foi este o livro responsável por lhe tornar reconhecido mundialmente como um exímio contador de histórias. Na época do lançamento nos Estados Unidos, porém, O Físico não obteve sucesso, atingindo a insignificante marca de dez mil exemplares. No ano seguinte, quando um editor alemão levou a publicação a seu país, as vendas estouraram de forma surpreendente, chegando a cerca de oito milhões de livros vendidos. Depois disso, a onda se espalhou pelos países da Europa, e o romance foi muito bem aceito no continente. Em 2004, foi organizada na Alemanha uma pesquisa para eleger as obras literárias mais apreciadas pela população local. Entre doze mil títulos elencados, O Físico ficou em sétimo lugar no ranking de popularidade de todos os tempos. Uma característica marcante de Noah Gordon é a riqueza de detalhes contida em suas descrições – desde os costumes de diversos povos até as variadas paisagens com que se deparam os personagens. Nos agradecimentos escritos pelo autor ao final de cada livro, podemos encontrar todas as referências utilizadas, e só assim obtemos a real compreensão da complexidade que é escrever um romance do nível de O Físico. Além de realizar extensas pesquisas sobre os aspectos culturais e históricos da época descrita e entrevistas com especialistas, o autor procura viajar pelos locais percorridos pelos personagens para descrevê-los mais fielmente em suas narrativas.
*Pesquisa realizada com os participantes da Feira do Livro de Madrid
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Naquele momento retratado no livro há um Ocidente mais belicista; contudo, não o foi sempre assim e nem persistiu desse modo depois. Temos, no Ocidente, um imenso débito com o Oriente, mas o eurocentrismo vigente desde o século XVI acabou por relegar tal herança a um plano marginal. Hoje seria tolice não enxergar a reciprocidade das contribuições. -Mario Sergio Cortella No início de O Físico, somos transportados para um bairro pobre de Londres, onde reside Rob. J. Cole, filho de marceneiro e primogênito entre cinco irmãos. Após a morte dos pais, cada um dos irmãos é separado para que tenha maiores chances de sobrevivência na cruel Inglaterra do século XI, e Rob encontra-se aos cuidados de Barber, barbeiro-cirurgião que exercia seu trabalho viajando pelo território inglês. É neste momento que tem seu primeiro contato com a Medicina, que logo se transforma em fascinação e o motiva a seguir sua jornada em busca de se tornar médico. Para intensificar a imersão do leitor à época descrita, Gordon introduz dois personagens reais à narrativa: os médicos Ibn Sina (Avicena) e al-Juzjani. O primeiro é considerado, até hoje, um dos grandes responsáveis pelo avanço nos estudos da Medicina, denominado O Príncipe dos Médicos, enquanto o segundo foi seu amigo e pupilo por grande parte de sua vida. Avicena é um dos pensadores mais importantes da Idade Média, tendo deixado diversas contribuições nos campos da Medicina, Filosofia, Psicologia e Astronomia em mais de quatrocentas obras, servindo de inspiração para a formação intelectual de grandes filósofos, como Tomás de Aquino e Alberto Magno. Uma de suas obras mais renomadas é o Livro da Alma, que recebeu tradução direta do árabe para o português em 2011, e já pode ser encontrado nas livrarias. Avicena defendia que os médicos deveriam especializar-se também em Filosofia e Psicologia, pois, já naquela época, compreendia a importância e a relação direta entre corpo e mente. Acompanhamos em O Físico
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o uso extensivo da lógica e do raciocínio na área médica, fundamentais para suprir a falta de recursos técnicos mais avançados e atingir, por meio de inúmeros testes e pesquisas, os significativos progressos que rotularam aquele momento histórico como A Época de Ouro do Islã. Ao inteirar-se a respeito dos avançados estudos de Avicena, Rob decide sair do precário cenário inglês e partir para a Pérsia, a fim de ingressar na escola de Ispahan (atual Isfahan, no Irã) – onde Avicena ensinou de 1024 até sua morte, em 1037. Porém, não era permitido o ingresso de cristãos. É a partir deste dilema que se desencadeia boa parte da trama do livro, com profundidade na caracterização de cada personagem em cenas de amor, violência e amizade. Como todas as obras de Noah Gordon, O Físico prende o leitor do início ao fim. Sua mescla de ficção e realidade recria o contexto do século XI de maneira impressionante, e o modo como aborda temas controversos como religião e Medicina torna a jornada de Rob Cole muito mais surpreendente e arrebatadora, transformando o livro em um inseparável companheiro.
O livro me proporcionou a ruptura de uma visão menos generosa com a formação científica que a cultura árabe nos legou e, especialmente, a percepção de uma convivência entre os semitas que precisa ser retomada. -Mario Sergio Cortella
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ILUSTRAÇÃO: MOHAMMAD REZA NAMAZI
Avicena
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GORDON E A MEDICINA Noah Gordon serviu ao exército norteamericano na Segunda Guerra Mundial e, logo após a guerra, matriculou-se no curso pré-médico por pressão dos pais. Acabou permanecendo apenas um semestre, quando ingressou na escola de jornalismo, tendo concluído a graduação no ano de 1950, pela Universidade de Boston. Curiosamente, o homem que recusou a carreira médica utiliza a história da Medicina como contexto para várias de suas obras. Além de O Físico, o autor escreveu outros dois livros sobre a saga da família Cole, compondo o que chama de trilogia Cole, apesar de constituírem leituras independentes. O segundo livro da trilogia, intitulado Xamã, conta a história de um descendente de Rob Cole que, seguindo a tradição de sua família há sete séculos, decide seguir a carreira de médico. Para essa obra, Gordon utiliza como pano de fundo os Estados Unidos durante a Guerra de Secessão. No último livro, A Escolha da Dra. Cole, Gordon descreve as lutas da personagem principal por mais direitos para as mulheres no século XX. Com as obras, o autor foi agraciado com o James Fenimore Cooper Prize nos Estados Unidos, o Golden Pen Award na Alemanha e o Premio Selezione na Itália. Um fato curioso a respeito de O Físico reside na polêmica a respeito do seu título. A versão original é intitulada The Physician, ou seja, O Médico, em inglês. Porém, o livro no Brasil foi chamado de O Físico, cuja tradução seria The Physicist. Apesar de a editora responsável pela tradução justificar que na Idade Média a Física englobava o conjunto das ciências naturais, onde se incluíam os estudos do corpo humano, em outros países a tradução foi feita literalmente. Em espanhol, o livro chama-se El Medico, e em alemão, Der Medicus. A repercussão da obra literária fez com que a trama de O Físico fosse levada às telas do cinema. O filme, lançado no final de 2013, é estrelado por Ben Kingsley, Stellan Skarsgard e Tom Payne.
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NOAH GORDON E SUAS OBRAS
1965
1969
1979
1986
Indicação do Mês
1992
1996
2000
2012
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18 Ecos da Leitura
ecos da leitura
Ecos da Leitura
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A seção Ecos da Leitura é um espaço livre para exposições não mais sobre o livro, mas a partir do livro – seja um artigo, foto, poesia, pensamento, ou qualquer material que vise a complementar a leitura recomendada. Para este mês, os ecos iniciam com A Trajetória de Rob, expondo em cartografia atual o caminho percorrido pelo personagem durante sua aventura. O seguinte capítulo expõe uma outra Travessia, de um viajante brasileiro que, enquanto realizava sua volta ao mundo, colecionou histórias incríveis – e uma delas será compartilhada com vocês. Finalizamos trazendo o antropólogo Edgar Morin e seu questionamento a respeito da “crise da humanidade que não consegue se constituir como humanidade”. Os ecos que uma leitura proporciona são infinitos. Estes foram os nossos, escolhidos e elaborados para que fossem compartilhados com vocês. Desejamos que compartilhem os seus próprios pensamentos, comentários ou referências com a nossa equipe através do contato@taglivros.com.br, pois esta seção pode também ser construída pelo leitor.
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Ao mergulharmos no século XI a partir da ambientação que Gordon cria com seus detalhes e sutilezas, viajamos ao lado de Rob enquanto percorre seu trajeto. Ao leitor, porém, talvez não seja tarefa simples a relação do roteiro do nosso personagem principal com a cartografia atual. Por isso, resolvemos trazer ao mundo contemporâneo o caminho percorrido por Rob séculos atrás.
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A TRAJETÓRIA DE ROB
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TRAVESSIA
Nada em rigor tem começo e coisa alguma tem fim... E o espaço é o avesso de um silêncio onde o mundo faz suas voltas. -Guimarães Rosa
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QUAL É O DESEJO QUE MOVE UMA TRAVESSIA? O desejo de aprofundar-se na área médica foi o que levou Rob a sair da Inglaterra e buscar novos conhecimentos em solos persas. O questionamento, porém, vem do livro CAMINHOS, do autor e viajante Argus Caruso Saturnino, e refere-se a uma outra travessia. O subtítulo a revela: uma volta ao mundo de bicicleta. O mapa com os vinte e oito países percorridos e os mais de trinta e cinco mil quilômetros pedalados ao longo de três anos e meio de viagem não coube nas singelas páginas dessa revista, que talvez não comporte a grandiosidade da experiência. Circundando o globo, Argus terminou sua travessia no mesmo lugar em que a iniciou: a mineira Cordisburgo, cidade natal de sua família e de Guimarães Rosa. Entre esses dois momentos, uma experiência que deveria conter algum sentido maior que apenas a distância percorrida, e que foi encontrado em um dos meios de transporte mais lentos. A bicicleta proporcionou o tempo para conhecer as pessoas e sentir com maior intensidade o calor humano ao longo do caminho. Argus teve tempo, também, para registrar em memória, imagens e textos, alguns dos momentos vivenciados e compartilhá-los. Fez isso ao longo da viagem através do projeto Pedalando e Educando, onde visitava escolas ao redor do mundo, conversando sobre as diferentes culturas e regiões pelas quais passava. Após, permaneceu compartilhando-as através de seu livro. A TAG escolheu uma pequena parte desse e, com a permissão do autor, oferece-a aos associados, para que compartilhem, mesmo que em pequena dose, o sabor dos Caminhos percorridos por Argus. Leia na página seguinte.
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O SISTEMA DE CASTAS Agora éramos três: Alexandra, Gustavo, um brasileiro que encontrei na Malásia e reencontrei por acaso no Nepal, e eu. A estrada, aliás, é um amontoado de acasos. E de costumes inexplicáveis. No percurso para um lugar nas montanhas do Nepal chamado Vale de Langtang encontramos uma vila simpática, tomada pelos maoístas. Resolvemos pernoitar. Gustavo jogava bem futebol e, para matar o tempo, improvisamos uma pelada com a criançada. Logo estávamos rodeados por todos os moradores do vilarejo. Entre os apreciadores da nossa performance, encontramos um personagem bastante exótico. Ele mal falava qualquer língua e não conseguimos entender seu nome. O sujeito pertencia à casta mais baixa da rígida hierarquia social local. Mesmo sem comunicação, conquistamos sua confiança e nos embrenhamos na sua vida. Ele morava em uma casa de barro, com uma fogueira no centro, baldes de água encostados num canto e apenas uma esteira para dormir. O nosso anfitrião nos ofereceu chá e fumo. Para agradecer, nós o convidamos para jantar na pousada onde estávamos hospedados. O entendimento entre nós era bastante limitado.
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Quando chegamos ao restaurante do hotel, o proprietário nos explicou que o nosso novo amigo era de uma casta mais baixa que a da cozinheira, e ela não o serviria. Insistimos. Em vão. Entramos em um acordo, então: comeríamos no quarto, escondidos dos olhos reprovadores do vilarejo. Pedimos três pratos. Vieram dois pratos de dalbaht, comida tradicional da região, e um pote de metal com um arroz amassado e torrado, semelhante a um prato de ração. O amigo colocou o pote no chão, ajoelhou-se e comeu fazendo a maior sujeira ao seu redor. Nós, desavisados, ficamos pasmos, tristes, perplexos. E, principalmente, intrigados. No dia seguinte, fizemos outra tentativa de aproximação com o nosso novo amigo. Nós o levamos ao mercado, fizemos compras e fomos para o seu casebre preparar um banquete caseiro. Pensamos que, assim, longe do julgamento dos moradores, ele se comportaria como uma pessoa em pé de igualdade com outros seres. A tentativa não foi bem-sucedida. O sistema de castas está impregnado na alma, nas entranhas da Índia e países vizinhos, como o Nepal. Mesmo diante da comida que oferecemos, o homem ajoelhou-se e comeu a sua comida, destinada aos “intocáveis”, como são chamados os pertencentes à casta inferior do severo sistema social hindu.
Fotografias de autoria de Argus Caruso, tiradas ao longo da viagem
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FOTO: CLAUDE TRUONG-NGOC
Malala Yousafzai
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A HUMANIDADE QUE NÃO SE CONSTITUI COMO HUMANIDADE A intolerância relatada por Argus no sistema de castas é vista, também, nos conflitos entre judeus e árabes. Porém, nem sempre foi assim. No início do século XI, a união intelectual entre árabes e judeus nos estudos da medicina fez da Pérsia, região que hoje corresponde ao Irã, a meca da medicina avançada. Rob deixou sua Inglaterra e partiu para solos persas desejoso de aprofundar seus conhecimentos na área, algo que, sendo cristão, era proibido de fazer. A barreira religiosa era estendida a qualquer um que não fosse muçulmano ou judeu, apesar de sua competência ou interesse. Ironicamente, quase um milênio depois, a relação de união entre os povos semitas, que antes formava uma grande potência intelectual, agora se tornou odiosa e intolerável, e as barreiras de ortodoxismos religiosos e intransigências culturais que Rob enfrentou ainda são extremamente presentes. Malala Yousafzai é uma paquistanesa nascida em 1997 e a mais jovem pessoa a ser indicada ao Nobel da Paz, sendo considerada símbolo da luta pela liberdade e pelos direitos da mulher. Sua surpreendente realização? Ter ido à escola. “Tomada pela tristeza” é o que significa o nome Malala, descrição que talvez também represente a situação de grande parte das mulheres que, assim como ela, nasceram no Vale do Swat, região paquistanesa que passou a ser controlada pelos fundamentalistas Talibãs. Sem direitos que transcendam a procriação e as tarefas domésticas, Malala desafiou uma das mais cruéis e violentas milícias em ação para continuar indo à escola. Aos 15 anos de idade, em 9 de outubro de 2012, quase pagou o preço dos estudos com a vida: foi baleada na cabeça por um tiro à queima-ropa dentro do ônibus no qual voltava da escola, em uma tentativa do grupo de silenciá-la. Malala venceu as probabilidades
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de sobrevivência para, em pleno século XXI, tornar-se a porta-voz da liberdade feminina, lutando por direitos tão básicos quanto a possibilidade de eduação formal e a busca por um futuro melhor. O antropólogo, sociólogo e filósofo francês Edgar Morin julga estarmos vivendo uma multiplicidade de crises, que não são somente econômicas, demográficas, de civilização ou de crença. Para Morin, por trás de todas elas, o que presenciamos é a “crise da humanidade que não consegue se constituir como humanidade”. A humanidade é uma unidade na medida em que constitui uma família de seres humanos que se assemelham geneticamente, anatomicamente, fisiologicamente, psicologicamente e afetivamente, mas essa unidade não é percebida por nossa perspectiva limitada e arrogante. Leymah Gbowee, ativista africana e Nobel da Paz, quando questionada sobre tolerância religiosa, sugeriu que, independentemente do credo que está sendo proferido ou para qual Deus ele está sendo direcionado, perguntássemos à oradora o porquê de ter-se ajoelhado para rezar. Sua resposta demonstra que um olhar mais profundo para as diferenças nos permite enxergar as semelhanças que por trás delas se escondem. Independentemente da cultura proveniente, todo ser humano sente a felicidade e o sofrimento, sorri e chora, possui sonhos e medos, e esse é o sentimento de unidade que carregamos mas carecemos de senti-lo.
Todos nós estamos subindo a mesma montanha, mas cada um sobe por um lado. Portanto, temos perspectivas diferentes - esta é a beleza. A montanha, porém, é a mesma. -Marcelo Cardoso, fundador do Instituto Integral Brasil
Por mais que a palavra crise denote grandiosidade e distanciamento, ela não é observada apenas nos noticiários televisivos e nas capas dos jornais; ela está presente nas relações humanas cotidianas. A intolerância é facilmente condenada quando o dedo é apontado para o outro lado do oceano ao citarmos o desrespeito
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intercultural dos povos do Oriente Médio, como nos casos de privação da liberdade impostos às mulheres do Vale do Swat. Mas desafortunadamente ela está muito mais próxima de nós, como quando olhamos insultados ao avistarmos duas pessoas do mesmo sexo de mãos dadas na rua; quando descobrimos que o professor do nosso filho é um homem com o rosto coberto por tatuagens; ou quando uma mulher com cabelo raspado adentra uma reunião de negócios. As diferenças ofuscam a percepção da unidade – quando o credo ofusca os motivos da prece, a intolerância instala-se. UNIDADE NA DIVERSIDADE O nosso senso de eu é construído a partir da nossa percepção do outro, pois é na diferença com o outro que podemos nos perceber. Da mesma forma, as diferenças culturais – os conhecimentos, a linguagem, o que é aprendido, a técnica – devem ser comemoradas na medida em que são as diferenças que possibilitam a existência das diversas identidades culturais. Edgar Morin aprofunda: “Cada cultura é singular e particular. Mas nunca vimos a cultura em si. Só conhecemos a cultura através das diferentes culturas. Dito de outra forma, a unidade humana tem como tesouro a diversidade humana, e a diversidade humana tem como tesouro a unidade humana. Então, quando se compreende isso, percebese que, no nosso mundo, não é necessário querer homogeneizar. É necessário querer preservar a possibilidade de ter finalmente uma pátria comum, a pátria terrestre. Então, se assim se quiser, você passa a ser obrigado a ligar a ideia de unidade e de diversidade – as semelhanças e as diferenças – e acho que é isso que permite estabelecer relações corretas entre os seres humanos”
O problema é que o sentimento de unidade – ou pátria comum – distancia-se cada vez mais à medida que as diferenças isolam-se e não se toleram. Michael Sandel, filósofo e professor norte-americano, identificou que a estratificação e segregação social que os camarotes criaram nas arenas esportivas fez desaparecer o
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convívio entre classes outrora vivenciado nos estádios, representando uma perda não só para os que olham de baixo para cima, mas também para os que olham de cima para baixo. A arquibancada não mais representa a democracia que colocava lado a lado o operário e o empresário. O contexto que nutria a coesão cívica se desfez com a inserção dos isolados e privilegiados camarotes, e processo semelhante vem acontecendo na sociedade como um todo: “Numa época de crescente desigualdade, a ‘marquetização’ de tudo significa que as pessoas abastadas e as de poucos recursos levam vidas cada vez mais separadas. Vivemos, trabalhamos, compramos e nos distraímos em lugares diferentes. Nossos filhos vão a escolas diferentes. Estamos falando de uma espécie de camarotização da vida. Não é bom para a democracia e nem sequer é uma maneira satisfatória de levar a vida”-Michael Sandel, O que o Dinheiro não Compra, Editora Civilização Brasileira
Além de não ser satisfatória, é prejudicial. Se a crise é extremamente grave, Edgar Morin explica que a gravidade vem do fato de que fomos educados por um sistema de conhecimento e de pensamento que fragmenta e separa as coisas, e a separação gera o distanciamento. O problema do distanciamento é que ele impossibilita o desenvolvimento da empatia, uma vez que esta estende-se até onde está o nosso senso de união e pertencimento. No passado, os seres humanos organizavam-se em tribos, e o abismo geográfico que as separava fazia florescer a empatia entre os membros da tribo, mas não entre as tribos: uma ilusão de separação cria o abismo que a empatia não consegue transpor. Com o aumento populacional, a geografia deixou de ser desunificadora e os seres humanos passaram a se organizar através de crenças e ideologias: os cristão, os judeus, os muçulmanos. A partir da revolução industrial, foi introduzida a noção de país, que criou sentimentos de pertencimento à unidade nacional. Porém, não existe tal coisa chamada Alemanha, França ou Brasil. São divisões imaginárias, enquadramentos mentais da realidade que nos permitem estender nossos sentimentos de
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pertencimento a um grupo. Se evoluímos nossa empatia das tribos para as crenças religiosas, e dessas para sentimentos de pertencimento nacional, será que é realmente um exagero imaginarmos uma maneira de nos sentirmos conectados e pertencentes a toda a raça humana? Para Edgar Morin, a unidade não pode ser apenas técnica e econômica. Se ela acontecer um dia, será por meio da aceitação plena das diversidades das culturas, pátrias e nações. Precisamos acabar não com a separação (a diversidade), mas com o pensamento separatista. Só assim seremos capazes de adquirir a visão da alteridade, a capacidade de ver o outro como outro, e não como estranho, conforme sugeriu Mario Sergio Cortella no texto que dá inicio à revista. Assim, direcionamo-nos a uma sociedade mais amorosa e democrática, pois, como conclui Michael Sandel ao final de seu livro, “democracia não quer dizer igualdade perfeita, mas de fato exige que os cidadãos compartilhem uma vida comum. O importante é que pessoas de contextos e posições sociais diferentes encontrem-se e convivam na vida cotidiana, pois é assim que aprendemos a negociar e respeitar as diferenças ao cuidar do bem comum.”
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A INDICAÇÃO De SETEMBRO
FOTO: DUDVA
Considerado pela Biblioteca do Congresso Americano um dos 10 livros mais influentes nos Estados Unidos, o livro do mês de Julho foi escrito logo após o término da Segunda Guerra Mundial por um médico judeu sobrevivente dos campos de concentração nazistas. Não é, porém, um livro de relatos históricos ou análises políticas, e sim uma exposição ao leitor dos dilemas internos de um homem que vivenciou o absurdo, e precisou encontrar um sentido para a vida a fim de manterse vivo durante o período enclausurado no campo de Dachau. A partir das palavras deste brilhante autor austríaco, os aprendizados e reflexões proporcionados pelas experiências frente às câmaras de gás e aos trabalhos forçados durante o Terceiro Reich tornam-se transponíveis a qualquer época, situação ou indivíduo.
FO
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O INDICANTE: DANIEL PINK
FOTO: REBECCA DROBIS
O livro me convenceu de que o desejo de viver uma vida com propósito e significado é parte do que significa ser humano. Se o autor pôde buscar algo transcendente nos horrores dos campos de concentração, podemos também fazê-lo em nossas próprias vidas.
Eleito um dos 50 pensadores mais influentes do mundo na área de negócios, Daniel Pink é autor de diversos renomados livros, como O Cérebro do Futuro e Motivação 3.0. Sua palestra The puzzle of motivation, que pode ser vista na página do Daniel Pink no site da TAG, está entre os 10 TED Talks mais assistidos de todos os tempos. Pink trabalhou por dois anos na Casa Branca como responsável pelos discursos do vice-presidente Al Gore.
Informações completas a respeito do indicante do mês e do livro recomendado podem ser encontradas em www.taglivros.com.br ou então na revista do próximo mês.