Fevereiro de 2015 Solar
REDAÇÃO
Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Tomás Susin dos Santos tomas@taglivros.com.br
REVISÃO ORTOGRÁFICA
Antônio Augusto Portinho da Cunha Adriana Kirsch Trojahn
PROJETO GRÁFICO
Casa Elétrica casaeletrica@casaeletrica.com
ILUSTRAÇÃO DA CAPA Laura D. Miguel lauradep@gmail.com
IMPRESSÃO
Gráfica da UFRGS
TAG Comércio de Livros Ltda.
Rua Celeste Gobbato, 65/203 - Praia de Belas. Porto Alegre-RS. CEP: 90110-160 contato@taglivros.com.br
AO LEITOR
O
ano de 2015 iniciou com um tema sério – apesar do tom brincalhão de Patch Adams, o livro por ele indicado retrata o racismo no Sul dos Estados Unidos em meados do século XX, descrevendo o julgamento de um camponês negro acusado de assassinar um rapaz branco. Em fevereiro, nosso cenário é o oposto. Paul Bloom é um pesquisador de assuntos densos, como a moralidade, enquanto o livro que nos indicou é leve e divertido. Se William Faulkner, autor do livro indicado no mês passado, foi premiado com o Nobel de Literatura, em fevereiro é o personagem principal do livro o detentor do prêmio do Comitê Sueco. Michael Beard agarra-se ao Prêmio Nobel de Física para suportar os constantes escândalos em que se envolve, tanto na vida pessoal quanto profissional. Buscamos, a cada mês, alternar a experiência literária. Esperamos que apreciem essa mudança no estímulo proporcionado pela leitura. Equipe TAG
A INDICAÇÃO DO MÊS
05 09
O curador: Paul Bloom O livro indicado: Solar
ECOS DA LEITURA
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O Irmão Perdido de Ian McEwan Ode ao Tradutor O Livro e a Arte Alfred Nobel Uma Volta ao Mundo em Busca da Juventude
A INDICAÇÃO DE MARÇO
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Luiz Felipe Pondé
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Indicação do Mês
A INDICAÇÃO DO MÊS
FOTO: SIGRID ESTRADA
Indicação do Mês
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O CURADOR: PAUL BLOOM Teve um tempo que eu dizia: aquele é um turco, aquele é um búlgaro; este é um grego. Eu fiz pela pátria coisas que deixavam você de cabelo em pé, patrão. Degolei, roubei, queimei aldeias, violei mulheres, exterminei famílias. Por quê? Pretextando que eram búlgaros, turcos. Puáh! “Vá para o diabo, seu sujo!”, eu me xingo muitas vezes. “Vá para o diabo, imbecil!”. Agora, olhe o que eu digo: este é um homem direito, aquele é um sujo. Tanto faz se é búlgaro ou grego, não faz diferença. É bom? É mau? É só o que pergunto hoje. -Zorba, o grego – Nikos Kazantzakis
É bom? É mau? É só o que se pergunta o personagem Zorba, no clássico de Nikos Kazanktzakis, ao perceber que seus sentimentos patrióticos tornavamno irracional a ponto de fazê-lo cometer atrocidades que hoje o envergonham. Mas o que nos faz bons ou maus? Essa é a pergunta de Paul Bloom, e o título de seu novo livro, no qual busca compreender como as crianças e os adultos entendem o mundo à sua volta e quais são suas ligações com a moralidade. Nossos valores morais são adquiridos a partir do aprendizado, ou produto de evolução biológica, passíveis de serem identificados logo no berço? Se forem inatos, pendemos para qual lado: egoístas e gananciosos; ou empáticos e solidários? Durante um experimento, uma equipe de pesquisadores presenciou um bebê de um ano de idade fazer justiça com as próprias mãos. O menino havia acabado de assistir a um teatro de fantoches, em que um deles, posicionado ao centro, brincava com outros dois. Primeiro, ele passou a bola para o boneco da direita, que a devolveu. Depois, passou para o boneco da esquerda... que pegou a bola para si e saiu de cena. Findo o teatro, os dois fantoches
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– o que devolveu a bola e o que a roubou – foram colocados em frente ao bebê, que deveria escolher qual deles punir. O garotinho puniu o fantoche “travesso”, tirando guloseimas do pote que o acompanhava. Se não bastasse, aproximouse e agrediu-o com um soco. Resultados semelhantes apontaram Bloom para a mesma conclusão: somos criaturas morais, tendenciados à empatia e à solidariedade desde o momento de nosso nascimento. Quando crianças “neutras” são postas ao lado de crianças que estão chorando, elas também passam a partilhar do sofrimento e juntam-se ao choro – empatia que mantemos na vida adulta: em suas conferências, quando Bloom apresenta bebês abraçando os fantoches “do bem”, ou dividindo seus brinquedos com outras crianças, o resultado é de ternura na plateia. Depois, quando mostra as imagens de uma senhora inglesa agredindo um gato na rua e inserindo-o em uma lata de lixo, a reação é indignação e protesto. “Temos uma capacidade quase perceptual de entender o que é bom e o que é mau”, afirma Paul Bloom. Instintivamente, atraímos o bem e repugnamos o mal. Nem sempre, porém, esse julgamento funciona. Quando informados de que milhares de mortes estavam prestes a acontecer em um país distante, os participantes de uma pesquisa lamentaram com sinceridade, e depois voltaram às suas rotinas. Se, em vez disso, tivessem sido informados de que teriam um dedo amputado no dia seguinte, quantos deles conseguiriam dormir tranquilamente à noite? Em outro experimento, solicitaram doações para causas humanitárias a dois grupos de estudo. Para um, apresentaram estatísticas sobre grandes tragédias – desastres ecológicos, guerras civis, etc. Para outro, ofereceram apenas depoimentos de pessoas, contando seus casos particulares (menos desastrosos) e pedindo ajuda. Corroborando a afirmação stalinista – “uma única morte é tragédia; um milhão é estatística” –, os participantes doaram menos da metade do dinheiro para as grandes causas humanitárias. Por quê? Bloom conclui que os sentimentos de identificação são menores com os números do que com os rostos.
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Para o psicólogo, no âmbito da moralidade, nem sempre as emoções são os guias adequados para as atitudes – nossos sentimentos podem enganar nossas decisões. Bloom não demoniza tais vieses psicológicos, pois nos são inerentes (é normal atormentar-se mais pela perspectiva de perder o dedo do que pela notícia de milhares de mortes distantes), mas salienta que devemos conhecê-los para que possamos adotar as atitudes corretas.
Devemos confiar não nas emoções, mas na razão. Ficamos mais incomodados quando a internet não funciona do que com a morte de milhares de estranhos. A razão pode passar por cima das paixões, estender a nossa empatia, construir tabus e leis que reprimam nossas emoções. -Paul Bloom Esse é Paul Bloom, psicólogo formado pela Universidade McGill, no Canadá, e professor na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, desde 1999. O que nos faz bons ou maus, lançado em 2013, é sua mais recente obra, em que aborda algumas das questões acima introduzidas. Em 2010, publicou How Pleasure Works, examinando a ciência por trás dos nossos desejos, atrações e gostos: se o prazer estético é o mesmo, por que preferimos as pinturas originais às suas gêmeas falsificadas, mesmo quando não poderíamos diferenciálas? Porque nossas crenças sobre algo interferem no prazer que dele derivamos: “se as pessoas começarem a reprovar o processo de obtenção dos diamantes, vão passar a gostar menos deles”. Da formação dos prazeres na vida adulta à moralidade percebida ainda durante a infância, Paul Bloom resgata temas de origem filosófica – como o certo e o errado, os desejos e os prazeres – e estuda-os sob o prisma científico da psicologia.
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Indicação do Mês
Ian McEwan
Indicação do Mês
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O LIVRO INDICADO: SOLAR Ian Macabro. É assim que foi apelidado o escritor britânico Ian McEwan, pelo teor escatológico dos contos que compunham seus dois primeiros livros: Primeiro Amor, Último Sacramento (1975), e Entre Lençóis (1978), que receberam uma edição conjunta da Editora Rocco. Ao longo dos anos, porém, McEwan foi mudando seu estilo – apesar de não ser muito apegado a finais felizes, a partir dos anos oitenta o autor deixou a morbidez de lado e passou a lidar com eventos históricos e contemporâneos, e seus novos livros começaram a chamar a atenção do público. Seu romance Amsterdam (1998) rendeu-lhe o Man Booker Prize, prêmio literário mais importante do Reino Unido, e Reparação (2001), transformado no filme indicado ao Oscar Desejo e Reparação, foi considerado o melhor romance dos últimos vinte anos por Sergio Rodrigues, crítico literário da Revista Veja.
Qualquer livro novo do inglês Ian McEwan é, hoje, um grande evento, que está para a literatura ‘séria’ como um novo Harry Potter está para a literatura de entretenimento. O cara é um monstro. -Sérgio Rodrigues
Desde então, McEwan vem se consagrando como um dos mais importantes escritores da atualidade, considerado um dos grandes candidatos ao Nobel de Literatura nos próximos anos. Mais de vinte livros já foram escritos em homenagem ao autor, tanto analisando algumas de suas obras quanto seu estilo de escrita. Seu último livro, lançado no final de 2014 e intitulado A Balada de Adam Henry, teve início a partir de um jantar informal com seus amigos juízes. Chamou a atenção de McEwan um caso de irmãos siameses, que faleceriam caso não fossem operados. Após a operação, porém, era certo que somente um deles sobreviveria. A família
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opunha-se à realização da cirurgia, pois era contra sua religião: alegavam que só Deus pode tirar uma vida. A decisão recaía sobre o juiz. Interessado pelo dilema moral que algumas decisões judiciais enfrentavam, o autor afirmou ter “resistido à aguda tentação de tomar notas” durante o jantar. Não resistiu, porém, à tentação de escrever um livro a partir disso. McEwan nutre um apreço especial pelo Brasil, onde encontra grande afeição do público. Quando foi convidado a participar da Feira Literária Internacional de Paraty, em 2004, trouxe seu filho para acompanhá-lo, então com dezessete anos. “Ele ficou encantado, disse ‘Este é o meu país’. Voltou para a Inglaterra, economizou dinheiro e depois veio para o Rio, onde arrumou uma namorada brasileira, Ana Carolina, e aprendeu português.”
Quando comecei a escrever, aos 20 anos, queria chocar, escapar da cinzenta e provinciana literatura inglesa e ir atrás de William Burroughs, Philip Roth, John Updike e Henry Miller, que pareciam estar em busca de algo mais ambicioso, mais arriscado. -Ian McEwan
Não é à toa, então, que a citação que antecede o início de Solar (2010), enviado neste mês, seja de John Updike. O tema escolhido para o livro veio de uma visita de Ian McEwan a alguns fiordes na Noruega, com um grupo de cientistas e outros artistas, para verificar as consequências do aquecimento global em primeira mão. Lá, em meio a tantos jantares e reuniões sérias, destinados a traçar planos para salvar o planeta do aquecimento global, as pessoas não resolviam nem seus próprios problemas: a sala de equipamentos de proteção estava sempre desarrumada, e cada pessoa acabava “roubando” a roupa do outro. Percebendo a comicidade e fragilidade da natureza humana para lidar com seus dilemas, pensou que seria interessante tratar do tão polêmico aquecimento global de uma maneira divertida e não técnica – e até transformou essa sua viagem em
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um dos cenários da história. A genial frase de abertura do livro, “Ele pertencia àquele gênero de homens – vagamente feiosos, quase sempre carecas, baixos, gordos e inteligentes – que exercem uma atração inexplicável sobre certas mulheres bonitas. Ou achava que pertencia, o que parecia ser suficiente para transformar o desejo em realidade”, é um acurado retrato do que encontramos no decorrer da narrativa. Descrições cômicas – mas brilhantes – do personagem central, Michael Beard, e suas desventuras, que por vezes nos fazem rir alto, enquanto por outras nos afligem a ponto de termos de desviar o olhar da leitura, em uma frustrada tentativa de evitar o desfecho das situações em que se envolveu o personagem. Na virada do milênio, Beard, um inglês de meiaidade, que recebeu o Prêmio Nobel de Física uma década antes por aprofundar uma teoria de Einstein, vive de suas glórias passadas. Gordo, beberrão e com sérios problemas com suas mulheres – no momento, está arruinando seu quinto casamento –, Beard é convidado para trabalhar em um centro de desenvolvimento de uma solução para o aquecimento global através da energia eólica.
Michael Beard é horrível! Come demais, bebe demais, trai as mulheres, e muito mais (não vou entregar muito do livro!). Ele é o perfeito anti-herói, e é muito divertido entrar em sua cabeça. -Paul Bloom Enquanto acompanhamos o fracasso em consertar o casamento, a descoberta de estar sendo traído por sua mulher e inúmeros outros problemas no âmbito pessoal, Beard conhece Tom Aldous, um dos jovens pós-doutorandos que trabalham como pesquisadores no Centro. Aldous defende que a energia eólica é ultrapassada e ineficiente, e que a verdadeira solução para o aquecimento global reside na utilização da energia solar como fornecedora de eletricidade. É a partir desse momento que a história passa a justificar o título do livro.
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Mas não se deixe levar pelas cenas de humor. A parte “séria” da narrativa é, também, excepcionalmente bem fundamentada. Ao final do livro, nos agradecimentos, McEwan apresenta as fontes que utilizou para estudar e descrever com acurácia a busca por soluções ao aquecimento global, de maneira que, como relata em tom de brincadeira a revista Time, “os pesquisadores do MIT que estudam os temas abordados no livro poderiam desconfiar que McEwan roubou suas notas”.
Além do imenso prazer da leitura, o livro proporciona um subversivo e inspirador olhar sobre como a Ciência realmente funciona. -Paul Bloom A obra, que na superfície centra-se na busca por uma fonte de energia solar para salvar a humanidade, revela os processos e aflições conscientes e inconscientes de um homem, cientista consagrado, vencedor do Prêmio Nobel. Essa dualidade pessoalprofissional está presente ao longo de toda a história, e representa a complexa dinâmica adotada pelo brilhante escritor. Quem já leu alguma obra de McEwan sabe da sua incrível capacidade de mudar de assunto sem que o leitor aperceba-se. Em um momento, você está ponderando entre as vantagens e desvantagens da energia solar; noutro, está acompanhando o personagem enquanto flerta com alguma mulher. Entre eles, a incrível capacidade de McEwan de conduzir o leitor fluidamente pelo universo subjetivo que é a mente de Michael Beard – local em que se passa a verdadeira história. Ao longo de sua vida, Freud defendeu que existe um relacionamento muito próximo entre literatura e psicanálise. Em uma ocasião, sugeriu que, ao tratar do inconsciente, o escritor precede o analista, pois é difícil descobrir dilemas humanos que ainda não foram narrados pela literatura. Em Solar, o comportamento de Michael Beard e seu modo de lidar com as mais diversas circunstâncias de sua vida tragicômica compõem um prato cheio para a análise da mente humana.
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Para muitos, McEwan é o mais talentoso escritor vivo. Sua prontidão para se surpreender com o que observa no mundo é o que permite descrever com impressionante realismo as mais diversas situações mundanas. Seja em um jantar entre juízes, seja em um congresso científico sobre aquecimento global, de qualquer lugar pode sair sua próxima grande obra.
Durante muitos anos eu achei que tragédia e comédia fossem dois planetas distantes. Hoje eu sei que são duas janelas através das quais se descortina a mesma paisagem. -Amós Oz, escritor israelense
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Ecos da Leitura
ecos da leitura
FOTO: FRANÇOIS GUERRAZ
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Nem sempre as grandes histórias ocorrem apenas na imaginação dos escritores. E o que aconteceu com O Irmão Perdido de Ian McEwan é digno de ser contado no primeiro eco dessa revista. Enquanto lemos um bom livro, dificilmente valorizamos a importância de quem o traduziu. Em Ode ao Tradutor, trazemos algumas curiosidades que enaltecem cada tradução – especialmente a do livro enviado neste mês. Mas o que faz de um livro uma grande obra? Em O livro e a arte, apresentamos algumas opiniões de escritores que refletem sobre quando um livro é mero entretenimento, ou quando ele atinge o estado de arte. Michael Beard, personagem principal de Solar, é um físico condecorado com o Prêmio Nobel de Física. Seja na Física, na Química, na Literatura, ou em qualquer outra área, o Nobel é considerado o prêmio de maior renome. Mas você sabe como foi seu surgimento? E, mais ainda, que Alfred Nobel era um amante dos livros? No último eco deste mês, trazemos uma bonita história sobre Uma Volta Ao Mundo em Busca da Juventude, do escritor (e associado TAG!) Felipe Pereira, de São Paulo. Felipe percorreu o mundo conhecendo crianças das mais diversas culturas, tentando entender a juventude, e escreveu um breve texto exclusivo para a TAG contando sua experiência, além de nos enviar algumas de suas fotos. contato@taglivros.com.br
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O IRMÃO PERDIDO DE IAN MCEWAN Apesar de não ser muito afeiçoado a finais felizes, o que acaba de acontecer com Ian McEwan pode ser considerado um desfecho digno de Charles Dickens: depois de mais de cinquenta anos, finalmente conheceu seu irmão. A história começa como em um clássico ambientado durante a guerra. Em 1942, uma mulher chamada Rose engravidou enquanto seu marido estava lutando na guerra. Desesperada para se livrar do bebê antes que seu marido descobrisse o adultério, anunciou nos jornais que necessitava de uma casa para uma criança de um mês de idade. O anúncio foi respondido, e o bebê entregue a seus pais adotivos na estação de trem de Reading. Seu marido, porém, nunca voltou para casa. Ele faleceu logo após o ataque do Dia D. Rose casou-se com o pai da criança, David McEwan, e o futuro novelista Ian nasceu em 1948. Enquanto isso, o bebê, agora chamado Dave Sharp, era criado por outra família, que após quatorze anos contou-lhe que era adotado. Dave levou, porém, cinquenta anos para encontrar sua família biológica – através dos registros do Exército da Salvação, localizou uma tia disposta a contar o segredo de Rose. Dave conseguiu encontrar Rose logo antes de ela falecer, e então conheceu Ian McEwan, que o recebeu na família. Mas a história, que parece ter saído de um livro, não para por aí: os irmãos viviam próximos um do outro, na mesma cidade. Dave Sharp, um homem grandalhão que trabalhava com enxadas e tijolos, procurou sua família sem nunca ter ouvido falar de Ian McEwan, um intelectual esguio que trabalhava com palavras e ideias. A partir do primeiro encontro, para divertimento de Dave, suas conversas em público costumavam ser interrompidas por fãs pedindo autógrafos.
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Dave Sharp sugeriu a McEwan que escrevesse um livro contando a história de sua família. McEwan, porém, respondeu que a história era de Dave, e que ele é que deveria contá-la. Assim surgiu Complete Surrender, escrito por Sharp e com a introdução de ninguém menos que Ian McEwan.
Eu já li todos os seus livros, agora. Mas se ele é faxineiro ou escritor, não importa. Ele é apenas meu irmão. -Dave Sharp sobre Ian McEwan
Complete Surrender é o título do anúncio que Rose colocou no jornal para que alguém aceitasse o bebê.
Ian McEwan e Dave Sharp
18 Ecos da Leitura
ODE AO TRADUTOR “Não sei se são todos os textos que possibilitam uma tradução”, afirmou Alberto Manguel, brilhante escritor argentino, enquanto tentava – com dificuldades – traduzir para o inglês um dos contos de Jorge Luis Borges a um amigo. “A tradução é a arte de reimaginar, em outra língua e através dos outros olhos, aquilo que determinado texto aparenta tentar comunicar. Ela demanda de um leitor não apenas a compreensão de um texto, mas a construção de um outro, diferente, que permita a um outro leitor essa mesma compreensão. Quando exitosa, a tradução é a arte do entendimento”. Algumas profissões somente são notadas quando algum erro é cometido – em caso de êxito, passam despercebidas. É o caso dos tradutores, um trabalho invisível, mas fundamental à qualidade da obra. Philip Roth, o célebre escritor norte-americano, exige de suas editoras que o tradutor seja remunerado com base em cada exemplar vendido, o que constitui uma inusitada manifestação de respeito a uma classe de colaboradores que não costuma ser prestigiada no Brasil.
Uma boa tradução não salva um mau livro, mas uma má tradução pode afundar um bom livro. No entanto, vejo o autor como um artista e o tradutor como um artesão. -Jorio Dauster A edição brasileira de Solar, enviada aos associados desse mês, teve o esmero que seu autor merece. O tradutor responsável é Jorio Dauster. Embaixador, negociador da dívida externa no início dos anos noventa, presidente da Vale do Rio Doce de 1999 a 2001 e hoje executivo de uma grande produtora de biodiesel, entrega-se à tradução por prazer e amor aos livros. Um dos mais respeitados tradutores brasileiros, Dauster está em posição de escolher os alvos de sua tradução: aceita somente autores que admira – nomes como J. D. Salinger, Nabokov, Philip Roth e Ian McEwan.
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O LIVRO E A ARTE O romancista britânico Nick Hornby propôs, certa vez, queimar os livros que são lidos “por pura pose”. Insistir no livro indigesto, para não admitir sua derrota, “é reforçar a ideia de que ler é uma obrigação e ver televisão é um prazer”, afirmou, em um elogio à leitura como atividade hedonista. Mas a leitura prazerosa é significativa? Há uma dicotomia implícita – e às vezes explícita, como no caso dos romances policiais, por vezes reputados como categoria inferior – na percepção dos leitores entre profundidade intelectual e entretenimento.
Uma obra que altera minha percepção de mundo: essa, para mim, é a diferença entre arte e entretenimento. A arte tem o poder de te transformar, ou pelo menos a forma como você vê o mundo, enquanto o entretenimento tem, no máximo, um efeito transitório. Certamente, não sou imune aos encantos da leitura de entretenimento, mas com livros de aventuras e mistérios você tem sentimentos temporários, vicários, que se esvaziam quando a leitura termina, carregando nada, ou pouco, da experiência. –Neil Peart, músico e escritor.
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Peart lembrou, ainda, do poeta romano Ovídio, que afirmou que “a arte é boa, escondida; às claras, não é arte”. Maravilhoso é o poder da literatura quando, ao finalizarmos um livro, apercebemo-nos da quantidade de pensamento, de pesquisa e de trabalho que foi dedicado a criar e entrelaçar aquelas palavras, de modo a tornar a leitura envolvente. A sofisticação, a densidade e a profundidade permanecem na obra, mas fantasiam-se de simplicidade e entretenimento. No momento em que isso ocorre, nasce, talvez, o grau mais sofisticado de arte: quando a seriedade funde-se com a brincadeira; a densidade, com a leveza; a loucura, com a sensatez; o estudo, com o entretenimento; e nessa fusão o artista desfaz a dicotomia, e cria uma obra ao mesmo tempo significativa e envolvente, transportando-se para dentro do leitor e mantendo-se lá mesmo após o término da leitura. Em Solar, Ian McEwan une a brincadeira e a seriedade, os estudos e o entretenimento, a densidade e a leveza. Se é arte, porém, só o leitor poderá dizer.
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ALFRED NOBEL
Quem foi e como surgiu o Prêmio?
VIDA: Nascido em uma família de engenheiros, em 1833, em Estocolmo, Suécia, Alfred Nobel teve o interesse por química despertado desde cedo. Ao longo de sua vida, inventou diversos dispositivos, até chegar à sua obra prima: a dinamite, desenvolvida como meio de aprimoramento das técnicas de demolição, e não como artefato bélico. Em 1888, quando seu irmão Ludvig faleceu, um jornal francês confundiu-o com Alfred, e noticiou: “morre o mercador da morte”. Indignado com o modo pelo qual estava sendo lembrado e com o desvirtuado uso de seu invento, Nobel buscou se redimir. Alterou seu testamento, designando que toda sua fortuna fosse utilizada para premiar, anualmente, pessoas que prestassem grandes serviços à humanidade, nas mais diversas áreas do conhecimento. Provavelmente, Nobel remexe-se em seu túmulo cada vez que um prêmio é dado a tipos como Michael Beard, personagem principal de Solar. SUÉCIA E NORUEGA: Todos os prêmios são entregues na Suécia, à exceção do Nobel da Paz, que tem sua cerimônia em Oslo, na Noruega. Na época em que viveu Alfred Nobel, existia uma união entre Suécia e Noruega. No entanto, enquanto a Suécia era um país militarizado, a Noruega sempre prezou pela paz. Acredita-se que esse seja o motivo pelo qual Nobel determinou que o Prêmio da Paz fosse concedido na Noruega, e não na Suécia. LITERATURA: Inicialmente, as pessoas surpreenderam-se que seu testamento prescrevesse a premiação de escritores. O que muitos não sabiam, porém, é que Nobel sempre nutriu um grande apreço pelos livros, reunindo milhares de exemplares em sua biblioteca pessoal. Quando suas invenções não estavam absorvendo todo seu tempo, Nobel dedicava-se também a escrever. O último escritor agraciado com o Nobel de Literatura, em 2014, foi Patrick Modiano. O romancista francês teve ressaltada sua habilidade de trabalhar com a memória e de resgatar o sombrio período da ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial, em que são ambientados muitos de seus livros. A Academia Sueca, que atribui o prêmio, recomenda que quem ainda não conhece o autor inicie por Rua de Roma.
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Alfred Nobel
24 Ecos da Leitura
UMA VOLTA AO MUNDO EM BUSCA DA JUVENTUDE Para finalizar a revista deste mês, uma singela homenagem a um um associado da TAG: com muita alegria, descobrimos que Felipe Pereira, de São Paulo, acaba de lançar seu primeiro livro: Jovem o suficiente. Após uma viagem de um ano e meio ao redor do mundo, Felipe Pereira decidiu escrever sobre suas experiências. O texto a seguir, escrito especialmente à TAG, conta um pouco de sua história e suas motivações para se tornar escritor.
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Desde o começo da adolescência, eu sonhava, junto com meu melhor amigo, em fazer uma viagem de volta ao mundo. Passávamos tardes encarando mapas, imaginando rotas, e conversando sobre como largaríamos tudo para mergulhar nesse sonho. Passaram-se alguns anos, amigos ingressaram na faculdade, rotinas “adultas” começaram a se formar... E com meu melhor amigo, não foi diferente. Ele tomou seu rumo, e me deixou com meu sonho. Assim como ele, percebi que todos que tinham crescido comigo abdicavam de antigos ideais pra assumir compromissos e rotinas que pouco tinham a ver com suas paixões. Meu melhor amigo, a meu ver, ilustrava o “envelhecimento” que se manifestava em minha geração. E eu, na faculdade, atolado de preocupações “mundanas”, seguia por um caminho parecido. Era hora de retomar aquele sonho de infância e transformá-lo em realidade, mesmo que sozinho. Com um adendo: o que antes era vago, em termos de propósito, agora ficara nítido. Meu objetivo deveria ser o de não deixar escapar essa juventude pela qual eu sempre prezara, e que o tempo vinha agora roubando de todos ao meu redor.
26 Ecos da Leitura
Fui sozinho. Passei por mais de trinta países em quase um ano e meio de viagem. Foram cinco meses na Europa, seis na Ásia e um pouco menos na América Central. Minha ideia era entrevistar e fotografar as crianças que cruzassem o meu caminho, para aprender, através de suas palavras e olhares, a me manter jovem. Em suma, fui atrás da juventude em sua própria fonte. “Morei” em uma vila indonésia, no sul da Ilha de Java, onde lecionava inglês para crianças na escola local, gastando menos de cinco dólares por dia e vivendo uma rotina de sonho. Percorri trilhas recém abertas no Himalaia, na fronteira entre o Nepal e o Tibete, convivendo com populações locais que mal e mal tinham tido contato com ocidentais. Guiado por essa curiosidade “juvenil”, no entanto, também acabei entrando em muitas frias. Algumas, inclusive, das quais achei que não fosse conseguir sair. Passei por uma cirurgia de emergência em um precário hospital soviético, na Bulgária; fui cordialmente “expulso” da casa de um turco que me hospedara, perto da fronteira com a Síria, às 5 da manhã, porque um bombardeio começara a trinta quilômetros dali. E vi arrefecer minha esperança na pureza da infância quando, na Ásia, vi morrerem desconhecidos, enquanto nativos acatavam esses episódios como corriqueiros.
Ecos da Leitura 27
Crianças têm sonhos abundantes e fantasiosos, e medos raros e mundanos. Adultos têm sonhos raros e mundanos, e medos abundantes e fantasiosos. Onde eu me vejo daqui a cinquenta anos? Me vejo no lado “jovem” dessa diferença: sonhando mais que temendo. Contando histórias para meus netos e, através das reações inocentes deles, aprendendo que ainda estou longe de ser jovem o suficiente para saber de tudo. Sabe aquele meu melhor amigo? Esse livro é para ele.
Caso deseje saber mais sobre o livro ou entrar em contato com Felipe Pereira, envie e-mail para contato@taglivros.com.br
28 Indicação de Março
A INDICAÇÃO De MARÇO
FOTO: IDS.PHOTOS
De tempos em tempos, surge alguém capaz de deixar sua marca na história da literatura. Luiz Felipe Pondé mergulhou no universo de um dos maiores escritores de todos os tempos e selecionou, entre toda sua obra, uma pequena preciosidade para indicar à TAG. Contrastando com seus principais romances, alguns com quase mil páginas, o livro escolhido para o mês de março reúne duas pequenas novelas publicadas pelo autor nos últimos anos de sua vida, justamente na época em que produzira suas mais brilhantes narrativas. Entre elas, um assunto em comum: o suicídio. Na primeira história, acompanhamos as aflições de um rapaz cuja mulher acabou de se suicidar. Na segunda, seguimos a linha de pensamento de um homem que decide acabar com a própria vida. De fácil compreensão, porém lenta absorção, a profundidade dos contos é alcançada ao penetrarmos na alma dos personagens, característica marcante das obras do autor.
Indicação de Março 29
O CURADOR: LUIZ FELIPE PONDÉ
Escolhi esse autor porque é eterno como a morte. Ele e Shakespeare são melhores do que quase tudo o que a humanidade produziu em literatura
Luiz Felipe Pondé é filósofo, escritor e ensaísta brasileiro. Ao tratar de temas de origem filosófica – como o niilismo, religião, felicidade, sofrimento – com linguagem contemporânea, Pondé passou a receber notoriedade pública. Além de autor de diversos livros, Pondé é também colunista da Folha de São Paulo. Suas obras de maior destaque são Contra um mundo melhor (2010) e Guia Politicamente Incorreto da Filosofia (2012), que logo após seu lançamento figurou entre os livros mais vendidos do país, segundo a Revista Veja. Seu último livro, lançado em 2013, intitula-se A Filosofia da Adúltera.
Informações completas a respeito do indicante do mês e do livro recomendado podem ser encontradas no www.taglivros.com.br ou então na revista do próximo mês. Caso já tenha lido o livro, envie e-mail para contato@taglivros.com.br para conhecer as alternativas.
contato@taglivros.com.br www.taglivros.com.br facebook.com/taglivros @taglivros
-Charles Chaplin-