"Sula" - Revista TAG Curadoria Fev/21

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Sula

PREFÁCIO


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OLÁ, TAGGER Imaginamos que você deva se considerar livre. Grande parte de nós fez muitas escolhas pela vida: a carreira, as pessoas com quem se envolveu, o lugar onde mora, a comida que come. No Fundão, local de nascimento de Sula Peace, pouca coisa é por escolha nos anos 1920. As mulheres negras casam porque precisam e a maternidade lhes é imposta. Os homens negros ficam com os trabalhos que os brancos recusam. Negros e brancos, por sinal, que pouco interagem naquele país segregado. Educação? Você deve estar de brincadeira. Até que Sula se impõe. Sula sai voando do Fundão em direção à vista de todos: ela descobriu que não deve fazer o que não quer fazer, e que só vai fazer o que lhe é prazeroso. A reação é a imaginada para as mentes daquela época: primeiro, escândalo, depois escárnio, depois um estranho pavor. É isso que você conhecerá neste prefácio. O universo de Sula, como apresentado de forma brilhante pelo professor Luiz Maurício Azevedo, e a história da mente de Toni Morrison, autora do livro que você lê este mês. Boa leitura!


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fevereiro de 2021

COLABORADORES

FERNANDA GRABAUSKA

RAFAELA PECHANSKY

LAURA VIOLA HÜBNER

Editora-chefe

Publisher

Assistente

SOPHIA MAIA

ANTÔNIO AUGUSTO

LIZIANE KUGLAND

Assistente

Revisor

Revisora

PAULA HENTGES

KALANY BALLARDIN

GABRIELA BASSO

Designer

Designer

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Impressão Gráfica Ipsis

Ilustração de capa Linoca Souza

COMO MANUSEAR A REVISTA Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.

Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se! Não esqueça de destacar a ilustração colecionável.


SUMĂ RIO prefĂĄcio

5 O livro indicado

8 Unboxing

9 Comunidade de leitores

10 Ressignificando o trauma

13 Elas querem liberdade


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O livro indicado

NOVOS MODOS DE DOMINAR A ARTE Em Sula, Toni Morrison nos mostra o tempo como desarticulador das intenções e dos poderes do ser humano

LUIZ MAURÍCIO AZEVEDO Doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP e pesquisador pós-doc na FFLCH/USP; autor de A toupeira invisível: marxismo negro e cultura antimarxista em Ralph Ellison

Recorte da ilustração do kit Sula, por Linoca Souza.

“A liberdade feminina sempre significa liberdade sexual, mesmo quando — sobretudo quando — vista pelo prisma da liberdade econômica. A liberdade sexual de Hannah Peace foi minha porta de entrada na história, construída a partir dos cacos de memórias de como as mulheres da cidade enxergavam certo tipo de mulher — inveja aliada a aprovação divertida.” Toni Morrison

Publicado em 1973 pela afro-americana nobelizada Toni Morrison, Sula aparece três anos após o lançamento de O olho mais azul, sua obra de estreia. Ao contrário do livro anterior, cujo foco narrativo era a infância e suas vulnerabilidades múltiplas, em Sula a atenção da autora se volta para a construção do tempo como força desarticuladora das intenções e dos poderes das personagens. Sula nos sugere que os comportamentos sociais de uma época – construídos com eloquência, dor e risco – tendem a perder relevância ao longo da história, desfazendo o sentido de sacrifícios, renúncias e autoviolências. Sula é uma publicação sobre o custo social da liberdade em cenários – geográficos ou simbólicos – onde o mandonismo e o raquitismo filosófico imperam. A liberdade surge no romance como um tipo de espetáculo ôntico, cuja observação revela mais a respeito de quem observa do que propriamente sobre o que está sendo observado. 5


O romance é, de longe, o mais psicanalítico dos já profundamente psicanalíticos livros de Morrison. Sula Peace é uma personagem criada sob o arquétipo da liberdade individual, operação narrativa destinada a nos fornecer uma interpretação tétrica dos efeitos que o exercício da autonomia individual pode causar. O enredo, ao contrário do esperado, não ajuda os leitores e leitoras a entendem o que se passa. Funciona, ao contrário, como uma prestidigitação da autora, que manipula o interesse de quem lê a fim de oferecer o que finalmente interessa à sua alta ambição estética: produzir uma história sobre a única sororidade possível em um mundo onde as mulheres se debatem com o reflexo daquilo que não podem ser. De certo modo, trata-se, então, de uma história de horror, uma fábula afro-americana sobre como a liberdade pode ser antes um tormento que um sonho idílico.

“A LITERATURA, ESPÉCIE DE DISPOSITIVO FISCALIZADOR DA MEMÓRIA, CONCENTRA SUA POTÊNCIA NÃO NO QUE DIZ, MAS NA ELOQUÊNCIA DAQUILO QUE INSINUA.” Esse é, também, um livro sobre sexualidade, o que, em Morrison – como em Freud –, significa dizer que é um livro sobre como as dinâmicas da busca do prazer vão se capilarizar por todas as esferas da vida humana. Volições que correm livremente em Sula são interditadas em outros personagens, gerando uma tensão que leva o romance além do mero registro das condições sociais de vida de um vilarejo de maioria negra nos Estados Unidos. Sula é a mãe liberta que não precisa gastar suas estratégias na proteção de Zeus. É livre porque é autônoma. E é autônoma porque é sozinha. Nessa equação, os conceitos de Gemeinschaft e Gesellschaft (comunidade e sociedade) têm o mesmo sentido: matar o indivíduo. Para sobreviver, sugere Sula, é 6


preciso desprezar a aldeia e subjugar a cidade. Nenhuma negociação está disponível. Liberdade é desabilitar a faculdade que o outro possui de me influenciar com a versão que ele tem de mim mesmo. Ser livre é, pois, limitar os poderes que os outros têm sobre mim. Sula é essa história de confronto com nossa própria incapacidade de assumir que situações adversas trazem o conforto da inação. Haveria, pois, um prazer oculto advindo da impossibilidade de ação, uma espécie de consolo masoquista de ver-se dentro de uma grande jaula, dentre iguais que, ao não se moverem para fora dela, me libertam da vergonha de fazer o mesmo. São justamente os que saem, os que dizem ser possível escapar dos limites e das fronteiras, aqueles que vão receber dos demais – dos que ficaram por ignorância ou vontade – o ódio, fruto da profunda insatisfação de quem vê apenas nos outros a potência que queria ver em si próprio. Sob essa perspectiva, Sula é uma versão pós-moderna do mito platônico da caverna, na qual quem vê a realidade das sombras paga com a própria vida a delícia de ter testemunhado a verdade. Quando considerada a relação da obra com a tradição literária que a antecedeu, nota-se aqui um desejo de participação da autora em um seleto grupo de personalidades cujo projeto estético não se furta a incidir sobre o imaginário que os Estados Unidos têm de si mesmo. Fazem parte desse grupo: Steinbeck, Baldwin, Faulkner, Twain, Roth, DeLillo, Ellison, Whitman, Franzen e Stowe. Todos esses nomes produziram obras que, a seu modo, procuraram reordenar a vida social americana, apontando as inconsistências de um projeto civilizatório precário. A literatura, espécie de dispositivo fiscalizador da memória, concentra sua potência não no que diz, mas na eloquência daquilo que insinua. E é desse intervalo que nasce Sula, uma obra de força e fadiga, cuja potência criativa provoca em quem lê fascínio e espanto. Eis aqui uma rara oportunidade de se testemunhar o que ocorre quando alguém concentra toda a sua força em fazer da vida um momento luminoso, barulhento e perturbador, que destrói tudo ao redor enquanto vive, porque – exatamente como um buraco negro – não pode resistir ao destino de atrair para dentro de si tudo que o cerca. 7


MIMO Unboxing

A profundidade dos diálogos entre Sula e Nel é um dos pontos altos do livro. E, para embelezar o cenário das intensas conversas que nós mesmos mantemos em nossas vidas, enviamos um conjunto de jogos americanos para decorar, com elementos da obra, um dos lugares em que elas acontecem na nossa realidade: ao redor das mesas. Seja no café da manhã, jantar, ou em alguma ocasião no meio disso, esperamos que o conjunto sirva de pano de fundo para grandes trocas de ideias!

PROJETO GRÁFICO A dualidade é um conceito muito presente na obra do mês. Para evocar essa questão, a artista Linoca Souza trouxe para a capa as duas protagonistas do romance em lados opostos, vestindo cores contrastantes e rodeadas de elementos marcantes da narrativa — a rosa, que Nel enxerga na marca de nascença de Sula; e os pássaros que invadem a cidade, bom ou mau presságio, dependendo de quem observa. A luva, feita pelo time de design da TAG, é repleta de rosas abstratas e busca brincar com o imaginário do leitor, seguindo uma padronagem parecida com a que encontramos em testes psicológicos com imagens não concretas, fazendo uma referência à marca de nascença de Sula — que recebe diferentes significados, variando com a intenção de quem a enxerga.

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COMUNIDADE DE LEITORES O que acontece quando milhares de leitores se reúnem em um único lugar?

O aplicativo da TAG é lugar de conversas e trocas sobre livros e literatura, além ser de uma ótima forma de se conectar com a nossa comunidade literária. Afinal, é lá que você conhece os outros associados do clube. Espie o que tem acontecido por lá:

Rubens Tietzmann 3 semanas

Ranking mensal finalizando o mês de outubro, mas já inserindo a posição do livro de novembro, já lido por 50 assinantes. O ranking conta hoje em dia com os 76 livros enviados pela TAG desde o seu surgimento (em agosto de 2014):

1º - As alegrias da maternidade 4,8 2º - A terceira vida de Grange Copeland 4,7 3º - Stoner 4,7 4º - Eu sei por que o pássaro canta na gaiola 4,6 5º - Orgulho e preconceito 4,6 6º - O físico 4,6 7º - O olho mais azul 4,5 8º - O mundo se despedaça 4,5

Ranking de livros da TAG Desde 2017, o associado Rubens Tietzmann atualiza mensalmente a lista de classificação dos livros enviados pela TAG Curadoria, da melhor até a pior nota. O ranking já é tão icônico que inspirou nossa retrospectiva #RetroTAG, no final de 2020.

Dandara Lima 4 dias Deposite aqui sua indicação de livro absolutamente viciante, daqueles que não conseguimos dormir enquanto não terminamos de ler. Estou precisando muito. Obrigada, taggers.

Indicações de livros Terminou a leitura da TAG do mês e não sabe o que ler a seguir? Conversas sobre livros e indicações não faltam no app!

Conexões literárias Lá em 2018, a tagger Daniele Koller convidou os associados no aplicativo a dizerem sua idade e a cidade onde vivem. A postagem foi um sucesso e recebe comentários até hoje.

Daniele Koller 1 ano

Estava pensando em dar uma de cupido e dar um empurrãozinho rsrs Tem gente solteira ai? Vamos nos entrosar? Sei lá, de repente aquele joguinho, deixe seu nome, sua idade e cidade nos comentários e quem curtir a pessoa chama no chat pra conversar, não necessariamente para namoro mas amizades, trocar ideias sobre os livros da vida, etc e tal. Quem eu vamos participar? Rsrs 509 curtidas

420 comentários

Abra ou baixe o aplicativo da TAG Curadoria e participe das nossas conversas!

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Perfil

RESSIGNIFICANDO O TRAUMA Com uma obra em que a dor das mulheres negras é central, Toni Morrison é um “espelho ancestral”, segundo pesquisadora

NATHANE DOVALE

Há quem ainda discuta que arte e política devam ser vistas como possibilidades e não como necessidades da literatura. O argumento sempre esteve presente nos pressupostos epistemológicos para a validação de uma obra de arte. Em seu discurso ao ser consagrada a primeira mulher negra a receber um Nobel, em 1993, Toni Morrison proferiu, no entanto, a seguinte frase: “Ficção nunca foi entretenimento para mim”. No prefácio de Sula, obra que você recebe este mês, Morrison afirma que, já que sua sensibilidade é “extremamente política e veementemente estética”, o trabalho dela seria permeado por essa dicotomia, sem prejuízo algum ao resultado. O que poderia haver de tão ruim em ser socialmente perspicaz, politicamente consciente na literatura? A crença geral é de que ficção política não é arte; que é menos provável que uma obra assim tenha valor estético porque a política — a política como um todo — é plano de ação e, portanto, sua presença macula a criação estética. A escritora afro-americana Toni Morrison nasceu em Lorain, Ohio, no ano de 1931. Quando era jovem, o pai de Morrison foi obrigado a se mudar de sua Geórgia natal com os pais após assistir ao linchamento de um homem negro em sua cidade. O sentimento de ilegitimidade

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Toni Morrison durante aula na Academia Militar dos Estados Unidos, em 2016. Mike Strasser/ USMA PAO, CC BY-NC-ND 2.0

sentido pelo pai naquele momento acompanhou Toni por grande parte da vida. No documentário The pieces I am, de 2019, Morrison conta que o recebimento do Nobel de Literatura foi provavelmente a primeira vez em que se sentiu americana. Toda a trajetória de vida da escritora foi determinante para uma obra que traz referências culturais aos povos da diáspora africana e constrói histórias sobre racismo, escravidão e a busca pela construção de uma identidade. Toni se formou em Letras em 1935, egressa de uma universidade tradicionalmente negra, a Howard, em Washington. Seguiu para o mestrado na Cornell, no Estado de Nova York, com dissertação sobre as obras de Virginia Woolf e de William Faulkner. Após lecionar em algumas universidades, Toni passou a ser editora de obras majoritariamente de autores negros na Random House. Ali, ela trabalhou com grandes autoras, como Angela Davis, Gayl Jones e Toni Cade Bambara. Toni Morrison foi e ainda é grande incentivadora não somente da literatura negra, mas de mulheres negras na literatura. Para a doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia Hildália Fernandes, é evidente que Toni Morrison deixa grande legado – embora sua genialidade não caiba em nenhuma tentativa de síntese. “Morrison nos (as intelectuais negras) fez acreditar que é possível alcançar prêmios como o Nobel de Literatura, mesmo que para isso fosse preciso esperar 101 anos desde a fundação do mesmo e ainda que, após a sua premiação conquistada, mais nenhuma de nós tenha conseguido tal intento”, explicou. Segundo Fernandes, Morrison conduz, “inevitavelmente”, escritoras e escritores negros a “portos de empoderamento e emancipação, bem como à promissora deriva”: “Toni Morrison tem inspirado pesquisadores pelos mais diferentes lugares do mundo. Além do mais, ela nos faz crer que, mesmo em condições muito adversas de 11


produção, é possível a concretização dos sonhos e planos. Ela nos apresentou maternidades e maternagens negras incríveis e que muito nos ensinaram e inspiraram, sem julgamentos. Enfim, essa mais velha se configura como um espelho ancestral que reflete e refrata toda a nossa complexidade como ser humano no mundo”, diz. Uma das principais características de Morrison é a construção identitária dos seus personagens partindo de lugares históricos e traumáticos. “O trauma tem um lugar de destaque no rico, complexo e diversificado legado deixado por Toni Morrison. Sendo o processo de escravização e o pós-abolição temas recorrentes nos romances por ela escritos, torna-se inevitável tal marca. O sofrimento de suas personagens é tão próximo ao nosso, como mulheres negras, que nos sentimos e, de fato, somos parte dessas mulheres desenhadas por ela”, conta Fernandes. A fala de Fernandes só corrobora o pendor de Morrison para valorizar a contação de histórias. Em cada um de seus livros, é imprescindível a participação do leitor na construção da narrativa. É notável a atenção de seus romances ao fortalecimento da linguagem falada por negros, por exemplo. Afinal, para Morrison, quando a linguagem morre – por descuido, desuso e ausência de estima, indiferença ou por decreto –, não apenas ela mesma, mas todos os seus usuários e criadores são responsáveis. Na tentativa de manipular a linguagem em Sula, Toni Morrison vai mais longe, segundo ela própria diz no prefácio, e trabalha “elegantemente” com um vocabulário dito deselegante: [Quis] usar a linguagem popular, vernacular, de maneira que não fosse nem exótica nem cômica, nem menestrelada nem analisada sob microscópio. Queria redirecionar, reinventar os juízos políticos, culturais e artísticos reservados aos escritores afro-americanos. Décadas depois do lançamento da história de Sula, a mulher que ousou ser livre, chegou sua hora de perceber, tagger: Toni Morrison conseguiu. Ela sempre conseguiu.

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BRENDA VIDAL

Livros para ir além

ELAS QUEREM LIBERDADE

No prefácio de Sula, Toni Morrison já declara: “mulheres fora da lei são fascinantes”. No contexto de produção da obra, quando a autora vivia no bairro do Queens em 1969, “agarrar a liberdade parecia irresistível”. Na trama, a personagem Sula é esse ponto da cruz matriarcal que se permite experimentar a liberdade, não importando o que os padrões sociais esperam. Aqui, viramos a bússola e nos orientamos em direção Sul(a). Conheça abaixo quatro personagens da literatura que rompem barreiras e amplificam o conceito de liberdade. Tish Se a rua Beale falasse (1974), de James Baldwin Uma história de amor e justiça vista pelos olhos de uma jovem e perseverante mulher negra. Em Se a rua Beale falasse, obra do norte-americano James Baldwin lançada em 1974 e adaptada para o cinema em 2018, é a perspectiva de Tish que conduz um enredo que oscila entre angústia e esperança. Aos 19 anos, ela se vê apaixonada, noiva e grávida de Fonny, mas os planos do casal são violentamente interrompidos quando ele, homem negro, é acusado injustamente de um estupro. Tish acolhe a violência traumática sofrida pela vítima, mas tem certeza de que seu parceiro está preso por algo que não fez. É com esse coração apaixonado, cheio de ternura, lealdade e obstinação que ela move estruturas para provar a inocência do companheiro. Em um sentido coletivo, Tish encarna a figura central de base familiar e política que as mulheres negras ocupam em suas comunidades e na luta antirracista. Enfrentando uma das táticas de opressão racial mais engenhosas – o encarceramento em massa da população negra –, ela contém, em si, a via de liberdade de um jovem negro. 13


Tituba Eu, Tituba, bruxa negra de Salem (1986), de Maryse Condé Como uma mulher negra, escravizada e condenada por bruxaria pode ser um símbolo de liberdade? Entendendo que a liberdade não é um ponto final, e sim uma série de movimentos que nos liberta. Se a liberdade plena era algo que o sistema colonial implantado no continente americano negava, impedia e inviabilizava para o povo negro, com requintes de crueldade de gênero direcionados às mulheres negras, a insurreição era a coisa mais próxima da liberdade. Na ficção histórica da guadalupenha Condé, Tituba – personagem real, que consta como a única negra entre as pessoas julgadas em Salem por bruxaria – coloca-se em risco para praticar rituais que nutrem a si e aos seus. Sua feitiçaria é se comunicar com seus ancestrais no plano espiritual e ser curandeira: entender os ciclos da terra, cuidar, com plantas, de feridas e doenças de pessoas escravizadas. Marcada por uma sequência de restrições e violências, ela é condenada por aquilo que lhe confere subjetividade, identidade e pertencimento cultural em um contexto de dissociação territorial. Mas a voz de Tituba é alta e persistente o suficiente para os ouvidos atentos de Condé, cuja imaginação brinda aos ouvidos das novas insurgentes uma narrativa até então invisibilizada. Rami Niketche: uma história de poligamia (2002), de Paulina Chiziane Mergulhar num processo de autoconhecimento e fomentar novos caminhos orientados pela união feminina em um contexto cultural e conjugal de submissão. É esse o processo libertador e libertário que a personagem Rami vive e promove em Niketche, da escritora moçambicana Paulina Chiziane. Passado no país da autora, o romance apresenta uma diversidade de personagens inspiradoras à maneira delas, mas é conduzido pelo olhar da principal catalisadora da trama: Rami, uma mulher casada há 20 anos com Tony, seu único marido. Depois de muito negar o comportamento abusivo do marido, ela 14


descobre a existência de relacionamentos extraconjugais. Na verdade, extraconjugais para ela. Tony é homem poligâmico em um país de tradição poligâmica, mas que não comunica a Rami de seus outros relacionamentos. Nesse processo doloroso e chocante, ela descobre quatro outras esposas com quem seu marido se relaciona, e os filhos delas. O que começa como uma vingança motivada por raiva e rivalidade feminina acaba se tornando uma jornada de autoconhecimento, crítica aos pilares patriarcais imbricados à poligamia, e a formação de uma rede de justiça, autonomia, solidariedade e empoderamento entre Rami e as outras esposas de seu marido.

Ponciá Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo Ponciá é uma figura tão una quanto plural. Lida com angústias ancestrais, com suas próprias angústias e encontra alívio nas gravidezes malsucedidas, que abortam também as angústias das próximas gerações. O romance de estreia de Conceição Evaristo, curadora deste mês, é um convite à trajetória circular da protagonista que nomeia a obra. Lúcida, desesperançosa e atordoada, Ponciá mostra que a procura pela liberdade não é exatamente uma trajetória retilínea e evolutiva. Libertar-se envolve nomear as dores, numerar os vazios, descobrir no que se agarrar e do que se desapegar. No desenrolar da trama, Ponciá é uma das faces do eu rasurado, apartado de si, herança de um processo de escravização da população negra no Brasil que resulta em dissociação e nas fraturas familiar e subjetiva de um povo que reivindica liberdade até os dias de hoje. Se Ponciá se desencanta na cidade grande, não deveria ser só essa a medida de seu fracasso ou sucesso. Ela é uma mulher preta e pobre, em um contexto de pós-abolição recentíssimo, que acolhe suas angústias e decide sair de casa na tentativa da construção de uma outra vida possível, na quebra de um ciclo, na busca pela resposta de uma pergunta não definida, mas que faz peso em seu coração. Ponciá sabe que estar liberta não significa estar livre, e essa noção é imprescindível para que ela se torne livre de fato. 15


Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.

Ilustração do mês Carolina Abreu é ilustradora, motion designer e designer gráfica formada pela UERJ e Savannah College of Arts and Design. Feminista, busca reforçar a igualdade de gênero através das formas e retas mais angulosas em figuras femininas contrapondo teorias das formas de artistas como Kandinsky. Apaixonada por cores vibrantes, busca sempre destacar os contrastes e se valer de paletas que agregam significado para entendimento e percepção de suas ilustrações. Carolina retratou a cena em que Eva assiste Hannah em chamas, momentos antes de tentar salvá-la. 16



POSFÁCIO Sula


OLÁ, TAGGER Quantas Sulas destemidas você já conheceu? Esperamos que muitas e cada vez mais. Dessa leitura, que nos coloca contra a parede e nos faz pesar nossos ímpetos julgadores, o que sobra são reflexões. Ei-las, então: aqui, você conhecerá as histórias de escritores negros, com uma belíssima entrevista com os autores Itamar Vieira Jr. e Jeferson Tenório. Em nosso tradicional espaço de crítica, mergulhamos na mágica da bruxa do Fundão. E o espaço em que a história se passa, o local a que são relegados os negros da cidadezinha fictícia de Medallion, é examinado com lupa. Afinal: qual é o espaço da população preta e pobre nas cidades do Brasil? A gente espera que você feche esta revista pensando tudo diferente: as mulheres que você teme, a cidade em que você vive e os olhos que você usa para enxergar tudo isso. Boa leitura!


“Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar. E foi assim que concluiu que não deveria pensar.” BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão


SUMÁRIO posfácio

4 Moradia para quem?

7 Entrevista Itamar Vieira Junior e Jeferson Tenório

12 A potência Conceição

14 Crítica A vida da outra


Reportagem

MORADIA PARA QUEM? HENRIQUE SANTIAGO

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Em Sula, Toni Morrison constrói a história das protagonistas Nel e Sula em torno da comunidade do Fundão – que, em bom e velho português, seria uma grande favela na zona periférica de Medallion, uma cidade no estado norte-americano de Ohio habitada em sua grande maioria por negros. Anos antes, a escritora Carolina Maria de Jesus levara sua realidade para a literatura ao ter seus manuscritos de memórias na favela transformados em Quarto de despejo: diário de uma favelada. Entre o real e o imaginário, em casos assim, há mais semelhanças do que nossos olhos podem ver. A discussão que relaciona o direito à moradia a corpos marginalizados na sociedade, seja no Fundão de Sula ou na extinta Favela do Canindé, em São Paulo, ganha eco na vida nas cidades. A luta por habitação digna, prevista na Constituição Federal de 1988, é um trabalho de resistência que acompanha os movimentos sociais pelo Brasil.


O Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) atua há mais de 20 anos em defesa da habitação de pessoas sem-teto. O coordenador nacional, Queops Damasceno, é parte do grupo que entregou mais de 5 mil casas em projetos habitacionais pelo país. O grupo está atualmente em 43 ocupações no território nacional – uma delas, em um antigo hotel de luxo em Belo Horizonte, leva o nome de Carolina Maria de Jesus. Entre as bandeiras levantadas estão a regulação fundiária, despejo zero e urbanização de favelas. Além de, claro, a organização popular para que essa pauta ganhe mais força entre aqueles que podem reivindicar um lugar para morar. “O capitalismo criou a ilusão de que, a partir do seu trabalho, você tem que financiar uma casa e pagar em 30 anos. A grande maioria das pessoas não consegue ter uma vida [financeira] estável. Os trabalhadores não têm terra fixa, vão para onde têm emprego e possam vender melhor sua força de trabalho”, opina.

FAVELAS DEMAIS, IMÓVEIS DEMAIS

No Brasil, há mais de 13,6 milhões de pessoas que vivem em favelas e 6,9 milhões de famílias sem casas. Na contramão, são mais de 6 milhões de imóveis desocupados. Para a doutora em Planejamento Urbano pela Universidade de São Paulo (USP) Beatriz Kara José, a expansão de moradias na periferia e em espaços irregulares se dá pelo avanço da industrialização nos grandes centros urbanos no século 20. Ou seja, se, por um lado, o progresso econômico chegou a cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, por outro, ele deixou os trabalhadores fora de um plano de políticas públicas. “Essa população não tinha a moradia incluída no salário e teve que procurar alternativas baratas ou de graça. Por isso, foi se afastando das áreas mais bem equipadas do centro. As áreas mais distantes foram escasseando, eles avançaram para locais proibidos e, aí, acumulou-se uma grande quantidade de precariedade e insalubridade. É um dano coletivo”, avalia. A expressiva quantidade de casas e apartamentos vazios, sendo que muitas não cumprem função social, tem uma razão principal. Para José, isso é explicado pela longa 5


expectativa do proprietário pela valorização do espaço urbano, que levaria ao aumento do preço de determinada edificação. Eles se desinteressam, por exemplo, pela criação de moradias de interesse social para atender a população de baixa renda. “É um negócio imobiliário, não é dado de graça. Talvez não tenham o lucro de uma grande empresa, mas não vão perder dinheiro. Às vezes, há uma visão conservadora de cidade que é preconceituosa e pronto.” Também por ser negro, tal qual Sula e Carolina Maria, o líder do MLB entende que a desigualdade racial está totalmente atrelada à ausência de moradias. Para efeito de comparação, o Mapa da Desigualdade de 2020, organizado pela rede Nossa São Paulo, revelou que o distrito de Jardim Ângela, região periférica da Zona Sul, concentra 60,1% da população negra da capital paulista. Por outro lado, é o segundo maior em número de favelas (53% em relação ao total de domicílios) e com o indicador de idade média ao morrer mais baixo, de apenas 58,3 anos – contra 81,5 do Jardim Paulista, região de classe alta e sem favelas. “Essas pessoas vivem em condição desumana de não terem acesso a direitos básicos, porque moram em favelas e barracos, sem saneamento básico e segurança. Isso faz com que doenças se agravem, o descanso e a qualidade de vida sejam menores, que os equipamentos públicos sejam inferiores e o emprego não seja uma garantia. E adivinhe: essa população que vai viver 23 anos a menos é majoritariamente negra”, conclui Queops.

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Entrevista

O QUE DIVIDE AS SOLEIRAS? Os autores Itamar Vieira Júnior e Jeferson Tenório falam sobre o fardo das expectativas nichadas sobre autores negros e suas obras

BRENDA VIDAL

Em uma breve pesquisa em grandes sites de buscas, encontramos a seguinte definição para a palavra "soleira": “Peça geralmente feita de mármore ou granito, colocada no piso das portas. A soleira tem como objetivo destacar a divisão entre os cômodos”. No prefácio da primeira edição de Sula, Toni Morrison coloca na mesa um debate sobre os desafios e questionamentos enfrentados por escritores negros de literatura ficcional que decidem retirar o véu da “universalidade” de suas obras e demarcam seus lugares de produção, produzindo enredos focados em personagens negros e negras, vendo caminhos possíveis de construção de uma literatura de qualidade e valor estético carregada de crítica social. Nas palavras de Morrison, o contexto norte-americano da virada dos anos 1960 para os 1970 impunha o seguinte: “Se o romance era bom, era por ser fiel a certo tipo de política; se era ruim, era por não lhe ser fiel. A crítica era baseada em se os negros são – ou não são – desse jeito”. Ela ainda pontua: “Talvez agora seja difícil imaginar qual é a sensação de ser visto como um problema a ser resolvido e não um escritor a ser lido”. Ok, mas e a soleira? Ainda neste prefácio, Morrison resgata um trecho de um ensaio em que comenta as ideias e estratégias durante a estruturação de Sula, e traz a questão da soleira para iluminar a precisão da abertura do romance. O baiano Itamar Vieira Junior (autor de Torto arado) e Jeferson Tenório, carioca radicado no Rio Grande do Sul (autor de O avesso da pele), aceitaram o convite da TAG para falar sobre as exigências e as expectativas que um escritor negro ainda precisa enfrentar no Brasil. 7


TAG - Para vocês, a ideia de uma “escrita negra” diz alguma coisa? Itamar – Acho que ela diz algo na minha esfera pessoal, e para os leitores, porque eu acho que representatividade importa muito. Mas me incomoda um pouco quando a crítica, o mercado editorial e livreiro rotulam a literatura, a escrita, a partir disso. Me incomoda um pouco, por exemplo, chegar em uma livraria e encontrar uma estante com literatura negra separada, como se a literatura negra não fizesse parte do cânone, do mainstream, daquilo que é tido como literatura. Esses rótulos me incomodam um pouco, acho que a imprensa e a crítica fazem muito isso: criam uma espécie de apartheid quando dizem “o autor negro tal” ou “a autora negra tal”, mas não falam sobre isso quando há um autor branco. Eu gostaria de ver os autores negros ao lado dos autores brancos nas livrarias porque eles fazem parte do cânone, eles escrevem uma grande literatura, então não faz sentido separar. Da mesma forma, penso isso sobre a escrita dos indígenas. Essas divisões servem para quem? Elas são importantes para mim quando se fala de representatividade, mas da mesma forma que ela me importa quanto aos autores negros. Não basta publicar um ou dois autores negros para dizer que tem diversidade. Jeferson – Prefiro pensar numa “autoria negra”, como forma de demarcar território. Falar em escrita negra me soa como algo que não dá conta do que um autor ou autora negros podem produzir, além de correr o risco de “guetizar” sua produção. Definir o que seria uma escrita negra é bastante problemático, pois isso também poderia incluir autores brancos. Não acredito numa escrita negra. Acredito em escritas que problematizam determinadas questões que envolvem as dinâmicas de identidade e raça, mas não acho que isso seja suficiente para chamá-la de. TAG – O que vocês acham que a crítica literária e o mercado literário, em geral, esperam da produção de um autor negro? Vocês sentem pairar alguma expectativa sobre a performance e a produção de um autor negro? Itamar – Não é dada à pessoa negra a capacidade de outras ideologias, de outras subjetividades. Quando ela não é desumanizada pelo fardo do racismo, espera-se dela uma atitude supra-humana: sem a possibilidade de errar, sem a possibilidade de divergir. Isso é algo que me preocupa na literatura. Quando vamos falar de vidas negras, vamos 8


falar delas em sua complexidade, nunca seguindo a tentação de criar personagens que não tenham subjetividades. É o que encontramos na obra de Morrison: as mulheres são oprimidas pelos homens negros, as mulheres se oprimem umas às outras. A vida da população negra, além do racismo estrutural que está na sociedade, é atravessada por muitas complexidades que a experiência humana nos traz. Se espera que um autor negro sempre escreva sobre uma questão racial ou que sempre escreva a partir do seu lugar, como se ele não pudesse enveredar por outras coisas. Penso que a crítica muitas vezes espera que um autor negro trate dessas questões e, mesmo assim, ela se melindra, ou corre risco de taxar essas literaturas como “panfletárias”. Jeferson – Acho que existe uma ânsia por parte da branquitude em acelerar e findar a discussão sobre racismo no Brasil. Essa ânsia parece buscar uma identidade fixa para os negros. Nesse sentido, sempre se espera alguma coisa de escritores negros no que diz respeito à militância. Se espera sempre um “grito” contra o racismo. Certamente, se exige uma determinada postura engajada. O que a ficção faz é justamente frustrar as expectativas racistas. TAG – Por serem autores negros, vocês já se sentiram “nichados” enquanto “pessoa negra que fala só sobre negritude ou racismo”? Sentem que são mais convidados para falar de literaturas atreladas a isso do que para falar de outros assuntos literários? Itamar – Com certeza. Minha carreira ganhou uma certa força com a publicação de Torto arado, então, de dois anos para cá, isso tem sido muito forte, principalmente no Brasil. Aqui, parece que quase sempre lembram de mim, lembram de Cidinha da Silva, lembram de Jeferson quando precisam falar sobre isso. Não são convidados para falar sobre outros temas. Eu acho que as mulheres devem ser da mesma forma alijadas, rotuladas por escreverem uma “literatura feminina” e colocadas de escanteio, por exemplo, quando se deve falar sobre os rumos da literatura, ou quando se tem que falar sobre os rumos da política, da humanidade. Elas não podem falar sobre isso, só os homens brancos e héteros. Sinceramente, me incomoda um pouco, mas eu também acho importante ocupar esses espaços, e falar sobre isso. Dizer que me incomoda de forma profunda, não, porque é uma questão que me toca e eu preciso falar sobre isso. Mas a questão é quando você só é convidado a falar sobre isso. Quem tinha interesse em publicar literatura negra há 10, 15 anos? Eram pouquíssimas pessoas. Você não 9


tinha quase autores nas grandes editoras, quem publicava eram as editoras pequenas. Conceição Evaristo está aí para falar sobre isso. E ela diz que quer continuar a publicar por editoras pequenas porque foram elas que abriram as portas quando procurou inúmeras editoras e ninguém quis publicar. Jeferson – No início, recebia muitos convites que envolviam questões sobre racismo e negritude. Aos poucos, fui selecionando as atividades que envolvessem mais literatura. TAG – Vocês acreditam que há um padrão de expectativa do público branco sobre o que deva ser/o que é o trabalho de um escritor negro? Itamar – Com certeza. Esperam que a gente fale sobre o sofrimento, sobre essa condição de subalternidade, como se fôssemos só capazes de falar sobre isso. Eu percebo hoje que eu quase sempre sou pautado para falar sobre a temática negra. A gente precisa ocupar esses espaços, não devem ser só de homens brancos e mulheres brancas. Jeferson – Acho que o mundo branco ainda não nos lê devidamente. Por esse motivo, existe uma expectativa carregada de estereótipos. Nesse sentido, é importante dizer que não há uma crítica mais profunda que vá além do tom reivindicatório ou celebratório das obras produzidas por escritores negros. TAG - E do público negro, há um padrão de expectativa? Itamar – Acho que há uma pequena expectativa, mas ela não é determinante. Jeferson – Creio que não podemos tratar um público negro como uma massa homogênea. As pessoas negras pensam diferente umas das outras, justamente porque isso faz parte de nossa constituição humana, então não saberia identificar exatamente quais seriam essas expectativas. O que posso arriscar a dizer é que a questão da representatividade é um fator que importa para a população negra. Reconhecer autores negros como produtores de conhecimento contribui enormemente para um debate significativo e atuante. Contribui também para conferir subjetividade e humanidade às pessoas negras, pois a desumanização da população negra é um projeto de Estado.

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TAG – Não sei se vocês já foram perguntados sobre coisas do tipo “como é ser um escritor negro no Brasil?”. Mas o que vocês diriam? Itamar – Difícil, né? Vou falar sobre uma pesquisa que eu sempre cito da professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília [publicada no livro Literatura brasileira contemporânea – um território contestado (2012)], que compreende de 1990 a 2004. Ela fez uma espécie de censo dos autores, dos personagens, e ela vê que 72% de quem publica, de quem tem acesso às editoras e editores, é homem e branco. Eles eram tidos como “a literatura”, porque o resto era tudo literatura marginal. Mas acho que isso começou a ser rompido. Jeferson – O Brasil é muito grande. Ser um escritor fora do eixo Rio-São Paulo é uma coisa. Ser um escritor branco de classe média nesse espaço significa ter acesso a determinados privilégios e oportunidades que uma mulher negra do Norte ou Nordeste não teria. TAG – Ainda não vemos muitos escritores brancos marcando seu lugar racial ou participando de mesas sobre branquitude na literatura. O que você pensa sobre isso? Itamar – [Risos] Essa é uma pergunta bem capciosa e importante. Seria muito importante que a gente encontrasse também escritores brancos que falassem a partir do seu lugar de privilégio, a partir de sua experiência. Nada que descambasse para um debate vazio, para o confronto, ou para questionamentos de forma grosseira e violenta. Mas é um debate que deveria estar posto, deveríamos ouvi-los sobre isso. O que pensam? O que podem propor para uma literatura que alcance seus objetivos? Que gestos eles podem fazer aos leitores negros, aos autores negros, ao público negro? E, de preferência, que eles não debatessem só entre eles; que fosse um debate diverso, multiétnico. Seria muito importante que eles estivessem dispostos a isso. Jeferson – É uma questão interessante, pois sempre se exige que escritores negros tenham um compromisso com a militância, que tenham consciência racial, que racializem seus personagens. No entanto, falta um debate por parte de escritores brancos quanto ao seu papel na persistência do racismo, e que passa muitas vezes pela própria percepção do que é literatura. É preciso que a sociedade entenda que o racismo é um problema de todos.

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Perfil

A POTÊNCIA CONCEIÇÃO

Tanto a literatura quanto a realidade de vida aproximam Toni Morrison da curadora do mês

HENRIQUE SANTIAGO

Página oposta: Conceição Evaristo durante evento da TAG na Flip 2018. Bruno Leão 12

Conceição Evaristo estava ocupada. Talvez ela tenha corrido contra os ponteiros do relógio para finalizar um novo romance. Ou simplesmente tenha precisado de um respiro a mais para resistir à pandemia em um país cujas principais vítimas de uma doença ainda sem cura são seus pares. Por sorte, pude conversar com a autora de 74 anos pela primeira vez semanas atrás, quando o assunto era Carolina Maria de Jesus. Antes de me apresentar, a mineira de sotaque carioca perguntou se a entrevista seria por vídeo ou por áudio, pois ela não se sentia bonita para colocar seu rosto na frente de uma câmera, em suas próprias palavras. Lembrei-me por um momento de O olho mais azul, livro de estreia de Toni Morrison, provavelmente pela recordação dos questionamentos sobre beleza ali postos. Em uma ligação por WhatsApp, entre uma lembrança e outra, mencionou o nome de Toni Morrison de supetão. A mim restou apenas ouvir que ela carrega certa tristeza por nunca ter conhecido três escritoras em vida: Toni, Carolina Maria e a poeta moçambicana Noémia de Sousa. O encontro das escritoras afrodescendentes quase aconteceu em 2006, em edição da Flip na cidade de Paraty (RJ), mas elas só se viram de longe. Conceição aguardava, ansiosa, trocar ao menos palavras rápidas anos mais tarde, depois que teve sua obra publicada nos Estados Unidos. Porém, qualquer possibilidade foi sobrestada em 5 de agosto de 2019, quando Toni Morrison morreu, aos 88 anos. Em suas palavras, Toni infelizmente não pôde esperar por ela. A fala pausada de Conceição Evaristo ao evocar qualquer memória é um deleite para qualquer ouvinte. É como se ela


ajustasse os óculos para declamar seus poemas, permitindo que o interlocutor absorva a mensagem por completo e ainda consiga anotar palavra por palavra, sem pressa. É com a mesma delicadeza que ela revisita sua infância difícil na favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte. O bairro onde cresceu pode muito bem ser relacionado ao Fundão, o local onde se passa a trama de Sula, pela ausência de políticas públicas que historicamente fere a população negra. Nel Wright e Sula Peace saltaram das páginas do livro para encontrar a Conceição que vivia com os restos que chegavam para sua extensa família na vida real. Antes de estrear na literatura com Ponciá Vicêncio, em 2003, a mineira percorreu um longo caminho. Ainda criança, se dividia entre as lavadas de roupa com sua mãe e os estudos. Sabia que teria de se esforçar duas ou três vezes mais para superar as barreiras impostas a homens e mulheres negros. Coincidentemente ou não, sua primeira leitura de um escritor afro-brasileiro foi Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Conceição tem quase certeza que Carolina Maria a inspirou a escrever o que pode ter sido sua primeira crônica, "Samba favela", em 1964. Ao buscar uma vida melhor no Rio de Janeiro, onde vive há 50 anos, Conceição se formou professora da rede pública. É bem capaz que ela tenha sido a única professora negra de muitas crianças cariocas. Como escritora, sua obra tem chegado a um público variado, e eu me incluo nessa. No dia em que conversamos, disse a ela que Olhos d’água seria a minha próxima leitura, ao que me respondeu com uma leve risada de contentamento. A leitura desse ou de qualquer outro livro carrega a sensação de pisar uma realidade que pertence a mais da metade da população brasileira, embora seja desconhecida ou ignorada pela outra metade. Sem dúvida, Conceição Evaristo figura entre as principais, se não é a maior representante da literatura brasileira da atualidade, concorde a Academia Brasileira de Letras ou não. O confinamento da quarentena balançou até a mesmo a escritora, que vez ou outra perde a inspiração. Mas sua fala pausada sugere que 2021 será um ano melhor do que o ano passado. E que talvez possamos conversar uma segunda vez. 13


Crítica

A VIDA DA OUTRA FERNANDA BASTOS Jornalista e CEO da editora Figura de Linguagem.

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Essa história, aparentemente, é a de Sula contra a sua comunidade. Mas ela é, também, a de uma comunidade contra Sula. A história da bruxa do Fundão, da mulher que se comporta como os homens ou pior do que eles, porque também os desafia. Lançado em 1973, o segundo romance de Toni Morrison foi comparado a O olho mais azul, sua estreia na ficção. Na comparação entre os livros, o primeiro estabelece mais diálogo com a vida urbana e com o desenvolvimento de sujeitos nas grandes cidades, interesses da autora que aparecem também em Jazz e Deus ajude essa criança. A identidade e a construção da autoestima são temas que surgem nas duas obras, acrescentando, em Sula, a reflexão sobre a consequência de exercer a liberdade quando se é mulher e negra. Sula, muitas vezes, é lido como um romance lento e angustiante. E é justamente essa sensação de sufocamento, de dificuldade de transformação que parece atravessar a obra. A narrativa reproduz como cenário uma rotina pacata de vilarejo que não se modifica, na qual os comportamentos são mais vigiados e, por isso, mais previsíveis. Uma rotina em que as dificuldades financeiras são


limitadoras, assim como os papéis sociais; sobretudo o papel da mulher negra e do homem negro em uma sociedade racializada e segregada. Em Sula, a natureza dita o ritmo da cidade, que se movimenta na expectativa de elementos naturais ou do outro. As mulheres esperam que os maridos não as abandonem e que as crianças se desenvolvam rápido, para que possam ir embora e assim reduzir a quantidade de trabalho doméstico e o impacto no orçamento familiar. Os homens vivem na expectativa de conseguir um emprego melhor, um trabalho de branco que lhes dê mais dignidade e uma rotina menos sufocante. Sula representa uma ameaça para a rotina, com seu linguajar chulo e provocativo, suas ideias liberais nos costumes e seu desprendimento com o dinheiro e os valores estabelecidos entre as relações. Se, de alguma forma, Sula encarna um modelo de corpo que busca prazer, ela é a antítese de uma cidade em que não há espaço para o gozo. É nesse sentido que se pode pensar em Sula como a artista, aquela que tem sua força não na realidade material e no trabalho, e sim na imaginação e na curiosidade. É por isso que Sula se torna uma artista sem técnica: “E como qualquer artista sem forma artística, ela se tornou perigosa”. Ao longo da obra, o perigo para Sula parece ser encontrar uma forma de viver com total liberdade, sem qualquer responsabilização. Sem o peso das culpas, Sula enfrenta o

“TRATADA COMO PÁRIA POR SE NEGAR A SEGUIR AS CONVENÇÕES E MENTIR, SULA COMPROVA PARA A COMUNIDADE QUE SE PODE VIVER DE OUTRO JEITO.” 15


trauma indizível do acidente com Chicken Little, que não pôde ser de todo ocultado, mas sobre o qual ela conta com a cumplicidade de Nel para manter em segredo. E é porque se sente livre que, renunciando à culpa, ela pode romper com o ciclo imposto para as mulheres. Ela sai de sua cidade, frequenta a faculdade e não se casa. Livre do juízo de sua família e da censura da comunidade, ela exerce sua liberdade. O conhecimento que a liberdade lhe traz causa o desprezo por aqueles que não exercem sua liberdade – praticamente todos. Sem as amarras da maternidade, Sula pode evidenciar para as mães o quanto elas vivem para os filhos. Sem a devoção e obediência aos homens, Sula lhes mostra o quanto eles são ordinários. Sem o apego pela avó e pela mãe, ela salienta que é possível viver sem laços. E o descompromisso permite que ela tome emprestado até mesmo os maridos das outras mulheres da comunidade, sem que eles se tornem especiais por isso. No prefácio do livro, a autora pergunta “que opções existem para mulheres negras fora da aprovação de suas comunidades?”. No caso de Sula, nem fora da comunidade, nem dentro, ela encontra aceitação à sua provocadora identidade. Sula pode ser facilmente encarada pela lente do feminismo, embora a liberdade sexual exercida esbarre na necessidade de liberdade econômica e nas consequências de exercê-la. Tratada como pária por se negar a seguir as convenções e mentir, Sula comprova para a comunidade que se pode viver de outro jeito. Em uma conversa com Nel, Sula exprime que não vê diferença entre seu lugar na sociedade e o dos homens. Mas a reprovação de Nel ao seu comportamento denuncia o medo da solidão que ameaça constantemente as mulheres. A liberdade que, para elas, é a danação, para os homens é a forma de exercer o desprendimento do mundo interno, como o faz Ajax, ou o desejo de voltar para o útero, como Plum. Você já deve ter lido a frase: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Esse postulado da filósofa afro-americana Angela Davis parece ratificar a dinâmica de Sula nesse brilhante romance.

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A curadora Maja Lunde. Heike Huslage-Koch, CC BY-SA 4.0

Próximo mês

MAJA LUNDE

A curadora de março, a norueguesa Maja Lunde, é escritora e roteirista. Nascida e criada em Oslo, onde vive até hoje, é mestra em Mídia e Comunicação. Sua estreia no romance, o potente Tudo que deixamos para trás, teve os direitos vendidos para mais de 25 países. Sua indicação para a TAG é um livro imbuído de uma delicadeza particular: ele nos fala das estrelas. Nele, uma astronauta anseia pela volta a uma Terra que já desconhece depois de tanto tempo no espaço. Enquanto isso, um cientista parece ser o único ser humano que restou nesse planeta desabitado, até que uma criança misteriosa demanda seus cuidados. Parte distopia e parte reflexão lírica sobre o futuro de todos nós, o livro de março nos oferece uma meditação sobre estar sozinho – seja de forma voluntária e literal, seja na presença de seus semelhantes. 17


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