Dez2016 "Ainda estou aqui"

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dezembro de 2016 Ainda Estou Aqui


Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Maurício Lobo mauricio@taglivros.com.br Álvaro Scaravaglioni Englert Ariel Belmonte Bruna Lucchese Kafrouni Bruno Englert Moutinho Caroline Boeira Celina Raposo César Augusto Jaques Santos Jr. Daniel Arcari Romero Dione Guimarães Rosa Douglas Rodrigues Dolzan Eduardo Augusto Schneider Guilherme Rossi Karkotli Gustavo Rossi Karkotli João Pedro Perdomo Dassoler Luísa Andreoli da Silva Maria Eduarda Largura Marina Brancher Pablo Soares Valdez Rodrigo Lacerda Antunes Suya Pereira Castilhos Tomás Susin dos Santos Vinícius Araujo Reginatto Vinícius Tavares Goulart Antônio Augusto Portinho da Cunha Fernanda Lisbôa Bruno Miguell Mendes Mesquita bruno.miguell@taglivros.com.br Gabriela Heberle gabriela@taglivros.com.br Laura D Miguel lauradep@gmail.com Impressos Portão TAG Comércio de Livros Ltda. Rua Sete de Abril, 194 | Bairro Floresta | Porto Alegre - RS CEP: 90220-130 | (51) 3092.0040 | contato@taglivros.com.br


Ao Leitor Começamos o ano com a indicação de ninguém menos que Luis Fernando Verissimo, que nos levou às ruas cariocas na companhia de um matador de aluguel. Saímos do violento Brasil de Rubem Fonseca, passamos pela África do Sul, percorremos a Inglaterra até chegarmos aos Estados Unidos de William Stoner, o inesquecível personagem de John Williams. Depois de sofrermos no campo de prisioneiros na Tailândia e acompanharmos os casos da juíza britânica Fiona Maye, voltamos à França pós-napoleônica com nossa primeira edição exclusiva: O Vermelho e o Negro, de Stendhal. O segundo semestre continuou com o polêmico casamento de Nelson Rodrigues, as travessuras de um menino irlandês e um mergulho no universo literário de Rosa Montero. No mês passado, navegamos na companhia de Joseph Conrad rumo à ilha de Samburan, com nossa edição exclusiva de Vitória. Em dezembro, para finalizar 2016, mais um escritor brasileiro! Marcelo Rubens Paiva, que marcou os anos oitenta com Feliz Ano Velho, parte da história de sua mãe para construir um emocionante relato do desaparecimento do pai durante a ditadura. E os livros ainda vieram com a dedicatória do próprio autor aos associados! Se neste ano, além de elaborar nossas primeiras edições próprias, criamos o canal no Youtube, o blog TAG Et cetera, o aplicativo e a loja virtual, imaginem o que virá em 2017! Spoiler: teremos um livro escrito exclusivamente para a TAG.



A INDICAÇÃO DO MÊS

ECOS DA LEITURA

A PRÓXIMA INDICAÇÃO

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O curador: Helio de la Peña O livro indicado: Ainda Estou Aqui Entrevista com Marcelo Rubens Paiva

Álbum familiar Órgãos de repressão Passando colarinho Poemas

Patch Adams


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A INDICAÇÃO DO MÊS


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O curador: Helio de la Peña Meados dos anos 1960. Em algum canto da Vila da Penha, no subúrbio do Rio de Janeiro, o menino Helio Antonio do Couto Filho sentia-se inquieto. Ele ainda não sabia o que o futuro lhe reservava. Nem deveria, é claro; como toda criança, só lhe importava desfrutar do presente. Mas algo nele estava diferente. Acabara de descobrir uma nova e fascinante forma de prazer em sua vida, algo que já vinha sendo estimulado pelos pais, mas que só passou a fazer sentido naquele momento: fora fisgado pela literatura. “As Aventuras de Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn foram as primeiras leituras que me pegaram”, lembra Helio de La Peña, cinquenta e sete anos, boa parte deles dedicados à arte, em especial ao humor. Nascido no dia 18 de junho de 1959, Helio – que adotou o sobrenome artístico em homenagem ao bairro de sua infância – conta que, além dos livros mencionados, outro fator que consolidou sua paixão pela leitura foi, curiosamente, um clube de livros. “Um grande passo foi quando um amigo me apresentou o Círculo do Livro. O Dia do Chacal, de Frederick Forsyth, foi o primeiro que comprei ali. Tenho até hoje. Como na Vila da Penha não tinha livraria, o Círculo foi a porta de entrada para esse vício.” Helio formou-se no tradicional colégio carioca São Bento, onde detinha bolsa parcial, e foi estudar Engenharia de Produção na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lá, conheceu Beto Silva e Marcelo Madureira e, com os novos colegas, fundou o “jornalzinho” Casseta Popular, em 1978. O irreverente periódico tinha o objetivo de apresentar uma nova política estudantil, menos sisuda, condizente com o período de abertura política da época, que facilitava a liberdade de expressão no país. Concebido como uma


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fanzine de humor, o Casseta Popular foi adquirindo um status cult para além da universidade até que, em meados dos anos oitenta, Helio e sua turma uniram-se aos responsáveis por outra revista da época, intitulada Planeta Diário, para formar o grupo Casseta e Planeta. Helio de La Peña, que dividia seu tempo entre trabalhar como engenheiro e escrever para os periódicos, decidiu dedicar-se exclusivamente ao humor. Desde então, Helio escreveu, dirigiu, atuou e tornou-se referência no humor brasileiro. Como explicar o sucesso do programa Casseta & Planeta, Urgente!, que foi ao ar na televisão brasileira por dezoito anos? “Acho que o fato de você misturar humor com realidade, humor com atualidade, com jornalismo, com notícia é uma coisa que foi a gente que trouxe. E a paródia, de novela, sobretudo, de brincar com aqueles personagens e levar adiante a cultura novelística do brasileiro para um programa de humor foi também uma coisa bem bacana.” No entanto, Helio acredita que o gênero é muitas vezes menosprezado: “O que me incomoda é quando o humor é visto como atuação menor. O ator dramático tem mais chances de ser premiado. É um preconceito que atrapalha”. Preconceito, infelizmente, é outro tema recorrente na vida de Helio, que afirma ter sido vítima de racismo por diversas vezes em sua vida, tanto antes da fama como depois. Nos ambientes pelos quais circula, o incômodo acentua-se com a sensação de deslocamento. “Sinto, às vezes, certo desconforto de olhar em volta e perceber que sou o único negro em um restaurante de luxo. São tantos anos de Zona Sul, de vida de artista, de ser querido, que dá uma amenizada nessa situação, mas já vivi várias situações de preconceito.” Como da vez em que, após ter uma conversa na rua com a mãe do colega Beto Silva, foi abordado por um policial que lhe ordenava a “devolver o que tinha pegado da madame”. Situações como essa não o deixam esquecer as consequências do racismo no Brasil. “Há uma vontade louca de sublimar esse problema, afirmando que isso não existe. É uma questão muito séria, que envergonha.”


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VOCÊ VIRA ARTISTA E DEIXA DE SER UM POUCO PRETO. – helio de la peña

Helio de La Peña já escreveu três livros: O Livro do Papai (2003), manual bem-humorado para quem acabou de se tornar pai (e que ganhou uma adaptação para a televisão), Vai na Bola, Glanderson! (2006), que vai virar filme, com previsão de lançamento para 2017, e Meu Pequeno Botafoguense (2010), que conta a história do clube de futebol Botafogo por meio de uma perspectiva infantil. Quando questionado pela TAG sobre o livro que indicaria aos associados, lembrou-se de um autor de que gostava quando jovem: “Conheci Marcelo Rubens Paiva através do livro Feliz Ano Velho. Passei a acompanhar suas crônicas, suas peças, seus outros livros. Ao ler a resenha do seu último lançamento, Ainda Estou Aqui, fiquei curioso para saber um pouco da história do sequestro, tortura e morte de seu pai pela ditadura militar. Mais uma vez, não me decepcionei. Marcelo faz um retrato daquela época com sua marca registrada, um texto que flui e emociona. É daqueles livros em que você fica pensando por um longo tempo depois que o fecha. E o tempo voa com ele nas mãos”.


Marcelo Rubens Paiva


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O livro indicado: Ainda Estou Aqui Subi numa pedra e gritei: – Aí Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo, seu milionário disfarçado. Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi a melodia: biiiiiiin. (Feliz Ano Velho, 1982)

É assim que se inicia a história que mudou a vida de Marcelo Rubens Paiva. Não, não estamos falando apenas de Feliz Ano Velho, de onde foi retirado esse trecho. Referimo--nos à queda que o levou a escrever o livro, publicado em 1982 e que se tornou um dos livros brasileiros mais vendidos na década de oitenta. Nele, o autor descreve, com detalhes bem-humorados e, ao mesmo tempo, chocantes, sua vida após o acidente que o deixou tetraplégico, ocorrido em dezembro de 1979.

li feliz ano velho assim que foi lançado e fiquei fascinado pela forma direta e bemhumorada de marcelo rubens paiva contar o grande drama da sua vida. – helio de la peña

Nascido em 1959, na cidade de São Paulo, Marcelo Rubens Paiva mudou-se para o Rio de Janeiro aos sete anos com seu pai, o deputado federal Rubens Paiva, sua mãe, Eunice, e suas quatro irmãs. Eunice representava a figura disciplinadora com quem Marcelo discutia por suas notas baixas e que o obrigava a estudar. Rubens era a válvula de escape para suas travessuras. Enquanto os pais dos amigos convidavam seus filhos para jogar futebol ou tênis, Rubens


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Paiva levava Marcelo para um bairro operário da Zona Norte do Rio, onde estava construindo casas populares. Lá, Marcelo aprendeu, com o maior orgulho, a fazer cimento, passar argamassa nas paredes, almoçar na marmita e carregar o martelo na cintura. Nos finais de semana, ia à praia com a família, onde passava horas no mar com o pai, pegando jacaré em suas costas. Até que, de repente, não havia mais Rubens Paiva. Em 1971, seis militares armados com metralhadoras invadiram sua casa e deram ordem de prisão a seu pai, que nunca mais foi visto (o motivo da prisão você descobrirá em Ainda Estou Aqui). A partir desse momento, Eunice teve de assumir o papel de mãe e pai, e cuidou sozinha dos cinco filhos. Como sua família era de São Paulo, decidiu voltar com os filhos para a capital paulista em 1974. No final da década de 70, Marcelo Paiva ingressou na Universidade Estadual de Campinas para estudar engenharia. Aos vinte anos, no dia 14 de dezembro de 1979, sofreu o acidente que o deixou tetraplégico. Após muito tratamento e fisioterapia, o autor conseguiu recuperar os movimentos dos braços e das mãos, necessitando de menos auxílio externo e obtendo a autonomia que tanto buscava. O trauma é retratado com detalhes em Feliz Ano Velho, publicado apenas três anos após o pulo no lago em Campinas – em uma retomada de Paiva à paixão pela escrita, que havia sido despertada, quando pequeno, ao escrever artigos para o jornal do colégio. “Feliz Ano Velho foi a forma que encontrei para me reapresentar à sociedade, falar: ‘Sou deficiente, mas sou um cara legal, gosto de rock’n’roll, vou às baladas, quero namorar. Quero trabalhar, quero ser feliz.” Na obra, Paiva relata a mudança radical pela qual passou. Seus dias no hospital, as visitas que recebeu, as histórias que viveu são analisadas sob uma nova perspectiva: a de um jovem que sempre fez tudo o que podia e queria, e que, agora, confinado a uma cadeira de rodas, vê-se impotente diante dos acontecimentos, dependendo da ajuda de amigos e familiares para reaprender a viver.


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“É um livro sobre construção de identidade, de fé, não é só um livro sobre o acidente”, afirma. Doze meses de uma recuperação lenta e dolorosa: dias e noites intermináveis na UTI, o colete de ferro, a descoberta de que teria como extensão do seu corpo uma cadeira de rodas, os momentos em que chegou a contemplar o suicídio. Apesar do tema trágico, Feliz Ano Velho – vencedor do Prêmio Jabuti em 1983 e adaptado para teatro e cinema – tem momentos de humor, ternura e erotismo. O autor confere à narrativa a mesma energia e o mesmo fôlego com que superou o acidente. Sincero em suas descrições, Paiva utiliza o que considera a “linguagem das ruas” e não poupa palavrões ao contar sobre seu envolvimento com bebidas, drogas e amores. “Eu falei de coisas em Feliz Ano Velho de que hoje eu não falaria. Eu abri o peito, esse foi o segredo do livro. Foi uma dissecação de alma, que dificilmente eu teria coragem hoje de refazer. Foi um livro importante para mim, para os deficientes e para a literatura brasileira naquele momento, já que ele foi escrito em uma linguagem totalmente coloquial, que rompia com a norma culta e que mostrava que estava para nascer uma nova literatura urbana.” A obra atingiu estrondoso sucesso. Rapidamente vendeu milhares de cópias e, muitas vezes, foi considerada símbolo de uma geração. Desde então, Paiva publicou mais de dez livros, com destaque para Blecaute (1986), Bala na Agulha (1994), Malu de Bicicleta (2004) e A Segunda Vez que te Conheci (2008). O autor dedicou-se, também, a peças de teatro e trabalhou como jornalista da Folha de São Paulo. Hoje, atua como colunista semanal do Estadão. Entre suas obras, um assunto constante: o relacionamento, que normalmente envolve traições, sexo e divórcios. Marcelo considera-se privilegiado por viver a época da emancipação feminina, e tentou passar isso aos seus livros: “A mulher virou protagonista de minhas histórias porque hoje a mulher é a protagonista do mundo”. E foi justamente a importância de uma mulher em sua vida que o motivou a escrever Ainda Estou Aqui, lançado em 2015 e indicado por Helio de la Peña à TAG. Na


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opinião de Marcelo, a narradora do livro deveria ser Eunice Paiva. Quando a mãe começou a perder a memória e foi diagnosticada com Alzheimer, Marcelo percebeu que sua história seria perdida. O autor decidiu fazer, então, aquilo que sempre havia evitado: reviver o passado, sentir novamente a dor pelo desaparecimento do seu pai e narrar como sua mãe conseguiu lutar pela verdade enquanto cuidava da família. No início do livro, o autor nos apresenta Eunice. Mulher de fibra, nunca foi uma figura amorosa, carinhosa, pronta para abraçar os filhos. Por outro lado, encontrou meios para pagar a educação de cinco crianças, entrou em primeiro lugar na faculdade de Direito aos quarenta e dois anos de idade e tornou-se uma advogada muito respeitada no país inteiro. Representava personalidades como o cantor britânico Sting, a fundação de Gilberto Gil e foi consultora da ONU e do Banco Mundial. Além disso, consagrou-se como uma das maiores referências em direito indígena, consultada por comunidades do mundo inteiro. Foi de sua mãe que Marcelo pegou o gosto pela literatura. Afinal, Eunice lia de tudo. Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Victor Hugo, Proust, Hemingway, Fitzgerald, Henry Miller, além de muita literatura brasileira – aguardava ansiosa na fila da livraria para comprar cada nova obra de Erico Verissimo. Muito bem relacionada, era amiga de escritores como Lygia Fagundes Telles, Antonio Callado, Millôr Fernandes, Haroldo de Campos.

NAS SALAS DAS CASAS EM QUE MOREI, NÃO TINHA TV, MAS LIVROS, DO CHÃO AO TETO. NAS PAREDES, AS ESTANTES ERAM RECHEADAS DE LIVROS. LEMBRO DE PASSAR TARDES BRINCANDO COM LIVROS ABERTOS. – MARCELO RUBENS PAIVA

Mas a mãe não foi um modelo apenas nas leituras. A determinação com que cuidou da casa, dos filhos, do emprego, sozinha, emociona Marcelo. Desde o momento em que Rubens Paiva foi levado, Eunice empenhou-se para


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descobrir o que havia acontecido, e se havia chances de ele retornar. Mas sua dedicação também foi direcionada a dar uma vida a seus filhos sem a eterna dependência do retorno do pai. “Minha mãe nunca fez papel de viúva da ditadura nem nós de órfãos da ditadura”, afirma Marcelo. Mas é claro que aquilo pesava. “Passei anos da minha vida sem saber se tinha ainda um pai ou não. Lembro-me até de que, um dia, já morando em Santos, pensei ter ouvido minha irmã gritar ‘Papai’. Saí correndo feito um louco, rodei pela casa toda, fui para a rua, procurei por todos os cantos, mas não o achei. Ainda com uma tremedeira no corpo, fui perguntar para a minha irmã. Era engano meu. Ninguém tinha gritado.” Em Feliz Ano Velho, o autor abordou com poucos detalhes a história do seu pai. Então com vinte e três anos, Marcelo julgava que era algo que já deveria ter superado e que escrever sobre isso apenas faria a angústia voltar. Além disso, no momento da publicação, o Brasil ainda vivia sob a ditadura, e muitos elementos sobre o desaparecimento permaneciam obscuros. Ao longo dos anos, foi montando um quebra-cabeça sobre os fatos que envolviam o desaparecimento do seu pai. Depois da publicação do seu primeiro livro, o autor passou a receber cartas de inúmeras pessoas que tiveram algum contato com Rubens ou com quem teve alguma relação com seu desaparecimento. “Eu senti que não tinha contado tudo. Havia muita coisa que eu precisava retomar sobre a minha vida, a vida da minha família e, em especial, a vida da minha mãe.” Considerado um dos melhores livros de 2015 pelo jornal O Globo, Ainda Estou Aqui foi finalista do Prêmio Jabuti (até o fechamento desta edição, o vencedor ainda não havia sido divulgado) e do Prêmio São Paulo de 2016. No livro, Marcelo parte do desaparecimento do seu pai para expor outras atrocidades perpetradas durante a ditadura, não reprimindo uma forte crítica a esse período do nosso país. Com relatos chocantes do que ocorreu a seu pai e a tantos outros prisioneiros, o livro é, por vezes, incômodo. Como certamente espera Marcelo Rubens Paiva.


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Entrevista com Marcelo Rubens Paiva Feliz Ano Velho e Rubens Paiva Na época, eu não queria falar do meu pai. Eu estava em outra, vivendo um momento de renascimento do Brasil, a geração rock’n’roll, contracultura dos anos oitenta. Queria fazer um livro muito mais focado na minha turma do que contar a história do meu pai. Eu achava que quem tinha que contar a história dele era minha mãe. Com o fim da ditadura algumas coisas foram se revelando. A história do meu pai começou a amadurecer. Por que ele foi preso, com quem ele foi preso, por quem ele foi torturado, por que minha mãe ficou tanto tempo presa.

Eunice Paiva O meu pai teve duas participações em momentos-chave da ditadura, mas minha mãe foi quem viveu tudo, o começo, o meio e o fim. Tragicamente, ela começou a apresentar sintomas de Alzheimer. Eu vi que essa memória importante estava se apagando, então comecei a escrever o livro. Se você imaginar uma pessoa de quarenta e um anos, viúva, cinco crianças para cuidar, pensa que ou essa mulher se entrega para a depressão, desiste e os filhos vão ser criados pela vida ou assume as rédeas. Ela sacrificou parte de sua


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vida, até de seus desejos, para cuidar dos filhos, mas ela se afastou um pouco daquela mãe afetiva que todos nós queríamos que ela fosse. Essa contradição tinha que estar na essência desse livro, desse personagem que é esférico, completo, não um personagem plano. Eu não inventei, minha mãe era assim.

Título Ainda Estou Aqui é um jogo de palavras com o fato de o meu pai ter sido desaparecido político, mas sua presença ainda estar aqui, na extensão dos filhos, dos netos. Também pelo fato de minha mãe perder a memória e repetir essa frase para a família. A coisa mais dolorida para a família de quem tem Alzheimer é que a gente começa a tratar essa pessoa no passado: “Minha mãe era advogada”. Quando ela ouviu isso, falou: “Ainda estou aqui”.

Reviver os momentos trágicos para escrever o livro É catártico quando você vai fundo numa história de dor, amor, alegria e tristeza. É um papel da literatura, teatro e cinema. Não podemos disfarçar, ficar à margem dos sentimentos mais profundos e conflituosos. É nossa obrigação buscar a raiz de tudo. [O poeta] Paulo Leminsky me falava: “Marcelo, solta essas asas, vai mais fundo”. Ele tinha razão. Tem que ir fundo. E eu fui fundo, eu tinha forças para fazer isso. Eu ia ao Rio de Janeiro e relembrava os segundos do dia em que meu pai foi preso, quando eu tive que fugir correndo pela rua para avisar os vizinhos, eu lembrava com exatidão. (...) Cheguei a escrever um roteiro de um filme sobre aquele dia. Mas percebi que isso tinha que virar um romance. Quando eu comecei a escrever o livro, pensei: “Já que é para mergulhar nessa história, então mergulha!”. E mergulhei. Imagine o que seu pai pensava enquanto estava sendo torturado. Imaginei. Imagine sua mãe escutando os gritos do seu pai sendo torturado. Imaginei. Imagine como sua mãe se sentiu quando descobriu que o marido tinha sido morto. Com mais de cinquenta anos de idade, já estava com amadurecimento forte o suficiente para encarar essa história de novo. A grande sorte é que meu filho estava nascendo. O meu filho tem me dado forças, estou virando pai para encarar a morte do meu pai.

A entrevista na íntegra pode ser assistida a partir de janeiro em nosso canal no Youtube. Acesse e inscreva-se: youtube.com/taglivros.


ECOS DA LEITURA

Foto: evandro teixeira


Ecos da Leitura 17

A fim de tornar a história de Ainda Estou Aqui um pouco mais visual, reunimos, em nosso primeiro Eco, algumas fotografias da infância de Marcelo Rubens Paiva com sua família. No segundo Eco deste mês, contamos uma breve história sobre o surgimento dos Órgãos de Repressão da época da ditadura, os mesmos responsáveis pelo desaparecimento de Rubens Paiva. Eunice Paiva, mãe de Marcelo, nos inspirou para os dois Ecos finais, dedicados ao feminino: primeiro, homenageamos brasileiras que viveram no início do século XX, enfrentaram opressões e, ainda assim, destacaram-se nas mais diversas áreas. Por fim, poemas que abordam a maternidade e toda a intensidade dos sentimentos que afloram do ato de ter ou ser mãe.


18 Ecos da Leitura

Álbum familiar Em Ainda Estou Aqui, Marcelo Rubens Paiva compartilha momentos íntimos de sua infância e juventude, detalhes do relacionamento com a mãe, o pai e as irmãs. Com as descrições dos eventos, encontramo-nos imaginando os “personagens” desta obra – o que esquecemos, às vezes, é que eles não existem apenas na cabeça do leitor. Para dar um rosto aos protagonistas desta história, compartilhamos um pouco do álbum da família Paiva. Marcelo nos ombros do pai, na piscina

A família Paiva


Ecos da Leitura 19

Os pais do escritor Marcelo Rubens Paiva

Família Paiva, após a prisão de Rubens, na entrada da casa no Leblon, em 1971

Eunice Paiva

Marcelo Rubens Paiva e sua mãe, Eunice Paiva


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20 Ecos da Leitura

Órgãos de Repressão Sob o pretexto de combater inimigos internos que, supostamente, ameaçavam a segurança nacional, os órgãos OBAN e, posteriormente, DOI-CODI surgiram como um violento aparato de repressão a quem se opusesse ao regime militar brasileiro e são citados durante o livro Ainda Estou Aqui. Neste Eco, apresentamos detalhes por trás desses órgãos, números e histórias de outras vítimas que, assim como Rubens Paiva, sumiram ou morreram sob circunstâncias duvidosas.

OBAN

No ano de 1969, no auge da repressão, sob a égide do AI-5 e de uma Constituição baixada por decreto, o regime militar buscava aperfeiçoar os métodos de combate a seus opositores. Nasce, então, a Operação Bandeirante, com o objetivo de incorporar todos os órgãos de segurança em uma só entidade. A OBAN funcionava sem vínculos legais, como uma formação paramilitar à margem da lei. Em meados de 1970, tornou-se uma estrutura oficial das forças do Exército, passando a ter o nome de DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações ligado ao Centro de Operações de Defesa Interna), com sedes em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Brasília, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Belém, Fortaleza e Porto Alegre.

Vista das instalações da Operação Bandeirantes, no bairro do Paraíso, em São Paulo (Foto: Sérgio Sade/Editora Abril)


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Pátio do quartel da Polícia do Exército, que abrigou o DOI-CODI carioca (Foto: Kaoru/CPDoc JB)

DOI-CODI

Enquanto o DOI investigava, prendia, interrogava e analisava informações, o CODI era incumbido de planejar as medidas de defesa interna. Em 1975, durante o mandato presidencial do General Ernesto Geisel, o DOI-CODI de São Paulo prendeu o jornalista Vladmir Herzog. Seu corpo foi apresentado à imprensa, sob o argumento de que havia se enforcado. O cinto que teria utilizado, entretanto, não se encontrava em uma altura que possibilitasse a consumação do suicídio, e o corpo do jornalista apresentava muitas lesões, resultantes dos espancamentos dos agentes do DOI-CODI. O jornalista Vladimir Herzog, o estudante Alexandre Vannucchi Leme, o operário Manoel Fiel Filho, o tenente do exército José Ferreira de Almeida: são mais de quarenta casos apontados como suicídios mal explicados. Até maio de 1975, documentos do extinto Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) mostram que o DOI-CODI foi diretamente responsável por cinquenta mortes e mais de seis mil e setecentas ocorrências de presos políticos.

General Orlando Geisel, ministro do Exército e criador do órgão de repressão militar DOI-CODI (Foto: Fundo Última Hora/Apesp)


22 Ecos da Leitura

Passando colarinho Marcelo Rubens Paiva atesta que sua mãe não quis resignar-se a casar e apenas “passar colarinho”: optou por cuidar sozinha da família de cinco filhos, ao mesmo tempo em que estudava, trabalhava e buscava informações sobre o desaparecimento do marido. Reservamos para este Eco uma homenagem a outras mulheres que, assim como Eunice, influenciaram homens e mulheres por conta de suas atitudes corajosas e revolucionárias.

Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa

Na década de 1930, Aracy era funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, na Alemanha, onde chefiava a seção de passaportes. Correndo diversos riscos e por iniciativa própria, salvou a vida de dezenas de judeus, que graças a ela emigraram para o Brasil, escapando da perseguição nazista. Para isso, teve de contrariar circulares secretas do Itamaraty da época de Getúlio Vargas: os consulados na Alemanha eram instruídos a não conceder vistos de entrada para pessoas de religião judaica. Aracy chegou a usar clandestinamente o carro do serviço consular para transportar judeus, que escondia em casa. Nessa época, conheceu seu futuro marido, o escritor João Guimarães Rosa, que era cônsul adjunto. Já idosa, ao ser questionada por que se arriscara ao conceder vistos a judeus, Aracy respondeu: “Porque era justo”.

Tarsila do Amaral

Nascida em 1886, a pintora e desenhista brasileira foi uma das figuras centrais da pintura e do movimento modernista


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no Brasil, ao lado de Anita Malfatti. Seu quadro Abaporu, de 1928, inaugura o movimento antropofágico nas artes plásticas. Após viagem à URSS, Tarsila foi considerada suspeita e foi presa no Brasil, acusada de subversão. Em 1933, pintou a tela Operários, pioneira da temática social no país.

Patrícia Galvão

Nascida em 9 de junho de 1910 na cidade de São João da Boa Vista, em São Paulo, Patrícia Rehder Galvão, conhecida pelo pseudônimo de Pagu, foi escritora, poeta, diretora de teatro, tradutora, desenhista, cartunista, jornalista e militante política brasileira. Pagu defendia a participação ativa da mulher na sociedade e na política — e foi a primeira brasileira do século XX a ser feita prisioneira política.

Zilda Arns

Acreditando que a melhor forma de combater as doenças e a marginalidade das crianças era a educação, Zilda Arns Neumann desenvolveu uma metodologia própria de multiplicação do conhecimento e da solidariedade entre as famílias mais pobres. Formada em Medicina, aprofundou-se em saúde pública, pediatria e sanitarismo, com o intuito de salvar crianças pobres da mortalidade infantil, da desnutrição e da violência. Nascida em Forquilhinha, em Santa Catarina, no ano de 1934, Zilda foi também fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da Criança e da Pastoral da Pessoa Idosa, organismos de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Zilda Arns morreu no Haiti, onde se encontrava em missão humanitária, vitimada pelo violento terremoto que assolou o país em 12 de janeiro de 2010.

Aracy

Tarsila

Pagu

Zilda


24 Ecos da Leitura

Poemas

Ainda Estou Aqui é, em última análise, uma homenagem a Eunice Paiva. Finalizamos a seção de Ecos deste mês com três poemas que, sob perspectivas e de formas diferentes, enaltecem o papel das mães.

PARA SEMPRE

- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

POR QUE DEUS PERMITE QUE AS MÃES VÃO-SE EMBORA? MÃE NÃO TEM LIMITE, É TEMPO SEM HORA, LUZ QUE NÃO APAGA QUANDO SOPRA O VENTO E CHUVA DESABA, VELUDO ESCONDIDO NA PELE ENRUGADA, ÁGUA PURA, AR PURO, PURO PENSAMENTO. MORRER ACONTECE COM O QUE É BREVE E PASSA SEM DEIXAR VESTÍGIO. MÃE, NA SUA GRAÇA, É ETERNIDADE. POR QUE DEUS SE LEMBRA — MISTÉRIO PROFUNDO — DE TIRÁ-LA UM DIA? FOSSE EU REI DO MUNDO, BAIXAVA UMA LEI:

MÃE NÃO MORRE NUNCA, MÃE FICARÁ SEMPRE JUNTO DE SEU FILHO E ELE, VELHO EMBORA, SERÁ PEQUENINO FEITO GRÃO DE MILHO.

INCOMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS – ELISA LUCINDA SAUDADES DE MINHA MÃE. SUA MORTE FAZ UM ANO E UM FATO ESSA COISA FEZ EU BRIGAR PELA PRIMEIRA VEZ COM A NATUREZA DAS COISAS: QUE DESPERDÍCIO, QUE DESCUIDO QUE BURRICE DE DEUS! NÃO DE ELA PERDER A VIDA MAS A VIDA DE PERDÊ-LA. OLHO PRA ELA E SEU RETRATO. NESSE DIA, DEUS DEU UMA SAIDINHA E O VICE ERA FRACO.


Ecos da Leitura 25

POEMA À MÃE

AINDA OUÇO A TUA VOZ: ERA UMA VEZ UMA PRINCESA NO MEIO DE UM LARANJAL...

NO MAIS FUNDO DE TI, EU SEI QUE TRAÍ, MÃE

MAS – TU SABES – A NOITE É ENORME, E TODO O MEU CORPO CRESCEU. EU SAÍ DA MOLDURA, DEI ÀS AVES OS MEUS OLHOS A BEBER,

– EUGÉNIO ANDRADE

TUDO PORQUE JÁ NÃO SOU O RETRATO ADORMECIDO NO FUNDO DOS TEUS OLHOS. TUDO PORQUE TU IGNORAS QUE HÁ LEITOS ONDE O FRIO NÃO SE DEMORA E NOITES RUMOROSAS DE ÁGUAS MATINAIS.

NÃO ME ESQUECI DE NADA, MÃE. GUARDO A TUA VOZ DENTRO DE MIM. E DEIXO-TE AS ROSAS. BOA NOITE. EU VOU COM AS AVES.

POR ISSO, ÀS VEZES, AS PALAVRAS QUE TE DIGO SÃO DURAS, MÃE, E O NOSSO AMOR É INFELIZ. TUDO PORQUE PERDI AS ROSAS BRANCAS QUE APERTAVA JUNTO AO CORAÇÃO NO RETRATO DA MOLDURA. SE SOUBESSES COMO AINDA AMO AS ROSAS, TALVEZ NÃO ENCHESSES AS HORAS DE PESADELOS. MAS TU ESQUECESTE MUITA COISA; ESQUECESTE QUE AS MINHAS PERNAS CRESCERAM, QUE TODO O MEU CORPO CRESCEU, E ATÉ O MEU CORAÇÃO FICOU ENORME, MÃE! OLHA — QUERES OUVIR-ME? — ÀS VEZES AINDA SOU O MENINO QUE ADORMECEU NOS TEUS OLHOS; AINDA APERTO CONTRA O CORAÇÃO ROSAS TÃO BRANCAS COMO AS QUE TENS NA MOLDURA; Ilustrações: Valdinei Calvento


Espaço do Leitor Setembro de 2016 foi nosso especial Mês das Crianças. Não apenas porque o livro enviado, Paddy Clarke Ha Ha Ha, é narrado por uma criança de dez anos, mas porque unimos os associados para rechear bibliotecas de comunidades carentes em diversos cantos do Brasil. Optamos por fazer isso em setembro para que os livros enviados chegassem a tempo do Dia das Crianças, em outubro! A instituição Um Pé de Biblioteca, que nos ajudou a operacionalizar essa ação, recebeu milhares de livros, que até hoje estão despertando sorrisos em crianças de todas as idades. Reservamos este espaço para publicar algumas fotos compartilhadas no nosso grupo do Facebook, como uma singela homenagem a todos que participaram!


Espaรงo do Leitor 27


A PRÓXIMA INDICAÇÃO

Quando estava hospitalizado, assisti ao filme que foi inspirado neste livro, e fiquei encantado. Por isso, li o livro, que expandia e aprofundava seus temas mais importantes. Amei tanto o autor que li outros doze de seus livros. – Patch Adams

Publicado logo após a Segunda Guerra Mundial, o livro indicado por Patch Adams é o relato em primeira pessoa de um intelectual frustrado por ter levado uma vida até então totalmente dedicada aos livros e à escrita. Provocado por um velho amigo, decide lançar-se em uma viagem para explorar uma mina na ilha de Creta, a fim de conviver com homens simples, operários e camponeses. Enquanto espera o navio que o levaria à ilha, conhece um senhor vibrante, primitivo; sua linguagem é simples, e quando as palavras não são suficientes, é através da música e da dança que se expressa. Com uma narrativa ora bem-humorada, ora dramática, o autor grego, indicado nove vezes ao Prêmio Nobel de Literatura, celebra a amizade, a liberdade, expressa angústias e sua visão de mundo. Por esta obra, teve sua presença consolidada entre os grandes autores do século XX.


Este foi nosso kit de junho de 2016, com a indicação do tradutor Jorio Dauster. Caso queira adquirir algum kit passado, basta visitar nossa loja em loja.taglivros.com!


Leva um longo tempo para que surja à luz do dia aquilo que foi apagado. – Patrick Modiano

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