Nov2016 "Vitória"

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NOVEMBRO de 2016 Vitรณria


Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Álvaro Scaravaglioni Englert Ariel Belmonte Bruna Lucchese Kafrouni Bruno Englert Moutinho Caroline Boeira Celina Raposo César Augusto Jaques Santos Jr. Daniel Arcari Romero Dione Guimarães Rosa Eduardo Augusto Schneider Guilherme Rossi Karkotli Gustavo Rossi Karkotli João Pedro Perdomo Dassoler Luísa Andreoli da Silva Maria Eduarda Largura Marina Brancher Maurício Lobo Pablo Soares Valdez Rodrigo Lacerda Antunes Tomás Susin dos Santos Vinícius Araujo Reginatto Vinícius Tavares Goulart Antônio Augusto Portinho da Cunha Fernanda Lisbôa Hilton Lima Bruno Miguell Mendes Mesquita bruno.miguell@taglivros.com.br Gabriela Heberle gabriela@taglivros.com.br Laura D Miguel lauradep@gmail.com Impressos Portão TAG Comércio de Livros Ltda. Rua Sete de Abril, 194 | Bairro Floresta | Porto Alegre - RS CEP: 90220-130 | (51) 3092.0040 | contato@taglivros.com.br


Ao Leitor Em julho, quando comemoramos dois anos do clube, fizemos nossa primeira edição de luxo, exclusiva para os associados da TAG. Devido à excelente receptividade, prometemos que aquela não seria a última: agora, em novembro, apresentamos nosso segundo projeto. Quando John Gray recomendou Vitória, surpreendemo-nos com a indicação, como temos certeza de que aconteceu com muitos de vocês: “Vitória? Do mesmo Conrad que escreveu O Coração das Trevas?”. Ao encontrarmos somente uma edição disponível no mercado brasileiro, vislumbramos a oportunidade de trazer essa grande obra, com a qualidade editorial e estética que tanto Cornad quanto vocês merecem. Traduzida por Hilton Lima, ilustrada por Tiago Berao e com posfácio escrito pelo próprio curador, apresentamos a vocês nossa edição de Vitória, elaborada especialmente para os associados do clube.



A INDICAÇÃO DO MÊS

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ECOS DA LEITURA

16 18 20 21 22 24

A PRÓXIMA INDICAÇÃO

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O curador: John Gray O livro indicado: Vitória

Três viagens Nascido para a literatura No cinema No museu Palavras de Jack London Do outro lado

Helio de la Peña


4 Indicação do Mês

A INDICAÇÃO DO MÊS


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O curador: John Gray Nascido em 1948, na Inglaterra, John Nicholas Gray é escritor e filósofo político, conhecido por suas críticas ao humanismo e ao pensamento utópico. Apaixonado por livros, Gray é o principal colunista literário da revista New Statesman e também escreve regularmente críticas e resenhas para o jornal londrino The Guardian. A influência literária é perceptível em seus textos: ao tratar de política, economia e filosofia, suas referências vão de John Stuart Mill e Friedrich Hayek a Fiódor Dostoiévski, George Orwell e Jorge Luis Borges. No capítulo introdutório de uma de suas mais recentes obras, The Silence of Animals (2014), Gray nos apresenta a história de Charles Marlow, protagonista do romance O Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad. No livro, Marlow é capitão de um barco belga, contratado para transportar as cargas de marfim provenientes do Congo. Enquanto faz suas viagens, Marlow se espanta com a crueldade dos imperialistas e colonizadores, as torturas e a escravidão que o processo civilizatório impõe aos povos explorados. Para Gray, a história de Joseph Conrad ilustra “a barbárie, que é a doença da civilização, inerente à nossa espécie”. Ao longo do livro, o filósofo argumenta que é um absurdo depositar fé no conceito de progresso: do Congo de Joseph Conrad, passando pela Rússia stalinista até chegarmos aos problemas no Iraque, Irã e Síria, ideólogos que pregam o avanço continuam causando milhares de mortes em prol de seu próprio conceito de mundo ideal. Segundo a leitura de Gray da civilização, somos brinquedos de um destino cego e amoral, cometendo os mesmos erros, como ciclos que se repetem ao longo da história. “Através


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dos séculos, o ser humano não foi capaz de evoluir em termos de ética ou de uma lógica política”, escreveu o escritor. “Não conseguiu eliminar seu instinto destruidor, predatório. No século XVIII, o Iluminismo imaginou que seria possível uma evolução através do conhecimento e da razão. Mas a alternância de períodos de avanços com declínios prosseguiu inalterada. Regimes tirânicos se sucederam. A história humana é como um ciclo que se repete, sem evoluir.” Nesse sentido, o conceito de progresso e evolução seria pura ficção, um mito que criamos para que possamos nos sentir bem e nos projetar em uma narrativa que, ilusoriamente, ruma para o melhor. Os seres humanos caminham em direção ao seu destino não diferentemente de outros animais em direção ao deles. A noção de progresso é, para Gray, uma simples crença, tal qual a promessa de salvação de algumas religiões.

GRAY DESAFIA NOSSAS CONVICÇÕES A RESPEITO DE O QUE SIGNIFICA SER HUMANO E CONVICENTEMENTE NOS MOSTRA COMO A MAIORIA DELAS SÃO APENAS ILUSÕES. – J. G. BALLARD, ESCRITOR INGLÊS

Além de The Silence of Animals, que ainda não foi lançada no Brasil, John Gray é autor de dezenas de outras obras, traduzidas para mais de trinta idiomas. Obtiveram destaque Falso Amanhecer (1998), sobre os equívocos do capitalismo global, e Cachorros de Palha (2002), em que o autor discorre a respeito das crenças arrogantes que, do Iluminismo a Nietzsche, o pensamento ocidental vem sustentando. Sua mais recente publicação no Brasil é A Busca da Imortalidade (2011), que aborda nossa obsessão pela a natureza da morte e nossa tentativa de explicar, ou até provar, a existência de vida póstuma. Esse é o caráter de suas obras: atacar e destruir nossas ilusões, fazendo-nos questionar os fundamentos de nossas próprias crenças.


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John Gray vem exercendo decisivo papel na articulação do pensamento político e econômico contemporâneos. É professor emérito da London School of Economics, com frequentes participações em Oxford, Harvard e Yale. Em 2011, foi convidado pela BBC a apresentar uma série radiofônica sobre suas principais ideias, ampliando seu reconhecimento para além das fronteiras da academia. Em suas obras, profetizou alguns dos grandes acontecimentos globais, como a queda do comunismo, o desastre pós-guerra no Iraque e a crise financeira de 2008. Em 2015, veio ao Brasil para a série de conferências Fronteiras do Pensamento, onde discorreu sobre os desafios do convívio. Seu último lançamento foi The Soul of the Marionette: A Short Enquiry into Human Freedom, publicado em 2015, mas ainda indisponível em português. Quando questionado sobre a obra que recomendaria ao clube, John Gray mencionou Joseph Conrad, mas não o célebre O Coração das Trevas. Em vez disso, sugeriu um romance bem menos popular: Vitória. “Publicado em 1915, é o último grande romance escrito por Conrad”, escreveu Gray. “Parte suspense, parte romance metafísico, o livro conta a história de um homem que tenta evitar o sofrimento se afastando dos outros seres humanos e de suas ilusões.”


Joseph Conrad


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O livro indicado: Vitória Em meados do século dezenove, na Polônia dominada pelo Império Russo, Apollo Korzeniowski trabalhava para manter viva a língua da sua pátria. Aristocrata apaixonado por literatura, poeta, dramaturgo e tradutor, dedicou-se a verter, do inglês, Dickens e Shakespeare, do francês, Victor Hugo e, do alemão, Heinrich Heine. Quando sua mulher, Ewa, engravidou, Apollo fez questão de inserir Konrad no nome do filho, em homenagem ao poema Konrad Wallenrod, de Adam Mickiewicz, um dos grandes poetas poloneses. Assim, em 1857, nasceu Józef Teodor Konrad Korzeniowski. Konrad teve uma infância turbulenta. Seu pai, além de escritor, era ativista político, defensor da independência da Polônia. Em 1861, levou a família para Varsóvia, a fim de contribuir na resistência contra os russos, o que o levou à prisão e, posteriormente, ao exílio. Pouco depois, Ewa morreu de tuberculose, e Apollo ficou sozinho para criar e educar o filho. Fez o que estava ao seu alcance: entregou-lhe sua biblioteca e encorajou o garoto a aventurar-se pela literatura. Konrad conta que guardou memórias de seu pai sentado ao lado de sua cama, lendo poesias para ele antes de dormir. Infelizmente, em 1869, quando Konrad tinha apenas onze anos, foi a vez de seu pai ser vitimado pela tuberculose. Órfão, foi morar com o tio, que testemunhou a triste instabilidade psicológica causada pela perda dos pais. Passou a ter problemas na escola, falhando em diversas matérias. Na época, o garoto estava lendo James Fenimore Cooper, Leopold McClintock, Frederick Maryat, todos com histórias de aventuras sobre os mares, e suplicou ao tio: “Não quero estudar, quero ser capitão!”. Em 1874, sonhando


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para o sobrinho um futuro menos triste, enviou Konrad, então com dezesseis anos, a Marselha, na França, para a sonhada carreira naval. Aos vinte anos de idade, após quatro anos navegando com os franceses, acabou endividado e expulso da Marinha, pois os oficiais descobriram que Konrad não possuía a permissão do Império Russo para navegação estrangeira. Durante uma noite em um cassino, na tentativa de recuperar-se financeiramente, acabou perdendo ainda mais dinheiro; desesperado, atirou contra o próprio peito, em uma tentativa de suicídio. Felizmente, seu corpo recuperou-se do ferimento, seu tio auxiliou-o com as questões financeiras e Konrad deu-se uma nova chance: ingressou na Marinha inglesa, que não exigia a permissão russa, e lá permaneceu pelos quinze anos seguintes. Em 1894, aos trinta e seis, Konrad abandonou a carreira naval e decidiu dedicar-se à literatura, sonho que vinha nutrindo desde sua juventude. Embora não tenha publicado nada (e escrito muito pouco) durante as duas décadas em que permaneceu navegando, foi daquela época que extraiu grande parte de sua inspiração. A experiência no mar não lhe deu somente os cenários de seus enredos, mas também a origem de alguns dos personagens. Em viagem à ilha malaia de Bornéu, por exemplo, Konrad conheceu o comerciante William Charles Olmeijer, que acabou se tornando Almayer, o personagem principal do primeiro romance do autor, A Loucura do Almayer (1895). Apesar de ser fluente em polonês e francês, Konrad escolheu o inglês – língua que aprendeu somente aos vinte e um anos, quando ingressou na Marinha britânica e passou a residir na Inglaterra – para escrever seus livros. Adaptou também seu nome, e Jozéf Konrad passou a assinar-se como Joseph Conrad. Tal qual ocorre na fronteira entre países de línguas distintas, onde elas se misturam e se influenciam mutuamente, Conrad escreveu na fronteira entre suas três línguas, criando um estilo único de escrita.


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ELE É ABSOLUTAMENTE A COISA MAIS ESPANTOSA QUE JÁ HOUVE EM PROSA: GOSTARIA DE SABER COMO CADA PARÁGRAFO QUE ELE ESCREVE VAI SOANDO EM ONDAS, COMO O SOM DE UM SINO DEPOIS QUE PARA DE SOAR. ELA NÃO É FORMADA NO RITMO DA PROSA COMUM, MAS EM ALGO QUE SÓ EXISTE NA MENTE DELE. – T. E. LAWRENCE

O poder literário de Joseph Conrad não se encontra somente na linguagem, mas na forte imagética de sua obra. Abrir um de seus livros é navegar pelas exóticas ilhas malaias ou pela inexplorada América do Sul; desvendar os mistérios dos povos selvagens, ainda não colonizados; navegar em alto-mar, combatendo tempestades ou piratas. Conrad, porém, frustrava-se quando era considerado somente um contador de boas histórias. “Estas podem ser encontradas em qualquer porto!”, resmungava. Mais do que um capitão que escrevia, Conrad era um escritor que navegava. Por trás das histórias envolventes, inspiradas em sua experiência marítima, Conrad inundava as páginas com sutilezas psicológicas, desenvolvendo tramas mais densas do que simples batalhas entre heróis e vilões em ilhas asiáticas. Apesar do começo tardio, Conrad construiu uma obra prolífica. Muitos de seus textos constituíam-se de pequenas histórias, publicadas em periódicos, além de alguns ensaios. Mas foram os romances que marcaram seu nome na história da literatura: são aproximadamente vinte publicações, entre as quais se destacam O Coração das Trevas (1899), Lord Jim (1900) e Nostromo (1904). Somente em 1915, porém, à época da publicação de Vitória, Conrad obteve reconhecimento de público e sucesso financeiro.


12 Indicação do Mês

ANTES DE MAIS NADA, O QUE QUER QUE VOCÊ FAÇA, LEIA [...] VITÓRIA. LEIA, MESMO SE TIVER QUE EMPENHAR O RELÓGIO PARA COMPRAR. CONRAD SE SUPEROU. [...] AGRADEÇO POR ESTAR VIVO, SENÃO POR QUALQUER OUTRO MOTIVO, PELA ALEGRIA DE PODER LER ESTE LIVRO. – JACK LONDON

Embora tenha sido lançado no momento em que eclodia a Primeira Guerra Mundial, o título não tem relação bélica. O livro, que levou dezenove meses para ser escrito, conta a história de um sujeito chamado Heyst, sueco de bigode largo e barba volumosa que, após um empreendimento fracassado pelos mares da Malásia, decide isolar-se do mundo e viver em uma cabana na ilha de Samburan. Filho de um aristocrata pessimista, que acreditava ser o mundo um lugar repleto de dor e ilusão, Heyst prefere viver na solidão. Durante viagem a uma ilha próxima, entretanto, conhece Lena, uma jovem violinista maltratada por seus patrões. Desejoso por ajudar a pobre moça, Heyst acaba rompendo com o distanciamento que mantinha do mundo e das pessoas, atraindo para sua vida sentimentos que não o assediavam em sua isolada ilha. A paixão, o ciúme, a ganância e a dissimulação agora passam a fazer parte do seu mundo, e Heyst se vê no centro de um conflito, rodeado de ladrões e invejosos. Por trás dos revólveres e das viagens marítimas, Vitória retrata os dilemas de um homem que se equilibra entre o desejo de permanecer alheio ao mundo e o de mergulhar nele. “Heyst acredita que pode tornar-se imune às dores do mundo humano ao se separar das paixões e ilusões deste mundo”, afirma John Gray. “Em Vitória, Conrad questiona se tal vida é possível ou desejável para os homens.” Navegamos lentamente pelas páginas iniciais, enquanto Conrad insere-nos na vida do protagonista. À medida que a leitura avança, porém, a correnteza aumenta, e o livro torna-se nosso companheiro inseparável.


Indicação do Mês 13

O ROMANCE DE CONRAD POSSUI UMA RIQUEZA INESGOTÁVEL, MAS UMA INTERPRETAÇÃO QUE SE FAZ DA OBRA É A DE QUE O IDEAL DE UMA VIDA HUMANA SEM ILUSÕES É, EM SUA ESSÊNCIA, A MAIOR DAS ILUSÕES. O LEITOR DEVE PERGUNTAR-SE: QUEM – SE É QUE HÁ ALGUÉM – SAI VITORIOSO NA HISTÓRIA DE CONRAD? – JOHN GRAY

A Enciclopédia Britânica define Joseph Conrad como um dos principais escritores de língua inglesa da história da literatura. Seus livros estão entre os mais estudados pelos acadêmicos e críticos literários; há, na Polônia, um centro de estudos dedicado à obra do autor. Até Virgínia Woolf participou da discussão, escrevendo alguns ensaios sobre ele. Segundo John Stape, autor da biografia The Several Lives of Joseph Conrad, escritores como T. S. Eliot, William Faulkner, Graham Greene e Salman Rushdie admitiram sua admiração pelo escritor polonês. Rushdie, quando lançou seu livro autobiográfico, intitulou-o Joseph Anton (2012), em homenagem a dois de seus autores favoritos: Joseph Conrad e Anton Chekhov. Em 1924, um ano após publicar The Rover, seu último romance, Conrad foi vítima de um ataque cardíaco e faleceu, aos sessenta e seis anos, em sua própria residência, em Bishopsbourne, na Inglaterra. Inserido em sua lápide está o trecho do poema A Rainha das Fadas, de Edmund Spenser, que também foi escolhido como epígrafe de seu último romance. “Sono após labuta, porto após os temporais Paz após a guerra, morte após a vida muito bem nos faz.” - (Canto 9, estrofe 40, do poema A Rainha das Fadas, de Edmund Spenser.)


ECOS DA LEITURA


Ecos da Leitura 15

Foram quase vinte anos dedicados à Marinha, que renderam a Conrad inspiração para suas obras. Em Três viagens, contamos algumas histórias que o próprio escritor viveu sobre os mares. Quando seu filho nasceu, Apollo sugeriu colocar o nome Konrad, em homenagem ao seu poema favorito. No segundo Eco, contamos um pouco das expectativas da família de Joseph Conrad sobre o garoto tornar-se um grande escritor. Em nosso terceiro Eco, trazemos alguns filmes que foram inspirados nas obras de Joseph Conrad, para que o associado possa transformar sua experiência literária também em cinematográfica. A literatura do colonialismo é, como regra, eurocêntrica. Em Do outro lado, falamos sobre alguns escritores que abordaram outra perspectiva: a do colonizado.

ILUSTRAÇÃO: Vera Usherovich


16 Ecos da Leitura

Três viagens

Congoleses na margem do rio, fotografia tirada por passageiros do Roi Des Belges (1888)

Em 1887, então com trinta anos de idade, Joseph Conrad foi deixado em Singapura, após lesão sofrida em uma de suas viagens. Acabou conhecendo James Craig, comandante de um pequeno barco a vapor chamado Vidar, que o convidou para fazer parte da tripulação. Como subcapitão de Craig, Conrad percorreu inúmeras ilhas, adentrando pelos riachos e explorando em profundidade as ilhas do Leste. Em uma de suas ancoragens, conheceu Charles William Olmeijer, comerciante que vivia nas ilhas selvagens há mais de dezessete anos, que serviu de inspiração para suas primeiras obras. Olmeijer, transcrito foneticamente como Almayer, foi o protagonista do primeiro romance de Conrad, A Loucura do Almayer (1895), e personagem de seu segundo, An Outcast of The Islands (1896).

SE EU NÃO TIVESSE CONHECIDO ALMAYER MUITO BEM, É QUASE CERTO QUE NUNCA UMA LINHA MINHA TERIA SIDO IMPRESSA. – JOSEPH CONRAD

Três anos depois, em 1890, Conrad foi contratado por uma empresa belga para servir em uma embarcação no Rio Congo, o segundo maior rio da África. Quando seu capitão ficou doente, Conrad assumiu o comando do barco Roi des Belges e observou as mais tristes atrocidades de sua vida. Desiludiu-se com a crença do progresso imperialista, propagada entre os países colonizadores, ao observar a crueldade e a corrupção perpetradas por europeus em busca de lucros


no Congo. A decepção tornou-se maior ainda ao perceber que fez parte dessa tragédia – ele mesmo podendo ser chamado de imperialista. A experiência legou ao autor uma descrença na natureza humana e deixou-o meses em estado depressivo. Mais tarde, recontaria essa história em O Coração das Trevas (1899). Em 1892, Joseph Conrad fez sua última viagem. A bordo do barco Torrens, que fazia o trajeto Inglaterra-Austrália, Conrad assumiu a posição de auxiliar de capitão, e pela primeira vez tripulou um navio de passageiros e não de mercadorias. Assim, pôde conhecer pessoas que não eram marinheiros e passar a dialogar com intelectuais, advogados, escritores e médicos. Entre eles, William Henry Jacques, jovem formado em Cambridge que, segundo Conrad, foi o primeiro a ler o manuscrito inacabado de A Loucura do Almayer, que vinha escrevendo sem muita pretensão. Jacques aprovou a escrita de Conrad e o incentivou fortemente a concluí-la. Depois, conheceu o advogado John Galsworthy, que também estava escrevendo seu primeiro livro (e que viria a ganhar o Prêmio Nobel em 1932). Armand, o protagonista do primeiro romance de Galsworthy, foi inspirado em Conrad. Terminada a viagem, foi questão de meses para Joseph Conrad abandonar a carreira marítima e dedicar-se a uma nova viagem: pelos mares da literatura.

Barco Roi des Belges, no qual Conrad viajou pelo rio Congo em 1890.


18 Ecos da Leitura

Nascido para a literatura O pai de Joseph Conrad, Apollo Korzeniowski, era um influente intelectual polonês, apaixonado por poesia e literatura. Quando seu filho nasceu, sugeriu colocar o nome Konrad, em homenagem ao personagem de seu poema favorito, mas não foi só isso. Inspirado pelo nascimento de seu primeiro filho e receoso com o futuro da Polônia, que estava nas mãos do império russo, Apollo decidiu homenageá-lo com um poema próprio, intitulado “Poema de batismo”.

Meu menino, diga a si mesmo Que não tem terra, não tem amor Não tem uma pátria, não tem um povo Enquanto a Polônia – sua mãe – estiver no túmulo. […] Dê a Ela e a si mesmo imortalidade. Durma bem, meu menino! Apollo Korzeniowski


Ecos da Leitura 19

Desde cedo, tendo perdido a esposa e ficado sozinho com a incumbência de educar seu filho, Apollo apresentou-lhe os livros. Conta-se que Joseph Conrad nunca foi visto, quando criança, lendo livros infantis: suas companhias eram Shakespeare, Victor Hugo, autores que seu pai havia traduzido para o polonês. Entre aqueles que conheciam Conrad, o caminho da literatura era uma certeza – “Ele será um grande escritor!”. A dúvida era se o jovem optaria pela poesia ou pela prosa. Acabou frustrando as expectativas quando optou pela Marinha, decisão que não se mostrou efêmera, arriscando o futuro do homem de letras. Anos após o falecimento de seu pai, quando Joseph Conrad estava com vinte e três anos e trabalhava para a Marinha inglesa, seu tio enviou-lhe uma carta com recomendações profissionais, entre as quais incentivava o jovem a entrar para a carreira literária.

“Seria um tributo à memória de seu pai, que sempre quis, e conseguiu, servir a seu país com sua caneta.” – Tadeusz Bobrowski, tio de Conrad, em carta. Suas viagens marítimas, que aparentemente estavam afastando-o da escrita, revelaram-se a grande inspiração literária de Conrad, que decidiu tornar-se escritor somente aos trinta e seis anos de idade. Apesar de nunca ter se aventurado pela poesia, a prosa de Conrad teria orgulhado seu pai – e hoje, mais de cento e cinquenta anos depois, estamos lendo Joseph Conrad, que através da literatura tem flertado com a imortalidade, realizando, de certa forma, o desejo paterno.


20 Ecos da Leitura

No cinema

O filme norte-americano Apocalypse Now, lançado em 1979 e dirigido por Francis Ford Coppola, bebeu da fonte conradiana. O roteiro surgiu na década de sessenta, quando John Millius lia O Coração das Trevas e decidiu usá-lo como ponto de partida para um roteiro cinematográfico. Com estrondoso sucesso e renomadas participações, entre elas Marlon Brando e Robert Duvall, o filme atualiza o dilema do imperialismo belga no Congo trazendo-o para um cenário mais recente: a guerra no Vietnã. (No mesmo mês em que o filme foi lançado, a cidade de São Francisco, na Califórnia, renomeou uma de suas praças para Joseph Conrad Square.) Há ainda outras referências a Joseph Conrad no cinema, mas escondem-se na sombra do estrondoso sucesso que foi Apocalypse Now. Em 1993, o cineasta britânico Nicolas Raeg dirigiu A Maldição da Selva, uma adaptação literal do romance de Conrad. Três anos depois, foi a vez de Vitória ser levado às telonas, sob direção de Mark Peploe, trazido ao Brasil com o título de Fuga para o amor. No filme Alien, de Ridley Scott, há uma espaçonave chamada Nostromo, em homenagem ao romance homônimo. Essa obra, aliás, era considerada por Scott Fitzgerald o melhor dos romances de Conrad. Ele teria afirmado, certa vez, que “preferiria ter escrito Nostromo a qualquer outro romance”.


Ecos da Leitura 21

No museu

Por muitos anos, órgãos dedicados a estudar a obra de Conrad, liderados por Zdzislaw Najder, autor da biografia Joseph Conrad: a Life, empenharam-se em criar um museu dedicado ao autor. Finalmente, as autoridades ucranianas e o Ministério de Cultura Polonês firmaram uma parceria e deram vida à ideia. A inauguração do museu ocorreu em janeiro de 2007, em Berdychiv, Ucrânia, no mosteiro onde Joseph Conrad foi batizado.


22 Ecos da Leitura

Palavras de Jack London Em 3 de junho de 1915, logo após o lançamento de Vitória, o célebre escritor Jack London escreveu uma carta para seu amigo Cloudesley Johns, elogiando o recente trabalho de Conrad.


Ecos da Leitura 23

Um dia depois, ainda exaltado com a leitura do livro, escreveu outra carta, desta vez ao prรณprio Joseph Conrad:


24 Ecos da Leitura

Do outro lado Os grandes movimentos históricos são lenha seca para a literatura, intensificando a produção. O colonialismo europeu foi tão forte que praticamente criou um gênero literário: o romance colonial, como muitas vezes é chamado, atingiu seu apogeu entre o final do século dezenove e os primeiros anos do século vinte, quando o Império Britânico e seus adversários – como Portugal, Espanha, Holanda, França, Bélgica, Itália e Alemanha – impuseram o domínio europeu à quase totalidade da África e à maior parte da Ásia, e “continuou a existir até a queda definitiva dos impérios coloniais, já bem depois da Segunda Guerra Mundial”, como afirmou o jornalista Antonio Luiz M. C. Costa. Na série de quadrinhos Tintim no Congo (1930), do belga Hergé, o personagem dá uma aula a crianças africanas: “Meus caros amigos, hoje vou lhes falar de sua pátria: a Bélgica”. Em 1888, inspirado pela história de James Brooke, primeiro inglês a se tornar Rajá na ilha de Bornéu, o britânico Rudyard Kipling publicou a novela O Homem que Queria Ser Rei, sobre dois europeus que resolvem conquistar um país ao norte da Índia, chamado Kafiristão. Um ano depois, o mesmo Kipling publicaria o célebre poema O Fardo do Homem Branco, a respeito da conquista estadunidense das Filipinas e de outras ex-colônias espanholas. Henry Rider Haggard, John Buchan, Florence Dixie, Conan Doyle foram outros escritores que também contribuíram ao gênero. Como grande parte da produção literária da época era de autoria de europeus, não é de se surpreender que a ficção contribuísse para convencer a opinião pública de que a colonização era positiva até mesmo para os colonizados. Houve, porém, algumas vozes dissonantes,


que revelaram ao mundo perspectivas diferentes, e mais tristes, do processo imperialista. Dois deles – e talvez não seja à toa que tenham sido ídolos de Gabriel García Márquez – foram Joseph Conrad e Emilio Salgari. Joseph Conrad escreveu na perspectiva do europeu que, ao descobrir as barbáries perpetradas contra outros seres humanos, desilude-se com a propaganda progressista e com a natureza do próprio ser humano – tal qual é hoje o discurso do próprio John Gray, nosso curador. Talvez não seja por acaso que Heyst, o protagonista de Vitória, seja um homem solitário vivendo em uma ilha, desconexo do resto do mundo: seu próprio autor, Joseph Conrad, talvez também se sentisse um pouco dessa forma. Emilio Salgari vai ainda mais longe: seus protagonistas não eram os europeus, mas os próprios colonizados. Seus heróis eram nativos que conseguiram resistir à opressão europeia – e isso logo após a Itália ensaiar seus primeiros passos no colonialismo! Mesmo em épocas mais recentes, um escritor popular contrariar dessa maneira o pensamento patriótico seria ousadia. Tornar-se, nessas condições, o autor favorito de uma juventude seria insólito, mas foi o que aconteceu. Emilio Salgari foi mais lido que seu conterrâneo Dante Alighieri e, apesar de pouquíssimo conhecido no Brasil, fez estrondoso sucesso na literatura.

Sandokan, personagem criado por Salgari, que combate os colonizadores britânicos, holandeses e espanhóis das ilhas malaias no século XIX.


“Você se associa e passa a receber, todos os meses, um livro selecionado em sua casa”: a frase que sempre utilizamos para explicar o clube começa a ficar insuficiente. Os livros selecionados continuam sendo os protagonistas, mas a peça na qual atuam está ganhando personagens. A curadoria por trás de cada escolha, a revista que introduz o leitor ao universo daquela obra, o gostinho da ansiedade de cada mês, mimos que dão um sabor especial à abertura das caixinhas, todos entraram em cena – e mesmo eles já não contemplam tudo que a TAG oferece. Nos últimos meses, novos personagens entraram em cartaz:


Espaço do Leitor 27

Hoje, ao associar-se na TAG, você passa a receber muito mais do que “um livro por mês”. Enquanto continuamos aprimorando os kits, vocês podem conhecer essas novas experiências literárias que oferecemos a vocês – e aguardar as próximas novidades, reservadas para 2017.

Em setembro: Et cetera Àqueles que, após devorarem as páginas da revista de cada mês, ainda desejam conteúdo extra, lançamos, em setembro, o nosso blog, onde três colunistas de peso – os escritores Sergio Rodrigues, Carol Bensimon e Letícia Wierzchowski – aprofundam conteúdos relacionados ao clube. Acesse etcetera.taglivros.com. Em outubro: Aplicativo Enquanto você lê o livro selecionado pela TAG, outros milhares de leitores fazem o mesmo – aqui, não há o perigo de, ao finalizarmos uma leitura, não termos com quem conversar! E, para melhorar a interação entre nós, criamos um aplicativo de celular para Android e iOS: uma rede social onde os associados poderão se conhecer e discutir cada uma das obras, enriquecendo ainda mais a experiência aqui no clube. Para baixar, procure por TAG Livros na Apple Store e na Google Store. Em novembro: Loja da TAG Neste mês, entra em cartaz o projeto que estávamos devendo a vocês há meses: a Loja da TAG. Sempre que postávamos alguma foto em que apareciam nossas ecobags ou em que vestíamos as camisetas do clube, vocês nos perguntavam onde poderiam comprar. E sempre desconversávamos, pois não tínhamos um canal para oferecer esses produtos. Agora, temos! Camisetas, ecobags, kits passados, livros alternativos, itens exclusivos e mimos antigos agora estão disponíveis em loja.taglivros.com.


A PRÓXIMA INDICAÇÃO

O autor faz um retrato da época com sua marca registrada, um texto que flui e emociona. É daqueles livros em que você fica pensando por um longo tempo depois que o fecha. E o tempo voa com ele nas mãos. – HElio de la Peña

Para finalizar o ano, mais um livro brasileiro! Ao perceber que sua mãe estava perdendo a memória, o autor da obra de dezembro decidiu escrever a história por ela vivida nos últimos quarenta anos: quando o marido desapareceu, durante o regime militar, teve de criar sozinha os cinco filhos, enquanto lutava para descobrir o que havia acontecido. Considerado um dos melhores livros de 2015 pelo jornal O Globo, seu autor alterna lembranças da infância com relatos verídicos do que estava acontecendo durante a ditadura, trazidos à tona muitos anos após o término desse período. Como disse Helio de la Peña, é um livro “daqueles em que você fica pensando por um longo tempo depois que o fecha”. E os livros ainda virão com a dedicatória do próprio autor aos associados!


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Solidão Ê o modo que o destino encontra para levar o homem a si mesmo. – Hermann Hesse

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