O sentido de um fim
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Ao Leitor É difícil ressaltar o poder de O sentido de um fim sem
revelar em excesso. O livro de Julian Barnes evidencia o poder do controle narrativo e brinca sutilmente com as múltiplas versões de uma mesma história. O final enigmático é daqueles que fazem com que a gente saia procurando alguém para discutir e traçar teorias conspiratórias sobre o que realmente aconteceu. Mas o livro é mais do que charadas: é sobre o modo como lembramos do próprio passado. É sobre como a nossa memória pode ser traiçoeira. Michel Laub, o curador do mês, é um dos escritores mais relevantes do cenário literário brasileiro. Aos 45 anos, publicou sete romances, sendo os mais recentes Diário da queda (2011), A maçã envenenada (2013) e O tribunal da quinta-feira (2016). Este último gerou uma infinitude de discussões no meio literário por ter tocado em um tema tão atual e polêmico: a facilidade com que a internet se torna o palco de um julgamento público, no qual vidas se transformam completamente de um dia (e de um e-mail) para outro. Tanto Laub quanto Barnes são autores que não têm medo de explorar as múltiplas facetas dos seus personagens e as ações que os tornam tão humanos. Ao indicar O sentido de um fim, Laub nos presenteou com uma obra que nos relembra o quão poderosa pode ser a literatura. A ideia é que você não seja mais a mesma pessoa depois de chegar à última página. Boa leitura!
Sumário
A indicação do mês
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O curador Michel Laub Entrevista com Michel Laub O livro indicado O sentido de um fim
Ecos da leitura
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Além da leitura: 10 indicações que complementam O sentido de um fim Os ardis da narrativa Vida, morte e os seus sentidos filosóficos
Espaço do associado
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“Então, por exemplo, se Tony...”
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O livro de julho
Renato Parada
O curador
Michel Laub O escritor e jornalista Michel Laub, um dos principais no-
mes da literatura brasileira contemporânea, é o curador do mês de junho na TAG. Gaúcho de Porto Alegre, Laub vive hoje em São Paulo e é colunista do Valor Econômico, além de colaborar com diferentes editoras e veículos. Publicou um livro de contos e sete romances e já foi traduzido para dez línguas diferentes. Foi um dos vinte escritores brasileiros selecionados para a edição Os melhores jovens escritores brasileiros da revista inglesa Granta no ano de 2012. Laub cresceu em Porto Alegre nos anos 1970 e 1980 e, segundo ele, não apresentava muito indícios de que seria um escritor: apesar do estímulo à leitura desde criança, passou infância e adolescência andando de skate, surfando e tocando em bandas de rock. Suas leituras se resumiam a gibis de terror e alguns livros policiais de Agatha Christie. Após se formar em Direito e trabalhar como advogado por poucos meses, desistiu da profissão. Começou a colaborar para a revista Carta Capital e se mudou para São Paulo. Por conta do seu crescente interesse pela escrita e pela literatura (e por ter sido descoberto por um amigo, que enxergou em Laub um escri-
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tor talentoso), consolidou-se como jornalista: foi diretor de redação da revista Bravo!, coordenador de publicações e internet do Instituto Moreira Salles e colunista da Folha de São Paulo e do Globo. Música anterior (2001), estreia de Laub como romancista, teve uma recepção bastante positiva pela crítica. A obra conta a história de um juiz que reflete, em um monólogo de estrutura não linear, sobre os principais acontecimentos de sua vida. Um deles, envolvendo o processo que o fez condenar um homem por estupro, passa a se relacionar com os dramas pessoais e familiares do protagonista até eles se encontrarem na mesma trama, em uma narrativa que explora temas tradicionais como livre arbítrio, destino e culpa. Nos últimos dez anos, Laub publicou quatro romances: O gato diz adeus (2009), Diário da queda (2011), A maçã envenenada (2013) e O tribunal da quinta-feira (2016). O gato diz adeus (2009) é uma história narrada por quatro personagens. Trata de um triângulo amoroso envolvendo Sérgio, um escritor e professor universitário, Márcia, uma atriz casada com Sérgio que depois o abandona para ficar com Roberto e o próprio Roberto, também professor universitário, que se verá envolvido na trama de Sérgio. A exemplo do que acontece em outros livros de Laub, os personagens
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precisam se defrontar com um passado que não admite ser deixado para trás. Em Diário da queda (2011), elogiado pelo norueguês Karl Ove Knausgård, Laub traz à luz um outro lado da discriminação, aquela praticada pelos judeus contra não-judeus. O ponto de partida de Diário da queda é um episódio diabólico planejado por uma turma de garotos. O evento marca para sempre a vida do narrador, que vive a culpa e o arrependimento por não ter agido de forma diferente frente ao bullying agressivo praticado pelos amigos. Já adulto, ele se volta para um passado de relações conturbadas com a própria história familiar, envolvendo principalmente o pai. A maçã envenenada (2013) tem como evento central o suicídio de Kurt Cobain. O protagonista é um estudante de dezoito anos, guitarrista de uma banda de rock, e cumprindo o serviço militar em Porto Alegre. Além da morte do líder do Nirvana, que chocou o mundo em 1994, outro evento tratado no livro é o genocídio de Ruanda sob o ponto de vista de uma garota, Immaculée Ilibagiza, que escapou da morte ao passar 90 dias escondida em um banheiro com outras sete mulheres. Como no volume anterior, Michel Laub aborda o tema da sobrevivência usando os recursos da ficção. O fio condutor de O tribunal da quinta-feira (2016), o mais recen-
Agência Brasil
te do autor, brinca com os limites do que entendemos por tolerância. José Victor, um publicitário, é o protagonista da obra que vê a sua vida entrar em ebulição ao ter e-mails outrora trocados com um amigo soropositivo vazados pela ex-esposa, traída e sedenta por vingança. O tom de brincadeira vulgar entre amigos faz com que as interações entre os dois homens sejam debochadas – uma vez públicas, as trocas são motivo de um verdadeiro tribunal cujo palco são as redes sociais e os juízes, qualquer pessoa com acesso à internet. Memorialismo e autoficção são elementos marcantes que abundam na prosa de Laub. Temas que se repetem em suas obras, segundo ele mesmo, são “questões de traição e fidelidade, escolhas que determinam destinos; memórias de juventude” – esses últimos elemen-
tos evidenciam a escolha pelo livro enviado em junho. No prefácio exclusivo para a edição da TAG – no qual defende que O sentido de um fim promove uma leitura em várias camadas –, Laub escreve:
“Afinal, se o horror às vezes se alimenta da boa intenção e do bom senso, também é verdade que a vida pulsa no erro – que a paixão não precisa ter sentido, que nunca é tarde para reconhecer a coragem de quem não se protegeu dos grandes dilemas, dos grandes mergulhos no tumulto da existência”.
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Entrevista com
Michel Laub TAG – O tribunal da quinta-feira teve os direitos vendidos para o cinema. O que pode nos adiantar sobre essa adaptação? Como acredita que a história, que depende tanto dos e-mails e das mensagens trocadas entres os protagonistas, será apresentada e recebida nas telas? Michel Laub – O livro foi vendido para o diretor Miguel Faria Jr. no ano passado. Não sei em que pé isso anda, na última vez em que falamos ele ainda estava atrás de um roteirista. Optei por não participar porque acho interessante que te-
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nham liberdade de mudar a história como acharem melhor, inclusive para atenuar esse problema que você cita, e a presença do autor no processo pode ser constrangedora nesse sentido. O narrador de O tribunal da quinta-feira é politicamente incorreto e, no entanto, o leitor torce por ele enquanto a ex-mulher, de certa forma, vira a antagonista da história. Este foi um efeito intencional? Michel Laub – A torcida pelo narrador é um efeito natural da literatura
“Hoje em dia não dá mais para falar de separação entre mundo real e virtual. As duas coisas se confundem em boa parte do tempo.” em primeira pessoa, mas nem sempre isso funciona desse modo. Na minha experiência, e especialmente em livros com conteúdo político mais imediato como esse, as leituras acabam influenciadas por vieses que não estão necessariamente no texto. Houve muita rejeição a esse personagem, por exemplo, de quem viu o livro como uma defesa incondicional do discurso dele – o que nem era a minha intenção, se é que a intenção do autor conta alguma coisa. Você já mencionou que a internet é o pior inimigo de um escritor ao mesmo tempo que mantém um blog atualizado com certa frequência. Enquanto isso, O tribunal da quinta-feira tratou de temas essencialmente contemporâneos e ligados à vida digital, como privacidade e vigilância. Você acredita que estes sejam assuntos urgentes para a literatura? É possível escrever sobre
o século XXI sem tratar dos impactos que a tecnologia teve e tem na vida das pessoas? Michel Laub – A Internet é um inimigo mais no sentido de causar ansiedade e depressão, o que em algum grau parece inevitável para quem está nas redes sociais a longo prazo, do que por uma questão de atenção, de tempo gasto escrevendo ou não. Esses dois estados emocionais são inimigos mortais da criação literária, ao menos no meu caso. Já em termos temáticos, sim, acho difícil alguém escrever uma história urbana no tempo presente com narradores entre os 20 e os 50 anos, digamos (como têm sido os meus livros), e não tocar no assunto da tecnologia. Hoje em dia não dá mais para falar de separação entre mundo real e virtual. As duas coisas se confundem em boa parte (ou na maior parte) do tempo.
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É verdade que você quer dar um tempo da ficção? Quais são seus projetos profissionais futuros? Michel Laub – É verdade há muitos anos, mas nunca tinha conseguido levar esse plano adiante... Depois d'O tribunal eu consegui, fiquei quase dois anos sem escrever. No fim de 2017 voltei a trabalhar no que talvez vire um livro de ficção. Virando ou não, tenho também planos de alguns livros de não-ficção, algo entre a reportagem e o ensaio memorialístico.
nes bota uma ambiguidade no narrador dele: ao mesmo tempo em que ele tenta editar, manipular a memória de certa forma, até por motivos romanescos (ele vai soltando as informações aos poucos, e isso empurra a leitura para a frente, mantendo o nosso interesse de leitor), há uma certa honestidade no exame que ele faz do passado. Então, é uma fronteira entre o fingimento e a sinceridade. Isso é uma das riquezas do livro.
“A fronteira entre o fingimento e a sinceridade é uma das riquezas de O sentido de um fim.”
Você já afirmou em entrevistas que o tema da identidade está muito presente em sua obra. Em O sentido de um fim, a memória do narrador parece ser ao mesmo tempo aliada e inimiga dessa construção sobre ele mesmo e sobre os outros. Como você analisa a abordagem da identidade neste livro?
Michel Laub – Em um romance em primeira pessoa (como na vida) não existe nada fora do que o narrador (ou a pessoa real) lembra ou é lembrado(a) sobre o próprio passado, sobre a história geral e assim por diante. Ou seja, identidade é memória. Me parece que o Julian Bar-
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Como acredita que os seus narradores (in)confiáveis se relacionam com o de Barnes?
Michel Laub – Eles têm um grau de articulação e de ambiguidade moral semelhante. Nunca trabalhei com outras modalidades de narradores inconfiáveis: os ingênuos, por exemplo, ou os alucinados, ou os movidos por convicção ou por má fé. O sentido de um fim é um livro com desfecho impactante. Como foi a experiência de lê-lo pela primeira vez? Michel Laub – É curioso, porque reli o livro depois da escolha para a TAG e não lembrava bem do desfecho. Então, mesmo que na época tenha sido impactante (e lembra-
va desse impacto), o que ficou para mim (como em geral acontece com a literatura de qualidade) foi a condução da história, o modo como a visão de mundo de quem escreve aparece nas soluções formais do texto. Quais outros livros você indicaria para quem gostou de O sentido de um fim? O que diria aos 27.000 leitores que lerão esse livro pela primeira vez? Michel Laub – Espero que gostem do livro como eu gostei. Sobre indicações, nessa modalidade de romance curto fortemente calcado em uma trama (mas que seria só uma trama se não fosse a costura bem-resolvida da linguagem, das ideias), indico os livros Na praia, do Ian McEwan (mais contemporâneo), e Fera na selva, do Henry James (mais clássico). Os dois são sobre amor e culpa, erros do passado que determinam estados emocionais do presente, e têm a linguagem clara de certa tradição da literatura de língua inglesa que costuma fazer sucesso entre a maioria dos leitores.
Tem na loja!
Outras indicações do curador.
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O livro indicado
O sentido de um fim de Julian Barnes Poucas coisas mudaram na vida de Julian Barnes des-
de que o escritor recebeu o prestigiado Man Booker Prize pelo romance O sentido de um fim, em 2011. Dias após a premiação, Ian McEwan, outro gigante da literatura inglesa contemporânea, antecipou ao velho amigo a única transformação que seria efetivamente percebida com o tempo: ele não era mais o “novelista Julian Barnes”, mas o “novelista vencedor do Man Booker Julian Barnes”. Efeitos mercadológicos à parte, o prêmio não afetou a escrita ou um potencial “estrelismo” do autor (sua vasta e premiadíssima obra já teria feito o trabalho muitos anos antes), mas rendeu comentários como este, em texto publicado no The Guardian em 2018: “Eu sempre acreditei que prêmios literários deveriam existir para o encorajamento dos jovens e para a consolação dos velhos”. Este é Julian Barnes, 73 anos, tipicamente inglês. O curioso é que, enquanto Barnes é visto no resto do mundo como um escritor essencialmente britânico, na Inglaterra os leitores o entendem como dono de uma escrita europeizada. Um pouco dessa combinação cultural se deve às origens de
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Barnes, filho de professores franceses. Parte importante, entretanto, se deve a uma paixão cultivada autonomamente pela literatura francesa, em especial por Gustave Flaubert. Nascido em Leicester em 1946, mas morador de Londres por quase toda a vida, Barnes viveu uma infância tranquila: cercado de livros, mas não exatamente fascinado por eles. Pouco estimulado criativamente dentro de casa, foi descobrir o real interesse pela literatura na adolescência, quando era um jovem obcecado (como qualquer outro) pelos temas Deus, morte e sexo. Enquanto ler tornava-se uma atividade cada vez mais prazerosa, escrever, por outro lado, parecia “uma coisa que os outros faziam”, algo impraticável. Até que foi se tornando uma necessidade. Hoje celebrado mundo afora, traduzido para mais de trinta línguas e com uma obra que já conta com treze romances, três coletâneas de contos e nove livros de textos não ficcionais, Julian Barnes definia-se como um jovem inseguro, e com pouca ou nenhuma convicção das suas capacidades enquanto escritor de ficção. Em função disso demorou
para estrear no universo literário com Metroland (1980) aos 34 anos. Antes disso, seguiu uma trajetória razoavelmente convencional, graduando-se com honrarias em línguas modernas na universidade de Oxford, trabalhando como lexicógrafo por três anos e depois como jornalista, participando da redação dos periódicos The New Statesman e New Review, dos quais foi crítico literário e editor. Metroland, romance de formação que narra a história de um jovem inglês que se muda para Paris, demorou mais de sete anos para sair de sua gaveta, passou por amigos e editores não exatamente comovidos e acumulou incertezas no escritor. Como um método de autodefesa, Barnes escreveu, às vésperas da publicação, a crítica mais impiedosa que conseguiu para o próprio livro. Ao “autor” da resenha, deu o nome de Mack the Knife. O texto, que empenhava-se em apontar todos os pontos fracos da obra, começava comprovando que, se Barnes tem a ironia como um de seus trunfos, é especialmente afiado quando utiliza essa habilidade para ser autodepreciativo:
“Houve um tempo em que havia uma criatura chamada o jovem sensível. Frequentemente, ele era contemplado com letras maiúsculas, assim: o Jovem Sensível. Ele floresceu no tempo, na sombra e, às vezes, escondido no ombro de Oscar Wilde. Ele escrevia romances não porque tinha algo a dizer, mas porque queria ser romancista. Ser romancista é, pensava, algo de bom.”
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AFP
Barnes prometeu a si mesmo: se os críticos tivessem as mesmas impressões de Mack, o autor desistiria de escrever ficção. O escrutínio, é claro, não chegou (ele creditou isso a uma suposta boa vontade da crítica para com escritores estreantes), a publicação foi bem recebida, e logo novas ideias para romances acabaram surgindo em sua cabeça. Before she met me (1982), história sobre o ciúme de um homem obcecado pelos amantes anteriores de sua esposa, foi seu segundo livro. Barnes permitiria a Mack uma segunda aparição, antes de finalmente abandonar o autoflagelo. Através de uma prosa que não raro é classificada como elegante e espirituosa, Barnes foi conquistando seu lugar entre os escritores mais
prestigiados de seu tempo, permitindo-se diversas experimentações técnicas e estilísticas a cada nova publicação. O papagaio de Flaubert (1984), seu terceiro livro, foi o primeiro a apresentar uma estrutura menos tradicional. Nessa prova irrefutável da admiração pelo escritor francês, Barnes mistura romance, biografia, crítica literária e até cartas para elaborar o livro que o tornou uma estrela do mundo literário. Outros destaques da sua obra são a sátira com elementos distópicos Inglaterra, Inglaterra (1996), Arthur e George (2005), e Nada a temer (2008), além dos quatro livros policiais que publicou sob o pseudônimo Dan Kavanagh, nunca traduzidos para o português. Em poucas oportunidades, no entanto, foi tão conciso, tão reflexivo e
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agradou a um público tão vasto em uma obra ficcional ou não quanto com o romance O sentido de um fim, que chega a você pela indicação de Michel Laub. O sentido de um fim é o relato em primeira pessoa de Tony Webster, um inglês de meia-idade divorciado e aposentado. Dividida em duas partes principais, a obra começa com o protagonista relembrando algumas cenas aparentemente
Divulgação
aleatórias e imprecisas de sua vida para, a partir delas, refletir sobre o tempo e a memória. É reconhecendo essa imprecisão que o narrador contará sua história, que começa quando Webster era um estudante. Nessa primeira metade, conheceremos a juventude do narrador ao longo dos anos 1950 e 1960 ao lado dos seus três melhores amigos. Nessas lembranças, destaca-se a figura de Adrian Finn, um jovem tímido e brilhante, visto com um misto de admiração e inveja pelos outros rapazes pela sua capacidade intelectual e por inspirar certo mistério. Fome de livros, fome de sexo, meritocratas e anarquistas, Tony e seus amigos são jovens pretensiosos e levam suas vidas em uma eterna espera pela vida real, a vida adulta, sem perceber que os “danos já estavam sendo feitos”. Isso vale em especial para a vida de estudante universitário do narrador, quando terá experiências que definirão sua trajetória: o início das relações amorosas e os traumas advindos desse momento. A segunda parte do livro é voltada para a vida de Tony já maduro, próxima do tempo em que o personagem narra a história, e que toma uma direção inesperada quando este recebe uma carta informando o recebimento de uma herança e dois documentos. Tal acontecimento acaba por forçar o protagonista a enfrentar suas lembranças e, consequentemente, a perceber o quanto elas podem funcionar como arma-
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dilhas. O passado de Tony, que até então parecia ser contado com relativa imparcialidade, leva a questionamentos inesperados, descobertas e até ao reencontro com figuras do passado, cujos desdobramentos Julian Barnes maneja habilmente, conduzindo o leitor, que aguarda ansiosamente por respostas.
“O sentido de um fim é uma obra que convida o leitor a uma série de reflexões sobre temas como a passagem do tempo, a fragilidade da memória e os paralelos entre história individual e coletiva.” Barnes escreve com a sofisticação e o humor típicos dos ingleses sem abandonar, no entanto, o tom quase íntimo do relato – suas abstrações metafísicas e confissões do cotidiano são capazes de fazer o leitor se sentir como seu único confidente. A obra chama a atenção pela quantidade de frases memoráveis para um livro relativamente curto, prato cheio para aqueles que gostam de rabiscar o livro com suas passagens preferidas. Tony é um
narrador irônico e que vacila entre a honestidade e a omissão proposital, escondendo informações ao mesmo tempo em que reforça a falibilidade da sua memória, tornando-se, assim, um curioso tipo de narrador não-confiável: aquele que insistentemente se reconhece como tal. Uma ótima provocação ao leitor, que precisa decidir o que há de realmente valioso nas palavras de Tony Webster. Além do sucesso instantâneo e da badalação que sucedeu a entrega do Man Booker Prize no final de 2011, O sentido de um fim recebeu uma adaptação homônima para o cinema em 2017, dirigida por Ritesh Batra. Inabalado por qualquer tipo de afetação que grandes prêmios possam trazer consigo (como ele mesmo disse, já era tarde demais para isso), Barnes continuou escrevendo como sempre: nos últimos anos, publicou obras que mantiveram em alto nível a sua aprovação entre a crítica e o público. Um deles é o best-seller Os níveis da vida (2013), obra de não ficção sobre o luto pela perda da esposa, Pat Kavanagh, em 2008. The only story (2018), obra mais recente do autor, conta a história de um relacionamento entre um homem jovem e uma mulher mais velha. Uma curiosidade: em entrevista sobre o livro, Barnes revelou que o enredo foi, em parte, inspirado por O sentido de um fim. Sobre isso, porém, não deveríamos adiantar mais nada. Boa leitura!
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10 AlĂŠm da leitura:
que complementam O sentido de um fim
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Ecos da leitura
Trauma, perda, confronto com o passado, culpa e solidão: são muitos os temas que permeiam O sentido de um fim. Neste Eco, reunimos seis livros e quatro filmes que tratam desses assuntos, cada um à sua maneira, complementando as reflexões suscitadas pela história de Julian Barnes.
Ecos da leitura
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(1981), de Martin Amis
Imagine acordar na sala de emergência de um hospital sem saber o seu nome, o seu passado ou o que significa ser humano. Essa é a premissa da história criada por Martin Amis, que parece ter como principal objetivo desorientar o leitor. Bem como em O sentido de um fim, há a busca pela identidade e pela verdade – inalcançável – dos fatos.
Reparação
2 Vestígios do Dia (1989), de Kazuo Ishiguro Obra do vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2017, a trama do livro gira em torno do mordomo Stevens, que, por insistência do novo patrão, sai de férias em viagem pelo interior da Inglaterra. O mordomo vai ao encontro de uma antiga colega de trabalho e, no caminho, recorda passagens da vida, além de refletir sobre o papel dos criados na história britânica. O narrador vai, aos poucos, revelando aspectos sombrios da trajetória política do ex-patrão, simpatizante do nazismo, ao mesmo tempo em que deixa escapar sentimentos pessoais reprimidos durante anos.
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Ecos da leitura
(2001), de Ian McEwan Esta é uma das obras mais famosas de Ian McEwan, contemporâneo e conterrâneo de Barnes. Em Reparação, a jovem Briony confunde um flerte com ataque sexual envolvendo um serviçal e a irmã mais velha. A incompreensão e a imaginação fértil da menina resultam em um crime que mudará as vidas de todos. Como em O sentido de um fim, há ambiguidade moral, dúvida e culpa, além da (quase) inatingível reparação de erros passados. Em 2008, Keira Knightley estrelou a adaptação cinematográfica dirigida por Joe Wright.
Livors
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Outras pessoas
Livros
Garota exemplar (2012), de Gillian Flynn
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Em Garota exemplar, a narrativa não linear de Gillian Flynn se alterna entre perspectivas opostas e conflitantes. A partir de uma atmosfera ambígua – como também vemos no desenrolar da história de Barnes –, Garota Exemplar revela vidas secretas de personagens manipuladores que compõem um casamento desestruturado. O livro foi transformado em filme em 2014 e contou com roteiro da própria Flynn, considerada uma das mestras da literatura de suspense contemporânea.
Os emigrantes (1992), de W.G. Sebald
Ao dividir este livro em quatro pequenas novelas, Sebald, um dos autores alemães mais importantes do século XX, tratou de histórias de homens que emigraram para a Inglaterra e os Estados Unidos após experiências trágicas. São personagens que não conseguem ficar em paz com o presente: cada enredo é um encontro entre os narradores e os seus temas: deslocamentos, perdas, memória, trauma e, principalmente, o sentimento de não pertencimento.
O leitor (1995), de Bernhard Schlink Aos 15 anos, Michael Berg inicia um relacionamento apaixonado com Hanna Schmitz, uma mulher mais velha que acaba desaparecendo misteriosamente da vida do jovem. Anos mais tarde, ele reencontra Hanna em um julgamento, acusada de ter atuado ativamente nos campos de extermínio nazistas. Como no livro de Barnes, algumas questões provocam o leitor, como: “o que você teria feito?” e “o que teria acontecido se a verdade fosse revelada mais cedo?”. A adaptação cinematográfica (2008) rendeu o Oscar de melhor atriz a Kate Winslet.
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Encontros e desencontros
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(2003), de Sofia Coppola Em Tóquio, Bob Harris, um ator hollywoodiano de meia idade, encontra Charlotte, uma jovem estudante acompanhando o marido fotógrafo em uma viagem a trabalho. Os dois acabam desenvolvendo uma amizade afetuosa, refletindo sobre suas trajetórias de vida e lugares no mundo. A história, escrita e dirigida por Sofia Coppola, tem como ponto de partida o encontro de duas pessoas repletas de um dos sentimentos mais comuns à humanidade: a solidão.
The lunchbox (2013), de Ritesh Batra Na tentativa de melhorar seu casamento, Ila prepara uma refeição e manda entregar no trabalho do marido negligente. Porém, a marmita vai para o endereço errado e acaba nas mãos de um homem desconhecido, que resolve responder à sua mensagem. Logo, Ila e Isaajan iniciam uma amizade inesperada a partir de confissões sobre a sua solidão, memórias e arrependimentos. O diretor indiano Ritesh Batra também dirigiu a versão adaptada de O sentido de um fim, lançada em 2017.
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Filmes
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Alta fidelidade (2000), de Stephen Frears
Baseado na obra de Nick Hornby, publicada em 1995, Alta fidelidade é um contrapeso à história de Julian Barnes. O protagonista Rob entra em crise aos trinta e poucos anos após ser dispensado pela namorada, que parece muito superior a ele em todos os âmbitos possíveis. Rob resolve, então, revisitar seus cinco relacionamentos mais marcantes para analisar o que deu errado – como em O sentido de um fim, há a busca pelo entendimento do passado, ainda que de forma muito mais leve e anedótica.
Educação (2009), de Lone Scherfig
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Nessa clássica história de amadurecimento e descoberta, a ingênua Jenny, uma adolescente bonita e com um futuro brilhante, planeja estudar em Oxford. Quando ela conhece David, um homem que tem mais que o dobro de sua idade, ela se vê diante de confrontos e dilemas adultos, percebendo que toda escolha implica uma perda. Baseada nas memórias autobiográficas da britânica Lynn Barber
Ecos da leitura
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Os ardis da
narrativa
Em O sentido de um fim, Bar-
nes constrói uma narrativa dirigida pela perspectiva retórica de Tony Webster. Sua narração oscilante movimenta-se entre eventos corriqueiros da sua vida e questões metafísicas. Em meio a isso, é possível notar um elemento crucial para a sustentação da história, a saber, a imprecisão típica das obras narradas em 1ª pessoa. Em grande parte, sua prosa está calcada em lembranças de acontecimentos vagos e na omissão de informações importantes para que o mistério que assola sua vida seja desvendado. Há, portanto, possivelmente três chaves de leitura ligadas à hesitação constante do narrador: uma forma de criação da sua persona, o aumento da tensão pré-desfecho ou propriamente as falhas da memória.
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Ecos da leitura
Forma e conteúdo caminham lado a lado, tendo em vista que não interessa somente o que é dito, mas como é dito. É por isso que, em grande parte, a narração em 1ª pessoa, como a de Tony Webster, apresenta uma forma vacilante: ela está atrelada à subjetividade de quem narra. A complexidade das relações humanas da modernidade foi representada com mais força a partir do gênero romanesco, em meados do século XIX. A antítese entre as ordens individual (do narrador) e externa (dos eventos presenciados), normalmente indiferente ao anseios de quem narra, forma o escopo de uma busca incessante por um sentido existencial positivo que o progresso caótico da modernidade não parece oferecer. O comportamento do narrador em sua escrita é fundamental para compreender as obras da modernidade, principalmente quando se trata de perspectivas narrativas em 1ª pessoa. O precursor desse tipo de narração volúvel no Brasil, Machado de Assis, em seu pri-
meiro grande romance, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), referiu-se aos romances em que as peripécias estão ligadas à ordem espiritual do protagonista como “a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre”. Se atentarmos para a famosa obra do primeiro escritor citado por Machado, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (1759), encontramos um romance de memória. No entanto, essas memórias são ora digressivas ora progressivas, ou seja, não há um encadeamento linear dos eventos, advindo daí a forma livre denominada por Machado. A temporalidade psicológica como base narrativa é o fator mais evidente nos romances de Sterne, Machado e Julian Barnes. Nessas reminiscências, os eventos memorialísticos podem ser transfigurados pela subjetividade de quem narra, revelando, assim, antes mesmo dos eventos em que se pretende trazer à tona a personalidade do narrador. Alguns outros escritores adotaram essa forma de narrar, entre eles Marcel Proust, Fiódor Dostoiévski, Henry James, Charles Dickens, Virginia Woolf, Albert Camus, Guimarães Rosa, J. M. Coetzee. Obras importantes desses autores alinharam de forma labiríntica a narração, o tempo e a memória. Vale ressaltar que a ideia de memória está mais próxima da questão ficcional proposta por quem narra, ou seja, retornar a um período do passado de sua vida. Não se trata, portanto, de
uma memória de um período histórico específico, ainda que, a partir de uma leitura atenta, seja possível captar e analisar de que forma esse narrador revela facetas sociais e psicológicas do seu grupo social em um momento histórico. Nesse sentido, se torna essencial estar atento ao que é dito, mas também ao que não é dito. Sem isso, corre-se o risco de estar sendo enganado pelo próprio narrador da história. Para nós, brasileiros, esse assunto é um tema caro, basta recordar que, em 1889, Machado de Assis lançou Dom Casmurro. Entre tantas formulações propostas pelo narrador, Bento Santiago, está a suposta traição que teria sofrido por seu grande amor, Capitu. Ninguém em terras brasileiras havia desconfiado das palavras do popular Bentinho, acatando de imediato seu discurso. No entanto, em 1960, a inglesa Helen Caldwell publica The Brazilian Othello of Machado de Assis, emancipando-se da narrativa proposta pelo narrador ao apontar seus atributos patriarcais. Assim, Caldwell aniquilou a verdade forjada por Bento Santiago depois de mais de 70 anos da publicação do romance. Dessa forma, cabe a cada um de nós, leitores, estar atentos ao que a narrativa nos apresenta para não cair nas armadilhas de um Sterne ou de um Machado.
Ecos da leitura
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Atenção: o seguinte Eco possui um pequeno spoiler – se você não quer descobrir absolutamente nada sobre o livro antes de lê-lo, guarde este Eco até chegar à página 61.
Vida, morte e os seus sentidos filosóficos Barnes faz da morte seu prin-
cipal tema em O sentido de um fim. O fim da vida, questão inevitável e também insolúvel para a humanidade, é o próprio núcleo da nossa existência, destrutiva mas também construtiva, no que faz analisar seriamente o significado e a maneira de viver. A primeira parte do romance ergue as fundações para que o leitor entenda: muito embora pareça tratar de uma espécie de memória de Tony, esta é a história da vida e da morte de Adrian. Enquanto o trio inicial de amigos orbitava ao redor de romances de George Orwell, Adrian – apontado
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posteriormente pela mãe de Tony como "esperto demais" – se atinha a filósofos como Albert Camus, que descreveu o suicídio como a "única questão filosófica verdadeira". A incursão pela doutrina filosófica do existencialismo, capitaneada por Adrian, lança os garotos em uma análise cruel e sem nuances do suicídio de Robson, análise essa que só mostra sua imaturidade a partir da falta de empatia e da inutilidade em aplicar conceitos filosóficos de maneira lógica. Nem Camus e nem o conceito freudiano de Eros e Thanatos, evocados pelo garoto para discutir o incidente, dão sentido à morte.
“Em O Mito de Sísifo (1942), Camus afirma que o único problema filosófico sério é o do suicídio – julgar se a vida vale ou não a pena é responder à pergunta fundamental da filosofia.” Isso fica evidente conforme Adrian cresce e busca inventar um sistema filosófico que lhe permita não só explicar o mundo, mas uma forma de habitá-lo. Ele busca entendimento do que lhe cerca a partir de uma série de abstrações – para o Adrian em idade escolar, o conceito de Eros e Thanatos (desejo/amor e morte) pode ser aplicado tanto à temática de um poema exposto em sala de aula quanto ao suicídio do colega, Robson. E isso, aliado à sua inclinação em direção a Camus e Nietzsche, dá a tônica dessa busca – para os existencialistas, viver com significado requer que a vida seja encarada não em termos de completude ou duração, mas a partir da intensificação, do esclarecimento das possibilidades da vida. E tudo isso, já nos anos 1960 – época da história contada por Tony –, era a resposta para um pressuposto compartilhado por Camus e Sartre: a existência humana é absurda. O primeiro suicídio, quando estudado com a empatia que a bagagem emocional proporciona aos narradores, de certa forma prenuncia o de
Adrian. Os garotos não admiravam o garoto Robson: ele era incomparável ao esperto Adrian. Mas os dois fizeram a mesma coisa. Barnes mostra que, com ou sem filosofia, o suicídio nada tem a ver com inteligência. Adrian, que nunca compartilhou do cinismo dos amigos, que parecia detentor de uma eterna clareza de mente, tirou sua própria vida, mesmo que a filosofia não enxergue o suicídio como uma maneira eficaz de lutar contra o obscuro. Adrian explica o suicídio de Robson com uma "nova" vitória de Thanatos, traindo sua mentalidade no assunto de amor e morte: a morte sempre vence, e o amor está sempre amaldiçoado. Em O Mito de Sísifo (1942), Camus afirma que o único problema filosófico verdadeiramente sério é o de julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida. Uma resposta a isso solucionaria a ânsia fundamental da filosofia. A partir daí, entretanto, o franco-argelino repetidamente demonstra a ideia básica de que o absurdo da existência não implica a morte como solução lógica. Os suicídios de Adrian e de Robson – ambos motivados por traumas amorosos no seio familiar – são igualmente trágicos na revisão que Barnes faz no tema da morte, pois mostram que o ser humano, ao buscar armas para lutar contra aquilo que é absurdo na vida, perde para a ausência de fé. Com ou sem Deus, mostra Barnes, a falta de fé se torna impossível de suportar quando somos confrontados com os traumas e a mortalidade da vida.
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Marque na agenda Este ano, a TAG estará na 17ª edição da Flip, o maior evento literário da América Latina. Todos os anos, milhares de leitores viajam à Festa Literária Internacional de Paraty para mergulhar no universo dos livros e acompanhar uma programação repleta de grandes escritores nacionais e internacionais (em 2018, cerca de 28 mil pessoas circularam por lá). Neste ano, o evento ocorre de 10 a 14 de julho na cidade do litoral fluminense, onde estaremos esperando por nossos associados com uma casa acolhedora e que respira literatura. A Casa TAG na Flip será um local de celebração dos livros e de conexões entre os leitores. Para cada dia de evento, montamos uma programação especial com grandes autores e autoras. Além disso, nossa Loja também estará presente: levaremos produtos literários selecionados para o espaço, como ecobags, livros, papelaria, entre outros amados pelos associados. E essa experiência pode começar assim que você fizer as malas! Para que os associados do clube possam aproveitar essa festa conosco, indicamos os pacotes de viagem da Samaúma, agência especializada em turismo de experiência. Todos os pacotes incluem uma série de facilidades e a participação no evento exclusivo de boas-vindas da TAG. Vamos nessa? Esperamos todos por lá! Dê uma olhada nas fotos do evento do ano passado! Para saber mais, acesse:
clube.taglivros.com/flip-2019
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Espaço do associado
Bruno Leรฃo
Espaรงo do associado
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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em Literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.
Spoiler!
“Então, por exemplo, se Tony...” Curioso objeto literário o romance O sentido de um fim, de Julian Barnes. Quando chegamos ao fim do texto temos a impressão de estarmos, na verdade, diante de uma história de detetive. Uma história de detetive às avessas, talvez, pois por mais empáticos que nós, leitores, possamos nos sentir em relação ao périplo investigativo de Tony Webster, não podemos deixar de lado que, nesse caso, detetive e "criminoso" coincidem na figura do narrador. É muito provável que esse seja o motivo pelo qual a resolução do “caso” seja tão nebulosa. Por um lado, temos a plausível interpretação de Tony Webster acerca do que se passou: Adrian teve um caso com a mãe de Veronica, que acabou engravidando já em idade avançada (tal como a Sara do Velho Testamento), o que motivou o seu suicídio. Por outro lado, temos uma multiplicidade de indícios que colocam essa interpretação sob suspeita: os constantes alertas de Veronica de que
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Tony não entende e nunca entenderá nada; as mudanças de versão de sua história de uma parte do livro para a outra, motivadas por supostas falhas de memória, e até mesmo as manipulações operadas por ele em relação ao seu relato e os limites da narrativa de dar conta dos eventos de uma vida. Não seria um absurdo imaginar que Veronica está certa, pois uma figura tão obtusa quanto Tony, que só consegue ver uma coruja num poema sobre Eros e Thanatos, poderia muito bem produzir uma interpretação do imbróglio entre ele, Sarah, Veronica e Adrian que seja digna de dúvidas. Podemos confiar na absoluta falta de noção de Tony, que, de fato, interpretou todos os eventos da sua vida de forma torta, como uma espécie de inocência ou desconexão da realidade. Podemos conceder que sua mediocridade, unida à sua falta de memória, seja capaz de absolvê-lo, ainda entendendo que sua interpretação dos eventos seja enviesada.
Mesmo como narrador não-con- “Mary”, pelo qual Adrian Jr. chama fiável, Tony parece querer que des- a sua “irmã”, serve também de pista, confiemos de seu relato. Joe Hunt podendo ser a gravidez o real motiafirma que “É preciso tratar a ex- vo pelo qual Tony termina com Veplicação de um participante com ronica e Adrian comete o suicídio. um certo ceticismo”, As equações escritas “É uma situação por Adrian apontam no que Tony afirma logo depois: “Será kafkiana, onde o diversos caminhos, que a conversa foi criminoso confessa mas a “falha na doexatamente assim? o crime sem con- cumentação” deixa Provável que não”. seu sentido aberto: fessar, mente e diz saberemos em alEm um mesmo movimento, Tony co- que está mentindo. gum momento o que Mas qual seria o loca em perspectiva aconteceu de fato? toda a conclusão do crime de Tony?” livro. É uma situação Talvez seja esse o kafkiana, em que o criminoso con- ponto de Barnes em O sentido de um fessa o crime sem confessar, mente fim: brincar com as nossas expectae diz que está mentindo. Mas qual tivas de resolução de uma narrativa; seria o crime de Tony? os vilões identificados e punidos. O romance de Barnes toma seu título Podemos tomar o caminho da espe- emprestado de um romance de críticulação e tentar achar as pistas para ca literária dos anos 1960, de Frano que de fato ocorreu. Teria Tony cis Kermode, cuja tese principal é a tido um caso com Sarah e seria o de que as narrativas são formas de verdadeiro responsável pelo bebê? organizar o caos da nossa experiênEssa poderia ser uma memória su- cia vivida em estruturas estáveis e primida pelo trauma do suicídio. previsíveis. Como diz Tony Webster, Afinal, o “gesto horizontal” de des- quantas vezes não contamos a hispedida de Sarah para Tony, o fato tória de nossas vidas embelezando de terem ficado sozinhos em casa detalhes, editando partes desagradásem motivo e as duas cartas escri- veis ou inventando um final satisfatas por Sarah para ele indicam que tório? A vida é formada por múltiplas há a possibilidade de algo a mais (e contraditórias) perspectivas, gestos entre os dois. Ou será que quem instintivos e documentos incompleengravidou foi Veronica e Sarah tos. Se a história é uma forma de orassumiu a criança como seu filho? ganizá-la em narrativas, por que não A coincidência do nome bíblico poderia a literatura confundi-la? André Araújo é jornalista, professor e escritor. Atualmente cursa doutorado em Comunicação e Semiótica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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“José Luís Peixoto é uma das revelações mais surpreendentes da literatura portuguesa. É um homem que sabe escrever e que vai ser o continuador dos grande escritores.” José Saramago
E chegou o tão esperado mês de julho, quando celebramos cinco anos de existência. Cinco anos que, aqui, além de perfazer 60 meses ou 1825 dias, se traduz em mais de 40 mil associados, mais de 40 mil pessoas que acreditam na força da literatura. O nosso trabalho só é possível porque temos ao nosso lado, mês a mês, pessoas que valorizam os livros tanto quanto a TAG. Ao celebrar meia década de existência, apontamos para um futuro infinito de palavras, autores, curadores, mimos, “só mais essa página por hoje”, romances e histórias. Neste ano, temos, pela primeira vez, um romance escrito por José Luís Peixoto inteiramente para os nossos associados, concretizando o maior projeto da história da TAG Curadoria. Numa Lisboa pouco óbvia de finais dos anos 90, um jovem escritor em crise vê os seus caminhos se cruzarem com os de José Saramago. Dessa relação nasce uma história em que a realidade e a ficção se combinam, num jogo de espelhos que coloca em evidência os desafios maiores da literatura. O autor, José Luís Peixoto, é um dos escritores de maior destaque da literatura portuguesa contemporânea, com livros traduzidos para mais de vinte idiomas. É autor de romances, contos, poemas, peças de teatro e livros de viagem. Em 2017, conquistou o Prêmio Literário José Saramago pela obra Nenhum olhar (2000). Em 2016, recebeu o prêmio Oceanos com Galveias (2014), obra cujo título homenageia a cidade natal do autor.
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“Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.” – Walter Benjamin