SETEMBRO de 2016 Paddy Clarke Ha Ha Ha
Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Álvaro Scaravaglioni Englert Ariel Belmonte Bruna Lucchese Kafrouni Bruno Englert Moutinho César Augusto Jaques Santos Jr. Daniel Arcari Romero Eduardo Augusto Schneider Guilherme Rossi Karkotli Gustavo Rossi Karkotli João Pedro Perdomo Dassoler João Vitor Sprandel Luísa Andreoli da Silva Maria Eduarda Largura Marina Brancher Pablo Soares Valdez Rodrigo Lacerda Antunes Tomás Susin dos Santos Vinícius Araujo Reginatto Vinícius Tavares Goulart Antônio Augusto Portinho da Cunha Fernanda Lisbôa Bruno Miguell Mendes Mesquita bruno.miguell@taglivros.com.br Laura D Miguel lauradep@gmail.com Impressos Portão TAG Comércio de Livros Ltda. Rua Sete de Abril, 194 | Bairro Floresta | Porto Alegre - RS CEP: 90220-130 | (51) 3092.0040 | contato@taglivros.com.br
Ao Leitor Depois de acompanharmos um ambicioso filho de carpinteiro em sua aventurosa busca por ascender socialmente na França do século XIX e um preconceituoso empresário que tenta salvar sua reputação no Rio de Janeiro, somos transportados para a mente de uma criança na Irlanda do final dos anos 1960. Mas não se engane: nem tudo são flores na vida de Paddy Clarke. Trazendo o garoto como protagonista e narrador da história, Roddy Doyle conduz-nos à nossa própria infância, em que relembramos as travessuras com os amigos, as brigas com os irmãos e a nossa impotência ao testemunharmos as brigas dos pais. Paddy também possibilitou que uníssemos nossos associados de todos os cantos do Brasil com um objetivo comum: rechear bibliotecas destinadas a crianças sem acesso àquilo de que mais gostamos. Esperamos que contribuam com nossa ação! Vocês não imaginam o orgulho que sentimos ao imaginar que o Dia das Crianças, no próximo mês, será muito mais feliz para milhares de jovens leitores por causa de vocês.
A INDICAÇÃO DO MÊS
ECOS DA LEITURA
A PRÓXIMA INDICAÇÃO
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Sua Única Vida A curadora: Maria Rita Kehl O livro indicado: Paddy Clarke Ha Ha Ha
Como Criei Paddy Quick Reads Vozes Pueris Casa das Estrelas
Carola Saavedra
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Sua Única Vida Publicado por Maria Rita Kehl em seu blog, em 25/03/2009
Jantou e foi jogar truco na Praça Jaraguá. Ou pôquer, a (pouco) dinheiro. Alguém sempre levava um baseado. Fumou com os outros. Tomou um guaraná no bar do português, que reclamou que o irmão dele tinha levado um cigarro sem pagar. Não pagou o cigarro do irmão, senão não sobrava pro pôquer. O português ameaçou qualquer coisa. Ele já estava de costas, na porta. Falou filhadaputa meio baixo, meio alto. Se o cara quis ouvir, ouviu. Se não quis, deixa quieto. Não estava muito inspirado pra arrumar treta. Tipo domingão sossegado. Uma vez uma amiga perguntou por que se dizia sempre filhadaputa, mesmo pra xingar um homem. Nunca tinha pensado nisso. Nunca tinha pensado em muita coisa. Se sua vida era boa, por exemplo: nunca tinha pensado. Quando era menor e ficava de recuperação, obrigado a estudar de noite, resmungava “merda de vida” mas não achava sua vida uma merda. Nem que era uma beleza; nem nada. Era a vida que ele tinha. Também não parava pra pensar que, aos 19, sexo masculino, cor parda, morador da zona norte, fazia parte de uma estatística tenebrosa. O medo era parte da vida dele como tudo o mais, como da vida de todo mundo. Nunca tinha pensado em si mesmo como maloqueiro. Muito menos como bandido. Só porque dava uma bola à noite com os amigos? Só porque de vez em quando era ele que pegava o fumo na casa de um e levava para os outros na praça? Só porque às vezes avisava o traficante do pedaço que a polícia estava perto, e com isso faturava um baseado? Pensava em sua família como pobre, claro. Ouvia o pai dizer isso várias vezes por mês. Mas iam todos levando, ele ia levando também. De modo que não estava nem um pouco prevenido. Estava só meio à toa numa noite de domingo.
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Não foi o primeiro a perceber a chegada dos motoqueiros. Na verdade, o que ele viu antes de tudo foi a cara que fez o Eliseu depois de baixar o jogo. Chegou a ter um pensamento engraçado, que o amigo fez aquela cara porque o jogo era baixo, mas não deu tempo de acabar o pensamento porque o Eliseu caiu. Só então escutou o estampido, já no ouvido da memória. Percebeu o colega estatelado no chão. Será que escutou o segundo tiro, o que passou por dentro das costelas dele? Só sabe que de repente também estava no chão, de cara pro olho vidrado do Eliseu. Aí então pensou, pela primeira vez, que aquela era a sua vida. Sua única vida. Pensou pela segunda vez e daí começou a doer. Ouviu uma voz igual a sua gemer, mas não sabia que estava gemendo, estava só pensando essa é minha única vida e tinha uma moto roncando dentro do seu pensamento. Debaixo de um caminhão estacionado ali pertinho viu o Francisco se mexer para sair do esconderijo. Como se o amigo ouvisse sua voz que ainda gemia e se mexesse para dar uma força. Só que a Lena puxou forte a camiseta dele e falou “cê tá maluco?”, e o Francisco continuou deitado quieto. Nunca tinha pensado na própria morte. Nem que a pior forma de morrer seria aquela, pela mão de um semelhante. Também se alguém lhe dissesse que o encapuzado da moto era um semelhante seu, ele não acreditaria. Nem que fosse o padre que dissesse. Nem que fosse o pastor. Ainda teve tempo de pensar nele menino empinando pipa. Pensou em guaraná maconha Maria Inês calcinha peito final da Libertadores. Não pensou na palavra chacina. Queria evitar, mas seu pensamento gritou mãe. Se sua voz não gemesse de novo o cara talvez nem voltasse pra dar outro tiro. Nunca teria imaginado que no dia seguinte o delegado do bairro diria no jornal que aquilo foi briga de pobre matando pobre, de bandido matando bandido. *Em memória de Anderson Gomes, Carolina Borges, Flávio Batista de Almeida, Pámela Ribeiro, Paulo Henrique Ribeiro, Rafael Araújo e Rodolfo Madeira, jovens entre 19 e 26 anos mortos na chacina no Jaraguá, bairro de São Paulo, dia 7 de maio de 2007. Até a data deste texto o crime não tinha sido esclarecido.
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A INDICAÇÃO DO MÊS
FOTO: jornal ggn
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A curadora: Maria Rita Kehl
GOSTO DE POLÊMICA. É UMA PAIXÃO. Essa inusitada afirmação vem da psicanalista, cronista, ensaísta e poeta Maria Rita Kehl, o que não chega a surpreender após a leitura de um texto como o que iniciou esta revista. Nascida em Campinas no dia 10 de dezembro de 1951, essa afeição pela polêmica vem de casa. Filha mais velha e única mulher entre os quatro filhos de um casal de engenheiros, Maria Rita criou-se no que considera uma “família excêntrica”. Com a mudança da família para São Paulo, seus pais tinham poucos amigos na cidade e estimulavam com frequência a conversa e os debates entre os filhos. “Era o ambiente que meu pai gostava de criar. Ele gostava de polemizar com os filhos e nós entramos na polêmica, cada um a seu jeito. Isso certamente me influenciou.” Embora graduada em Psicologia na USP, outro fator que considera de grande importância para sua formação foi ter começado a vida profissional como jornalista. “Precisava trabalhar, bati na porta do Jornal do Bairro, cujo dono era o escritor Raduan Nassar, e os editores, muito simpáticos, resolveram me ensinar como escrever um texto jornalístico.” Depois disso, Maria Rita assumiu o cargo de editora de cultura do jornal Movimento, um dos mais importantes órgãos da imprensa alternativa durante o regime militar. Entre 1971 e 1975, quando estava na faculdade, o Brasil vivia um período de forte repressão. Durante essa época, Maria Rita teve o interesse despertado pela política:
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“Não fui para a clandestinidade e nunca apostei na luta armada. Minha luta sempre foi no campo ideológico”. Em 2010, teve uma das mais amplas exposições na mídia – com polêmica, é claro. Colunista do jornal Estado de São Paulo, Maria Rita foi demitida após publicar um texto, durante o período de eleições, repudiando as inúmeras manifestações que desqualificavam e ridicularizavam “os votos dos pobres a favor da continuidade de políticas sociais”. Intitulado Dois Pesos, a coluna também ironizava: “A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria?”. Os elogios e as críticas tomaram conta da internet nas semanas seguintes – nada que surpreendesse a escritora. Afinal, nos anos 1980, já havia sido insultada publicamente até pelo escritor Paulo Francis. “Eu me expus a isso. Ele era muito preconceituoso. Aí eu escrevi um artigo dizendo que ele era um jornalista que achava que morar em Nova York lhe dava um status de pensar melhor que os outros. Ele ignorou esse artigo, mas um ano depois escreveu um artigo com insultos pessoais a mim.” Suas próprias dissertações de mestrado e doutorado já haviam dado o que falar: O Papel da Rede Globo e das Novelas da Globo em Domesticar o Brasil Durante a Ditadura Militar, em 1979, e Deslocados de Feminino, em 1990, um estudo sobre a transformação do papel da mulher desde o século XIX até os movimentos feministas da década de 1960. Além do gosto pela política, seus objetos de pesquisa também abrangem outros assuntos do nosso cotidiano. Desde 1996, Maria Rita Kehl já publicou nove livros – em 2010, no mesmo ano em que ocorreu a polêmica com o Estadão, ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria de não ficção com a obra O Tempo e o Cão, escrito a partir de experiências e reflexões sobre o contato com pacientes depressivos. Quando convidada a palestrar na conferência Fronteiras do Pensamento, Maria Rita
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selecionou como tema a análise da instituição da família contemporânea, que chama de “tentacular”. Para ela, os tentáculos, que remetem aos polvos, abraçam diversos membros antes inexistentes – frutos de novos casamentos, por exemplo, ou filhos de adolescentes que engravidaram e não têm onde morar. Sem os locais tão bem definidos no início do século XX (estrutura nuclear – pai, mãe e filho), as funções se dissolvem e as posições se confundem. O poder do pai, antes temido, se dilui, a presença da mãe antes dona de casa e hoje trabalhadora diminui, e a criança enfrenta novos desafios.
SABEMOS QUE TODOS OS ‘PAPÉIS’ DOS AGENTES FAMILIARES SÃO SUBSTITUÍVEIS – POR ISSO É QUE OS CHAMAMOS DE PAPÉIS. O QUE É INSUBSTITUÍVEL É UM OLHAR DE ADULTO SOBRE A CRIANÇA, A UM SÓ TEMPO AMOROSO E RESPONSÁVEL, DESEJANTE DE QUE ESTA CRIANÇA EXISTA E SEJA FELIZ NA MEDIDA DO POSSÍVEL – MAS NÃO A QUALQUER PREÇO. – MARIA RITA KEHL
Esse profundo interesse de Maria Rita Kehl pela instituição da família reflete-se, também, no livro indicado à TAG. Afinal, Paddy Clarke Ha Ha Ha, muito mais do que um livro sobre uma criança e suas travessuras, traz em suas mais marcantes cenas a maneira como o garoto vê a própria família e analisa a relação de seus amigos com os pais e os irmãos.
FOTO: Martin Godwin
Roddy Doyle
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O livro indicado: Paddy Clarke Ha Ha Ha Quando se imagina um escritor irlandês, logo vem à mente o mais icônico deles, de bigode e tapa-olho: James Joyce. Não seria uma surpresa, portanto, se esse fosse um dos grandes ídolos de Roddy Doyle, objeto de estudo e admiração durante os anos de iniciação na literatura. Mas o irreverente autor irlandês declarou, recentemente, o oposto. Convidado para palestrar em um evento, em Nova York, que reuniu centenas de pessoas para reverenciar o homem que é creditado como o inventor do romance moderno, Roddy Doyle disse que “Ulisses poderia ter dado certo com um bom editor”. Sobraram farpas, também, para Finnegan’s Wake, notoriamente a mais complexa obra de Joyce, que Doyle atestou ter de se esforçar para ler mais do que três páginas. Apesar da polêmica, o autor, que se irrita com as constantes comparações feitas a Joyce, reconheceu a qualidade de Dublinenses.
RODDY DOYLE É A MAIS NOVA ESTRELA LITERÁRIA DE DUBLIN. – THE GUARDIAN
Nascido em 8 de maio de 1958, Roddy Doyle – ou, em irlandês, Ruaidhrí Ó Dúill – cresceu em Killbarrac, um bairro composto por casas e pequenas lojas, localizado na periferia de Dublin. Esse mesmo cenário toma forma em seus livros como o bairro Barrytown, nome criado a partir de uma música de Steely Dan (Doyle, assim como Jimmy Rabbitte, protagonista de The Commitments, seu primeiro romance publicado, é grande fã de música). “Acredito que tenha sido uma forma de defesa”, diz o autor sobre sua decisão de renomear o bairro. “Se eu tivesse chamado de
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Kilbarrack, teria sido muito restritivo. Tem um pub lá, por exemplo, que não é o pub descrito nos livros – o ponto é que pode ser qualquer pub na periferia de Dublin. Mudar o nome me deu liberdade.” O primeiro livro escrito pelo irlandês, entretanto, não tinha nenhuma relação com sua cidade natal. Uma forte sátira política, intitulada Your Granny is a Hunger Striker, hoje encontra-se no fundo do armário de Roddy Doyle, destinado a permanecer não lido. “Nunca foi publicado, e nunca será”, afirma o autor, quase trinta anos após ter terminado de escrever a obra. “É uma porcaria. Na época, eu enviei para todos agentes e editores que pude encontrar – ou retornou, ou retornou sem ter sido aberto. Não tem nada de mim lá. É um livro vazio.” Doyle não cometeu o mesmo erro duas vezes. Depois de ter se formado em Artes na Universidade de Dublin, passou anos lecionando Inglês e Geografia em uma escola. Um colega, também professor, estava escrevendo peças ambientadas em cenários familiares de Dublin, que chamaram sua atenção. No inverno de 1986, começou a escrever o livro que seria publicado como The Commitments, intimamente conectado ao lugar onde cresceu. “Percebi que é uma área sobre a qual vale a pena escrever. O que você quiser – histórias de amor, assassinatos, qualquer coisa – pode se passar naquelas poucas ruas.” Publicado em 1987, The Commitments foi o primeiro da chamada Trilogia Barrytown, complementada por The Snapper (1990) e O Furgão (1993). As três obras retratam diferentes períodos da vida de uma família de classe média irlandesa, cada uma a partir de um evento central: a criação de uma banda soul, a gravidez de uma adolescente e o estabelecimento de uma van/restaurante para vender o tradicional fish and chips (peixe com fritas). Também elogiado por Maria Rita Kehl, O Furgão figurou entre os finalistas do Man Booker Prize. Assim que foi lançado, o primeiro livro da trilogia tornou-se um sucesso cult, chamando a atenção dos críticos e levando produtores a contratarem Doyle para escrever o
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roteiro para o cinema. Com o grande sucesso do filme, os outros dois livros também receberam adaptações cinematográficas. Além dos filmes, quem visitar Londres nos próximos meses poderá assistir à peça teatral de The Commitments, também com roteiro escrito pelo próprio Doyle. Apesar da crescente admiração da crítica literária, a obra que definitivamente carimbou o nome de Roddy Doyle na lista dos grandes escritores irlandeses foi Paddy Clarke Ha Ha Ha, sagrando-se vencedora do prestigioso Man Booker Prize de 1993. Durante todo o ano seguinte, o livro esteve em primeiro lugar de vendas na Irlanda – em determinado momento, os primeiros quatro livros de Doyle estavam entre os cinco mais vendidos. Situada durante a primeira onda de expansão de Dublin, no final dos anos sessenta, a obra retrata um ano na vida de um menino de dez anos, chamado Patrick Clarke, em Barrytown. Paddy, apelido para Patrick, é o narrador da história – um garoto comum, narrando situações comuns do seu dia a dia. Com esse cenário simples, Doyle pôde representar a magia, o significado e a gravidade inerentes às provocações entre as crianças, às “panelinhas” infantis, aos pequenos furtos e até à forma como as crianças relacionam-se com os pais.
PADDY CLARKE HA HA HA É UMA SOBERBA RECRIAÇÃO DA INFÂNCIA. – SUNDAY INDEPENDENT
Paddy Clarke Ha Ha Ha, assim como outros romances de Doyle, destaca-se justamente por sua simplicidade. Nada de muito grandioso acontece. O que impressiona é o realismo psicológico que o autor confere a seus personagens para lidar com dramas cotidianos, o calor e a vivacidade com que pinta vidas ordinárias. Um ponto que encanta os leitores é a maneira como o autor logra inserir uma voz pueril para narrar a história, levando o leitor a evocar a própria infância. A todo
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momento, sentimo-nos como se pudéssemos ouvir a nossa voz descrever o dia no colégio, os jogos com os amigos, a crueldade com o irmão mais novo e, principalmente, nossa situação familiar. Paddy, com sua simplicidade e inocência, não entende o que o leitor passa a entender – um bairro em desenvolvimento, com a implementação de um sistema de esgoto e o asfaltamento de ruas de chão batido, nada mais é que um misterioso parque de diversões para as crianças. O colega doente é apenas uma deixa para que quem sentar perto dele possa conversar sem ser repreendido pelo professor, tão rígido em outras situações. As incompreensíveis conversas entre os adultos são desvendadas pelo leitor, que entende o que está acontecendo muito antes do próprio Paddy.
[MAMÃE] FICOU UM SÉCULO ME ARRUMANDO EMBAIXO DAS COBERTAS; EU QUERIA QUE ELA FOSSE EMBORA E AO MESMO TEMPO QUERIA QUE FICASSE. – TRECHO RETIRADO DO LIVRO
Roddy Doyle, que trabalhou quatorze anos como professor de colégio, comprova que entendeu a extrema seriedade da infância para aqueles que a estão vivenciando. Mas essa incrível verossimilhança não vem apenas de sua experiência profissional: apesar de negar que o livro seja autobiográfico, Doyle nasceu no mesmo ano em que Paddy Clarke, e admite que pontuou a história com alguns casos de sua própria infância. No livro, não encontramos nenhuma divisão por capítulos, e a história é narrada em pequenos fragmentos, aparentemente desconexos. Em um segundo olhar, percebemos uma trilha de inconscientes associações feitas por Paddy para melhor contar a história de sua própria vida – à medida que a leitura avança, os fragmentos vão se tornando uma história completa, até que possamos, por fim, entender o significado do título do livro.
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O RITMO E O ESTILO, QUE SIMULAM A VELOCIDADE E O ATORDOAMENTO ADOLESCENTES, SÃO MUITO BONS. A LEITURA É UMA EXPERIÊNCIA EMPOLGANTE, QUE NÃO NECESSITA DOS RECURSOS FÁCEIS DOS SUSTOS E MEDOS CARACTERÍSTICOS DA LITERATURA COMERCIAL CONTEMPORÂNEA. – MARIA RITA KEHL
Um entusiasta da escrita, desde seu primeiro lançamento, em 1991, Roddy Doyle já publicou mais de vinte livros. “Estou sempre trabalhando em um romance. Eu amo o que faço – mesmo quando estou em um período sem inspiração e tudo me parece cansativo, eu sei que não gostaria de estar fazendo outra coisa”, atestou o autor. E isso o levou a se aventurar em outros campos da literatura. Além de escrever contos e um livro de não ficção, Doyle fez bastante sucesso com livros infantis. Para aumentar ainda mais seu leque, em 2014, foi convidado a escrever a biografia de Roy Keane, ídolo do futebol irlandês e do Manchester United. Além de Paddy Clarke Ha Ha Ha e O Furgão, foi publicado em português Uma Estrela Chamada Henry (1999). Para o associado que quiser compartilhar o autor com seus filhos, poderá encontrar os infantis Os Risadinhas (2000) e É a Cara da Mãe (2008). Entre os outros romances de Roddy Doyle, destacam-se The Woman Who Walked Into Doors (1996) e Paula Spencer (2006), um par de livros sobre uma mulher que sofre tratamento abusivo do marido – quando as pessoas perguntavam por que estava machucada, ela respondia que havia batido em uma porta, por isso o título da primeira obra. Em 2003, Roddy Doyle foi convidado a integrar a Royal Society of Literature, considerada a principal instituição literária da Grã-Bretanha, juntando-se a gigantes como Sir Salman Rushdie, Alice Munro e Margaret Atwood.
ECOS DA LEITURA
FOTO: THE irish times
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O primeiro Eco deste mês traz um relato do próprio Roddy Doyle sobre como o garoto Paddy Clarke surgiu e foi influenciado por suas experiências quando criança em Dublin. Já imaginou um autor dedicando-se a escrever para pessoas com baixo nível de alfabetização? Pois é justamente isso que propõe a Quick Reads, da qual Roddy Doyle foi o primeiro vencedor do Booker Prize a fazer parte. Em nosso Mês das Crianças, elaboramos um Eco com opções de livros cujas histórias são narradas com Vozes Pueris, assim como Paddy Clarke Ha Ha Ha. Para finalizar esta seção, relembramos de Javier Naranjo, nosso curador de outubro de 2014, e de sua obra Casa das Estrelas, que também retrata a mágica interpretação das crianças.
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Como criei Paddy
Recentemente, em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Roddy Doyle contou um pouquinho de como foi seu processo de escrita de Paddy Clarke Ha Ha Ha, bem como o livro que o inspirou. Compartilhamos com vocês, então, seu relato. Comecei a escrever Paddy Clarke Ha Ha Ha em fevereiro de 1991, apenas algumas semanas após o nascimento de meu primeiro filho. Eu me recordo de que meus amigos me diziam, com frequência, que O Furgão seria o último livro que eu escreveria por muito tempo – agora, cuidar do meu filho recém-nascido (e dos próximos que poderiam vir) tomaria todo meu tempo livre. Eu trabalhava como professor, e agora era um pai. Mas a outra atividade que eu estava apenas começando a tomar como minha, “escritor”, teria que ser deixada de lado, transformada em hobby ou mesmo em lembrança. Para provar a mim mesmo que eu conseguiria, que ainda haveria espaço em minha vida para escrever, comecei Paddy Clarke. Não consigo lembrar exatamente por que decidi escrever sobre um garoto de dez anos, ou sobre aquele garoto em 1968. Não me lembro das decisões. Eu tinha dez anos em 1968, assim como Paddy, e o que eu lembro é que estava pensando muito sobre minha infância, possivelmente antecipando o que meu filho teria pela frente. Mas o que eu sei é por que o garoto se tornou o narrador do livro. Eu queria fugir dos meus primeiros três livros, ver se
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havia outro tipo de romance em mim. Portanto, comecei a escrever na primeira pessoa. A história foi montada com fragmentos da memória – o cheiro da classe na escola, o mundo privado embaixo da mesa da sala de estar – e chegou em pedaços. Uma hora de noite, vinte minutos durante meu horário de almoço na escola – eu agarrava o tempo e escrevia alguma coisa, normalmente só uma frase ou duas. Eu não tinha enredo, apenas Paddy. Passei a ver as coisas através dos seus olhos. Mãos de adultos eram grandes, rugas eram fascinantes, escadas eram gigantes, nojento era brilhante, adultos eram, frequentemente, estúpidos. Muito do Paddy veio de O Senhor das Moscas [de William Golding, vencedor do Prêmio Nobel]. Eu amo aquele livro, e eu amei ensiná-lo. Eu amei esse livro porque senti que eu estava nele; era o pátio da escola da minha infância, mas sem os adultos nas janelas. Era um lugar selvagem, mas eu sempre podia correr para casa. E esse virou meu enredo. Essa certeza – casa – se desintegra, lentamente, para Paddy. Em O Senhor das Moscas, é a ausência de adultos; em Paddy Clarke Ha Ha Ha, é a presença deles. A ficção pode ser cruel.
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Quick Reads “Eu amo o Booker Prize, e me deixa muito triste pensar que um a cada seis adultos no Reino Unido não possuem um nível de alfabetização suficiente para ler a obra vencedora do prêmio.” Essa frase foi proferida por Cathy Rentzenbrink, diretora do instituto Quick Reads. Fundado em 2006 pelo editor Gail Rebuck, a instituição desafia justamente essa realidade: busca provar que os livros e a leitura podem ser destinados a qualquer pessoa. A cada ano, convidam autores de renome para escrever pequenas obras especificamente desenvolvidas com o intuito de proporcionarem fácil leitura. De modo geral, são iguais a um livro normal, apenas menores e mais fáceis de compreender por pessoas que não possuem tanta confiança em sua destreza com as palavras. Após as publicações, o instituto leva os livros às maiores bibliotecas e redes de livrarias, a fim de facilitar o acesso. Até hoje, a Quick Reads já publicou mais de cento e vinte livros, e vendeu mais de quatro milhões de cópias. Em 2015, o irlandês Roddy Doyle tornou-se o primeiro vencedor do Man Booker Prize a escrever um livro para a Quick Reads, intitulado Dead Man Talking. Descrita como “rápida, engraçada e apenas um pouquinho assustadora”, a obra narra a história de Pat e Joe, amigos de infância, que se separam por anos – até o dia anterior ao funeral de Joe. Dead Man Talking também foi distribuído, junto a Paddy Clarke Ha Ha Ha, em prisões e instituições para jovens infratores em diversas localizações do Reino Unido. Hoje, Cathy pode dizer que pessoas com dificuldade de alfabetização estão podendo ler um autor vencedor do Booker Prize.
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A ALFABETIZAÇÃO É A CHAVE PARA ABRIR AS PORTAS PARA TODO MUNDO. ESTOU ENCANTADO DE PARTICIPAR DA QUICK READS E AJUDAR A CRIAR NOVOS LEITORES. FOTO: patrick bolger
– RODDY DOYLE
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Vozes Pueris 1
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Desde que conversamos com Maria Rita Kehl sobre seus livros favoritos, sabíamos que deveríamos reservar sua indicação para nosso Mês das Crianças. Afinal, ler uma história “adulta” narrada com a inocência e a sensibilidade de uma criança não é algo com o qual nos deparamos com frequência. Portanto, selecionamos outras recomendações – tanto clássicas quanto contemporâneas – que também têm nos jovens seus narradores. O Sol é para Todos 1 Harper Lee (1960) A inesquecível história de Atticus Finch, advogado encarregado de defender um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca no sul dos Estados Unidos, na década de 1930. O livro é narrado por Scout, filha de seis anos de Atticus, que permeia essas cenas fortes com as brincadeiras com seu irmão Jem e o amigo Dill. Assim que publicado, O Sol é para Todos foi um sucesso absoluto de crítica e público, sendo agraciado com o Pulitzer e recebendo uma adaptação cinematográfica vencedora do Oscar. Em 2015, Harper Lee, que só havia publicado um livro em toda a sua vida, lançou a sequência, intitulada Vá, Coloque um Vigia. A escritora faleceu em fevereiro de 2016, logo antes de completar noventa anos. O Meu Pé de Laranja Lima 2 José Mauro de Vasconcelos (1968) A obra mais conhecida do autor retrata a pobreza, a solidão e o desajuste social pelos olhos de Zezé, uma criança de seis anos. Nascido em uma família pobre e numerosa, o menino envolve o leitor ao revelar seus sonhos e desejos por meio de conversas com o seu pé de laranja lima, encontrando na fantasia e na ilusão a alegria de viver.
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Feras de Lugar Nenhum 3 Uzodinma Iweala (2007) Este livro, recentemente transformado em um impactante filme pelo Netflix (com o título original, Beasts of No Nation), traz o relato de Agu, um jovem menino em um país africano tomado pela guerra. Ao fugir de sua cidade, Agu é recrutado pela própria guerrilha responsável por assassinar seu pai, e é obrigado a aprender rapidamente a roubar, a matar e a esquecer seu passado. A Vida Secreta das Abelhas 4 Sue Monk Kidd (2001) Ambientado nos anos 1960 no racista estado da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, o livro é narrado por Lily Owens, menina de quatorze anos que perdeu a mãe quando era muito pequena e se apegou muito à criada, Rosaleen. Em um episódio em que Rosaleen tem de fugir da cidade para não apanhar dos policiais, Lily junta-se a ela para, sozinhas, encontrarem um lugar melhor para viver. A Vida Secreta das Abelhas, que recebeu adaptação cinematográfica dirigida por Will Smith e com Dakota Fanning no papel de Lily, também foi indicado por Susan Blackmore, curadora de março deste ano. Extremamente Alto e Incrivelmente Perto 5 Jonathan Safran Foer (2005) O livro é narrado por Oskar, inteligente menino de nove anos, que perde seu pai no atentado ao World Trade Center. Oskar descobre uma chave no armário de seu pai, e parte pela cidade de Nova York em busca de respostas, envolvendo-se com estranhos que o levam a conhecer outras fatalidades – em Dresden e em Hiroshima – e refletir sobre a inocência dos momentos que antecedem as tragédias.
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Casa das Estrelas
No Dia das Crianças de 1998, uma festa estava sendo preparada no colégio El Triángulo, em uma zona rural no estado de Antioquia, na Colômbia. Os professores organizaram jogos – pistas escorregadias, competições, partidas de futebol. As mães levaram tortas e refrescos. Os salões e o auditório estavam decorados com flâmulas e bandeirinhas de cores vivas. Enquanto isso, esperando o início da festa, o professor Javier Naranjo – curador da TAG em outubro de 2014 – e seus alunos estavam na aula de criação literária. Logo antes de terminar a aula, o professor aproveitou a data para desafiar seus alunos: – Que dia é hoje? – perguntou Javier. – Dia das Crianças! – responderam os alunos, que não passavam dos doze anos de idade. – Muito bem! Dia das Crianças. E o que é uma criança? Após algum tempo pensando, um dos pequenos veio com a resposta: – Uma criança é um amigo que tem o cabelo curtinho, não toma rum e vai dormir mais cedo. A definição continha tamanha inocência que o professor passou a colecionar aforismos poéticos de seus alunos. Anotava-os em seus cadernos e os levava para casa como se fossem tesouros. Para ele, as crianças têm uma lógica diferente, outra maneira de entender o mundo, outra maneira de habitar a realidade e de nos revelar muitas coisas de que esquecemos.
Ecos da Leitura 25
Amor? “É quando batem em você e dói muito.” – Viviana Castaño, seis anos
Dinheiro? “Fruto do trabalho, mas há casos especiais!” – Pepino Nates, onze anos
Igreja? “Onde as pessoas vão perdoar Deus.” – Natalia Bueno, sete anos
Deus? “O amor com cabelo grande e poderes.”
– Ana Milena Hurtado, cinco anos
Mais de dez anos depois, o poeta Javier Naranjo finalmente compilou as definições em um livro, que intitulou Casa de las Estrellas. A inspiração para o nome veio de Carlos Gómez, doze anos, que definiu dessa forma a palavra “universo”. Por isso, o subtítulo: Casa das Estrelas, o Universo Contado pelas Crianças. Universo de quinhentas definições para as cento e trinta e três palavras que compuseram o livro, destaque da Feira Internacional do Livro que ocorreu em Bogotá, capital da Colômbia, em abril de 2013. Surpreendeu, pois sua primeira edição fora lançada em 1999, sem muito alarde, e só obteve sucesso e reconhecimento após a reedição e o relançamento na Feira. Hoje, o livro pode ser encontrado no Brasil pela editora Foz.
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Espaço do Leitor
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Vocês se recordam do caderninho enviado como mimo do kit de maio, junto ao livro O Caminho Estreito para os Confins do Norte, de Richard Flanagan? Então desfrutem da riqueza dos detalhes na ilustração da associada Roberta Matsubara, de São Paulo!
Espaço do Leitor 27
Inez Peixoto, de Uberlândia, Minas Gerais, também considerou o livro extremamente marcante. Entretanto, a forma encontrada para expressar seus sentimentos foi um poema. TRILHANDO A MORTE... ELES chegaram, demarcaram a linha. Ferrovia utópica. Desesperado fruto de ordens insanas fanatismo vil. Feita de mito, “de madeira e ferro de milhares de vidas”. Eles labutaram, Chafurdaram na lama. As pernas curvadas, os dedos em nós. De comida, a água. A água de arroz.
E construía-se a ferrovia... À custa do cólera, disenteria. Dos olhos esbugalhados, dos corpos embaçados, dos tórax-carcaça. E lá se ia a massa prisioneira da Guerra fria. Depois de açoitados, feridos, espancados, o trabalho não rendia. E então o carrasco do Japonês Império proferindo impropério com mais raiva, batia.
E como foi o fim da Linha? Abandonada, desmantelada Arrancada, vendida. De bambu, o estrado, Poeira colossal! imunda a coberta. Transformou-se mais tarde Se não dobrada certa, Em sítios sagrados, espancamento lugares admirados era a ordem do Regulamento. por toda nação. Estranha ressurreição! (Em meio ao caos, alguém sobrevivia: Porque dos homens mortos o médico dos homens só ficou a memória. reinventava vidas Maldita história! a cada dia. Infame Japão! Às vezes ganhava Mil vezes perdia)
A PRÓXIMA INDICAÇÃO
A autora que escolhi é uma grande contadora de histórias, sabe prender o leitor, e desenvolve suas tramas com habilidade, inteligência e humor. Neste livro, ela faz uma homenagem à fantasia e à própria literatura. – CAROLA SAAVEDRA
FOTO: Itabuna Centenária
Você sabia que Moby Dick vendeu apenas vinte exemplares de sua primeira tiragem? E que Goethe adulava os nobres em busca de prestígio? Recheado de curiosidades sobre o universo literário, a obra indicada por Carola Saavedra certamente será lida com avidez por qualquer amante da literatura. Através de um delicioso jogo narrativo, que mistura ensaio e ficção a uma pitada de autobiografia, o livro apresenta a magia da literatura, da imaginação e do ofício de escritor, pelas mãos de uma das mais consagradas escritoras espanholas da atualidade. Nessa obra, a autora entrega-se ao que considera uma espécie de obsessão dos escritores, a que sucumbiram gigantes como Henry James e Jorge Luis Borges: escrever sobre o ato de escrever, a chamada metaliteratura. Publicado em 2003 e elogiado por ninguém menos que Mario Vargas Llosa, o livro é considerado pela própria autora o melhor que já produziu.
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As crianças acham tudo em nada, os homens não acham nada em tudo. – Giacomo Leopardi
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