ABRIL DE 2017 Os irmĂŁos Sisters
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Maria Eduarda Largura Maria Eduarda Mello Mariah Pacheco Marina Brancher Pablo Valdez Rodrigo Antunes Suya Castilhos Tomás Susin Vinícius Goulart Vinícius Reginatto Wesley Osorio
Ao Leitor Um dos maiores objetivos da TAG é, a cada mês, proporcionar diferentes experiências literárias, variando os estímulos de leitura. Neste mês, Daniel Galera indicou um livro como nunca havíamos enviado antes: uma obra que bebe da fonte dos grandes clássicos do faroeste, porém com uma roupagem atual. Pela primeira vez desde que iniciamos nossa coleção de edições exclusivas, optamos por não desenvolver uma nova arte para a capa do livro. Desde que Os irmãos Sisters foi lançado, além da envolvente narrativa de deWitt, um aspecto que chamou a atenção do público e da crítica foi justamente essa capa, de autoria do pre-
miado artista americano Dan Stiles. Vibrante, figura em diversas listas de melhores capas dos anos 2000 – dessa forma, não faria sentido alterá-la. É claro que o restante da edição foi pensado exclusivamente para o clube: diagramação interna, textura do papel, capa dura, bordas tingidas de preto, ilustração interna. A revista e a box, inspiradas na arte inicial, são de autoria de Gisele Oliveira. Um fato que talvez você desconheça é que o livro havia sido publicado no Brasil com um equívoco: o sobrenome dos irmãos foi grafado como Sister, e não Sisters. Atenta, nossa equipe evitou que assim permanecesse em nossa edição.
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O curador: Daniel Galera Entrevista com Daniel Galera O livro indicado: Os irmĂŁos Sisters
A corrida do ouro
Literatura western
Os autodidatas
O curador: Mario Vargas Llosa
O curador: Daniel Galera
experiências textuais de Cardoso e impulsionou o trabalho de outros amigos escritores. Entre eles estava Daniel Galera, reconhecido como um dos mais proeminentes escritores brasileiros da atualidade.
No ano de 1998, quando a internet era um esboço do que conhecemos hoje, entusiastas da literatura já exploravam os mecanismos digitais disponíveis e compartilhavam publicações com quem pudesse lê-las. André Czarnobai, estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e conhecido também como Cardoso, aproveitou o ócio provocado pelas greves que paralisaram universidades federais no país para distribuir e-mails com poemas, histórias pessoais e comentários sobre cultura em geral para amigos e conhecidos. Sem muito alarde e com um formato simples, nascia um modelo precursor, que influenciou o modo brasileiro de relacionar produção cultural com a internet, sob o título de Cardosonline. A iniciativa serviu como palco para as primeiras
Galera nasceu em São Paulo, no ano de 1979. Filho de gaúchos, cresceu e viveu por muitos anos em Porto Alegre – onde reside atualmente, – além de ter morado em Santa Catarina e na capital paulista. Ainda jovem, descobriu na escrita uma maneira própria de comunicar-se com o mundo: “Eu era uma pessoa introspectiva, não encontrava no cotidiano e nas conversas comuns espaço suficiente para comunicar o que eu sentia. Eu tentei fazer música, desenhar quadrinhos, mas foi na literatura que encontrei essa forma
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de expressão. Eu era um leitor ávido desde a infância, mas só no final da adolescência, quando entrei na faculdade, que me ocorreu que a escrita de ficção poderia ser esse canal de comunicação que eu procurava”. Galera formou-se em Publicidade na UFRGS e foi um dos responsáveis pela criação e expansão das possibilidades do Cardosonline.
tes guardados, em 2001, e a primeira edição do romance Até o dia em que o cão morreu, em 2003, que foi adaptado para o cinema sob o título de Cão sem dono, dirigido por Beto Brant e Renato Ciasca. O reconhecimento ao trabalho de Galera – que também carrega no currículo traduções de autores de língua inglesa, resenhas, ensaios e reportagens – só cresceu a cada nova publicação. Em 2006, lançou Mãos de cavalo, uma trama delicada sobre memória, perda e culpa, nas palavras do autor. O romance Cordilheira (2008), ambientado em Buenos Aires, foi fruto do projeto Amores Expressos, da editora Companhia das Letras, em que dezessete escritores brasileiros visitaram diferentes cidades do mundo para escrever obras de ficção. A obra foi vencedora do Prêmio Literário Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional.
Com o tempo, o Cardosonline passou a enviar dois e-mails semanais com produções de uma turma de oito colaboradores fixos e outros eventuais; como característica principal, textos de estilo livre, com uso da primeira pessoa e análises subjetivas, uma constante entre quem produzia conteúdo online. “Essa tendência de expressão individual gerou, entre outras coisas, uma nova modalidade de escrita de si, que nós do Cardosonline chamávamos de egotrip. Era uma autoficção de alta voltagem hormonal, que talvez não faça sentido hoje, mas que na época era novidade e acenava para novas formas literárias”.
Em 2010, Galera lançou um projeto inusitado: Cachalote, uma graphic novel criada em parceria com o desenhista Rafael Coutinho. Dois anos depois, publicou Barba ensopada de sangue (2012), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2013 e terceiro lugar do prêmio Jabuti. Além do reconhecimento nacional, o romance já recebeu traduções para mais de dez línguas diferentes ao redor do mundo. Meia-noite e vinte (2016), que teve como elementos de inspiração o Cardosonline e a época em que escreveu para o fanzine, é sua publicação mais recente.
O Cardosonline ficou ativo de 1998 a 2001, quando, com mais de três mil assinantes e quase dez mil páginas de conteúdo, seus colunistas decidiram tomar rumos diferentes. Daniel e outros dois colaboradores do fanzine, Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla, fundaram o selo independente Livros do Mal, com o objetivo de divulgar trabalhos de escritores emergentes, em especial os que publicavam na rede. Através do selo, Galera lançou o livro de contos Den-
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Ilustrações retiradas de Cachalote
tética; a motivação principal eram as suas reações imediatas a ideias e sentimentos que se apresentavam naquele momento. “Olhando para trás, dá para identificar que a minha preocupação é com histórias mais contemporâneas, e talvez uma intenção de traduzir os diagnósticos íntimos que eu faço da minha geração, que cresceu nos anos 90, marcada pela internet, pelo acesso ilimitado à informação, o neoliberalismo… Tudo isso configura uma experiência de vida específica. O meu interesse é buscar os efeitos dessa conjuntura contemporânea na vida íntima das pessoas.”
A obra de Galera costuma centrar-se na representação do universo do jovem contemporâneo; temas como sexo, violência e amizade estão muito presentes em suas narrativas ficcionais. São comuns, também, referências à cultura pop, não apenas como escolha estética, mas por simplesmente fazerem parte da realidade diária e serem indissociáveis da vida dos personagens. O autor conta que, quando começou a escrever, não tinha um “projeto literário” nem pretendia transmitir um posicionamento sobre uma questão específica, política ou es-
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Entrevista com Daniel Galera
O que levou este livro a ser tão importante para você para que o incluísse na lista de indicações à TAG? Podemos começar pelo meu primeiro encontro com o livro. Eu nunca tinha ouvido falar de Patrick deWitt. Em 2012, visitando Toronto para um evento literário, pedi indicações de obras de novos autores canadenses em uma pequena livraria. O vendedor me mostrou Os irmãos Sisters e o defendeu com tanta ênfase e emoção que comprei o livro na mesma hora. Ele disse que eu não me arrependeria, e tinha razão. Decidi indicá-lo porque é um ótimo romance de qualquer ângulo que se olhe. Toma um gênero conhecido, o faroeste, e faz dele algo novo e surpreendente. É ao mesmo tempo realista e absurdo, farsesco e atual, engraçado e
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perturbador, envolvente e exigente, belo e terrível. A dupla de protagonistas é inesquecível, mas não só eles. Quase todos os personagens coadjuvantes são muito vivos e marcantes, como, por exemplo o cavalo Tub, que desperta uma empatia imensa no leitor e tem um destino de cortar o coração.
tundentes, capazes de provocar no leitor risadas amargas e devaneios melancólicos. A narrativa é incomum. À primeira vista um western bem-humorado, deWitt insere conceitos de moralidade, além de captar a mistura de rivalidade, admiração e amor que existe entre irmãos, tornando tudo mais interessante. Qual sua opinião sobre isso?
Imagine que mais de dez mil associados receberão este livro em suas casas. O que você diria a eles neste momento? Por que este é "um livro que deve ser lido"?
De fato, a crise moral de Eli e a relação entre os dois irmãos formam a espinha dorsal da narrativa. De início, esses personagens podem parecer distantes demais do leitor: assassinos de aluguel vivendo suas aventuras no Velho Oeste dos EUA. Aos poucos, porém, se descortina um drama de amor e ódio fraterno que é profundamente humano e atemporal.
Minha sugestão aos associados é que confiem no livro e se entreguem ao que, de início, parece ser apenas mais uma aventura em estilo faroeste, cheia de clichês do gênero. Dois irmãos matadores são contratados para assassinar um garimpeiro em plena corrida do ouro no oeste americano. Um deles, Eli, o narrador da história, é um homem algo ingênuo e cheio de compaixão. O outro, Charlie, é um executor pragmático e brutal. O leitor acha que pode prever o que vem pela frente, mas deWitt vai quebrando as expectativas uma a uma. Em meio ao humor negro e à brutalidade, brotam emoções intensas e reflexões profundas sobre honra, amizade, amor, misericórdia, família. A boa ficção nos leva para outro mundo para que vejamos com mais clareza a nossa própria experiência e a condição humana. Os irmãos Sisters triunfa nesse sentido. E eu também chamaria a atenção para os diálogos do livro, concisos e con-
Sabemos que é sempre difícil falar sobre o que influencia a criação literária de cada autor. De qualquer forma, você acha que há algum tipo de influência de deWitt em sua própria obra? Não penso que este livro influenciou diretamente na minha escrita. Mas Os irmãos Sisters dialoga com toda uma tradição de romances de faroeste sombrios e cheios de humor absurdo, entre eles os livros de Cormac McCarthy. Estes exerceram alguma influência sobre o que escrevo, em especial no caso do romance Barba ensopada de sangue.
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O livro indicado: Os irmãos Sisters
da América do Norte com a família, de sua terra natal até o sul da Califórnia. Embora não agradasse ao jovem Patrick, o período itinerante ajudou-o a fortalecer os laços com seus irmãos, Mike e Nick, enquanto cresciam sob influências artísticas de um pai cujo hobby era escrever contos e uma mãe interessada por fotografia. “Toda vez que mudávamos de escola, tínhamos que fazer novos amigos. Na época, eu odiava aquilo. Mas, olhando para trás, fico feliz por ter feito isso, porque força você a ser independente. Eu acho que fiquei acostumado com um nível de solidão, e isso levou a me sentir confortável em passar horas sozinho, algo que a escrita exige de você.”
Costuma-se dizer que a capacidade de escrever bem é uma questão de talento, que deve ser legitimamente lapidado, trabalhado, aconselhado. Talvez essa seja a razão de muitos escritores contemporâneos terem em seu currículo diplomas universitários e cursos de escrita criativa. Patrick deWitt, o autor deste mês, teve trajetória um pouco singular: sua juventude desregrada não lhe permitiu saber da existência de tais cursos, mas hoje ele conta com orgulho que é um dedicado escritor autodidata. DeWitt nasceu na Ilha de Vancouver, no Canadá, no ano de 1975. Segundo de três irmãos, passou a infância descendo e subindo a costa oeste
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Seu pai, um carpinteiro, descrito pelo autor como “uma daquelas pessoas que nunca se recuperaram realmente de On the road, de Jack Kerouac”, foi responsável pelo interesse permanente do filho em literatura. Depois de longos dias construindo casas, voltava para o lar da família, sentava no sofá e lia com afinco. O fato de Patrick conhecer e ler obras incomuns para alguém da sua idade, no entanto, não interessava a seus “amargurados e desiludidos” professores da escola. Decidido a lutar contra o sistema, largou o colégio antes de se formar e começou a beber e a usar drogas. “Olhando em volta, eu via tantos adultos infelizes, pessoas que odiavam seus empregos, e eu não queria ser um deles.” Enquanto atravessava o que ele próprio hoje reconhece como uma típica fase de autodestruição e niilismo adolescente, um plano começava a tomar forma. Em bibliotecas públicas, conheceu Tolstói e Dostoiévski, começou a estudar as grandes obras e percebeu que, para se tornar escritor, precisaria levar-se mais a sério, instituir uma rotina para realmente construir alguma coisa. Em um bar de Hollywood, onde passou seis anos trabalhando de noite, escreveu seu primeiro romance, registrando fragmentos de ideias sobre personagens em post-its durante o expediente e analisando-os na manhã seguinte. Patrick deWitt
No momento em que Patrick finalizou sua primeira obra, uma
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sequência fortuita de acontecimentos foi responsável por torná-lo reconhecido. Em uma noite, no bar, pediu para um cliente, que conhecia razoavelmente, ler o manuscrito do romance. Esse cliente, roteirista, gostou do que leu e o repassou a um amigo músico, que, por sua vez, participava de uma banda com um homem que era agente literário. Desconhecendo esse fato, Patrick seguiu sua vida, casou-se, teve um filho e mudou-se para Bainbridge Island, nos Estados Unidos. Foi quando aquele agente ligou com uma proposta de publicação, e sua carreira começou de fato. “O nível de sorte envolvido na história, com essas três pessoas – o roteirista, o músico e o agente – alinhando-se dessa forma, me deixa desconfortável até hoje. Parece tão tênue.”
em suas palavras, mas eu também estou interessado na compulsão por virar a página para ver o que acontece em seguida. Se essas duas coisas vêm juntas, é o ideal para mim como leitor.” A obra foi indicada ao prestigioso Man Booker Prize e aos três principais prêmios de literatura do Canadá, sagrando-se vencedora de dois deles. “Corajoso, com humor seco e muitas vezes cômico... deWitt escolheu ter uma voz narrativa afiada e distinta.” – The New York Times
Os acontecimentos do livro se passam no ano de 1851, durante a época da “corrida do ouro” americana, momento histórico no qual trabalhadores migravam para áreas onde era possível extrair grandes quantidades de ouro. Eli e Charlie Sisters são dois assassinos contratados pelo poderoso e influente Comodoro para darem cabo de Herman Kermit Warm, sobre quem os irmãos receberam poucas informações – tampouco conhecem os motivos reais para esta missão. A saga dos dois –
A sorte, que lhe parecia uma aliada no início, não estava inteiramente a seu favor. Ablutions, o primeiro romance, recebeu críticas positivas, mas foi um fracasso de vendas, e o entusiasmo diluiu-se rapidamente. DeWitt ainda considera Ablutions como “um livro decente”, mas tirou uma valiosa lição desse primeiro desapontamento: valorizar mais o enredo. Disposto a acertar a mão, lançou, no ano de 2011, Os irmãos Sisters, que o levou da obscuridade à fama internacional. “Os irmãos Sisters me mudou como escritor. Agora eu trabalho com dois objetivos em mente. Um deles é fazer um documento que é construído com beleza, tanto em seu sentido quanto
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que partem de Oregon em direção à Califórnia – para encontrar Warm, relatada em primeira pessoa por Eli, ocorre em um cenário típico do Velho Oeste, com saloons, pistoleiros, caçadores de fortunas e duelos armados, o que produz a constante sensação de estarmos acompanhando uma aventura cinematográfica.
“Confiem no livro e se entreguem ao que, de início, parece ser apenas mais uma aventura em estilo faroeste. A boa ficção nos leva para outro mundo para que vejamos com mais clareza a nossa própria experiência e a condição humana. Os irmãos Sisters triunfa nesse sentido.”
Ainda que muitos desses elementos sejam corriqueiramente empregados em livros de faroeste, sua finalidade nesta obra é dar cores mais vivas à narrativa de Eli, o irmão mais sentimental e sonhador, explorando para além de suas desventuras os dilemas internos e a relação conturbada com o irmão. Enquanto Charlie apresenta-se como um homem ambicioso, frio, sarcástico e decidido, Eli está constantemente questionando sua função como assassino, sentindo remorso, desenvolvendo empatia por animais e até apaixonando-se. Os aspectos antagônicos dos dois protagonistas – aliados aos encontros com personagens marcantes – provocam diálogos espirituosos e hilários, que enriquecem a trama e possibilitam ao leitor uma conexão emocional mais profunda com seus personagens.
– Daniel Galera
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“O ímpeto para escrever Os irmãos Sisters aconteceu quando eu percebi que não existiam neuroses nas histórias westerns, ou havia uma quantidade mínima”, conta o autor, que escreveu em seu caderno, anos atrás, o termo “caubóis sensíveis”, que se tornaria o ponto de partida para o romance. “Emocionante... Uma história com voz exuberante... Tão ricamente contada, tão detalhada que o que emerge é um estranho circo da existência. [...] Em certo nível é também um tipo de história de vingança, maravilhosamente obscura.” – Revista Esquire
Patrick deWitt acredita que a fama repentina não modificou sua maneira de escrever; entende, no entanto, que deve valorizar o que já deu certo no passado. “A coisa mais difícil no mundo para um escritor é atingir um grande número de leitores. Tantos livros bons são lançados e desaparecem. Então alguma coisa acontece com você depois que os leitores percebem seu trabalho pela primeira vez, e você não quer perder isso. Eu não acho que corrompeu meu trabalho, mas o sentimento está ali. Eu não estou propenso a voltar ao jeito como as coisas eram.”
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ECOS da leitura
A
CORRIDA DO
OURO tório californiano: uma terra prometida, onde seria possível mudar de vida, ter sorte e muito dinheiro. Foi quando surgiu a expressão California Dream.
A trama de Os irmãos Sisters faz referência a um momento peculiar da história dos Estados Unidos: também conhecida como a Febre do Ouro, época em que trabalhadores, ao tomarem conhecimento da existência de grandes quantidades de ouro espalhadas por determinadas regiões do país, migravam em massa em busca de um súbito e sonhado enriquecimento. A corrida do ouro retratada na obra de Patrick deWitt teve início em 1849 e criou no imaginário popular uma “aura” no terri-
Outras corridas do ouro aconteceram ao redor do mundo; no Brasil colonial do século XVIII, o mais conhecido “ciclo do ouro” trouxe milhares de portugueses ao nosso país em uma das primeiras movimentações em massa motivadas pelo metal precioso na história moderna. Já
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no século XIX, as corridas do ouro eram uma constante no mundo inteiro, com registros do fenômeno em países como Argentina, África do Sul (que provocou a Guerra do Bôeres), Canadá, Austrália, além de inúmeras regiões dos Estados Unidos. Os fatores que motivaram milhares de pessoas a abandonar tudo o que tinham em busca de uma utopia de bonança eram diversificados, como uma certa melhoria nas redes de transporte e nos meios de comunicação, a insatisfação social e o sistema monetário internacional baseado no padrão-ouro. Curiosamente, poucos mineiros enriqueceram de verdade; o trabalho de mineração individual não se mostrou muito lucrativo, e os maiores beneficiados foram fornecedores de materiais para mineração, comerciantes, donos de redes de transporte e o Estado, com as tributações.
Literatura Western A narrativa de Os irmãos Sisters foi inspirada nos romances de faroeste que fizeram estrondoso sucesso no final do século XIX e durante quase todo o século XX, ao mesmo tempo em que apresenta uma estética contemporânea, distante dos clássicos do gênero. Para os interessados em conhecer mais o estilo, listamos três escritores que ajudaram a perpetuar o Velho Oeste no imaginário popular.
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zane grey Pearl Zane Grey, americano nascido em 1872, cujas obras são consideradas precursoras do gênero western, foi responsável por moldar diversos ícones do Velho Oeste – uma bonita paisagem habitada por caubóis heroicos, matadores inescrupulosos e índios nobres –, e mais de cem filmes foram adaptados de seus romances e contos. Seu livro mais conhecido é o best-seller O forasteiro (1912) – apenas esta obra teve quatro versões cinematográficas.
elmore leonard Escritor e roteirista americano, nascido em 1925 e falecido em 2013. Mestre dos romances policiais e thrillers – muitos deles adaptados para o cinema –, Leonard também escreveu westerns nos anos cinquenta e início dos sessenta, motivado pela ascensão do gênero e pela
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possibilidade de vender suas histórias para Hollywood. Das obras que exploram o universo do faroeste, destaca-se Hombre (1961), que recebeu uma adaptação cinematográfica em 1967.
cormac mccarthy Aos oitenta e quatro anos, Cormac McCarthy é um dos mais aclamados escritores da atualidade. Em quarenta anos de carreira literária, produziu nove romances, entre eles o western contemporâneo Onde os velhos não têm vez, que gerou uma também espetacular versão cinematográfica dos irmãos Coen, batizada no Brasil de Onde os fracos não têm vez, vencedor de quatro Oscar, incluindo o de Melhor Filme. O associado que já está no clube há mais tempo conhece o autor americano com propriedade: A estrada (2007), vencedor do Prêmio Pulitzer de Ficção, foi enviado no kit de agosto de 2015.
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Charles Dickens
Os autodidatas É comum que escritores interessados em expandir suas técnicas, referências e conhecimentos decidam atingir seus objetivos com o auxílio de cursos voltados para a Literatura; Jhumpa Lahiri e Angela Carter, autoras das obras dos dois últimos meses da TAG, por exemplo, levaram os estudos acadêmicos a sério para só depois arriscarem-se a publicar livros. Patrick deWitt, de infância mais simples, não teve acesso a esse luxo, mas não deixou de acreditar em seu talento e, com esforço e um pouco de sorte, obteve o reconhecimento que desejava estudando por conta própria. Outros grandes escritores, assim como o canadense, não passaram por estudos formais para se consagrarem no mundo literário.
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Jack Kerouac
Harper Lee
O mais célebre autor da Geração Beat já sabia que queria ser escritor desde jovem, mas sua entrada no mundo acadêmico se deu a partir uma bolsa de estudos esportiva: Kerouac era um talentoso running back do time de futebol americano da Universidade Columbia. Problemas com o técnico e uma fratura na tíbia encurtaram sua carreira, e ele desistiu da universidade. A estadia em Nova York, porém, possibilitou-lhe que conhecesse diversos outros escritores (como Allen Ginsberg e William Burroughs) que, com ele, marcariam uma geração.
Harper Lee já se interessava por literatura desde a época do colégio, mas decidiu estudar Direito na faculdade. Depois de alguns anos acumulando frustrações, ela abandonou os estudos e partiu para Nova York com o objetivo de se tornar escritora; em 1960, lançou sua única obra, O sol é para todos, que venceu o Prêmio Pulitzer e é considerado hoje um dos grandes clássicos da literatura americana moderna. Em 2015, cinquenta e cinco anos após o lançamento de seu primeiro livro, Lee lançou a sequência, intitulada Vá, coloque um vigia.
William Faulkner
Charles Dickens
O vencedor do Nobel de Literatura de 1949 nunca teve um diploma universitário; por medir um metro e sessenta, foi recusado pelo serviço militar americano e acabou por alistar-se na força aérea canadense, onde serviu por um ano. Mais tarde, entrou na Universidade do Mississipi, mas logo largou os estudos e foi trabalhar como assistente numa livraria, pouco antes de lançar sua primeira coletânea de poemas, aos vinte e sete anos. O associado da TAG teve a oportunidade de conhecer seu complexo e poderoso estilo em janeiro de 2015, com o envio de O intruso.
Com mais sete irmãos, Dickens recebeu uma educação formal esporádica, que foi interrompida quando seu pai foi preso e ele passou a trabalhar, com apenas doze anos de idade, em uma fábrica com condições de trabalho degradantes. Mais tarde, seu pai foi solto e ele voltou aos estudos, apenas para abandonar em definitivo aos quinze. A infância sofrida foi ponto de partida para a maioria das obras de Dickens, em especial David Copperfield, considerado o mais autobiográfico de seus livros.
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Harper Lee
Espaço do Leitor O livro do mês de janeiro, Vida e proezas de Aléxis Zorbás, suscitou importantes discussões entre os associados, devido à sua linguagem e a algumas atitudes dos personagens. A TAG posicionou-se, reiterando que não compactua com o machismo, e que a mais eficaz maneira de mantermos aceso o espírito crítico se dá pela franca exposição do assunto no universo literário. Foi o que pretendemos ao publicar Angela Carter,
em sua obra A câmara sangrenta, brindando os leitores com o questionamento do papel da mulher nos contos de fadas. Por considerarmos os debates relevantes e necessários, oferecemos livros que podem incomodar, mas que proporcionam múltiplos pontos de vista. Assim como ressalta Carol Bensimon no texto abaixo, publicado originalmente em nosso blog:
COMO FALAR MAL DE UM CLÁSSICO? Estou me perguntando isso há algumas horas. Clássicos são confiantes e pouco humildes. Eles se sentem garotões. Deixaram pelo caminho um monte de outros livros, que desapareceram para sempre na esteira seletiva da História. O que eu, leitora, devo fazer diante dessa espécie de seleção natural darwiniana? Clássicos foram comidos por traças, foram esquecidos em estantes no Egito, na Grécia, no Curdistão, mas foram também sublinhados com maravilhamento, foram dados como lições de vida a pessoas mais jovens, foram discutidos em clubes de leitura em subúrbios norte-americanos, foram reimpressos em gráficas brasileiras no meio da madrugada, foram transformados em filmes e amados duas vezes. Nas páginas das obras ditas “clássicas”, parece haver um entendimento muito apurado de algum dilema humano, aliado, na maioria das vezes, a uma nova forma de contar. Claro que nem sempre os clássicos foram entendidos no seu tempo, e um monte de listas estão aí para nos lembrar o quanto certos críticos cometeram o equívoco histórico de falar mal de uma grande obra na ocasião de seu lançamento. O que quero dizer é que clássicos são sempre intimidadores. E é compreensível que a gente se sinta estranha, ingênua ou feita de aço caso a leitura de um desses termômetros da humanidade não esteja exatamente
nos tocando. O famoso “o problema sou eu, não você.” Foi isso que eu quis dizer muitas vezes para Vida e proezas de Aléxis Zorbás, seguido de algo do tipo “não me leve a mal, mas minha sensibilidade contemporânea não combina muito com seus valores antiquados”. Antes de chafurdar em culpa e castigos auto -inflingidos, no entanto, me pareceu importante lembrar que a leitura é uma experiência estritamente individual. Ninguém lê o mesmo livro da mesmíssima maneira. Para começar, as possibilidades de leitura e interpretação de uma obra são infinitas (as famosas lacunas que devem ser preenchidas pelo leitor). E há ainda o fato de que mergulhamos na leitura carregados com nossa história e nossa experiência, o que por sua vez molda essa coisa complicada chamada gosto. Descrever por que um livro me agrada e outro não é como tentar descrever o que minhas papilas gustativas sentem com um doce específico de uma confeitaria específica do Rio de Janeiro, mas dá para tentar racionalizar isso (a textura da massa, o contraste entre o sabor do chocolate e o da geleia de damasco, etc), embora a argumentação sempre acabe ficando muito aquém da experiência. Para mim, Vida e proezas de Aléxis Zorbás é uma obra publicada em 1946, mas que soa como algo anterior à literatura moderna. Deve ser por causa de uma certa tendência alegórica, que definitivamente não me agrada. Em 1946, iam-se trinta e três
anos desde a publicação da primeira parte de Em busca do tempo perdido (Marcel Proust), vinte e quatro anos desde Ulisses (James Joyce) e quatorze anos anos desde Viagem ao fim da noite (Louis-Ferdinand Céline). Sei que estou pegando os pesos mais pesados dentre os clássicos universais, mas me parece válido dizer que Vida e proezas de Aléxis Zorbás – diferentemente dos outros romances citados – serve-se de caricaturas e de uma certa oposição sem nuances para apresentar seus grandes temas. Estou entendendo "oposição sem nuances” pela que se dá, por exemplo, entre o trabalho manual (Zorbás) e o trabalho intelectual (Patrão) e, numa variação dessa, a vida real (Zorbás) e a vida entre os livros (Patrão). Não há problema nenhum em embates. A literatura é feita de embates. Mas, para mim, há algo de ingênuo e esquemático na forma como Kazantzákis trabalha essas oposições no romance. Tudo bem. Eu sou, afinal, uma pessoa que não gosta de Dom Quixote. Não menos incômodo que isso, para minha sensibilidade de leitora contemporânea, repito, é a forma como as mulheres são descritas ao longo da obra e como, de forma geral, a ideia de “feminino” é tratada. Aqui gostaria de fazer um parênteses: rechaço completamente a noção de que devemos fazer uma espécie de censura tardia a obras que, quando escritas, estavam lidando com
um mundo cujos valores eram bem diferentes dos valores de hoje. Lolita é um dos meus livros preferidos, inclusive. E William Faulkner, cujo universo é o de um sul dos Estados Unidos racista e decrépito, está em minha lista pessoal de maiores escritores de todos os tempos. Sou judia e adoro Céline, que era um grande anti-semita. Não preciso ler obras que propaguem meus valores feministas porque entendo que isso pode se tornar extremamente perigoso: romances, sob hipótese alguma, devem ser escritos como cartilhas que pregam essa ou aquela ideologia. Feito esse parênteses, devo admitir que os aforismos a cada duas páginas à respeito da inferioridade da mulher e da sua falta de cerébro não foram agradáveis de ler. E o destino da viúva tampouco me fez criar a mínima empatia com os personagens – incluindo aí nosso narrador não nomeado. Creio que, pela primeira vez, haverá discordâncias significativas entre as experiências de leitura dos colunistas, o que me parece saudável e divertido. Gosto é gosto e, sim, se discute.
Carol Bensimon
Escritora e tradutora brasileira. Em 2012, foi incluída no volume Os melhores jovens escritores brasileiros da revista inglesa Granta. Acompanhe os textos em etcetera.taglivros.com.
É uma dessas obras literárias que aparecem de tempos em tempos e que, uma vez que nos deslumbram, confundem-nos, porque nos confrontam com o mistério da genialidade artística.
A indicação de
– Vargas Llosa
Pela primeira vez, temos um vencedor do Prêmio Nobel de Literatura como curador! O peruano Mario Vargas Llosa nos convida a viajar à Sicília da época da unificação da Itália. Lá, conhecemos um príncipe entendiado com seu casamento, que não se reconhece nos próprios filhos e que observa o desmantelamento de sua realeza – enquanto os processos revolucionários transcorrem pela janela de seu palácio. Apesar do enorme sucesso do livro nos anos 60 e 70, estava esgotado no Brasil. Agora, você receberá em primeira mão a nova edição.
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Para adquirir este e outros kits passados, acesse a nossa loja: www.loja.taglivros.com
“Que estranhas criaturas são os irmãos!” – Jane Austen