Ago2016 "O Casamento"

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AGOSTO de 2016 O Casamento


Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Álvaro Scaravaglioni Englert Ariel Belmonte Bruna Lucchese Kafrouni Bruno Englert Moutinho Daniel Arcari Romero Eduardo Augusto Schneider Guilherme Rossi Karkotli Luísa Andreoli da Silva Maria Eduarda Largura Marina Brancher Pablo Soares Valdez Rodrigo Lacerda Antunes Tomás Susin dos Santos Antônio Augusto Portinho da Cunha Fernanda Lisbôa Bruno Miguell Mendes Mesquita bruno.miguell@taglivros.com.br Laura D Miguel lauradep@gmail.com Errata: A ilustração da capa da revista de julho é de autoria de Odilon Moraes | cmoreyra@uol.com.br Impressos Portão TAG Comércio de Livros Ltda. Rua Sete de Abril, 194 | Bairro Floresta | Porto Alegre - RS CEP: 90220-130 | (51) 3092.0040 | contato@taglivros.com.br


Ao Leitor Neste mês, fomos brindados com algo de que estávamos sentindo falta em nosso rol de indicações: um romance brasileiro. E não foi um livro qualquer! No dia 23 de agosto deste ano, o jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues estaria completando cento e quatro anos. Reservamos, para o mês de seu aniversário, a recomendação da escritora Heloisa Seixas: O Casamento, o único romance assinado por este que é o maior dramaturgo brasileiro e um dos grandes expoentes da nossa literatura. Enquanto, no mês passado, enviamos um clássico consagrado, que integra o acervo das grandes bibliotecas ao redor do mundo, neste mês trazemos um livro polêmico, que foi banido durante a ditadura e que certamente lhe deixará incomodado. Repugnância, risadas, surpresa, compaixão, desprezo – esta é uma leitura que lhe proporcionará as mais diversas sensações. Entre elas, a de curiosidade, aquela dos bons livros, que nos causam olheiras porque, no dia anterior, avançamos madrugada adentro sem conseguir largá-los.



A INDICAÇÃO DO MÊS

ECOS DA LEITURA

A PRÓXIMA INDICAÇÃO

04 06 08 11 18 20 22 24 28

Livros A curadora: Heloisa Seixas Entrevista: Heloisa Seixas O livro indicado: O Casamento

Causos Eco Censurado Os Tweets de Nelson Rodrigues Está caprichando, o Fluminense está caprichando

Maria Rita Kehl


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Livros

Li certa vez que Alma Mahler guardava, na sala de sua casa, o berço em que dormira na primeira infância. Era um berço antigo de madeira, tosco, desses com um dispositivo que os faz balançar docemente, ao menor toque. Ali, no bojo vazio daquela que um dia fora sua própria cama, Alma guardava seus livros prediletos. Arrumava-os, empilhados, em várias camadas, enchendo todo o espaço onde um dia houvera um colchão, lençóis, brinquedos e uma criança – ela própria. Certamente, quando remexia nos livros, buscando algum em especial, um livro para enternecer-se, para recordar ou esquecer – que é para isso que serve reler livros prediletos –, certamente, então, seu braço, esbarrando na lateral gradeada, fazia o berço balançar. E ela os ninava, talvez sem perceber. Essa imagem de livros queridos sendo acalentados me encheu de ternura. Assim como um dia me comoveu ler o depoimento de Isak Dinesen, falando sobre a ansiedade que sentia, em sua fazenda na África, enquanto aguardava a chegada dos livros encomendados na Inglaterra. E de como, ao recebêlos, tocava cada volume com a ponta dos dedos, como se retirasse da caixa copos de finíssimo cristal. Sabia, ao tocá-los, que aqueles seriam seus únicos exemplares durante meses, até que chegasse nova remessa. Eram um tesouro insubstituível.

Por Heloisa Seixas

“Por isso, eu torcia para que os escritores tivessem dado tudo de si ao escrevê-los”, explicou. É curioso. Porque ela própria, Isak Dinesen, escrevia assim, sem economizar, sem fazer concessões, pegando cada camada da narrativa e dissecando-a até o último fio. Escrevia dando tudo de si, entregando-se em cada linha – como se esperasse ser lida por um náufrago numa ilha deserta. Esse amor pelos livros me comove, um amor que venho aprendendo a desenvolver, nos últimos anos. Antes, guardava meus livros de qualquer jeito, sem qualquer ordem nas estantes. E, ao lê-los, pouco me importava se os abria demais, se os virava ao contrário, se deixava a ponta da capa se enrolar numa feia orelha. Estou mudando. Hoje, presto atenção nas pessoas que sabem cuidar bem de suas bibliotecas e observo a maneira como decidem a posição de cada volume nas estantes, o carinho com que tiram os mais antigos das prateleiras para tentar restaurar as lombadas, alisando-as cuidadosamente com goma e pincel. São gestos de uma delicadeza comovente, cuja observação me faz refletir. E, cada vez mais, tenho diante dos livros uma atitude de reverência. Olho-os e vejo como eles são puros, íntegros – como as crianças e os cristais. Escrito em 17/06/2001 e publicado no livro Uma Ilha Chamada Livro (2010)


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A INDICAÇÃO DO MÊS

FOTO: gazeta do povo


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A curadora: Heloisa Seixas Heloisa Seixas já gostava de ler, mas só se apaixonou pelos livros por influência de Luísa. Em um dia monótono, em meados da década de sessenta, Heloisa, ainda criança, resolveu matar o tédio passeando por entre as paredes forradas de volumes encadernados da biblioteca do tio. Quando estava explorando a seção de livros portugueses, encontrou Luísa. Loira, olhos castanhos, leitora de romances, a moça roubou a atenção da pequena Heloisa assim que apareceu nas primeiras cenas de O Primo Basílio, livro que escolheu para se divertir por algumas horas naquele dia aborrecido. “Não entendia metade daquelas palavras difíceis, de sabor antigo, mas de alguma forma estava lá, sentada naquela sala de um Portugal onírico, olhando as cenas que se desenrolavam. [...] Eça me estendera sua mão impalpável e me levara para o mundo de Luísa – graças à palavra”. Com a prima de Basílio, do romance de Eça de Queiroz, Heloisa Seixas apaixonou-se pelas palavras – que anos mais tarde viriam a ser a matéria-prima de seu trabalho.

ASSIM QUE APRENDI A LER, APRENDI TAMBÉM A AMAR OS LIVROS, PORQUE ELES ME PERMITIAM VIAJAR PARA BEM LONGE, QUE ERA QUASE SEMPRE ONDE EU QUERIA ESTAR. – HELOISA SEIXAS

Antes de se dedicar à literatura, Heloisa Seixas trabalhou como jornalista e tradutora. Foram doze anos escrevendo para o jornal O Globo e sete anos como assessora de imprensa da representação da ONU no Rio. Como tradutora, foi responsável por obras como Jane Eyre, de Charlotte Brontë, e Tiros na Noite, de Dashiell Hammett. “Já trabalhava há anos com a palavra dos outros quando a minha palavra se apresentou e pediu para ser escrita”, afirmou Heloisa.


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Seu primeiro trabalho como ficcionista veio em 1995, aos quarenta e três anos de idade: a coletânea de contos Pente de Vênus, finalista do Prêmio Jabuti e considerada por Carlos Heitor Cony uma das maiores revelações literárias dos últimos anos. Um ano depois, veio o primeiro romance, A Porta (1996), pela editora Record. De lá para cá, escreveu mais de uma dúzia de livros, e sua produção inclui não somente contos e romances, mas crônicas, matérias jornalísticas, literatura juvenil e infantil e, nos últimos anos, peças de teatro. Entre seus trabalhos recentes, merecem destaque O Lugar Escuro (2007), um relato impressionante sobre a convivência da escritora com a doença de Alzheimer, desenvolvida por sua mãe; e O Oitavo Selo – Quase Romance (2014), uma mistura de ficção com realidade que tem como protagonista seu marido, o escritor Ruy Castro, e seus diversos confrontos com a morte – os “selos” –, que incluem drogas, álcool e câncer. Sobre a paixão pela leitura, publicou Uma Ilha Chamada Livro (2010) – de onde foi retirado o texto que abriu esta revista –, e Prazer de Ler (2011). Jornalista, dramaturga, cronista, esposa de Ruy Castro – não deveríamos ter ficado surpresos com a recomendação de Heloisa Seixas à TAG: Nelson Rodrigues, jornalista, dramaturgo, cronista, e que teve sua vida biografada por ninguém menos que o próprio Ruy Castro. Nelson é uma paixão em comum do casal de escritores, que já virou e revirou cada uma de suas páginas. Ficamos um pouco surpresos, porém, com a escolha do livro: O Casamento, o único romance assinado pelo autor, e até um tanto desconhecido quando comparado às suas coletâneas de crônicas e peças teatrais. Uma ótima oportunidade de conhecermos o lado romancista deste brilhante escritor brasileiro.

CONSAGRADO COMO DRAMATURGO – SEM DÚVIDA O MAIOR QUE O BRASIL JÁ TEVE – E MUITO POPULAR COMO CRONISTA, NELSON RODRIGUES AINDA NÃO TEVE O DEVIDO RECONHECIMENTO COMO ROMANCISTA. O CASAMENTO É UMA OBRA-PRIMA DE HUMOR E PERVERSÃO. – HELOISA SEIXAS


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Entrevista: Heloisa Seixas Entre infinitas possibilidades, você selecionou O Casamento como um de seus livros preferidos. Por quê? O que tem este livro de especial? É um romance de Nelson Rodrigues – e isso é muito especial. Nelson não é apenas dramaturgo, e é preciso fazer justiça a ele como romancista. Como autor de teatro, não há o que discutir: Nelson é não apenas o maior dramaturgo brasileiro, mas um dos maiores do mundo em todos os tempos. Ruy Castro, biógrafo de Nelson, é da opinião de que se pegarmos, por exemplo, três dos maiores dramaturgos modernos americanos – Tennessee Williams, Arthur Miller e William Inge – e batermos os três no liquidificador, “não dá nem meio copo de Nelson Rodrigues”. Não conheço os dramaturgos americanos tão a fundo quanto Ruy, mas desconfio que seja verdade. Mas também é verdade que, embora muito reconhecido (hoje em dia) no Brasil como dramaturgo, Nelson Rodrigues ainda não é considerado como romancista. Uma das razões é que ele se dedicou a textos menores (crônicas, memórias) e ao teatro por absoluta falta de condições de se dedicar a projetos maiores, como um romance. Precisava, como se diz, pagar o aluguel. O Casamento foi uma exceção, mas, dentro do estilo de Nelson, é tão espetacular que merece figurar entre os grandes romances brasileiros.

Nelson Rodrigues não é para qualquer um! Suas obras contêm cenas fortes e escracham o machismo, o incesto e o preconceito à homossexualidade. Tivemos até um pouco de medo de selecionar O Casamento para enviar aos associados. O que você tem a dizer sobre essa “agressividade” da literatura de Nelson? É precisamente isso que fascina em Nelson. Não por acaso, Nelson Rodrigues foi, durante muito tempo, detestado pela direita, pelos conservadores (que o consideravam tarado), e pela esquerda, pelos progressistas (que o consideravam reacionário). Nelson tem uma independência de pensamento que muitas vezes choca, e isso se reflete em sua obra. Mas ele é genuíno, não tem medo de dizer o que pensa. É politicamente incorretíssimo – o que considero uma virtude. Além disso, é preciso encará-lo dentro do contexto em que vivia, no caso, por exemplo, da questão do homossexualismo. Mas, mesmo assim, percebo nele um libertário, no sentido mais amplo do termo. Um homofóbico jamais teria, por exemplo, escrito O Beijo no Asfalto.


Alguns diziam que Rodrigues era pornográfico. O que você responderia? Qual é, para você, a relevância literária de Nelson Rodrigues? Nelson era um gênio em estado puro. Ele surpreende o tempo todo – e isso é uma das marcas da genialidade. Nunca vai para onde você espera. Essa marca está em tudo o que ele escreveu, em seus comentários mais ligeiros, improvisados, assim como nas peças e nos textos. Além disso, ele era um visionário. Um homem que antecipou muitas coisas. A metralhadora giratória dele não poupava ninguém, nem o teatro. Li um texto dele, uma entrevista feita pelo Otto Lara Resende, em que Nelson Rodrigues diz que o texto teatral deveria existir por si só, sem ser encenado. Que, assim que entram em cena diretor, atores, público – o teatro começa a morrer. Um autor de teatro dizer isso? É louco, mas é brilhante. E é único. Quem banaliza Nelson Rodrigues é porque não entendeu nada.

Nelson chocava, na década de sessenta (quando foi censurado), mais do que choca hoje. Adultério já não é mais capa de jornal. Quais você considera os tabus e preconceitos dos nossos tempos atuais, sobre os quais Nelson Rodrigues escreveria? O politicamente correto hoje em dia chega a exageros, é uma camisa de força. Principalmente na repressão àqueles que mexem com humor. E como havia muito humor no que Nelson fazia, fico me perguntando se hoje ele não seria ainda mais perseguido do que foi em seu tempo – quem sabe?

FOTO: bruno veiga


Nelson Rodrigues


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O livro indicado: O Casamento “Nelson, o que o senhor tem a dizer sobre o ser humano?”, perguntou um repórter. “O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo”. Nelson Rodrigues foi um dos mais polêmicos e perturbadores escritores do nosso país, com peças, crônicas e romances que não conhecem eufemismos. Para o escritor, os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. E sua literatura vem para confessá-los. “Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida: ‘Senhoras e senhores, eu sou um canalha!’”. A literatura rodrigueana tem coragem de expor, às custas do espanto, as sujeiras do ser humano e os tabus e preconceitos da sociedade. Ela evidencia as falsificações. Ela sobe ao palco e grita: senhoras e senhores, somos canalhas!

EU O DEFINIRIA COMO O ESCRITOR MAIS CORAJOSO DA LÍNGUA PORTUGUESA. – RUY CASTOR, ESCRITOR E BIÓGRAFO DE NELSON RODRIGUES

O quinto de quatorze irmãos, Nelson Falcão Rodrigues nasceu na capital pernambucana, em 23 de agosto de 1912. Aos quatro anos, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, pois seu pai, Mario Rodrigues, ex-deputado federal e jornalista, estava sendo perseguido politicamente. Em um concurso escolar, aos sete anos de idade, Nelson lançou seu primeiro texto: “Eu escrevi sobre um sujeito que


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entra em casa inesperadamente, abre o quarto e vê a mulher nua e um vulto pulando pela janela e desaparecendo na noite. O cara puxa a faca e mata a mulher”, recorda-se Nelson, que acabou vencendo o concurso. Nessa época, começou a ler a revista infantil Tico-Tico, e com treze anos já devorava Machado de Assis, Eça de Queiroz e Fiódor Dostoiévski. Mario Rodrigues, que havia fundado o próprio jornal no Rio de Janeiro, percebeu o interesse do filho pela escrita e permitiu que Nelson assumisse o caderno policial, iniciando sua precoce carreira jornalística. Segundo Ruy Castro, autor da biografia Anjo Pornográfico, Nelson surpreendeu a todos “por sua facilidade para emprestar carga dramática aos toscos relatórios que os repórteres traziam da rua”.

COM UM ANO DE MÉTIER, O REPÓRTER DE POLÍCIA ADQUIRIA UMA EXPERIÊNCIA DE BALZAC. – NELSON RODRIGUES

Dona de um estilo ácido, a família Rodrigues prosperava no jornalismo. Até que, em 1930, um dos irmãos de Nelson, que também trabalhava no jornal, foi assassinado. Dois meses depois, seu pai morre de trombose cerebral. Sua mãe, Maria Esther, e a dúzia de irmãos enfrentam a pobreza. Nesta época, “Nelson andava de sapatos sem meias, porque não tinha meias, e usava a mesma camisa três ou quatro dias”, conta a biografia. Fragilizado e faminto, um de seus irmãos não resistiu à tuberculose. Em 1934, Nelson também foi internado com a doença, mas sobreviveu. Três anos depois, na redação do jornal O Globo, conheceu Elza Bretanha, com quem se casou. Sem um tostão no bolso, e com a mulher grávida, Nelson passou pela fila que se acotovelava em frente ao Teatro Rival, na Cinelândia, para assistir A Família Lero-Lero e ouviu alguém comentar: “Essa chanchada está rendendo os tubos!”. Nesse momento, questionou-se por que não


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escrevia teatro. Afinal, não lhe parecia mais difícil do que escrever um romance – pelo menos era mais rápido. Em 1941, escreveu sua primeira peça, A Mulher sem Pecado, e assim iniciava-se a carreira daquele que viria a ser considerado o mais influente dramaturgo brasileiro. Quando Roberto Marinho, seu chefe, intrigado com o talento do jornalista para a dramaturgia, indagou de seu amigo Manuel Bandeira o que achava da peça, foi surpreendido com a resposta: “Esse rapaz, o Nelson, tem um grande talento. A peça é formidável!”. Escreveu dezessete peças, entre elas Vestido de Noiva (1943), considerada o marco inicial do teatro moderno brasileiro, Os Sete Gatinhos (1958) e Bonitinha, mas Ordinária (1962), que inspiraram dezenas de filmes e telenovelas. Seu primeiro romance, em formato de folhetim e sob o pseudônimo de Suzana Flag, foi Meu Destino é Pecar (1945). Outros seis livros seriam lançados com a assinatura de Suzana Flag. A partir de 1950, começou a publicar as crônicas A Vida como Ela É no jornal Última Hora, com grande sucesso. Em 1966, publicou o único romance assinado com seu próprio nome: O Casamento. O personagem principal, Sabino Uchoa Maranhão, é um respeitado homem de negócios da alta sociedade carioca, que se vê às voltas com o casamento de sua filha caçula, Glorinha. Dois dias antes da cerimônia, que lhe custará uma fortuna e será fotografada para as principais revistas, Sabino recebe a visita do doutor Caraminha, médico da noiva, que lhe revela ter visto o futuro genro, Teófilo, beijando outro homem. O intolerante Sabino fica perturbado, pois “um pai não tem o direito de ignorar a pederastia de um genro”. O romance narra as quarenta e oito horas que antecedem a cerimônia. Enquanto Sabino busca pela melhor forma de salvar o casamento, tudo vem à tona. A possível homossexualidade do genro revela-se apenas um dos imprevistos de uma família que, abaixo da superfície, esconde a sexualidade reprimida, o preconceito, o adultério, o incesto, a perversão, a hipocrisia.


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Publicado durante o período ditatorial, foi questão de pouco tempo para que o Governo Castelo Branco proibisse a circulação do livro, considerando-o um atentado contra a instituição da família. Pelo desconforto que causam suas temáticas, pela ferocidade de suas palavras e pela força de suas cenas, Nelson Rodrigues acabou taxado por alguns de pornográfico e reacionário. “Meus diálogos são realmente pobres”, afirmou, “só eu sei o trabalho que me dá empobrecê-los”. Sua linguagem é a palavra suada da rua, como ele dizia, que retrata com crueza inigualável o cotidiano que conhecia tão bem. Assim surgiram as famosas pérolas de Nelson Rodrigues: “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém se cumprimentaria”; “O ato sexual é uma mijada”, “Só o cinismo redime o casamento”; “Não existe família sem adúltera”. O cenário carioca, tão conhecido, e os personagens, tão mundanos – o empresário, a secretária, a esposa –, fazem-nos íntimos de Sabino e de sua família. A narrativa veloz, repleta de diálogos e cenas rápidas, torna quase impossível ao leitor deitar o marcador sobre as páginas e fechar o livro. Apesar de extremamente envolvente, ler O Casamento é tarefa perturbadora. Testemunhar algumas das cenas causa dor, revolta, um embrulho no estômago do leitor, que certamente se retorcerá na poltrona, enquanto tenta digeri-las. Mas que indecoroso! Hipócrita de marca maior! Maldito machista! Como todo grande livro, O Casamento não passa despercebido. Mas a atrocidade de Nelson Rodrigues é premeditada. “A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz”, explica o escritor. “O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Anna Kariênina, ou Emma Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê--lo. No Crime e Castigo, Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos. Para salvar a plateia, é preciso encher o palco de assassinos,


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de adúlteros, de insanos, e em suma de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los”. Assim, Nelson Rodrigues parece buscar as feridas da sociedade para cutucá-las, e mostrar aos leitores as realidades inconfessas que se desenrolam no subterrâneo da vida privada. Ele sobe ao palco e grita: “Somos canalhas!”. E a gente escuta, sentados na plateia, perplexos, mas maravilhados com a qualidade do espetáculo.

LEIA SEM PRECONCEITO. TODO GÊNIO É ÚNICO. É CRIADOR, É INVENTOR, NÃO SEGUE PADRÕES EXISTENTES E POR ISSO NÃO SE ENQUADRA EM ESCANINHOS. NELSON É LIVRE. E É PRECISO SER LIVRE PARA LÊ-LO. – HELOISA SEIXAS, PARA OS ASSOCIADOS DA TAG


ECOS DA LEITURA

A vida de Nelson Rodrigues é repleta de histórias curiosas. Em nosso primeiro Eco, selecionamos quatro delas para apresentar ao leitor. “Pornográfico!” era o rótulo frequentemente utilizado por aqueles que tentavam justificar a censura imposta às peças e aos romances de Nelson Rodrigues. No segundo Eco, apresentamos outros casos de censura de grandes obras literárias. Para o terceiro Eco, selecionamos algumas citações famosas, proferidas por Nelson Rodrigues, mestre das tiradas rápidas e frases de efeito, repletas de ironia e humor. Nelson Rodrigues, Fluminense de carteirinha, teve um papel importantíssimo na crônica futebolística. Em nosso quarto Eco, apresentamos um pouco desse lado do escritor.  Equipe TAG contato@taglivros.com.br


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Causos Um crime na redação No dia 26 de dezembro de 1929, o jornal Crítica, do Rio de Janeiro, estampou em sua primeira página o relato de separação da jornalista e escritora Sylvia Serafim e de seu ex-esposo, doutor João Thibau Jr. A reportagem apontou como causa da separação o adultério de Sylvia, que vinha mantendo relações com outro médico. Humilhada e indignada pela divulgação de sua vida privada, Sylvia dirigiu-se ao jornal e, empunhando uma arma, invadiu a redação à procura do editor responsável. Como ele não estava, acabou atirando em seu filho, com uma arma comprada nequele mesmo dia. Crítica era o jornal de Mario Rodrigues, editor-chefe que estava ausente durante o crime, e o assassinado foi seu filho, Roberto. No local, assistindo ao crime, estava o irmão da vítima, Nelson Rodrigues, então com dezessete anos. Mais tarde, o escritor afirmaria: “O assassinato do meu irmão marcou a minha obra de ficcionista, de dramaturgo, de cronista, assim como minha obra de ser humano”. Lord Nelson Em 1805, a França e a Espanha juntaram-se no cabo de Trafalgar, na costa espanhola, em guerra naval contra o Reino Unido. Napoleão queria invadir a Inglaterra, e Nelson era o nome do almirante inglês encarregado de evitar que isso acontecesse. Ele conseguiu, mas morreu na batalha. Pouco mais de um século depois, o almirante seria a inspiração para o nome do quinto filho de Mario Rodrigues.


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Rebatendo críticas Nelson, que afirmava: “A plateia só é respeitosa quando não está a entender nada”, acostumou-se às vaias – e não só isso, gostava de responder à altura. Em 1954, ele próprio subiu ao palco para atuar na sua peça Perdoa-me por me Traíres e, após ser considerado um ator medíocre, respondeu: “Só os imbecis têm medo do ridículo. Considero um soturno pobre-diabo o sujeito que não consegue ser ridículo de vez em quando”. Quando os críticos de teatro Paulo Francis e Henrique Oscar revelaram desgosto pela peça, Nelson disse: “Francis pula de um livro para o outro como uma gazela! Eu li muito mais do que ele”; e, para Oscar, “Leonardo da Vinci está morto, mas Henrique Oscar viverá para sempre, porque a burrice é eterna”. O erro é do replay Nos anos 1960, Nelson participou de um programa chamado Grande Resenha Facit, provavelmente a primeira mesa-redonda da TV brasileira. Um dos momentos mais memoráveis deu-se por conta da estreia do videoteipe – o famoso replay. Em um acalorado debate sobre um pênalti não marcado contra o Fluminense em um Fla-Flu, um dos apresentadores, para encerrar as dúvidas, mandou rodar o teipe. Ao ver o lance na televisão, todos concordaram: foi pênalti. Menos Nelson, que pediu a palavra e decretou: “Se o videoteipe diz que foi pênalti, pior para o videoteipe. O videoteipe é burro. E é só”.


20 Ecos da Leitura

Eco

Se você quiser conhecer os tabus de alguma sociedade, investigue aquilo que ela proíbe. A lista de livros censurados por agredir alguma moral vigente é enorme – até "Harry Potter" já foi proibido, nos Emirados Árabes, por incitar a bruxaria. “Pornográfico!”, talvez seja a acusação número um. Selecionamos alguns casos de obras que, assim como "O Casamento", foram tiradas de circulação. "Feliz Ano Novo", de Rubem Fonseca A coletânea de contos do mineiro Zé Rubem, autor que já passou pelo clube, foi censurada em 1976, um ano após seu lançamento. Ex-policial, Fonseca conhecia a dura realidade dos centros urbanos, e a descrevia de forma direta, em linguagem que ficou conhecida como brutalista. O Ministro da Justiça de Geisel não gostou, censurando-o por atentar contra a moral e os bons costumes. Um senador chegou a dizer que se tratava de "pornografia pura", e pregou a prisão do autor. "A Crucificação Rosada", de Henry Miller Os adjetivos "pornográfico" e "machista" também serviram para rotular Henry Miller ao longo de sua trajetória como escritor. "Sexus", "Plexus" e "Nexus", os livros que compõem a trilogia "A Crucificação Rosada", são autobiográficos, e narram as aventuras sexuais e literárias de Miller em meio à boemia nova-iorquina dos anos 20 e 30. Até 1968, praticamente todas as suas obras estavam censuradas no Brasil – eram vendidos apenas em inglês, e por baixo do balcão.


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"Lolita", de Vladimir Nabokov Rejeitado por várias editoras, o clássico conta a história de Humbert, um professor quarentão que se apaixona por sua enteada, de doze anos de idade, e vive com ela uma relação amorosa e erótica. Publicado em 1955, o romance teve todas as suas cópias apreendidas no mesmo ano, e foi proibido em diversos países. O editor do Sunday Times, John Gordon, chegou a descrevê-lo como “o livro mais sujo” que leu. "Madame Bovary", de Gustave Flaubert Se um adultério chegava à capa dos jornais em 1930, o que dizer de 1857? Avançada para os padrões da época, a fictícia madame Bovary trai seu marido e se entrega ao consumismo desenfreado. O romance não chegou a ser proibido, mas causou furor na época, com o autor sendo levado a julgamento por ofender a moral e a religião. Absolvido, Flaubert declarou no tribunal: “Emma Bovary sou eu”. "O Crime do Padre Amaro", de Eça De Queiroz Publicada em 1875, a obra denuncia a corrupção dos padres que manipulavam a população em favor da elite. Além disso, gerou grandes protestos dentro da Igreja Católica por ir de encontro ao celibato clerical. Foi proibido em salas de aula de todo o país. Nelson Rodrigues bebeu dessa fonte: ao lado de Machado e Dostoiévski, Eça era um de seus autores favoritos.




24 Ecos da Leitura

Estรก caprichando, o Fluminense estรก caprichando


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- Ô Nelson, tudo bem? E aquele nosso time, como vai? Com um tapinha nas costas, Nelson era frequentemente abordado por alguns “desconhecidos íntimos”, como ele chamava, pessoas que liam suas crônicas e vinham falar com ele quando o encontravam pelas ruas do Rio de Janeiro. – Está caprichando, o Fluminense está caprichando. Na década de cinquenta, Nelson Rodrigues aventurou-se na crônica futebolística – época em que a maior parte dos jornais já dedicava uma seção ao esporte. Mas Nelson entrou em cena e levou ao gênero a dramaticidade e a força de suas peças, transformando o futebol em enredo e os jogadores em personagens. “Nos seus textos, os jogos tinham algo de épico e os jogadores eram quase que cavaleiros andantes”, conta Ruy Castro. Foi ele que deu apelidos aos jogadores, que criou a mística do “Fla-Flu”, que levou a seleção brasileira para a literatura. Aventurou-se até a inserir alguns elementos de ficção em suas crônicas: Sobrenatural de Almeida talvez seja o mais célebre dos tipos criados pelo cronista. Sempre que algo inexplicável acontecia – um gol improvável, a derrota de um time muito superior, uma falta inexistente – Nelson culpava o Sobrenatural de Almeida. Em texto publicado em 1968 para o jornal O Globo, Nelson explicava: “Amigos, dizia Horácio que há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. Está aí uma clara alusão ao Sobrenatural de Almeida. Se Horácio fosse torcedor rubro-negro diria a mesma coisa, por outras palavras: ‘Há coisas na vida do Flamengo que só o Sobrenatural de Almeida explica’”. Sua relevância para o gênero é tamanha que, ainda hoje, é considerado por muitos o principal cronista esportivo da história do país. Virou personagem do romance O Drible, lançado em 2013 pelo mineiro Sergio Rodrigues, curador da TAG em fevereiro de 2016, e que, apesar do sobrenome, não possui parentesco com Nelson. O Juiz Ladrão, Freud no Futebol, A Divina Goleada, A Cusparada Metafísica, O Quadrúpede de 28 Patas, Garrincha não Pensa, O Pelé Branco foram algumas das centenas de crônicas escritas por ele.


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Espaรงo do Leitor Um dia desses, entramos no Espaรงo do Associado, no Facebook, e nos deparamos com um texto da Kyra Piscitelli, de Curitiba, que nos emocionou.


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UMA SURPRESA LITERÁRIA FAZ A PAZ Quando perdi minha mãe, em janeiro de 2015, todo mundo vinha com um conselho para me dar. Entre recomendações de remédios, dicas sobre economia e palpites de como seria impossível eu me recuperar sem ajuda profissional, eu decidi seguir meu coração. Não tomei nada, fiquei lúcida e fui escrever para a minha mãe. Meu remédio foi fazer o que me desse prazer. Além de viagens, eu busquei na literatura minha terapia. Assim surgiu a TAG Livros. No meio desse ano confuso, conturbado e de recomeço. Uma amiga antiga, dessas irmãs que a vida nos presenteia, indicou-me a TAG. Falou de como funcionava, e não precisou contar muito para que eu decidisse assinar. Ela mora em Curitiba e eu em São Paulo. E a TAG virou mais um laço entre nós, uma forma de encurtar a distância física. Mês a mês, debatemos os livros e as expectativas para o próximo. A ideia de unir a surpresa à literatura atraiu-me de cara. Poder ter um livro, que viesse até mim sem escolha, para ser descoberto – é algo incrível. Quantos livros pensamos em ler e não lemos? Quantos deixamos de ler e nos surpreender? Quantos gêneros cabem em uma vida? Hoje, moro com uma amiga, e ela conhece bem a minha felicidade quando a caixinha mágica chega. Vem sempre feliz me contar que chegou a “minha surpresa literária do mês”. Já em 2016, posso dizer que a TAG foi um dos motivos que alegrou meu pesadelo de 2015. Foi uma das minhas terapias, deu-me motivos para esperar e sorrir. Esse é o poder dos livros. A melhor terapia, da qual não quero ter alta nunca.


A PRÓXIMA INDICAÇÃO O ritmo e o estilo, que simulam a velocidade e o atordoamento adolescentes, são muito bons. A leitura é uma experiência empolgante, que não necessita dos recursos fáceis dos sustos e medos característicos da literatura comercial contemporânea. –Maria Rita Kehl FOTO: Damião A. Francisco

Situada durante a primeira onda de expansão de Dublin, no final dos anos sessenta, a obra retrata um ano na vida de um menino de dez anos. Um ponto que encanta os leitores é o modo como o autor logra inserir uma voz pueril para narrar a história – um garoto comum, narrando situações comuns do seu dia a dia. Com esse cenário simples, o livro exalta a magia, o significado e a gravidade inerentes às provocações entre as crianças, as “panelinhas” infantis, os pequenos furtos e até a forma como as crianças relacionam-se com os pais. Vencedor do Man Booker Prize, o que impressiona é o realismo psicológico que o autor irlandês confere a seus personagens, levando o leitor a relembrar a própria infância. Por esse motivo, reservamos a obra deste mês para nosso Especial Dia das Crianças. Sim, isso mesmo: em setembro. No próximo kit, você entenderá por quê.


Esta é nossa coleção do primeiro semestre de 2016. Caso queira adquirir algum kit passado, basta entrar em nossa loja virtual através do site www.taglivros.com.br!


Em cada censura hå uma ponta de verdade. – Anne Frank

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