Jan2019 "A velocidade da luz" - Curadoria

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A velocidade da luz


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Ao Leitor Quando A velocidade da luz, de Javier Cercas, passou de

mão em mão pela equipe da TAG durante o processo de seleção do livro a ser enviado, as reações foram unânimes: sentimos que estávamos diante de uma grande obra. Abrindo o time de curadores em 2019, João Carrascoza presenteou os associados da TAG com um posfácio exclusivo, no qual conta sobre a ocasião em que conheceu Cercas durante uma edição da Flip, anos atrás. A velocidade da luz resultou em uma epifania que permitiu a Carrascoza "a leitura de um trecho do próprio futuro", como tão poeticamente escreveu. Nessa primeira edição de 2019 apresentamos novidades na revista: além de um novo projeto gráfico, aprofundamos o teor de crítica literária da seção "Leia depois de ler" e reservamos um espaço à ficção, publicando um miniconto inédito e exclusivo escrito por Tobias Carvalho, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura em 2018. Também enviamos, como presente, uma Agenda Literária que homenageia doze grandes escritores da literatura brasileira - como Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade. Javier Cercas, autor deste mês, profetizou: a literatura não oferece respostas. Kafka questiona: Josef K. é inocente ou culpado? Machado: Capitu traiu Bentinho? Cervantes: Dom Quixote está louco ou não? Como demonstram tais escritores, talvez a grande literatura seja aquela que gera dúvidas e paradoxos. Desejamos que em 2019 nossos associados possam criar seus próprios universos, formulando significados únicos às palavras e fugindo de respostas ditas como certas ou de verdades impostas. Boa leitura!


Sumário

A indicação do mês

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O curador João Anzanello Carrascoza Entrevista com João Anzanello Carrascoza O livro indicado A velocidade da luz, de Javier Cercas Entrevista com Javier Cercas


Ecos da leitura

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Caçada artística: as referências trabalhadas em A velocidade da luz Trauma e literatura

Ficção

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1995, de Tobias Carvalho

Espaço do associado

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Encontros dos associados

Leia depois de ler

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Uma fronteira chamada realidade, de Luciene Azevedo

A próxima indicação

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O curador de fevereiro Julián Fuks


Marcos Vilas Boas

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A indicação do mês


O curador

João Anzanello Carrascoza João Anzanello Carrascoza é um dos nomes notáveis

da literatura brasileira contemporânea. Escritor profícuo – já publicou mais de quarenta livros desde sua estreia, em 1991 – e popular também no exterior, possui uma prosa recheada de poesia, exaltando a complexidade e a beleza do universo íntimo das relações conjugais e familiares – isso sem abdicar de uma escrita relaxada e fluida, que olhos desatentos podem confundir com uma simplicidade não planejada. É autor de obras infantojuvenis, contos, livros de não ficção, romances e adaptações traduzidas para diversos idiomas. Quando não está escrevendo ficção, Carrascoza se dedica ao magistério, dando aulas de publicidade em universidades de São Paulo. A busca do escritor pela beleza poética do simples dialoga com suas raízes: infância e juventude foram ambientadas na pequena Cravinhos, cidade rural no interior de São Paulo. Carrascoza lembra de ficar encantado com as histórias contadas pelo pai e ainda mais com os livros encontrados na biblioteca da mãe. Quando dava por si, andava pela França de Balzac; num passo, estava na antiga Pérsia das Mil e uma noites. Relatando essas aventuras e percalços imaginários para quem quer que estivesse disposto a

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ouvi-lo, percebeu uma capacidade inata de recriação – surgiam assim as primeiras histórias do menino João. Anos depois, um pouco mais desenvolvido como leitor, começou a elaborar as primeiras poesias, embalado por Castro Alves, Alvares de Azevedo e Carlos Drummond de Andrade. Assumia, assim, seu compromisso permanente com a literatura, e nunca mais deixou de escrever. Aos dezessete anos partiu para a capital e, para conseguir se manter financeiramente e perseguir o sonho de ser escritor, estudou e formou-se publicitário, sendo redator por muitos anos. Mais tarde, seguiu carreira acadêmica e até hoje leciona na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), pela qual é mestre e doutor, e na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “A publicidade foi estratégica porque era um jeito de mostrar as primeiras histórias. Você precisa construir personagens, enredo...”. O contato com o campo publicitário não só é percebido em sua obra ficcional – ele já mencionou que usa “a rapidez da propaganda para deixar o texto literário menos gorduroso e a literatura para não fazer propaganda convencional” – como também proporcionou diversos livros dedicados à publicidade e à comunicação em geral. Se economiza nas palavras para expressar-se com precisão, o que não falta na literatura de Carrascoza é sensibilidade para escolhê-las. E

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por muitos anos, o escritor esforçou-se em aperfeiçoar sua técnica nos formatos que mais a privilegiariam. De 1991 a 2013, dedicou-se a obras infanto-juvenis e volumes de contos, conquistando não apenas prêmios e respaldo da crítica especializada, mas um olhar cada vez mais singelo e sensível da realidade que o rodeia; um lirismo que brota cada vez mais natural. Destacam-se, entre as produções que abarcam o período, As flores do lado de baixo (1991) – infantojuvenil que marca sua estreia –, Hotel solidão (1994) – vencedora do Concurso Nacional de Contos do Paraná, que premiou no passado nomes como Clarice Lispector e Rubem Fonseca –, O vaso azul (1998), Duas tardes (2002), O volume do silêncio (2006) e Aquela água toda (2012), vencedor do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Em 2013, já internacionalmente reconhecido e multipremiado, Carrascoza permitiu-se uma nova aventura literária. Aos 7 e aos 40 marca não apenas sua estreia no romance, mas também a proposta de uma estrutura mais ousada, que logo de cara desafia o gênero. Em capítulos intercalados e independentes, são contadas duas histórias simultaneamente, diferentes “quadros de sentimentos” correspondentes a momentos distintos da vida do protagonista. Nos capítulos ímpares, seguimos os relatos em primeira pessoa: ingênuos, próprios de quem começa a descobrir a vida e as letras. Nos pares, acompanhamos


as crises de um homem de quarenta anos, refletida por uma linguagem mais realista e desencantada com o mundo adulto. Após essa elogiada estreia, Carrascoza continuou escrevendo romances, apostando, entretanto, em uma prosa de estrutura mais tradicional. Trilogia do adeus (2017) foi seu último lançamento no gênero e Elegia do irmão, como o autor nos antecipou em entrevista exclusiva, está previsto para o primeiro semestre de 2019. Aqueles que ainda não conhecem os escritos de Carrascoza terão neste

kit a oportunidade ímpar de apreciar sua capacidade narrativa: o escritor gentilmente aceitou a tarefa de elaborar um posfácio na edição de A velocidade da luz que você recebe. Nesse relato recheado do seu característico lirismo, Carrascoza não apenas argumenta que o romance de Javier Cercas dialoga com temáticas que lhe são “caras como leitor da realidade e escritor de ficção”, mas também revela uma coincidência inesperada do nosso curador com a obra. Porém, cuidado: para não antecipar os eventos da trama, leia o texto apenas ao terminar a obra!

Marcos Vilas Boas

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Entrevista com

João Anzanello Carrascoza TAG - Quando e como você começou a escrever literatura? João Anzanello Carrascoza - Comecei a escrever literatura no instante em que, já alfabetizado, li os primeiros livros de poesias e contos que havia em casa, na estante de minha mãe. A leitura é o lado de dentro da escrita, assim como a escrita é o lado de fora da leitura. Mas quando li esses primeiros livros, eu apenas escrevi em meu ser as his-

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tórias contidas neles – até que, aos dezesseis anos, comecei a escrever as histórias que, vindas de mim, aspiravam à exterioridade.

Além de escritor, você também é professor. De que modo essas atividades se complementam? Carrascoza - De várias maneiras. Mas a que mais me entusiasma é que tanto o professor quanto o escritor são e sempre serão aprendizes do


“Tornei-me escritor não porque tenha muito o que contar, mas porque, como leitor, não posso me calar.” humano. Ao mesmo tempo em que, no ato de se expor, partilham o que aprenderam, descobrem também o seu próprio jeito de ensinar. Tornei-me professor não porque fosse portador de saberes, mas, sim, para ir ao encontro de novos e velhos saberes. Tornei-me escritor não porque tenha muito o que contar, mas porque leio ininterruptamente, e, como leitor, não posso me calar.

Assim como a TAG, muitos clubes de leitura surgiram, reconfigurando a noção de comunidade literária. Como você avalia o cenário literário e editorial no Brasil atualmente? Carrascoza - Vejo um movimento de expansão e contração simultâneo, como uma respiração. Por um lado, o renascimento dos clubes de leitura e de livro (com propostas de novas experiências, como a TAG), a facilidade de publicação de livros impressos ou e-books, a proliferação de eventos e prêmios literários, a elevação da qualidade do livro produzido pelas pequenas edito-

ras, o estudo progressivo da obra de escritores brasileiros contemporâneos nas universidades. Há, na outra mão, a redução do volume de obras lançadas pelas grandes editoras, o desaparecimento dos amplos espaços na imprensa para o exercício da crítica literária, a falta de programas governamentais de compra de livros ou os seus escassos e engessados editais, a crise de solvência das livrarias físicas – e outros impasses em curso, que vão exigir a reestruturação do mercado editorial e, consequentemente, afetar o habitus do campo literário.

Por que escolheu A velocidade da luz para indicar ao clube? Carrascoza - Pela potência literária, que captura a nossa atenção, pela complexidade dos personagens e pelo esmerado trabalho de Cercas com a linguagem. Mas também pela progressão contagiante da trama, pelas reviravoltas inesperadas e pela neblina que envolve a história de Rodney Falk no Vietnã, cujo passado enigmático pede para ser

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desvelado. A imprevisibilidade do desfecho, as reflexões sobre o poder da literatura e a ética do escritor merecem igualmente realce – além dos traços que já enfatizei no posfácio desta edição, exclusiva para os associados da TAG.

O livro provoca inúmeras emoções no leitor. O que lembra de ter sentido ou pensado durante sua primeira leitura da obra? Carrascoza - Sim, o livro continuamente arrasta o leitor a experimentar sentimentos díspares, alguns nobres e outros nem tanto. Uma obra que se afasta da superfície e desce aos subterrâneos da condição humana sempre haverá de expressar as nossas contradições, desnaturalizando o nosso olhar para os fatos cotidianos e, sem dúvida, produzindo em nós compaixão pelos nossos semelhantes.

Que semelhanças e diferenças você diria haver entre seu estilo narrativo e o de Cercas? Carrascoza - Respondo me apoiando nas obsessões que tenho como autor e em algumas observações como leitor. Primeiro, as semelhanças: a desterritorialização da realidade e da ficção; o nosso espanto diante da lógica incompreensível do destino; a escrita como um ato político (quase sempre silencioso); o esforço pelo depuramento literário. As diferenças: os nossos temas; a precisão dos recursos espaciais

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mobilizados por Cercas a fim de produzir os efeitos de sentido do real em oposição aos meus espaços imaginários; a nossa quadratura narrativa (Cercas prefere a câmera em panorâmica, seguida de zoom in; eu parto sempre do zoom in e fecho no close).

Para os leitores que gostarem do romance de Cercas, quais são os escritores ou outros livros que recomendaria? Carrascoza - Eu indicaria Lin-

coln no limbo, de George Saunders, Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo, Passagem para o Ocidente, de Moshin Hamid, O deus das pequenas coisas, de Arundhati Roy, Trem para Paquistão, de Khushwant Singh e A mulher dos pés descalços, de Scholastique Mukasonga.

Você é considerado um dos escritores contemporâneos mais prestigiados da literatura brasileira contemporânea. Para o narrador de A velocidade da luz, o papel do escritor na sociedade e a influência da fama em sua carreira são discussões importantes. Como você se posiciona a respeito? Carrascoza - Penso que o escritor, recordando os versos de Drummond, deve se ater ao tempo presente, à vida presente. Se ele tem mesmo a habilidade, ou o "vício", como disse Rodney Falk, personagem de A velocidade da luz, de ver


a realidade, ou seja, se ele pode ler o texto que o mundo está compondo à sua frente, deve então escrever o que extrai dessa leitura – portanto, um compromisso consigo e com seus contemporâneos. O "vício" de ver a realidade não é uma habilidade única do escritor, ou dos artistas em geral, mas de todos que abrem os olhos de seus olhos (para usar uma expressão do poeta e. e. cummings).

Após muitos anos escrevendo contos e novelas, você publicou seu primeiro romance, Aos 7 e aos 40 (2013). Em que momento percebeu que deveria escrevê-lo? Carrascoza - Precisamente quando deixei de atuar em publicidade, depois de longos anos atuando diariamente em agências de propaganda na criação de campanhas. Eu precisava de amplitude de tempo para me dedicar intensivamente a um romance. Embora seja um romance, Aos 7 e aos 40 exprimiu a síntese de minha trajetória literária até aquele momento: reunia a ótica da criança frente ao desconhecido e a visada do adulto que rememora a infância, ciente do "claro enigma" que é o mundo. A estrutura da narrativa é

bi fragmentada, os capítulos podem ser lidos como unidades autônomas. Só fui me afastar dessa forma mais própria de coletâneas de contos ao publicar o romance Caderno de um ausente, quando então me desafiei a escrever um épico familiar em três tempos, o que exigiu uma narrativa de maior extensão.

Você poderia compartilhar conosco um pouco sobre seu próximo livro? Carrascoza - As relações de afeto que pautam as famílias me inquietam e me fascinam – e elas aparecem em parte expressiva de minha obra, em especial aquelas protagonizadas por pais e filhos. No entanto, pouco explorei o viver conjugado entre irmãos, únicos seres (às vezes) capazes de um entendimento mútuo, por atravessarem as mesmas águas da existência. Irmãos costumam ser as vigas-mestras de um mundo íntimo, só por eles acessado, e que sobrevive solitariamente se uma delas desaba. Daí porque meu novo romance, Elegia do irmão, a ser em março, trazer a história de uma jovem contada pelo seu único irmão.

“As relações de afeto que pautam as famílias me inquietam e me fascinam.” A indicação do mês

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O livro indicado

A velocidade da luz de Javier Cercas Antes de se tornar um dos escritores espanhóis mais ce-

lebrados da contemporaneidade, traduzido para trinta línguas, reconhecido por explorar de maneira singular os limites entre ficção e realidade e por renovar a produção literária em seu país, Javier Cercas sonhava em ser um escritor pós-moderno norte-americano. Ele tinha 25 anos e não publicara um livro sequer, mas isso pouco importava. Alimentando o desejo juvenil de mudar os rumos da literatura, partiu para os Estados Unidos para tentar se tornar o próximo Philip Roth, Saul Bellow ou John Updike. A viagem, que durou dois anos e renderia material para alguns romances, trouxe ao autor também uma má notícia, percebida de imediato, mas tragada lentamente ao longo do tempo: ele seria para sempre um escritor espanhol. É mais correto que se diga lentamente porque El móvil (1987) e El inquilino (1989), obras que marcaram sua discreta estreia no universo literário, configuram-se, de acordo com Cercas, como obras “verdadeiramente pós-modernas”: fantásticas, repletas de reflexões metaliterárias, elas escancaram uma “visão da lite-

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ratura como jogo”, dando pouca ou nenhuma importância ao coletivo e ao passado. Mas, como a experiência em solo americano já havia antecipado, Cercas foi descobrindo carregar consigo, de maneira autêntica e em muitos níveis, pedaços da história da Espanha, perguntas nunca respondidas sobre suas guerras, importantes transições políticas, seus heróis, falsos heróis e anti-heróis. Maturando em idade e literatura, começou a perceber que seu presente estava agarrado ao passado – e este, com naturalidade, passou a virar tema fundamental em sua obra.

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Javier Cercas Mena nasceu na pequena cidade de Ibahernando, em 1962, e mudou-se ainda criança para Girona, cidade catalã que recebia um contingente de espanhóis pobres advindos do sul e sudoeste da Espanha. Descendente de uma família de ambos os lados franquista, cresceu não apenas sentindo de perto a ditadura (um período do qual afirma não querer lembrar nem do cheiro) como também ouvindo a história de um tio materno, chamado Manuel, que morrera defendendo o exército de Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola. O fato de ele pertencer ao “lado equi-


vocado da história”, mesmo acreditando estar a serviço de algo nobre, combinado com a precoce morte e a encarnação de todo o horror de uma guerra, fez do tio um mito familiar sombrio e envolto em questões morais complexas. Manuel virou o protagonista de El monarca de las sombras (2017), romance mais recente de Cercas e ainda não lançado no Brasil. Mas o interesse do escritor na “fronteira entre a moral e a política” está no cerne de praticamente todos os seus romances. Não há uma regra ou um padrão definidos, mas é assim que Cercas parece gostar de operar: sempre incerto, sempre ambíguo. Em entrevistas, verifica-se um autor que reivindica com paixão a literatura mais liberta e flexível possível. Compara seus livros a um “banquete com muitos pratos”, em que cabem elementos do ensaio, crônica, ficção e não ficção. Um espaço do qual a única verdade que se deve extrair é a verdade literária, comprometida somente com o universo da própria obra e do que pode ser dela extraído. O ponto de virada de sua carreira veio com Soldados de Salamina (2001), romance que elevou Cercas ao grupo dos grandes escritores da atualidade. Hoje um reconhecido best-seller adaptado cinematograficamente, a obra lhe trouxe fama, dinheiro e também marcou o estilo que desenvolveria ao longo dos anos: um complexo diálogo entre o histórico e o fictício, personagens

reais ficcionalizados e um narrador homônimo que se confunde com o próprio autor. Na história de Soldados de salamina, esse narrador investiga um quase esquecido episódio da Guerra Civil, no qual Rafael Sánchez Mazas, fundador da franquista Falange Espanhola, é milagrosamente salvo pela piedade de um soldado republicano. Decidido a descobrir a verdade sobre o curioso momento histórico, o narrador vai desvelando seu processo de investigação e, concomitantemente, a construção narrativa da obra – a reflexão metaliterária, como nos primeiros livros, é elemento permanente na escrita de Cercas. Soldados de Salamina caiu nas graças de escritores como Susan Sontag e Mario Vargas Llosa e tornou-se um surpreendente best-seller – hoje suas vendas já ultrapassam a casa do milhão. O peso da fama foi sentido na mesma intensidade: além da pressão externa (por um tempo, virou o alvo preferido de duvidosos escândalos divulgados por jornais), Cercas precisou lidar com as próprias inseguranças como escritor. Para ele, existe “algo degradante e estúpido” na fama. “Ou você se sente falso, ou começa a sentir que é Cervantes. Eu estava assustado, porque sabemos dos escritores que foram destruídos por ela”, afirmou ao The Guardian. Nesse turbilhão de angústias, encontrou nas lembranças da experiência nos Estados Unidos, quando ainda era um jovem pós-moderno, um personagem

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controverso e uma história que lhe permitiria exorcizar o sofrimento e seguir em frente. O resultado foi A velocidade da luz.

“Como Soldados de Salamina, [A velocidade da luz] é uma intrincada exploração masculina da culpa, da monstruosidade e da autenticidade, da impossibilidade da redenção e da plausibilidade do auto perdão.” – The Guardian

O romance apresenta novamente um narrador-personagem semelhante ao autor. Ele nos conta que, no final dos anos 1980, na Espanha, é casualmente convidado por um antigo professor para dar aulas de espanhol em Urbana, cidadezinha nos Estados Unidos. Movido por sua vontade de se tornar um escritor e encontrar inspiração para seu primeiro romance, ele aceita o convite. Por um

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acaso ainda maior – ou pelo menos é o que ele acredita –, lá ele passa a dividir o quarto com um homem soturno: seu nome é Rodney Falk, um veterano da guerra do Vietnã. A partir do encontro, os personagens dão início a uma relação que começa bastante fria, mas que vai se desenvolvendo quando os dois descobrem a literatura como paixão em comum. A figura enigmática de Rodney, que em um certo momento simplesmente desaparece sem nenhuma explicação, vai desvelando uma obsessão no narrador. Este descobre, por meio de cartas enviadas por Falk ao pai quando esteve na guerra, um passado brutal, cheio de remorsos e traumas de quem vivenciou – e perpetuou – o horror. Movido por inquietantes pontos em aberto na história de Rodney, o narrador decide escrever sobre o veterano – não sem encontrar percalços e descobrir que também carrega inúmeras culpas e arrependimentos. Cercas não é adepto do termo, mas A velocidade da luz poderia ser descrita como uma autoficção. O escritor elabora uma narrativa que resgata aspectos da própria vida, mas é atravessada por diversos elementos imaginados, como se a obra fosse o resultado da pergunta: “como minha vida teria sido se...?”. Ainda que a maioria dos eventos reais sejam verificáveis, não cabe trazê-los aqui, e os motivos são óbvios: primeiro, será dever do leitor


conhecê-los na obra, eliminando o risco dos spoilers. Além disso, alguns fatos são imprecisos. Por fim, o objetivo de Cercas certamente não é traçar esses limites, e sim potencializá-los em uma obra literária cuja “verdade” é perseguida por meio de reflexões de todo o tipo ao longo de uma engenhosa construção narrativa. Como bem percebeu João Carrascoza no posfácio exclusivo nesta edição da TAG, o leitor descobrirá muitos temas que reluzem em meio às descrições do narrador de A velocidade da luz, como as relações familiares, o poder da literatura, a força enlouquecedora da guerra, o preço da fama, a ética do escritor e tantos outros. Apesar de não ter causado o mesmo frisson internacional de Soldados de Salamina, A velocidade da luz

recebeu uma avaliação positiva da crítica, passando incólume na prova de fogo que sempre sobrevém um grande sucesso. Com a certeza de que não era um escritor falso – e muito menos Cervantes –, Cercas deu sequência a uma carreira até agora bastante exitosa. Além de crônicas, artigos, ensaios e colunas para o jornal El País, vem publicando romances, entre os quais se destacam: Anatomia de um instante (2009), que orbita o frustrado golpe de estado da Espanha de 1981 e seus personagens decisivos; As leis da fronteira (2012), no qual volta-se à denúncia da desigualdade e do mito da delinquência juvenil espanhola e O impostor (2014), retrato da vida de Enric Marco, protagonista de uma das maiores e mais longevas mentiras dos séculos XX e XXI.

“Quando escrevo um livro é para solucionar um problema que coloquei a mim próprio, como um teorema. Ou seja, por perplexidade. Claro que, no final, não há solução. Ou melhor, a solução é o próprio processo do romance. Porém o essencial escapa-nos sempre.” – Javier Cercas

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Entrevista com

Javier Cercas

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TAG - A respeito de outros títulos de sua obra, você costuma afirmar que a escrita partiu da necessidade de compreender um problema. Qual questionamento o levou a escrever A velocidade da luz?

bucólica e inofensiva. Bem, essa imagem está no livro e talvez seja a sua semente. Quanto ao resto, no romance também tentei entender o que significa o sucesso literário e, acima de tudo, tentei digeri-lo.

Javier Cercas - Eu acho que, desde o início, estava tentando entender uma imagem. Em Urbana, Illinois, onde o romance acontece, tive um parceiro que esteve na guerra no Vietnã e que às vezes me contava sobre sua terrível experiência bélica. E um dia, encontrei-o sentado em um banco, vendo algumas crianças brincarem. Eu fiquei olhando para ele de longe por algum tempo, e me perguntei o que aquele homem que tinha visto horrores na guerra estava pensando, por que ele estava lá, fascinado por aquela cena

Em um momento do livro, Rodney Falk sentencia: “Falar muito de si mesmo é a melhor maneira de se esconder” e, em seguida, “num romance, o que não se conta é sempre mais importante do que o que se conta”. Você concorda com ele?

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Cercas - Absolutamente. A segunda frase é uma das primeiras regras de um romance, a arte da elipse, que por sua vez é a arte de ceder um espaço ao leitor para que construa o livro à sua própria maneira. Quanto ao primeiro, bem, em meus


livros há sempre um personagem que se parece muito comigo, mas esse não sou eu, mas uma máscara que eu coloco para dizer o que eu quero dizer. Nesse sentido, me escondo quando falo de mim mesmo, da minha própria pessoa. Mas, por outro lado, lembre-se que "pessoa" significa "máscara" em latim, e que a máscara é o que nos esconde, mas acima de tudo o que nos revela (se eu colocar uma máscara de pirata, estou me escondendo atrás dela, mas também estou revelando meu humor briguento e bélico). No fundo, esse Javier Cercas dos meus livros, embora às vezes muito longe do que eu sou, talvez seja mais eu do que eu mesmo, uma versão mais refinada de mim, pela mesma razão pela qual Proust dizia que o verdadeiro eu do escritor não é o eu social, mas o eu que se manifesta nos livros. Talvez isso seja a literatura: a arte de revelar enquanto se esconde e de esconder enquanto se revela. Como foi para você se relacionar com o sucesso de Soldados de Salamina (2001) e dar continuidade à sua carreira literária? Cercas - Não foi fácil. De fato, em algum momento achei que não iria mais escrever. Na verdade, talvez a principal razão para escrever A velocidade da luz fosse provar para mim mesmo que, apesar do sucesso, eu ainda era um escritor e podia continuar escrevendo. Enfim, acho que, absurdamente, me senti culpado, como se tivesse feito algo errado.

Por um lado, esse foi o fruto da minha total inexperiência da vida literária (sempre quis ser escritor, mas mal conhecia o mundo literário); mas, por outro lado, após um grande sucesso, muitos escritores deixam de escrever, ou pelo menos deixam de publicar romances. Na América Latina, há o caso de Juan Rulfo. Na América do Norte, Salinger. Na Espanha, Rafael Sánchez Ferlosio. O sucesso pode destruir pessoas e, de fato, isso acontece constantemente. É algo que normalmente não é dito, talvez porque não se saiba como dizer, mas é assim. Eu não queria que o sucesso me destruísse. Podemos dizer que o romance é sobre um anti herói? Por quê? Cercas - Porque ele é incapaz de dizer “não” quando deveria ter feito isso. Eu acho que muitos dos meus livros são em grande parte uma exploração do heroísmo, e os heróis dos meus livros são tipos que, quando tudo conspira para se dizer “sim”, dizem “não” (nesse sentido eles são uma variante do "homem rebelde", de Camus, ou do "inimigo do povo", de Ibsen). O problema de Rodney é que ele é incapaz de dizer “não” e acaba pagando por isso. Claro, dizendo “não” quando todos ao seu redor dizem que “sim” é muito difícil – talvez a coisa mais difícil do mundo – mas ninguém disse que ser um herói é fácil. Caso contrário, dizer “não” quando o mundo inteiro diz “sim” não faz de ninguém um herói, mas é a primeira condição para sê-lo.

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d a ç a C tica

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Ecos da leitura


a d

: a

as referências trabalhadas em A velocidade da luz Leitor voraz, Javier Cercas é também um amante do cinema, da poesia e da música e, frequentemente, ressalta a importância desses campos da arte na construção de seus livros. Em diversos momentos de A velocidade da luz, o escritor aproveitou para relembrar grandes artistas que, além de inspirarem seu trabalho, ilustraram sua vivência com o veterano Rodney Falk. Selecionamos para este Eco alguns dos nomes mencionados, citações, obras principais e dois álbuns para você curtir enquanto aprecia o romance de Cercas.

Ecos da leitura

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a m e n Ci

Pedro Almodóva diretor espanhol

Marcelo Cuartero, ex-professor do narrador, comenta que só ouviu falar de Urbana por causa de Quanto mais quente melhor (1959), longa metragem estrelando Jack Lemmon e Tony Curtis.

“Então, Urbana é a tal cidade gelada aonde eles nunca chegam, o que dá a entender que Urbana não deve ser uma maravilha ou, no mínimo, que deve ser o oposto da Flórida, supondo que a Flórida seja uma maravilha.”

John Wayne, ator americano

poesia

O romancista e poeta inglês Malcolm Lowry (1909-1957) escreveu um poema logo após o sucesso estrondoso de sua obra prima, À Sombra do Vulcão (1945). Esse poema é citado em um importante momento da obra. É claro que não vamos dar spoiler!

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Ecos da leitura

J.V. Foix, poeta catalão

Arnault Daniel, trovador do

século XIII, divulgado e traduzido no Brasil por Augusto de Campos, foi chamado por Dante Alighieri de “o melhor criador” e ainda virou personagem de A divina comédia.


litera

ar,

Ernest Hemingway é o escritor favorito de Rodney Falk. Além disso, concluiu que

“se você reparar bem, o Hemingway é muito útil como detector de idiotas: os idiotas nunca gostam dele.”

Mercè Rodoreda,

escritora catalã cujo romance A praça do diamante (1962) foi enviado pela TAG em dezembro de 2017, é outro ídolo de Rodney.

Escritores admirados por Rodney: Henry David Thoreau,

William Faulkner,

Ralph Waldo Emerson,

Tom Wolfe,

autor de Walden (1854)

autor de Natureza (1836)

Nathaniel Hawthorne,

autor de A letra escarlate (1850)

Mark Twain,

autor de As aventuras de Huckleberry Finn (1884)

autor de O som e a fúria (1929)

autor de A fogueira das vaidades (1987)

F. Scott Fitzgerald,

autor de O grande Gatsby (1925)


tura

Os romancistas americanos pós-modernistas preferidos do narrador, quando este chega em Urbana, são: Saul Bellow, autor de As aventuras de Augie March (1953) Philip Roth, autor de Patrimônio (1991), enviado pela TAG em maio de 2015 Bernard Malamud, autor de O barril mágico (1958) John Updike, autor de As bruxas de Eastwick (1984) Flannery O’Connor, autora de Sangue sábio (1952)

Em Urbana, o narrador conheceu os seguintes autores: Stanley Elkin, Robert Coover, John Hawkes, William Gaddis, Richard Brautigan, Harry Mathews e Donald Barthelme, contista americano influenciado por Machado de Assis.

Outros autores mencionados:

Gustave Flaubert,

autor de Madame Bovary (1857)

T. S. Eliot,

autor de Quatro quartetos (1941)

Oscar Wilde,

autor de O retrato de Dorian Gray (1890)

“Há duas tragédias na vida: uma é não conseguir o que se quer. A outra é conseguir.”


Álbuns importantes para a história:

Frank Zappa,

compositor e multi-instrumentista americano

Astral weeks, de Van Morrison Bringing it all back home, de Bob Dylan

Led Zeppelin,

Van Morrison, cantor e compositor britânico

Bob Dylan,

mú si ca

grupo britânico

ZZ Top,

grupo americano

cantor e compositor americano

“Quem não está ocupado em viver está ocupado em morrer” Ecos da leitura

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Trauma e literatura As cartas de Rodney Falk en-

viadas ao pai durante a guerra, seus relatos ao narrador de A velocidade da luz e o comportamento do personagem ao longo do romance indicam que o veterano apresentava sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), que acomete uma grande parcela de ex-combatentes. Esse tipo de perturbação trabalhada literariamente por Javier Cercas foi base criativa para um grande número de autores. Em tom ficcional ou testemunhal, a centralidade do trauma transpassa situações envolvendo guerras, escravidão, genocídio, colonização, encarceramento, etc. As motivações são variadas, mas a ênfase nas consequências psicológicas advindas de infortúnios históricos serve como alicerce narrativo de obras que marcaram a historiografia literária.

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Ecos da leitura

É isto um homem?, obra testemunhal de Primo Levi, talvez seja o livro mais reconhecido dentro desse conjunto de obras marcadas pelo trauma. Na condição de judeu, Levi narra sua experiência nos campos de concentração de Auschwitz. Publicado pela primeira vez no ano de 1947, é possível notar nessa obra, desde o prefácio até a última página, a aposta do escritor em retomar sua humanidade através da escrita. Redigindo sua história de sobrevivência, Levi encontra no leitor um ponto de contato com seus semelhantes, que o faz quebrar a barreira de separação de um sobrevivente dessa terrível vivência com o restante do mundo. Anos mais tarde, em 1990, o escritor moçambicano Mia Couto publica seu livro de contos Cada homem é uma raça. Nas histórias curtas,


os personagens carregam consigo as cicatrizes da colonização. Com histórias ambientadas em um período posterior à independência, a estratégia de reformulação das barbáries históricas se dá de forma emblemática a partir da construção da linguagem. Mia Couto procura valorizar o patrimônio linguístico local, mesclando a língua portuguesa com expressões e dialetos de origem africana em uma tentativa de reconstruir culturalmente aquilo que foi sufocado pelo processo de colonização. A inserção de uma língua menor em termos de poder no seio da língua do colonizador serve como técnica de reajuste histórico, além de uma busca pela libertação dos traumas coloniais. Além de Mia Couto, outros grandes nomes da literatura africana operam essa forma de escrita: Ba Ka Khosa, Pepetela, Paulina Chiziane, Agualusa e Suleiman Cassamo.

do paulista Luiz Alberto Mendes. Publicada em 2001, a obra aborda a conturbada vida do escritor, que passou por reformatórios e presídios. Sem maniqueísmos, Mendes oscila entre a autocrítica pelos seus atos criminosos e o tom de denúncia ao abordar as mazelas das torturas sofridas sistematicamente por obra das autoridades, além, é claro, das terríveis experiências de vida dentro do sistema carcerário. A linguagem do autor também oscila entre a forma objetiva e emocional, criando uma dinâmica narrativa capaz de prender a atenção do leitor do início ao fim da história. Assim como Primo Levi, Luiz Alberto Mendes encontrou na escrita a busca pelo seu restabelecimento em sociedade. Adquirindo gosto pela literatura dentro da prisão, Mendes seguiu cultivando-a fora das grades, aliando-a diretamente ao seu renascimento pessoal.

No Brasil, há uma série de livros em que os transtornos originados de estresse pós-traumático sustentam a narrativa. De caráter ficcional ou testemunhal, diversos autores abordaram o assunto. A saber, Lygia Fagundes Telles, em As meninas, Tabajara Ruas, em O amor de Pedro por João, Bernardo Kucinski, em K. ou, ainda, o famoso Poema sujo, de Ferreira Gullar. Cada obra apresenta de maneira distinta esteticamente os traumas de um momento histórico conturbado individual e coletivamente. Um ótimo exemplo de uma obra inserida nessa vertente é Memórias de um sobrevivente,

A força da literatura, portanto, para esses escritores, está na luta contra o silenciamento de um passado negativamente marcante. Usar a linguagem implica reorganizar o mundo, seja ele pessoal ou coletivo, corrompido por uma experiência perturbadora. No entanto, o transtorno traumático faz parte de um passado que sempre retorna, sendo utópico inferir que a literatura teria a eficácia de curar essa cicatriz. Ainda assim, sua capacidade de memorização alimenta seu teor ético e político ao servir de reflexão para que as barbáries relatadas nunca mais ocorram.

Ecos da da leitura leitura Ecos

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1995

Nesta revista, reservamos um espaço à ficção: um miniconto inédito e exclusivo escrito por Tobias Carvalho.

Tobias Carvalho

nasceu em Porto Alegre em 1995 e é formado em Relações Internacionais pela UFRGS. Seu livro de estreia, As Coisas (Record), foi vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2018 na categoria de contos, tendo como jurados Daniel Galera e Leticia Wierzchowski.

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Ficção Ficção


1995 Certo dia acordei bebê. Não que eu tivesse acordado

qualquer bebê. Acordei eu mesmo, meu rosto bebê, do berço se via o espelho, eu podia reconhecer a mim, eu lembrava da vida inteira, mas é como se, naquele momento, tivesse voltado. Não tentei entender. Minha mãe se espantou com o silêncio daquela manhã, normalmente eu abria um berreiro, e ela estava com a mesma idade que eu tinha ontem, ainda era feliz com meu pai, era mais bonita. Naquele primeiro dia de bebê, ou apenas o primeiro depois de muitos anos, minha mãe me pegou no colo e disse vai ficar tudo bem, meu filho, hoje é um dia novo. Compreendi que eu não podia contar nada, não podia ir atrás das atividades que me interessavam, como os livros, cerveja, os video games, ainda existiam poucos video games. Apesar de ser eu por dentro, por fora era bebê, eu não tinha libido, não tinha energia o suficiente para um dia inteiro, meu cérebro não conseguia se engajar em raciocínios elaborados, apenas não conseguia, e minha mãe trocava minha fralda. Não sabia se voltaria a ser adulto, mas queria desesperadamente voltar a ter a vida que tinha, pois o tempo todo que um bebê tem é algo desesperador e, ao mesmo tempo, uma maravilha. Talvez o pior fosse que eu não me sentia apto a aproveitar esse tempo, a fazer o que quisesse com ele, porque se espera que um bebê experimente com as sílabas, se interesse pelas cores, e não pelo noticiário, e não pela psique humana, não pelas fragilidades do Plano Real. O que me dava medo era me seduzir pela ideia de construir uma vida nova, caso minha adultez não voltasse, o medo era o de escolher outro caminho, de chegar a outro lugar, de ser um adulto diferente, duas vidas quase iguais acumuladas em uma só alma. E se, depois de tudo, eu acordasse bebê? Eu queria voltar, queria estar lá de volta, e, quanto mais o tempo passava, mais eu percebia que teria que esperar muitos anos, anos achando que não conseguiria viver tudo de novo, conhecendo pessoas que já conhecia, vendo filmes pela segunda ou terceira ou quarta vez, e eu queria voltar, precisava voltar, e o pior é que um dia acordei e percebi que tinha voltado.

Ficção

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Encontros

dos associados Uma das melhores partes de

integrar um clube de livros é, sem dúvidas, a possibilidade de discutir e trocar opiniões a respeito de uma obra. Há alguns anos, empolgados com as caixinhas recebidas, nossos leitores tomaram a iniciativa de organizar encontros para complementar a experiência do clube. Assim, os encontros presenciais foram surgindo em diversas cidades do Brasil, das capitais ao interior, de norte a sul. Dessas reuniões da comunidade TAG surgiram inúmeras amizades e até amores. Em 2018, cerca de 500 encontros ocorreram em mais de 90 cidades – imaginem quantas histórias! Quando a TAG ainda era apenas um esboço, lá em 2013, tínhamos muitas expectativas e sonhos, mas seria impossível imaginar que a comuni-

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Espaço do associado

dade de associados teria um papel tão ativo – e afetivo – nessa construção. Em 2015, foi criado o primeiro grupo de Facebook, seguido pelos grupos de WhatsApp. Em 2016, o nosso aplicativo foi desenvolvido, ampliando ainda mais as possibilidades de discussões e debates sobre literatura. Hoje, em 2019, não é mais possível imaginar a experiência TAG sem a presença da comunidade e dos encontros. Por isso, em uma homenagem a todos que estão provando que a literatura também pode ser conversa de bar, compartilhamos alguns dos registros que recebemos desses momentos.


É muito simples ficar por dentro dos encontros que vão acontecer em sua cidade: primeiro, baixe o aplicativo da TAG, procurando por “TAG Livros” na App Store ou na Play Store. Abra-o e selecione o segundo ícone no rodapé da página.

NORTE NORDESTE

CENTRO-OESTE

SUDESTE

SUL

Espaço do associado

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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar de forma mais complexa a obra.

Spoiler!

Uma

FRONTEIRA chamada realidade FRONTEIRA Quando abrimos um romance e

lemos algum dos personagens afirmar que é tudo verdade, já sabemos que é “mentira”, pois é isso que significa a ficção: a invenção de um mundo real apenas no universo criado pelas palavras. Mas e se o narrador, que é também personagem, tem muito em comum com o próprio autor? Nossa dúvida diante de A velocidade da luz, do espanhol Javier Cercas, começa aí, pois aos poucos vamos nos dando conta de que estamos lendo uma espécie de relato sobre os anos de formação de um escritor que tem muita semelhança com a trajetória literária do próprio Cercas. O primeiro livro publicado, O inquilino, que passa quase despercebido dos leitores, o estrondoso sucesso de Soldados de Salamina e outros detalhes fa-

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Leia depois de ler

cilmente verificáveis: sua atuação como professor universitário no início da carreira nos Estados Unidos e depois na Espanha, por exemplo. Essa mescla entre a vida do autor e a invenção dela na narrativa é o que vem sendo chamado de autoficção ou, como o próprio narrador afirma, “um sujeito exatamente igual a mim... Parece-se em tudo comigo, mas não sou eu”. As narrativas de Cercas fazem da exploração dessa tensão entre a ficção e o que chamamos de realidade um mote constante. A narrativa começa com o narrador se aclimatando à rotina da universidade americana onde vai dar aulas. Aí também somos apresentados a Rodney Falk, um professor esquisitão, que atuou como soldado na guerra do Vietnã e que se torna uma espécie de duplo do narrador.


Assim como Rodney vive em fuga, assombrado pelo passado, pelo “incidente” (histórico, diga-se de passagem) ocorrido na aldeia vietnamita de My Khe, o narrador se sente um impostor não apenas na literatura, como autor, mas também na vida, diante do sucesso alcançado com as vendas de seu último romance publicado. Cercas é um bom contador de histórias e faz parecer que os leitores estão participando de uma conversa, pois aos poucos vamos tomando pé dos dramas dos personagens, em especial das angústias do narrador diante do desejo de escrever um romance. Se de um lado tudo parece transparente, de outro nos damos conta de que há sempre algo não contado, e esse suspense é mantido até a parte final. Oferecendo ao leitor a oportunidade de acompanhar um pouco os bastidores da escrita, os impasses do escritor ao escrever qualquer história, Cercas está oferecendo também uma reflexão sobre o que é e o que pode ser a literatura. Algumas vezes temos a sensação de que o narrador está desistindo da ficção. Obcecado com a história e o passado de Rodney, investiga nomes, datas e quer atestar o fato: “Os fatos, no entanto, são os fatos; restrinjo-me a eles”. Em muitos momentos, o leitor também se vê

diante dos fatos, pois identificamos referências históricas como a guerra do Vietnã e a proximidade do narrador com Javier Cercas. Mas a relação entre ficção e realidade aqui é ambígua, pois Rodney tal como caracterizado no romance toma emprestadas as características de Randy Ful, um ex-combatente do Vietnã que dividiu com Cercas, o escritor, uma sala na faculdade em que ambos davam aula, tal como aparece em uma crônica escrita por Cercas em 2002. Ainda, Rodney, ou Randy, é também Olalde, um professor universitário personagem de O Inquilino, cuja identidade é motivo de especulação pelo próprio Rodney, personagem de A Velocidade da luz, ao perguntar ao narrador se “o professor pirado do romance”, o primeiro que Cercas escreveu, é ele. Se tudo parece confuso, é porque Cercas parece reconhecer a fragilidade das fronteiras entre o fato e a ficção. Isso é feito menos para apostar em uma oposição entre verdade e mentira e mais em um elogio da literatura como forma de escrutinar o que chamamos de verdade. Ou, como o próprio narrador, já no final, reconciliado com sua história, afirma: “Mentirei em tudo, eu lhe expliquei, mas só para dizer melhor a verdade”.

Luciene Azevedo é professora de Teoria Literária da Universidade Federal da Bahia. Co-organizou o e-book Autoria e escrita criativa (e-galáxia, 2018) e o livro Palavras da Crítica Contemporânea (Paralelo13S, 2017). E-mail: aaluciene@gmail.com

Leia depois de ler

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O curador de fevereiro

Rolex / Tomas Bertelsen

Julián Fuks

“O autor oferece seu olhar sensível para examinar tempos sombrios, descrevendo como a brutalidade repercute na vida das pessoas, seus amores e seus destinos.” A obra que chegará à casa do associado no mês de fevereiro é uma indicação do romancista, contista e crítico literário Julián Fuks. Nascido em São Paulo e filho de argentinos exilados, Fuks é um dos mais prestigiados nomes do cenário da literatura do nosso país e já foi eleito pela revista Granta um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros. Seu romance mais recente, A resistência (2015), foi contemplado com os prêmios Jabuti e José Saramago. Intimamente conectado ao tema do exílio, Fuks indicou um livro que faz dele força motriz do início ao seu fim. Temos como protagonista dessa história um preso político no Uruguai – um homem condenado pela ditadura militar imposta em seu país e que vigorou por mais de uma década. Narrado por diferentes vozes que orbitam a vida do personagem central e escrito por um autor também marcado pela expatriação, esse romance de estrutura original e ambiciosa compõe um quadro de reflexões e sentimentos acerca desse obscuro período com uma propriedade que poucas vezes se testemunhou na história da literatura latino-americana.

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A próxima indicação


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“Em vão nos esforçamos para parecer aquilo que não somos.” – Cristina da Suécia


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