Jul2018 "As últimas testemunhas"

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Ao Leitor Depois de quatro anos de existência, surgiram incontáveis narrativas sobre o que a TAG representa. Se entrevistássemos colaboradores, fundadores, parceiros e, é claro, os associados, focando em suas histórias pessoais em relação ao clube, nunca teríamos concepções iguais. Essa é a premissa do trabalho da autora do livro enviado neste mês. Svetlana Aleksiévitch, jornalista e escritora, refinou ao longo de sua obra uma escrita única, desenvolvida a partir da observação, da entrevista e da exposição das realidades soviética e pós-soviética e apresenta as melhores características narrativas da tradição da literatura russa. Não foi à toa que, em 2015, recebeu o prêmio Nobel. E para manter os projetos especiais do clube no mês de aniversário, pesquisamos vários livros para contemplar os associados e justificar o presente para este julho de 2018. Um livro de Svetlana, ainda inédito no Brasil, chegou às mãos de nossa equipe, tornando a escolha mais fácil. Assim como em 2017, demo-nos ao luxo de realizarmos a própria curadoria. Acreditamos ser interessante enviar um livro inédito de autoria de uma mulher vencedora do prêmio máximo de literatura e, como notamos nos últimos anos, prestigiadíssima pelos associados. As últimas testemunhas traz uma perspectiva pouco usual sobre a Segunda Guerra Mundial e, por apresentar depoimentos de pessoas relembrando sua infância, parece trazer mais delicadeza, mais humanidade – e talvez, por isso mesmo, mais intensidade. Boa leitura!

Equipe Tag


A R A

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O livro do mês

As últimas testemunhas, de Svetlana Aleksiévitch

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Ecos da Leitura

Restrospectiva TAG – de 2014 a 2018

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Leia depois de ler A história que voa no vento

Sérgio Rodrigues

r! Spoile


Sumário O LIVRO DO MÊS

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Entrevista com Svetlana

ECOS DA LEITURA

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Trechos do discurso do Nobel Excertos de outros livros de Svetlana O caráter multinacional da literatura de língua russa

ESPAÇO DO ASSOCIADO

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Entrevista com uma das primeiras associadas

A PRÓXIMA INDICAÇÃO

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O curador de agosto Cristovão Tezza



A O livro do mês As últimas testemunhas

Se tivesse vivido os dias de Liev Tolstói e Fiódor Dostoiévski, a escritora Svetlana Aleksiévitch provavelmente teria trabalhado com ficção. É ela quem o afirma. Hoje, quando toda a informação circulada é rápida demais para a mente humana, restam muitas verdades “que a arte não consegue transmitir”. Sobretudo após tantos conflitos mortíferos, a respeito dos quais temos registros, porém quase sempre monocromáticos, não há tempo para deixarmos fatos e acontecimentos trágicos em segundo plano – não enquanto permanecermos cegos para o que acontece com o outro. Com essas e muitas outras convicções em mente, a autora bielorrussa construiu uma obra baseada na coleta de depoimentos cuja força reside na individualidade, mas que, vistos de longe, formam uma espécie de memória afetiva e coletiva da alma do que ela chama de homo sovieticus – as mulheres e homens de identidades moldadas pelo regime da União Soviética. Seus escritos ainda em expansão, que já abordaram temas como a Segunda Guerra e o desastre de Tchernóbil, renderam-lhe o Nobel de Literatura em 2015, uma conquista que levantou polêmicas – na verdade, uma discussão que só aconteceu por debates teóricos sobre o gênero de seus livros. Mesmo quem os criticou não duvida da força arrebatadora que provocam em qualquer leitor.

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Aleksiévitch conseguiu criar uma obra convincente e informativa, mas num estilo que é próprio, ao mesmo tempo sóbrio e indignado, de uma complexidade delicada e sutil, com o qual denuncia implacavelmente os horrores mais intoleráveis e atrozes.”

Margarita Kabakova

Alberto Manguel

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Svetlana Aleksandrovna Aleksiévitch nasceu em Stanislav – hoje Ivano-Frankivsk –, que na época pertencia à União Soviética, no dia 31 de maio de 1948. Filha de mãe ucraniana e pai bielorrusso e escritora da língua russa, Svetlana respirou a atmosfera do pós-Guerra desde o primeiro segundo fora do ventre materno. Era inevitável, o terror estava por toda a parte: vários parentes morreram lutando, acometidos pelo tifo ou queimados vivos pelos alemães. Seu pai foi o único de três irmãos a voltar com vida do front.

A inclinação para a escrita manifestou-se precocemente em Svetlana, quando começou a escrever poesia e a contribuir com artigos para o jornal de escola. Em 1967, aos 19 anos, ingressou no Departamento de Jornalismo da Universidade de Minsk, confirmando sua fascinação pelo registro da realidade, que sempre a “atraiu, como um imã. Ela me tortura, me hipnotiza, quero capturá-la na minha escrita”.

Brest, província bielorrussa muito próxima da divisa com a Polônia, foi o primeiro luAinda criança, gar onde SvetlaSvetlana partiu na conseguiu A autora com a família um emprego, em para a Bielorum jornal local. rússia, onde os Ao mesmo tempais trabalhapo, deu aulas em ram como prouma escola e por fessores em uma um breve período pequena vila se viu no dilema rural. A menina entre dar conticresceu ouvindo nuidade à tradiviúvas contarem, nos bancos da ção dos pais ou investir na carreira cidade, suas trágicas experiências jornalística. Foi o tempo, entretanna Segunda Guerra Mundial. Reto, que não lhe deu escolha: depois latos que pouco ou nada remetiam de um ano, foi contratada por um aos dos livros de História, muito jornal rural em Minsk, capital da menos concordavam com o já conBielorrússia. Seu caminho prosolidado mito soviético a respeito fissional foi sacramentado poudo conflito – o sofrimento justicos anos depois, quando se tornou ficado pelo sacrifício e a gloriosa correspondente da revista literária vitória. O que essas mulheres comNeman e logo foi promovida a edipartilhavam eram histórias reais, tora da seção de não ficção. genuinamente honestas, de quem vivenciou seu absurdo e entendeu Em contato muito próximo com um que não há lógica nem justificativa mundo que permitia novos olhares para a dor. sobre a escrita, Svetlana passou a

Svetlana Aleksiévitch

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experimentar sua voz literária por meio de diferentes gêneros, como o conto, o ensaio e a reportagem. O célebre escritor bielorrusso Ales Adamovich foi o responsável pelos direcionamentos e técnicas que Svetlana decidiu explorar em seus livros. Antes dela, ele experimentou nesse gênero literário híbrido, que muitas vezes tentou nomear – chegou a chamá-lo “romance coletivo”, “romance-oratório”, “romance-testemunho”, “coro épico”, entre outros. Svetlana sempre atribuiu a Adamovich sua maior inspiração, considerando-o seu professor e mentor, que a ajudou a seguir seu próprio caminho. Anos mais tarde, uma atitude relativamente banal transformaria de novo a trajetória de Svetlana: ele emprestou-lhe dinheiro para que ela pudesse comprar um gravador de voz.

munista e de depreciar a suposta glorificação da heroica mulher soviética. Para sua sorte, os tempos logo mudariam. Em 11 de março de 1985, Mikhail Gorbachev foi eleito o novo líder soviético e, com ele, implementou-se a política de reconstrução e abertura conhecida como Perestroika. Ainda em 1985, A guerra não tem rosto de mulher foi publicado tanto em Minsk quanto em Moscou, ultrapassando a marca de dois milhões de exemplares vendidos e tendo extraordinária recepção de público e crítica. “Antes desse livro, a única personagem mulher na nossa literatura de guerra foi a enfermeira que cuidou de algum heroico tenente”, ela contou ao periódico britânico The Guardian. “Mas essas mulheres estavam mergulhadas na obscenidade da guerra tão profundamente quanto os homens.”

Em meados dos anos 1970, Svetlana leu um artigo sobre a aposentadoria de uma atiradora soviética condecorada por matar 75 alemães na Segunda Guerra. Com as vozes das mulheres bielorrussas de sua infância ainda ressoando na memória, decidiu ir atrás desse e de outros testemunhos de algumas das cerca de um milhão de mulheres que serviram ao exército soviético, mas que nunca tiveram sua versão valorizada nas narrativas oficiais sobre a guerra.

No mesmo ano, Svetlana publicou uma obra de comparável intensidade emocional, tendo em vista seus entrevistados que, daquela vez, não lutaram na guerra, mas a presenciaram e tinham ainda menos voz e poder de decisão que as mulheres. As últimas testemunhas, livro até então inédito no Brasil, resgata as memórias de quem era criança durante a devastação da Bielorrússia na Segunda Guerra.

Em 1983, concluiu A guerra não tem rosto de mulher, mas a situação política da Bielorrússia, na época ainda pertencente à União Soviética, retardou a publicação. Svetlana foi acusada de pacifista, antico-

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Nessa obra, Svetlana compila uma centena de curtos relatos – poucos têm mais de cinco páginas – obtidos por meio de entrevistas com cidadãos que viveram a fome, o luto, o torpor e outros diversos estados e sentimentos extremos, aos quais a violência indiscriminada da guer-


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ra submete o ser humano. Nesses monólogos, que a escritora teve o trabalho de conduzir com perguntas e depois remodelar em textos enxutos, sem nunca os interpretar ou deformar – sua forma usual de trabalho –, somos conduzidos por lembranças incrivelmente precisas de momentos traumáticos. Muitos desses sobreviventes perderam pais, familiares, amigos e presenciaram a morte de desconhecidos. O enfoque, entretanto, não é buscar a perspectiva previsível sobre a guerra, mas explorar os sentimentos individuais. Embora girem em torno do mesmo fato, nenhuma história é igual à outra – juntos, cada um desses relatos forma uma narrativa sobre a guerra tão inédita quanto tocante e humana.

Prepare seu coração para esta leitura: os relatos que você acompanhará podem estremecê-lo. Nem mesmo a escritora, como se percebe logo na abertura da obra, permitiu-se fazer comentários sobre o que ouviu e recontou. Mas se ela publicou – e o fez por diversas vezes, com diferentes temas em diferentes obras –, é porque acredita nesses relatos. Como uma de suas milhares de entrevistadas sentenciou-lhe, é terrível lembrar, mas esquecer é incomparavelmente mais terrível. Estabelecer um contato com essas histórias é, tanto no plano individual quanto no social, ser marcado perpetuamente por elas, condená-las com inevitáveis lágrimas nos olhos e inibir qualquer situação futura que com elas se pareçam.

A ingenuidade infantil das histórias é perceptível em inúmeros momentos. Os entrevistados procuraram exprimir o que sentiram, sem interpretar exaustivamente tudo pelo que passaram. A cor das roupas, o cheiro das árvores e estações, a beleza das bonecas, a saudade dos pais, nada é esquecido – simplesmente porque tudo remete àqueles anos de horror.

Depois do lançamento de seus dois primeiros livros, Svetlana ganhou extraordinário reconhecimento entre leitores de língua russa – ambas as obras foram consideradas por críticos “uma descoberta no gênero da prosa sobre guerra”. Em 1989, publicou Zinky Boys [Garotos de zinco, tradução livre], no qual abordou a invasão soviética no Afeganistão – uma guerra por

“Ninguém acredita em mim, nem mamãe acreditava. Quando começamos a recordar depois da guerra, ela se surpreendia: ‘você não pode se lembrar disso, era pequeno. Alguém te contou...’. Não, eu mesmo lembro…” – trecho do livro As últimas testemunhas

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Getty Images

muitos anos escondida do cidadão soviético pelo governo –, dessa vez recolhendo depoimentos de mães de vítimas e veteranos do conflito. O livro, que anos mais tarde inspiraria documentários e peças teatrais, foi recebido à época de forma controversa, e muitos não perdoaram a escritora por desmistificar a guerra. Seguiram-se as publicações de Enchanted with death (1993), com as falas de cidadãos que tentaram o suicídio em consequência do fim da União Soviética – que significava a derrocada da ideologia socialista e da chegada de um complexo mundo novo –, e de Vozes de Tchernóbil (1997), que aborda menos o desastre nuclear que as formas de adaptação das populações vizinhas no mo-

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mento posterior à tragédia. A escritora tornou-se uma dura crítica de Alexandr Lukashenko, o autoritário presidente da recém-independente Bielorrússia e, em 2001, acabou deixando o país como forma de protesto – mas também como um exílio auto-imposto – e passou onze anos morando entre a França e a Alemanha, retornando somente há poucos anos. Lukashenko sempre deixou claro seu desgosto pelos livros de Svetlana, proibindo a circulação deles no país. Mais de quinze anos depois da última publicação, Svetlana lançou O fim do homem soviético (2013), uma espécie de análise do cidadão que viveu a experiência da União Soviética, fechando um ciclo de


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cinco livros que a escritora chamou de The red man – voices of utopia [O homem vermelho – vozes utópicas, tradução livre]. Seu nome passou a figurar entre os favoritos ao Nobel e, finalmente, em 2015, ela recebeu o maior prêmio literário do mundo. Svetlana teve seu segundo grande momento na carreira mais de trinta anos após o sucesso nos países de língua russa, e hoje já é traduzida para 45 idiomas diferentes.

No Brasil, seus livros começaram a chegar em 2016 e conquistaram um grande grupo de admiradores. Entre eles, muitos associados da TAG já demonstraram seu apreço. Com o lançamento de As últimas testemunhas, não é difícil imaginar que esse número cresça exponencialmente – e que os debates sobre acontecimentos e questões tão distantes quanto necessárias ao leitor brasileiro recebam merecida visibilidade.

“É assim que eu ouço e vejo o mundo – como um coro de vozes individuais e uma colagem de detalhes do dia a dia. É assim que meus olhos e ouvidos funcionam. Dessa forma, minha mente e emoção chegam ao seu potencial máximo. Dessa maneira, eu posso ser, ao mesmo tempo, escritora, repórter, socióloga, psicóloga e pregadora.”

Svetlana Aleksiévitch 11


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Entrevista

Svetlana Aleksiévitch

TAG – Diferentemente de muitos autores de língua russa, você aborda aspectos que contradizem convicções, mitos e utopias da Grande Rússia. Como você definiria o homem soviético retratado em seus livros e de que forma ele se relaciona com o passado de sua nação? Svetlana Aleksiévitch – A revolução dos anos 1990 foi feita por Gorvachev e mais um punhado de Intelligent [pessoa pertencente à chamada intelligentsia]. 90% das pessoas acordaram em um país completamente desconhecido para elas, e não sabiam como viver nele. E até agora, elas continuam sem

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saber e não aceitam o capitalismo. Tenho ouvido com frequência que as pessoas têm saudades do socialismo. Nessa época as pessoas não tinham que trabalhar em três lugares. Todos viviam do mesmo jeito. A vida consistia nisso mesmo: em viver, reunir-se ao redor de uma fogueira, tocar violão, conversar, ler livros. Hoje em dia é muito difícil fazer isso. Em poucas palavras, o capitalismo, mesmo em sua versão não tão impiedosa, como a da Rússia atual, é um sistema muito cruel. Sim, você pode possuir alguma coisa, mas precisa trabalhar muito duro. Para nós, isso significa uma reconstrução absoluta da vida e da


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AP Photo, Sergei Grits

Porque não deixa roubar, e com ele tem que trabalhar da manhã até a noite. E todos esses homens, que eram quatro, tinham trabalhado na granja dele, e tinham se demitido. A liberdade não é uma coisa que dê para ser adquirida como o chocolate suíço ou como o queijo holandês. Para isso é preciso tempo, é preciso viver e passar por um monte de experiências. A Bielorrússia é um verdadeiro museu do passado. E na Rússia, o que acontece? Os que estão no poder têm uma concepção de Rússia, os que chamam a si próprios de patriotas têm outra, há uma terceira Rússia para os comunistas e uma quarta para os liberais. A Rússia é sempre uma intuição, sempre um projeto que nunca se realiza por completo.

psicologia. Pouquíssimas pessoas estão preparadas para isso. Em certa viagem que fiz aos arredores de Vladimir, vi em uma loja, logo de manhã, uma fila dessas pessoas. Que liberdade, nem jornais, nem manifestações em Moscou... Tão logo a loja abra, eles terão liberdade: cinco tipos de vodca, bananas, tudo o que você quiser. Então eu perguntei: mas será mesmo que isso é a liberdade para a pessoa? E eles falaram que para eles estava ótimo. O único granjeiro, cuja propriedade foi por eles queimada várias vezes, é para eles um fascista. Mas por que um fascista?

Como Putin conseguiu reparar tão rapidamente a máquina stalinista? De novo o FSB (o antigo KGB) pode entrar arrombando em qualquer casa, confiscar os computadores, incriminar sem justa causa contra um blogueiro por ter escrito um post a favor da Ucrânia, pelo país inteiro procuram e submetem a julgamento supostos espiões: cientistas, professores, militares. As pessoas estão assustadas e o que acontece realmente na sociedade, o que ela pensa, ninguém sabe. Ouso dizer que perdemos a chance que tivemos nos anos 1990. À pergunta como deveria ser um país,

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forte ou digno, onde as pessoas vivam bem, a resposta escolhida foi a primeira: forte. Agora é de novo o tempo da força. Os russos estão em guerra com a Ucrânia, com seus irmãos. Aviões russos bombardeiam a Síria... Não existe o império “vermelho”, mas o homem “vermelho” ficou. Continua. O tempo das esperanças se mudou para o tempo do medo. O tempo regrediu... Agora, eu não estou muito segura de ter escrito a história do homem “vermelho”... Sua obra explora consequências e efeitos decorrentes de grandes acontecimentos históricos, como a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Afeganistão e a dissolução da União Soviética. Em uma entrevista concedida ao jornalista francês Michel Eltchaninoff, você comenta que sua escrita busca “esculpir uma época”, mas de qual ponto de vista? Svetlana – Eu escrevi cinco livros, mas, na verdade, a vida inteira tenho escrito um único livro: uma enciclopédia do “homem vermelho”, da “utopia vermelha”, dessa vida que nós chamávamos socialismo. A cultura russa possui a experiência única, inocente e terrível da tentativa humana de construir o paraíso na terra, que terminou com uma gigantesca vala comum. Eu pensei que era importante fazer esse trabalho porque a “utopia vermelha” ainda vai tentar seduzir a humanidade por muito tempo.

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Nunca vou esquecer que no tempo do desmantelamento da usina por causa da catástrofe de Tchernóbil, eu passava as noites no alojamento em que moravam os trabalhadores encarregados disso. Na mesa, uma garrafa de três litros de aguardente caseira e as conversas sobre Tsiolkóvski e Gorvachev, e sobre Hitler, o comunismo e o capitalismo. E nesse momento, uma mulher já não tão jovem traz uns petiscos, e vejo que ela tem umas manchas vermelhas nas mãos. Eu lhe pergunto: “O que a senhora tem?”. Ela responde: “Nós lavamos o macacão de nossa gente todo dia. Estão contaminados. Prometeram dar-nos máquinas de lavar, mas não trouxeram. Lavamos na mão”. “Mas como é que pode?”, e me viro para o chefe que está sentado ao lado. “Prometem”, disse abanando a mão e continuou filosofando. Pois então, eu tenho certeza de que pessoas ocidentais falariam sobre as máquinas de lavar e não sobre as ideias malucas de Tsiolkóvski. E lá trabalhariam as máquinas de lavar, e não umas mulheres-kamikaze. Eu me pergunto o tempo todo, qual é o sentido dos sofrimentos que temos suportado. Por que, no nosso caso, os sofrimentos não se transformam em liberdade? Entre nós é costume, começando por Dostoiévski, enaltecer, entre outras coisas, essa magia do sofrimento. Eu penso que os sofrimentos, pelo contrário, petrificam a alma humana, e ela já não pode se desen-


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volver. De qualquer forma, para o desenvolvimento da pessoa, ela precisa de condições de vida felizes e normais. Nisso consiste a polêmica entre Soljenítsin e Chalamóv. Eu, de todo modo, estou do lado de Chalamóv. O campo de concentração perverte as pessoas. Tanto o algoz, como a vítima. Dos relatos de centenas de pessoas, eu tentei reunir uma imagem de um tempo. Que tempo foi esse, como vivemos, quais eram as crenças e as esperanças. Eu queria gravar esse tempo que, à sua maneira, foi único. Pode-se dizer que foi um tempo terrível, mas um experimento tal, com o laboratório marxista, não vai acontecer nunca mais. Ficou um mar de sangue. Apesar de ser a única escritora mulher a ter recebido o renomado Prêmio Nobel de Literatura na Bielorrússia, seu país de origem, as autoridades a ignoram. Como você acredita que a literatura pode se posicionar frente à perseguição da classe artística e quais limites ela enfrenta em face de regimes totalitários? Svetlana – Quando foi anunciado que eu tinha sido laureada com o Prêmio Nobel, os bielorrussos saíram às ruas de Minsk e se abraçaram e beijaram. Já o ditador Lukachenko não conseguiu encontrar palavras boas para mim. Ele disse que eu “cubro o país de sujeira”. A mesma coisa falou Stalin em sua época sobre Búnin e Pasternak,

e Brejnev sobre Brodsky, todos eles russos laureados com o Prêmio Nobel. Mesmo depois de cinquenta anos, os ditadores não mudam em nada, nem no léxico. Mas eu considero que devo fazer meu trabalho tranquilamente, tentar entender meu tempo, responder às perguntas que surgem em nosso mundo, tão rapidamente cambiante. Os ditadores vão embora, e o povo fica. Segundo a Academia Sueca, você foi premiada com o Nobel pela sua “obra polifônica, memorial do sofrimento e da coragem em nossa época”. No entanto, esta obra não é definida nem como ficção histórica, nem jornalismo. Quais palavras você usaria para definir seu trabalho? Svetlana – Flaubert dizia de si: “sou um homem-pena”. Eu sou “uma pessoa-ouvido”. Por muito tempo procurei um gênero que respondesse à maneira como eu enxergo o mundo, à maneira como funciona meu olho, meu ouvido... E escolhi o gênero das vozes das pessoas... Eu espreito e ausculto meus livros nas ruas, atrás das janelas. Nelas, as pessoas reais contam os principais acontecimentos de seu tempo: a guerra, a queda do império socialista, Tchernóbil, e todos eles conservam na palavra a história do país, a história comum. Tanto a antiga, como a mais recente. E cada um guarda a história de seu pequeno destino humano.

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Por um lado, eu sempre quis que as vozes ressoassem em meus livros como um coro e, por outro lado, sempre quero que se ouça uma voz humana solitária. Parece-me que hoje as pessoas querem ouvir a voz de outra pessoa, e não a da época ou do tempo, onde está tudo concentrado numa espécie de monólito. Sempre me interessou o espaço de uma alma humana, pois é justamente lá que tudo acontece. Eu vejo a grande história por meio de pequenas histórias. Então não fica o ruído surdo do tempo, mas aquilo que podemos entender, aquilo que nos interessa depois de passarem os anos. Interessa-nos a vida humana. Eu então a reduzo a dimensões humanas. Meu ouvido está sempre junto à janela, escutando a rua. Espreito, ausculto um ritmo novo, um som novo. Uma música nova. A vida na rua é pra lá de interessante, e de terrível, e de engraçada, e de humana, mais do que em nossos círculos em que a literatura se alimenta de literatura, e a política de política. Eu escrevo sobre o ser humano no tempo e no cosmos, como Anna Akhmátova: “O homem nu, na terra nua”. Aqui começa a literatura. Por exemplo, no livro sobre as mulheres-soldados na guerra, A guerra não tem rosto de mulher, interessavam-me aquelas perguntas eternas: Como uma pessoa pode ficar a sós com a ideia de que pode matar outra pessoa? As pessoas morrem de uma forma tão simples, e matam também de forma simples demais.

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Como podem viver com isso depois? E sobre isso fala uma mulher. Com certeza, ela tem uma visão própria, nenhuma ideologia a subjuga por completo: “Tinha pena de uns e de outros. Você vai pelo campo depois do combate, os mortos estão deitados, espalhados como a batata. E olham para o céu”. Talvez só no amor e junto da morte a pessoa é capaz de sair desse círculo. Eu fico vigiando esses momentos. Eu chamo meu gênero “romance de vozes”. Podemos dizer que é um romance conciliar. Como quer que seja, é uma tentativa de encontrar uma forma romanesca nova. Quando você se depara com os relatos dos sobreviventes da guerra, no que diz respeito ao seu método de escrita, de que maneira os sintetiza e transforma em um conjunto de textos coerentes para o livro? Svetlana – Eu faço meus livros a partir de centenas de detalhes, nuances, matizes. Podia acontecer que depois de um dia inteiro de conversa, sobrasse apenas uma frase. Mas que frase! “Eu fui para o front sendo tão pequena, que até cresci por causa da guerra”. Sabe, eu frequento uma pessoa... como um amigo. Não é de jeito nenhum uma entrevista, é uma conversa sobre a vida, sobre tudo: sobre a blusa nova, sobre o amor, sobre os sofrimentos... é sobre a vida. O que a pessoa entende, sabe, viu. Nossa vida humana não está constituída por alguma coisa grande. Até aquilo


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que é grande em nossa vida é resultado de algo pequeno. Outra coisa é que seja necessária certa magia, certo olhar. Eis o que é o mais importante para mim. Não reunir material, mas reunir uma filosofia. Isto é, olhar para as coisas que parecem corriqueiras, de uma forma completamente nova. Eu demoro para escrever meus livros. Cinco ou dez anos. Registro 500, 600 pessoas. Procuro uma pessoa abalada pelos acontecimentos, não um narrador banal. Para que uma pessoa responda de maneira nova, é preciso interrogá-la de uma forma nova. Temos que falar não de Tchernóbil ou do Afeganistão, mas da vida. Interessa-me não a informação, mas o mistério. O mistério da vida. Qualquer história transparece a história da alma, as paixões humanas ficam fora da história. Minha tarefa é extraí-las da escuridão do desaparecimento. Eu lido com uma mentira dupla: com a mentira do totalitarismo e com a mentira da história como ciência que limpa a vida até chegar aos parágrafos sem paixão das apostilas de história. Minha vontade é humanizar a história. Como eu disse, chamo o gênero que escrevo de “romance de vozes”. Nunca vou me achar no direito de julgar e condenar. Eu tento entender. O livro As últimas testemunhas contém passagens emocionantes, com relatos sensíveis vivencia-

dos por crianças em uma época trágica. Imagine que mais de 25 mil leitores brasileiros lerão tais memórias pela primeira vez, o que você diria a eles? Svetlana – Nos diários de Tolstói estão as seguintes palavras: “Eis que você entra em um hospital onde há muitos feridos. Estão deitados por toda parte, até nos corredores, no chão. Os médicos não conseguem ajudar todos, há um cheiro horrível. Tudo isso é insuportável para o olho humano, mas observe as pessoas por separado, e você terá vontade de ajudar alguém”. Eu acho que Tolstói está certo. Vivemos em um mundo em que há sofrimentos demais, e devemos ajudar. A compaixão ensina a alma humana. Eu penso também que o sofrimento é um tipo de informação. Isto é, nos é transmitido um certo conhecimento acerca do homem. É o conhecimento acerca de como é difícil ser pessoa.

Entrevista na íntegra disponível em: https://goo.gl/HpSdTv Tradução da entrevista com a Svetlana: Natalia Quintero e Elena Vasilevich

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ECOS DA LEITURA

Retrospectiva TAG mas primeiro vamos conferir o que aconteceu em 2018. Janeiro

2018

Livro: Retorno a Brideshead, de Evelyn Waugh Curador: Luis Fernando Verissimo

Fevereiro Livro: O alforje, de Bahiyyih Nakhjavani Curador: Alberto Manguel

» Segundo livro inédito no Brasil

Março Livro: Só garotos, de Patti Smith Curadora: Natalia Polesso 18

» TAG chega a 70 funcionários


ECOS DA LEITURA

Abril Livro: The underground railroad: os caminhos para a liberdade, de Colson Whitehead Curadora: Cora Rónai

» Lançamento da TAG Inéditos, clube com uma proposta diferente. » Mudança do nome do primeiro clube para TAG Curadoria » TAG conquista o Quantum Publishing Innovation Award

Maio Livro: Tempo de migrar para o norte, de Tayeb Salih Curador: Milton Hatoum

Junho Livro: Voragem, de Junichiro Tanizaki Curadora: Eliane Brum

4 anos TAG Julho Livro: As últimas testemunhas, de Svetlana Aleksiévitch

» Terceiro livro inédito no Brasil 19


ECOS DA LEITURA

2014

Setembro Livro: Em busca de sentido, de Viktor Frankl Curador: Daniel Pink

Agosto

Outubro

Livro: O físico, de Noah Gordon Curador: Mario Sergio Cortella

Livro: Os tigres de M de Emilio Salgari Curador: Javier Nara

» Inauguração do clube com 65 associados » Equipe formada pelos 3 fundadores

Agosto

Junho

Livro: O casamento, de Nelson Rodrigues Curadora: Heloisa Seixas

Livro: A balada de Ada de Ian McEwan Curador: Jorio Dauster

2 anos TAG Julho Livro: O vermelho e o negro, de Stendhal Curador: Luiz Ruffato

» Primeira edição exclusiva da TAG

Setembro

Novembro

Livro: Paddy Clarke Ha Ha Ha, de Roddy Doyle Curadora: Maria Rita Kehl

» TAG chega a 25 funcionários

Livro: Vitória, de Joseph Conrad Curador: John Gray

Outubro

Dezembro

Livro: A louca da casa, de Rosa Montero Curadora: Carola Saavedra

Livro: Ainda es de Marcelo Rub Curador: Hélio

» Primeira ação com um associado

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Janeiro

2015

Novembro Livro: Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar Curador: Frei Betto

Livro: O intruso, de William Faulkner Curador: Patch Adams

Dezembro

Mompracem,

anjo

Livro: Orgulho e preconceito, de Jane Austen Curador: Peter Singer

» TAG chega a 100 associados

Abril

am Henry,

r

Fevereiro

Livro: Stoner, de John Williams Curadora: Leticia Wierzchowski

Livro: Desonra, de J. M. Coetzee Curador: Sérgio Rodrigues

Maio

Março

Livro: O caminho estreito para os confins do norte, de Richard Flanagan Curadora: Adriana Lisboa

Livro: A improvável jornada de Harold Fry, de Rachel Joyce Curadora: Susan Blackmore

stou aqui, bens Paiva o de La Peña

2017

Fevereiro Livro: O xará, de Jhumpa Lahiri Curadora: Martha Medeiros

Janeiro Livro: Vida e proezas de Aléxis Zorbás, de Nikos Kazantzákis Curador: Patch Adams

» Todas as edições lançadas passam a ser exclusivas

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Março Livro: Duas narrativas fantásticas, de Fiódor Dostoiévski Curador: Luiz Felipe Pondé

Fevereiro

Abril

Livro: Solar, de Ian McEwan Curador: Paul Bloom

Livro: Neve, de Orhan Pamuk Curadora: Sarah Hrdy

» Primeira matéria sobre a TAG em jornal de grande circulação

» Equipe com 5 pessoas

Dezembro

2016

» Canal no Youtube » Boxes personalizadas a cada mês » TAG chega a 10 funcionários

Livro: Doze contos peregrino de Gabriel García Márquez Curadora: Suzana Herculano

Janeiro

No

Livro: O seminarista, de Rubem Fonseca Curador: Luis Fernando Verissimo

Liv de Cur

Junho

Livro: Limonov Emanuel Carrèr Curador: Marce

Abril Livro: Os irmãos Sisters, de Patrick deWitt Curador: Daniel Galera

» TAG chega 50 funcionár

Março

Maio

Livro: A câmara sangrenta, de Angela Carter Curadora: Marina Colasanti

Livro: O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa Curador: Mario Vargas Llosa

» Primeiro curador vencedor do Nobel de Literatura

Dezembro

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Livro: A praça do Diama de Mercè Rodoreda Curadora: Carol Bensimo


» 500 associados

Julho

Maio

Junho Livro: Sidarta, de Hermann Hesse Curador: José Pacheco

» Criação do grupo de associados no Facebook

Outubro Livro: Contos de imaginação e mistério, de Edgar Allan Poe Curador: Marcelo Gleiser

os,

o

Agosto Livro: A estrada, de Cormac McCarthy Curador: David Eagleman

» 1000 associados

ovembro

Setembro

vro: Aprender a viver, Luc Ferry rador: Clóvis de Barros Filho

Livro: Noite do Oráculo, de Paul Auster Curador: Gregório Duvivier

» TAG em todos os estados do Brasil

v, de re elo Rubens Paiva

Agosto Livro: Ragtime, de E. L. Doctorow Curador: Roddy Doyle

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1 ano TAG

» Primeiro encontro de associados, em Porto Alegre, com a presença da curadora

» Primeiro encontro de associados fora de Porto Alegre – em Brasília

Livro: O encontro marcado, de Fernando Sabino Curador: Mario Prata

Livro: Patrimônio, de Philip Roth Curadora: Cíntia Moscovich

3 anos TAG Julho

Setembro

Livro: Uns e outros – contos espelhados, de vários autores Organização: Helena Terra e Luiz Ruffato

Livro: Quase memória, de Carlos Heitor Cony Curador: Ruy Castro

» Primeiro livro encomendado pela TAG

Outubro

Novembro

Livro: As alegrias da maternidade, de Buchi Emecheta Curadora: Chimamanda Adichie

Livro: As três Marias, de Rachel de Queiroz Curadora: Heloisa Buarque de Hollanda

» Primeiro livro inédito no Brasil » Primeira participação da TAG na Feira de Frankfurt

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ECOS DA LEITURA

Trechos do discurso do Nobel

Pi Frisk | Alexander Mahmoud Tradução: Julia Dantas

“Flaubert se denominava uma caneta humana; eu diria que eu sou uma orelha humana. Quando caminho pela rua e ouço palavras, frases e exclamações, sempre penso: quantos romances desaparecem sem deixar rastros! Desaparecem na escuridão. Ainda não conseguimos capturar os atos de conversas da vida humana na literatura. Não apreciamos, não nos surpreendemos nem nos encantamos com as conversas. Mas elas me fascinam e me prendem. Eu adoro o modo como os humanos falam… Amo a solitária voz humana. É meu maior amor e maior paixão.” 24


ECOS DA LEITURA

“Sempre me incomodou que a verdade não caiba em um coração, em uma cabeça, que a verdade é, de alguma forma, estilhaçada. Há muito de verdade, ela é variada e espalhada pelo mundo. Dostoiévski achava que a humanidade sabe muito, muito mais sobre si mesma do que aquilo registrado na literatura. Então o que eu faço? Eu coleciono o cotidiano de sentimentos, pensamentos e palavras. Eu coleciono a vida do meu tempo. Estou interessada na história da alma. O cotidiano da alma, as coisas que a visão panorâmica da história geralmente omite ou despreza. Eu trabalho com a história ausente. Com frequência me dizem, mesmo hoje, que minha escrita não é literária, é documental. O que é a literatura hoje? Quem pode responder a essa pergunta? Nós vivemos mais rápido que nunca. O conteúdo rompe a forma. Quebra e a transforma. Tudo transborda suas margens: música, pintura – mesmo palavras em documentos escapam aos limites do documento. Não há fronteiras entre fato e invenção, mas um fluxo entre essas duas coisas. Testemunhas não são imparciais. Ao contar uma história, os humanos criam, eles lutam com o tempo tal qual um escultor com o mármore. Eles são sujeitos e criadores.”

“O caminho até este pódio foi longo, quase quarenta anos, indo de pessoa a pessoa, de voz a voz. Não posso dizer que sempre estive traçando esta jornada. Muitas vezes os seres humanos me chocaram e me assustaram. Já experimentei alegria e repulsa. Algumas vezes desejei esquecer o que ouvira e retornar a um tempo em que eu vivia na ignorância. Mais de uma vez, entretanto, pude ver o sublime nas pessoas, e tive vontade de chorar.”

“Logo após a guerra, Theodor Adorno escreveu, em choque: “Escrever poesia depois de Auschwitz é uma barbárie”. Meu professor Ales Adamovich, cujo nome eu menciono hoje com gratidão, achava que escrever prosa sobre os pesadelos do século 20 era um sacrilégio. Nada pode ser inventado. Você deve entregar a verdade tal como ela é. Uma ‘superliteratura’ é exigida. As testemunhas devem falar. As palavras de Nietzsche me vêm à mente: nenhum artista consegue viver à altura da realidade, eles não podem sustentá-la.”

“Vinte anos atrás, nos despedimos do ‘Império Vermelho’ dos soviéticos rogando pragas, às lágrimas. Agora podemos observar esse passado com mais calma, como um experimento histórico. Isso é importante, porque as discussões sobre o socialismo não enfraqueceram. Uma nova geração cresceu com uma imagem diferente do mundo, mas muitos jovens estão lendo Marx e Lenin mais uma vez. Em cidades russas, há novos museus dedicados a Stalin e novos monumentos foram erguidos em sua homenagem.” 25


ECOS DA LEITURA

EXCERTOS DE OUTROS LIVROS DE SVETLANA É provável que, antes de mergulhar a fundo no livro do mês, você queira se preparar para os escritos dramáticos de Svetlana, seu estilo literário e para a potência de suas palavras. Outra possibilidade é que você já tenha lido As últimas testemunhas, ficado entusiasmado e imaginado se não deveria conhecer o resto de sua obra. Projetando essas e outras possibilidades, decidimos selecionar para este Eco excertos de duas das três obras de Svetlana anteriormente publicadas no Brasil: Vozes de Tchernóbil e A guerra não tem rosto de mulher, ambos publicados pela Companhia das Letras. Pequenos trechos que não compreendem a grandeza dos livros na íntegra, mas podem estimular o fascínio pelo seu trabalho.

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER: “SOBRE O SILÊNCIO DO HORROR E A BELEZA DA CRIAÇÃO “Será que encontro as palavras? Sobre como eu atirava eu posso contar. Sobre como chorava, não. Isso continuará não dito. Sei de uma coisa: na guerra, o ser humano se torna terrível e inconcebível. Como entendê-lo? Você é escritora. Invente algo você mesma. Algo bonito. Sem piolhos nem sujeira, sem vômito… Sem cheiro de vodca e sangue… Que não seja tão terrível quanto a vida…” Anastassia Ivánovna Medvédkina, soldada, atiradora de metralhadora

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ECOS DA LEITURA

VOZES DE TCHERNÓBIL: “Eu acabava de voltar do Afeganistão. Queria viver. Casar. Queria me casar logo. E nisso chega uma notificação com tarja vermelha do Serviço Especial: apresente-se dentro de uma hora no endereço indicado. A minha mãe começou a chorar. Ela achou que iriam me enviar de volta à guerra. Aonde nos levavam? Para quê? Havia pouca informação. Sim, explodiu um reator. Mas e daí? Em Slutsk trocamos de roupa, pusemos um novo uniforme, e então descobrimos que estávamos indo para o centro do distrito de Khóiniki. Ali, as pessoas ainda não sabiam de nada. Elas, como nós, viam pela primeira vez um dosímetro. Em seguida, nos levaram ainda mais longe, a uma aldeia. E lá, estavam celebrando um casamento: os jovens se beijavam, bebiam samogón, tocavam música. E nisso nos dão ordens de escavar o solo até a altura de uma baioneta. Derrubar as árvores. De início, nos deram armas. Fuzis automáticos. Em caso de sermos atacados pelos americanos. Nas aulas de formação política, aprendíamos sobre os atos de sabotagem organizados pelos serviços secretos ocidentais. Sobre as suas operações com explosivos. À noite, deixávamos as armas numa barraca separada. No meio do acampamento. Depois de um mês, levaram-nas embora. Não havia terroristas. Havia roentgen, curie… No Dia da Vitória, 9 de maio, apareceu um general, que nos deu instruções e nos parabenizou pelo dia festivo. E um dos que estavam na formação ousou perguntar: “Por que vocês escondem o grau de radiação? Quantas doses recebemos?”. Um ao menos se decidiu. Pois quando o general se foi, o capitão da unidade o chamou à parte e lhe deu uma bronca: “Você é um provocador! Um alarmista!”. Ao cabo de dois dias nos deram uma espécie de máscara antigás, mas ninguém a usava. Mostraram-nos duas vezes os dosímetros, mas não nos deixaram usá-los. A cada três meses nos permitiam ir para casa por um par de dias. Com um único encargo: comprar vodca. Eu cheguei a levar duas mochilas cheias de garrafas. Fui carregado nos braços. Antes de voltarmos de vez para casa, fomos chamados por um sujeito da KGB, que nos aconselhou persuasivamente a não contar a ninguém o que vimos ali. Ao regressar do Afeganistão, eu sabia que iria viver! Mas Tchernóbil é o contrário: você morre justamente quando já está em casa. Voltei. Mas tudo está só começando…”

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ECOS DA LEITURA

O CARÁTER MULTINACIONAL DA LITERATURA DE LÍNGUA RUSSA Denise Regina De Sales*

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ão causa estranheza, obviamente, a existência de muitas nacionalidades em uma União cujas fronteiras estendiam-se a oeste até a Europa; ao norte, até o Ártico; a leste até o Japão; ao sul, até a China. A questão das nacionalidades foi uma bandeira e um problema para o governo soviético. Parafraseando Boris Schnaiderman em Os escombros e o mito, a cultura e a literatura soviéticas não podem ser pensadas sem a marca forte de um verdadeiro mosaico de povos.

zia: você é vigilante, não tema a sua época, não apele para artimanhas.”

Esse mosaico encontra-se em Vladímir Vladímirovitch Maiakóvski, cuja produção literária guarda um traço da infância em Bagdádi, povoado da Geórgia. Está presente nos escritos de Óssip Emilievitch Mandelstam, entre os quais se destaca Viagem à Armênia, com um convite à defesa da diversidade, como neste trecho, em tradução de Paulo Bezerra: “Não há nada de mais ilustrativo e alegre que mergulhar na companhia de pessoas de raça inteiramente distinta, que a gente respeita, com quem simpatiza e de quem se orgulha como um estranho. O conteúdo vital dos armênios, sua ternura grosseira, sua ossatura nobre e laboriosa, [...] tudo isso me di-

A situação não é diferente quando voltamos nosso olhar para o Império Russo: uma incontestável diversidade de povos. Um autor em especial simboliza toda essa riqueza e nos faz lembrar Svetlana Aleksiévitch pela sua origem: Nikolai Vassiliévitch Gógol. Em carta à amiga Aleksandra Ossipovna Smirnova, ele se pronunciou sobre a natureza de sua própria alma: [...] “Quanto à pergunta ‘qual é minha alma, ucraniana ou russa’, eu mesmo não sei qual é minha alma. As duas naturezas foram generosamente premiadas por Deus e, parece que de propósito, cada uma delas inclui em si aquilo que a outra não tem – este é um sinal claro de que devem se complementar.”

E quantos outros não podemos citar nesta lista do mosaico de povos de Schnaiderman: Boris Leonídovitch Pasternak e sua íntima relação com a poesia georgiana; o simbolista Aleksandr Aleksándrovitch Blok e suas traduções do poeta armênio Avetik Saakovitch Issaakian; o poeta quirguiz Tchingui Torekulovitch Aitmatov e a marca de sua cultura na literatura de língua russa...


ECOS DA LEITURA

Nesta correspondência íntima, Gógol usa os termos khokhol para se referir a ucraniano e para se referir à Ucrânia, usou Pequena Rússia, nome dado à região desde o início do século XIV. Juntamente com a Bielorrússia (Rússia Branca) e a Rússia, ela formava o grande Império Russo.

das casas, quando a cidade inteira transforma-se em trovão e brilho, miríades de carruagens despencam das pontes, boleeiros berram e saltam sobre os cavalos e quando o demônio em pessoa acende os lampiões, apenas para mostrar tudo sob um aspecto falso”.

Assim como a alma de Gógol, tanto russa quanto ucraniana, a sua obra tem sido analisada pelos críticos como dupla. De um lado as histórias ucranianas, que se passam em ambientes festivos, carnavalescos e lendários, retratados a partir das lembranças da infância e da juventude na região de Poltava (Ucrânia), onde o escritor nasceu, e das descrições que a mãe enviava a pedido do filho. São dessa fase a lendária Tarás Bulba, novela épica que ajudou a perpetuar a imagem dos cossacos como povo guerreiro, destemido, amante de bebidas e farras, pronto a trabalhar e lutar com incansável disposição.

E não pode ficar de fora o grande romance Almas mortas, onde lemos a definição épica e mítica da Rússia na imagem da troica, no final da primeira parte, no momento em que Tchitchicov, em suas andaças pelo interior da Rússia, exorta o cocheiro Selifan a apressar os cavalos. Em tradução de Tatiana Belinky: “Isso é jeito de andar? Toca para a frente, anda! [...] E qual é o russo que não ama uma corrida veloz? Que alma, senão a alma russa, que aspira a embriagar-se, entrar num torvelinho, dizer de quando em quando: ‘Que vá tudo ao inferno!’ [...] Eh, troica! Pássaro troica, quem foi que te inventou? Só podias ter nascido de um povo atrevido, naquela terra que não está para brincadeiras, mas espraiou-se, imensa e alastrada, pela metade do mundo. [...] E não é assim que tu mesma voas, Rússia, qual uma troica impetuosa que ninguém consegue alcançar? [...] Rússia, para onde voas? Responde! Ela não responde. Vibram os sininhos no seu tilintar mavioso, zune e transforma-se em vento o ar dilacerado em farrapos; passa voando ao largo tudo o que existe sobre a terra, e, de olhar enviesado, afastam-se e abrem-lhe caminho os outros povos e os outros países”.

De outro lado, os textos petersburgueses, ambientados na capital do Império, no clima urbano sombrio e aterrador de uma São Petersburgo dominada pela burocracia estatal, porém enganadoramente sedutora, como descreve Gógol no final de Avenida Niévski, em que a avenida principal resume as características da cidade. Em tradução de Rubens Figueiredo: “Ela mente o tempo todo, essa avenida Niévski, porém mente sobretudo quando a noite recai sobre ela como uma densa massa e realça as paredes brancas e cor de palha

*Denise Regina de Sales é Doutora em Literatura e Cultura Russas pela Universidade de São Paulo e professora de Língua e Literatura Russas do Instituto de Letras da UFRGS.

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ECOS DA LEITURA

A LITERATURA RUSSA DOCUMENTAL

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im, um mar de povos e culturas e uma literatura múltipla, expressão dessa variedade. E qual seria o lugar de Svetlana Aleksiévitch nesse conjunto? Nascida em 1948, Aleksiévitch mudou-se com a família para o interior da República da Bielorrússia e, mais tarde, formou-se em jornalismo na capital, Minsk. Em 1983, por indicação de escritores, entre eles Ales Mikháilovitch Adamovitch, entrou para a União dos Escritores da Bielorrússia. Eu venho de uma vila em chamas, livro de Adamovitch em coautoria com Ianka Bril e Vladímir Andreievitch Koliésnik, impressionou positivamente a autora que buscava um estilo próprio, uma forma de exprimir as vozes da vida real, que ela ouvia a cada dia nas ruas, em casa, nas lanchonetes: “Passei muito tempo procurando: Com que palavras seria possível transmitir o que escuto? Procurava um gênero que respondesse à forma como vejo o mundo, como se estruturam meus olhos, meus ouvidos”, conta ela no capítulo “O ser humano é maior que a guerra”, no início de A guerra não tem rosto de mulher. Pois Adamovitch ofereceu-lhe o que ela procurava. Estava tudo ali naquele romance cujo tema é a tragédia vivida pelo povoado de Khatin (Bielorrússia), completamente arrasado pelas tropas nazistas em março de 1943. A habilidade em retratar de forma contundente a violência e

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o absurdo da guerra inspirou ainda um dos relatos cinematográficos mais intensos sobre a Segunda Guerra: o filme Vá e veja, de Elem Germánovitch Klimov. Nele Fliora, um garoto-soldado representa a voz infantil, a voz da ingenuidade, silenciada pela violência da guerra; ele espelha toda a perplexidade humana no pós-guerra, na época da inocência perdida, na época da passagem direta de um estado de ingenuidade e esperança ao estado de ceticismo traumatizado. Em entrevista sobre o filme, cuja estreia aconteceu em 1985, Klimov explica que, num sentimento semelhante ao relatado por Svetlana Aleksiévitch, sentia-se incomodado por não ter contado a sua história da guerra, “por não ter feito o meu filme sobre a guerra”. Quando criança, em 1942, ele e a mãe fugiram de Stalingrado (Volgogrado) pelo rio Volga e, ao longo do percurso, aterrorizaram-se com a visão da cidade em chamas, em toda a sua longa extensão. “Meu pai ficou na cidade para defendê-la. Quer dizer, tenho lembranças de infância muito fortes dessa época, desse inferno. E elas vivem dentro de mim até hoje. Quando a Guerra Fria se acirrou, parecia-me que estávamos muito próximos de uma terceira guerra mundial”, conta o diretor. Quando teve a ideia do roteiro, Klimov escolheu o título Mate Hitler, porém, passados sete anos, disseram-lhe estar proibida pela censura a menção do nome de Hitler em público. Klimov insistiu: mas é mate Hitler, e não só no sentido mais literal, mas inclusive no sentido mais amplo, de matar o


ECOS DA LEITURA

Hitler que há cada um de nós, de matar o princípio diabólico. No mundo de Klimov, no mundo de Adamovitch, estão os elementos usados por Svetlana Aleksiévitch em sua prosa. O que ela quer é falar das vozes que coletou, das pessoas que ouviu e não de uma guerra gloriosa como aparece nos livros de história. Ela entendeu que o importante são as “pessoas pequenas”, “o pequeno grande ser humano. Humilhado, pisoteado, ofendido”. Humilhado e ofendido, como no título do romance de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, outra influência abertamente declarada na obra da escritora bielorrussa. A segunda epígrafe de As últimas testemunhas lembra um trecho de Os Irmãos Karamázov. Ivan e Aliocha discutem. O primeiro afirma, revoltado: “Enquanto houver tempo eu me apressarei a me proteger, porque recuso a harmonia eterna. Ela não vale uma lágrima minúscula nem mesmo daquela criança supliciada, que batia com seus punhozinhos no peito e rezava ao seu ‘Deusinho’ naquela casinha fétida e banhada em suas minúsculas lágrimas não redimidas!”. A revolta de Ivan no romancesíntese de Dostoiévski consiste na ideia que resume o sentido e a motivação do relato sobre o massacre das crianças bielorrussas. Por outro lado, por semelhança temática, os livros de Svetlana Aleksiévitch aproximam-se mais de Memórias da casa dos mortos. Divulgada como litera-

tura de não-ficção, a prosa da autora de Vozes de Tchernóbil alinha-se ao relato autobiográfico de Dostoiévski sobre os quatro anos passados em uma prisão de trabalhos forçados, embora este último tenha conferido um caráter mais ficcional a suas memórias, ao introduzir um editor que prefacia o relato e afirma estar publicando o conteúdo dos cadernos de Aleksandr Pietróvitch Goriântchikov, preso e condenado pelo assassinato da própria esposa. “Para que as pessoas recordam? Para restabelecer a verdade? A justiça? Para se libertar e esquecer? Ou porque compreendem que participaram de um evento grandioso? Porque buscam no passado alguma proteção?”, pergunta-se Aleksiévitch Em Vozes de Tchernóbil. Nas respostas da autora ecoa a prosa de Varlam Tíkhonovitch Chalámov, autor de Contos de Kolimá Kolimá, seis volumes sobre quase vinte anos de encarceramento em prisões e campos de trabalhos forçados. Para Chalámov, o mundo exigia uma “nova prosa”, um texto escrito com sangue, por testemunhas que viveram na carne o sofrimento, no caso dele, o martírio dos campos de trabalhos forçados. Assim ele criou uma coletânea de contos impactantes, em que busca levar o leitor à atmosfera desumana e desumanizadora das prisões geladas do Extremo Norte. A prosa documental do futuro é esse documento da memória, emocionalmente marcado no corpo e na alma, uma literatura onde tudo é documento, como as vozes ouvidas e contadas pela ganhadora do Nobel.

Texto na íntegra disponível em: https://goo.gl/mKQtkN 31


ESPAÇO DO ASSOCIADO

Entrevista com uma das primeiras associadas A gaúcha Maria da Graça Wagner Paim, moradora de São Francisco de Paula-RS, é uma das 65 pessoas que se associaram à TAG em seu primeiro mês, em agosto de 2014. Naquela época, ela morava em Porto Alegre e recebia suas caixinhas em casa pelas mãos de um dos três fundadores. Para celebrar quatro anos do clube, convidamos a Maria da Graça para contar um pouco sobre suas experiências literárias em uma entrevista gentilmente concedida por ela. Confira!

A TAG começou com 65 associados e hoje envia seus kits para mais de 25 mil leitores. Como você se sente sabendo que foi uma das primeiras pessoas a apostarem em uma ideia que, na época, parecia tão improvável? E qual sua opinião sobre as transformações pelas quais a TAG passou durante esses 4 anos? Na verdade, para mim, a TAG nunca foi uma ideia improvável. Sempre acreditei na ideia e incentivei as pessoas ao meu redor a apostarem também. Talvez essa confiança deva-se ao fato de que, há muitos anos atrás, fui membro do Clube do Livro, a quem eu devo os meus tempos de leitora mais assídua. Embora a proposta do Clube fosse diferente da TAG, a essência era a mesma: receber um novo livro em casa, mensalmente, o que me “obrigava” a terminar aquela leitura antes que o mês terminasse, pois um outro a ser lido chegaria em breve. Acredito que desde que o Clube deixou de existir, ficou um vazio que veio a ser preenchido de um

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modo ainda mais especial pela TAG que, ao mesmo tempo que me proporciona o conforto de receber um livro em casa, também me retira da zona de conforto, ao me apresentar autores e leituras que eu jamais teria arriscado a me aventurar. Das transformações que a TAG passou nesses quatro anos, a que mais chama a atenção certamente diz respeito ao formato das edições, que agora são exclusivas para os associados. As edições são uma obra de arte à parte, feitas com todo o cuidado e qualidade ímpar, item de colecionador mesmo! Se antes eu já tinha orgulho da minha pequena biblioteca particular, agora eu quero ter prateleiras na sala para exibir os livros da TAG, de tão lindos e exclusivos. Tudo na TAG é pensado para oferecer aos associados uma experiência literária rica, diferente da que estamos acostumados. De todas as caixinhas que a TAG enviou nesses 4 anos, qual foi a sua preferida?


ESPAÇO DO ASSOCIADO

Essa é uma pergunta muito difícil de responder, porque tenho muito carinho por cada caixinha que recebi. São todas incríveis, todas me surpreenderam e encantaram de um modo diferente. Vou citar, então, a que me veio primeiro à mente: a caixa de outubro de 2015, que nos presenteou com uma linda edição dos Contos de imaginação e mistério de Edgar Allan Poe. Sempre fui fã do gênero suspense, terror e mistério, mas nunca tinha me arriscado a ler qualquer coisa do famoso autor, talvez por pensar que não era uma leitura muito “acessível” ou por simplesmente não saber por onde começar. Eis que surge a caixinha com essa edição convidativa, grande, gostosa de manusear, repleta de ilustrações fantásticas. E a revista contando a história trágica e incrível do Poe, trazendo o poema mais famoso dele traduzido (nunca tinha tido a oportunidade de ler, apesar de conhecê-lo), e as curiosas referências ao autor na cultura contemporânea! Imperdível, fiquei ainda mais fascinada por essa experiência. Almejamos que os associados sintam que participar da TAG é uma experiência que vai além de apenas ler o livro: a espera da caixinha, a surpresa ao descobrir o livro, ler ao mesmo tempo que milhares de associados espalhados pelo Brasil. Qual parte da experiência você mais valoriza? A parte mais valiosa da experiência de fazer parte da TAG é, sem dúvi-

da, a surpresa. Acho genial a ideia de aceitar ler algo que, se dependesse de você, não leria, seja por desconhecimento (da existência de determinado livro), seja pelos hábitos literários e pela comodidade que nos prendem a determinados gêneros e autores já consagrados. Acho que a tendência de todos nós é buscar o familiar, o seguro, algo que sentimos que nos trará o retorno esperado, especialmente em tempos de crise financeira, em que os recursos são escassos. Contudo, apostar no diferente e arriscar adquirir algo incerto, no escuro, está sendo revolucionário para mim. Em nosso aplicativo, associados postam, frequentemente, relatos de como seus hábitos de leitura mudaram depois de ingressar no clube. Você sentiu que, de alguma maneira, participar da TAG mudou sua relação com os livros? Sim, em dois sentidos: a “obrigatoriedade” que me impus de ler com mais frequência, já que tenho a certeza de que todo mês um livro novo chegará na minha casa (e não quero simplesmente acumulá-los), e a diversidade decorrente dessa experiência, que ampliou meus horizontes literários. De fato, a TAG me trouxe “experiências literárias”, me apresentando um mundo inteiro de autores que muitas vezes nem chegam às livrarias mais próximas e que, mesmo se eu tivesse a oportunidade de encontrar, talvez não me arriscasse a comprar.

A entrevista está disponível na íntegra no blog da TAG e pode ser acessada através do link: https://goo.gl/FN4WgQ

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LEIA DEPOIS DE LER

A história que voa no vento

Sérgio Rodrigues

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projeto literário de Svetlana Aleksiévitch é ao mesmo tempo de grande singeleza e vertiginosa ambição: ligar o gravador, puxar conversa com todo mundo e assim, de memória em memória, compor como colcha de retalhos uma espécie de coro que ultrapassa qualquer instância até então conhecida – relato jornalístico, ensaio acadêmico, ficção, até mesmo a poderosa poesia – na capacidade de fixar aquela história oral e meio fantasmagórica que, no fim das contas, é sempre a história mais verdadeira dos povos. Para além de estátuas de heróis e datas cívicas, essa história impal-

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pável responde a questões que não têm resposta no reino das grandes ideias concretas ou abstratas: como era nossa vida naquele tempo? Como ficou? Como posso ter sobrevivido a tanto horror? A que preço? História da vida privada, mas não só: também das paisagens íntimas, daquilo que permanece em silêncio sob o trauma. Como flagrar o que, nas palavras de Bob Dylan, voa no vento? Svetlana lida com grandes tragédias coletivas: a Segunda Guerra Mundial, a guerra do Afeganistão, o desastre nuclear de Tchernóbil, o desmoronamento da União So-


LEIA DEPOIS DE LER

viética. No caso deste As últimas testemunhas – primo-irmão de A guerra não tem rosto de mulher, em que a voz é dada às mulheres –, acompanhamos o estraçalhamento que o maior conflito bélico da história provocou na vida de crianças, segundo lembranças que elas mesmas desencavam muitas décadas mais tarde.

O livro é devastador porque o olhar infantil sobre a guerra é talvez o mais pungente que possa existir. Se a barbaridade é sempre atroz, seu desabamento sobre criaturas de poucos anos de vida, das quais se pode dizer que são literalmente inocentes, pertence ao reino do intolerável. No entanto, serão consistentes as memórias que essas “testemunhas” conjuram com maior ou menor segurança tanto tempo depois?

tes do que as narradas aqui. Contudo, isso importa pouco. Tratando-se de um registro da história oral, sua prova dos noves é menos a verdade factual do que a própria narração – o modo como aquilo foi processado. O trauma coletivo dá foco e coerência aos depoimentos soltos que Svetlana vai colhendo, e que do contrário correriam o risco de se diluir num oceano de banalidade demasiado humana – ainda verdadeiros, provavelmente, mas desprovidos de qualquer esperança de senso narrativo. É o horror histórico que potencializa e torna imantado cada detalhe de seus livros. Nada pode ser gratuito quando o mundo está acabando, pode? Ao costurar sua colcha de retalhos, agindo mais como montadora de cinema do que como escritora propriamente dita, Svetlana é uma editora meticulosa que orquestra sua sinfonia de efeitos dramáticos, trágicos, patéticos, revoltantes, até líricos, como se não estivesse ali. A força de seus escritos não deixa dúvida de que a habilidade da autora que não ousa dizer seu nome é notável, ainda que inclua a mágica da ocultação de suas pegadas.

A pouca confiabilidade de nossas lembranças poderia ser um ponto fraco do projeto de Svetlana. Afinal, a memória humana é sabidamente submetida a forças de subtração (esquecimento, recalque) e adição (falsas memórias, recriação), mesmo em situações bem menos estressan-

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A PRÓXIMA INDICAÇÃO

C

O curador de agosto Cristovão Tezza

Guilherme Pupo

O livro que chega na caixinha do mês de agosto é uma indicação do aclamado escritor Cristovão Tezza. Romancista, contista, cronista e ensaísta, Tezza é dono de uma obra que ultrapassa vinte títulos no Brasil, já traduzida em dezoito países e que acumula inúmeros prêmios nacionais e internacionais. O catarinense foi um dos dez escritores de língua portuguesa a contribuir para o livro exclusivo da TAG, Uns e outros, com o conto “O herói da sombra”. Tezza indica ao associado duas narrativas escritas por um dos au-

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“É um autor que não se consegue largar. Um [romance] policial soberbo - até é injustiça chamar esse livro de policial… uma história maravilhosa - e uma novela absolutamente perfeita. O livro que eu gostaria de ter escrito.”

tores que mais admira. Publicadas em momentos distintos da carreira deste suíço, elas chegam a você reunidas no mesmo livro em uma publicação exclusiva. Na primeira delas, um romance policial um tanto peculiar, acompanha-se a história de um detetive aposentado que decide investigar obcecadamente um crime que parecia já estar resolvido. Na novela que a sucede, um caixeiro-viajante se vê obrigado a pernoitar em um povoado por conta de um problema em seu carro e acaba por participar, com o anfitrião que o acolhe, de um estranho jogo que simula um tribunal.


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