Mar2017 " A câmara sangrenta e outras histórias"

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EQUIPE Álvaro Englert Ariel Belmonte Bruna Kafrouni Bruno Moutinho Bruno Ozelame Caroline Boeira Cássia Caetano Celina Raposo Daniel Romero Dione Guimarães Rosa Douglas Dolzan Eduardo Schneider Guilherme Karkotli Gustavo Karkotli

João Pedro Dassoler Lucas Fredo Luísa Andreoli Maria Eduarda Largura Maria Eduarda Mello Mariah Pacheco Marina Brancher Pablo Valdez Rodrigo Antunes Suya Castilhos Tomás Susin Vinícius Goulart Vinícius Reginatto Wesley Osorio


Ao Leitor

“O texto da Angela Carter é moderníssimo, é um primor. Ainda bem que Adriana Lisboa teve o bom senso de não o alterar.” Assim reagiu Marina Colasanti, nossa curadora, quando lhe informamos que Adriana havia optado por manter o título original do livro, que havia sido publicado no Brasil há mais de quinze anos como O quarto do Barba-Azul. Além da nova tradução, esta edição ainda conta com ilustrações e prefácio exclusivos para a TAG.

Em homenagem a Angela Carter, que tanto lutou para fortalecer a voz feminina na literatura, decidimos contratar somente mulheres para assumirem o projeto do livro: tradutora, revisora, ilustradora, designer. E o resultado não poderia ter sido melhor. Enquanto em fevereiro trouxemos a arrebatadora simplicidade de Jhumpa Lahiri, o mês de março nos reserva a enigmática Angela Carter e sua Câmara sangrenta e outras histórias.



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A curadora: Marina Colasanti O livro indicado: A câmara sangrenta e outras histórias

Origens dos contos

Virago Press O mundo fantástico de Marina Colasanti

Filmes & Fábulas

O curador: Daniel Galera



A curadora: Marina Colasanti

A autora nasceu no ano de 1937 em Asmara, capital da Eritreia, na África. Filha de italianos, mudou-se para a terra natal dos pais e lá morou até os onze anos, quando finalmente chegou ao Brasil, onde vive até hoje com o marido, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, na cidade do Rio de Janeiro. Seu currículo é extenso: trabalhou nas áreas de jornalismo, publicidade, artes plásticas e literatura. Marina é, ainda, renomada tradutora do inglês, francês e italiano.

Certa vez, uma escritora de então setenta e oito anos, cuja lista de livros publicados e prêmios conquistados é extensa, para dizer o mínimo, ouviu a pergunta: Você está satisfeita? Espirituosa, respondeu: “Eu não sei o que é isso. É aquilo que você [sente quando] termina o almoço e não quer mais comer?”. E teve tempo para emendar: “Se eu gosto do trabalho que fiz? Gosto. Os escritores mentem muito nesse quesito, dizem que não releem seus textos. Vou te dizer uma coisa: é impossível não reler os próprios textos”. Assim é Marina Colasanti, cujo apetite literário parece insaciável.

Nascida em uma família entusiasta dos livros, logo adquiriu o mesmo gosto pela literatura: “Nunca pensei

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que uma casa pudesse não ter livros. Os móveis da minha imaginação: um fogão, um colchão e estantes, o resto a gente dá um jeito. [...] Os livros sempre estiveram dentro da minha vida, eles fazem a costura; eles não têm uma entrada, são o meu fluxo no mundo”.

– e nem sempre precisam de uma lição no fim: “Durante muito tempo, no século XIX, quando se inventou o conceito de criança, quando ela passou a ser um ser diferenciado, considerou-se que a literatura infantil e os contos, eram um cavalo de Troia, que serviam para veicular ensinamentos sábios, comportamentos, etc. Ou seja, era uma educação com disfarce, e isso é muito perigoso”.

Entre 1952 e 1956, Marina estudou na Escola Nacional de Belas Artes, participando de diversos salões de artes plásticas, como o VII Salão de Arte Moderna. Depois da experiência com pintura, ingressou no Jornal do Brasil, em 1962, atuando como cronista, colunista e ilustradora. Mais tarde, viria a ser redatora de uma agência de publicidade e ainda apresentadora e entrevistadora na TV Rio, Tupi e TVE.

Quando escreve para crianças, Marina está conversando com elas, jamais se colocando no lugar de uma. Preza sempre pela qualidade linguística e não desvaloriza o intelecto de seu público. “Aquela conversa que é ‘a criança em mim’ [escrevendo] não me serve. Não é disso de que se trata. Eu levo a criança muito a sério, converso com ela em absoluta seriedade, o que não quer dizer que não queira vê-la sorrindo. Mas é um reconhecimento, um respeito absoluto por sua inteligência. Acho que ela entende tudo, que sabe tudo, que é muito curiosa”.

Desde o lançamento de seu primeiro livro, Eu sozinha, em 1968, a autora mantém uma produção literária ininterrupta, com mais de cinquenta obras publicadas, entre poemas, crônicas, contos e literatura infantojuvenil. Foi nesta categoria que Marina ganhou, em 2014, o último de seus sete prêmios Jabuti, com Breve história de um pequeno amor.

Já em relação aos contos de fadas, a autora insiste: são obras para todas as idades. “Acham que qualquer folclore ou história que tenha uma fada ou uma bruxa é um conto de fadas dedicado ao público infantojuvenil.” Assim como na mitologia, os contos fantásticos são geralmente muito antigos, passados de geração em geração e direcionados a toda uma sociedade, não somente ao público jovem. Para os que ainda acreditam

Ainda que suas obras literárias dialoguem com estilos diversificados, Marina tem especial reconhecimento quando o assunto é literatura infantojuvenil e contos de fadas. Segundo ela, embora muitas vezes próximos, são dois gêneros distintos

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que os contos de fadas são narrativas “bobas”, Marina argumenta: “Basta ver a frequência com que são reescritos, parodiados, ‘atualizados’, como se a versão primeira fosse insuficiente para a modernidade. É exatamente o contrário. É como se cada conto contivesse diversos nichos de interesse, capazes de abrigar diferentes idades”. Foi por uma “questão técnica” que a escritora deu início à criação dos contos de fadas. Quando trabalhava no Jornal do Brasil, viu-se encarregada pelo caderno dedicado ao público infantil, já que a editora, Ana Arruda Callado, havia sido presa pela ditadura militar. “Num dado momento, faltava matéria, e tive que produzir alguma coisa. Peguei a máquina e escrevi um conto que era para ser a remontagem da Bela adormecida; mas acabei escrevendo um outro conto, Sete anos e mais sete; fiquei boquiaberta, eu tinha feito uma coisa dificílima! Contos de fadas são dificílimos e não é uma literatura que possa ser dominada pela razão, é uma literatura que tem que vir de outras regiões. Fiquei muito encantada, não sabia como tinha acontecido. Tive que descobrir o processo e escrevi o meu primeiro livro, Uma ideia toda azul; a partir daí, escrevi também literatura infantil.” Com Uma ideia toda azul, a escritora, artista plástica de formação, percebeu que poderia ser a ilustradora de suas próprias obras. Desde o lançamento, praticamente todos os

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outros livros de Marina Colasanti são também um trabalho visual. Ligada ao movimento feminista, Marina foi membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher de 1985 a 1989 e realizou palestras pelo Brasil inteiro. Muitas de suas obras evocam questões do feminino, e evidenciam seus posicionamentos, com destaque para A nova mulher, Mulher daqui pra frente, Aqui entre nós e Intimidade pública. Por diversas vezes, mencionou a existência do preconceito e da desvalorização das escritoras. “Acho que tem a ver com mercado: pode ser uma disputa de espaço. Apesar de as mulheres lerem mais, lerem mais literatura e poesia, elas são muito menos publicadas e são muito menos cultuadas do que os poetas. Cecília Meireles não é menor do que Mario Quintana e tantos outros, mas é muito menos reconhecida e editada.” Não é por acaso sua admiração pelo livro deste mês: “Angela Carter não apenas deu uma participação maior às mulheres nos contos de fadas, ela foi uma estudiosa do gênero, selecionando contos do folclore universal em que as mulheres tivessem papel de destaque. Como ela própria disse usando uma frase de Blake: ‘Se o louco persiste em sua loucura, ele se torna sábio’. Eu imagino que seja desta maneira que alcancei o feminismo, ao analisar a sensação de que sempre havia algo que ficava fora do quadro”.

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A quem interessar possa

Publicado no livro Contos de amor rasgados (1986) “Abriu a janela no exato momento em que a garrafa com a mensagem passava, levada pelo vento. Pegou-a pelo gargalo e, sem tirar a rolha, examinou-a cuidadosamente. Não ti-

nha endereço, não tinha remetente. Certamente, pensou, não era para ele. Então, com toda delicadeza, devolveu-a ao vento.”

Para que ninguém a quisesse Publicado no livro Contos de amor rasgados (1986)

“Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda, das gavetas tirou todas as joias. E vendo que, ainda assim, um ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.

xando de ocupar-se dela, permitindo que fluísse em silêncio pelos cômodos, mimetizada com os móveis e as sombras. Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera por ela.

Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair.

Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar. Largou o tecido numa gaveta, esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda.”

Então lhe trouxe o batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.

Tão esquiva se fez, que ele foi dei-

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lançados em 1979, os con s são prova da sofisticação e Angela Carter. Ao se apro as folclóricas como Cha elho e a Bela e a Fera, além s míticos como vampiros, ntidades sobrenaturais, a ói um universo realista que tico. Como quem desman cabeça, ela reposiciona as ino, da violência, da sexua oísmo em um imaginário erente aos paradigmas de

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ANGELA CARTER

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RIASANGELA CA UTRAS HIST

uco conhecida no Brasil, é considerada uma das oras inglesas do século 20. vasta quanto variada: são vros, entre contos, roman nsaios e peças. Acumulou os durante a carreira, mas ista está no legado artístico câmara sangrenta e outros os melhores exemplos de


O livro indicado: A Câmara sangrenta e outras histórias

de uma dona de casa, a menina viveu uma infância na qual recebeu muito amor, mas em que foi constantemente mimada e controlada: a mãe costumava vesti-la com vestidos suntuosos, sapatos caros e a impedia de ir sozinha ao banheiro até que completasse onze anos. Como consequência, a autora desenvolveu um forte apreço pela solidão – uma ótima característica para uma escritora.

No final dos anos sessenta, depois de comparecer à gravação de um programa da emissora britânica BBC, a premiada autora A. S. Byatt – que viria a receber, entre outras nomeações, o Booker Prize – foi surpreendida por uma jovem escritora quando saía do evento. Segundo Byatt, ela disse: “Meu nome é Angela Carter. Eu reconheci você e queria parar e lhe dizer que o tipo de coisa que você está fazendo não é nada bom, nada bom. Não há nada ali – não é o caminho para o qual a literatura está indo”. “Esse tipo de coisa” à qual a jovem Carter se referia seriam os romances nos quais “pessoas tomam chá e cometem adultério”.

Hugh, seu pai, influenciou de forma decisiva os caminhos profissionais de Angela, que teve seu primeiro contato com a escrita no jornalismo, trabalhando no periódico The Croydon Advertiser. Em ambiente universitário, sua paixão pela escrita e pela leitura levaram-na ao estudo de Literatura Inglesa na

Angela Olive Stalker nasceu no dia 7 de maio de 1940, em Eastbourne, Inglaterra. Filha de um jornalista e

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Universidade de Bristol, cidade que serviria de inspiração para uma trilogia posteriormente publicada. Aos vinte anos, Angela casou-se com Paul Carter, de quem ela adotou o sobrenome pelo qual seria reconhecida. Entre 1966 e 1967, lançou seus primeiros romances: Shadow dance, fantástico e violento, e The magic toyshop, obra em que Carter explora a vitimização e sexualidade da mulher.

“Seus livros nos desencaixam, tombando as estátuas do pomposo, demolindo os templos e comissariados da retidão. Eles tiram sua força, sua vitalidade, de tudo o que é perverso, ilegítimo, baixo. Eles não têm equivalentes e não têm rivais.” – Salman Rushdie

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No ano de 1969, com as quinhentas libras que recebera como prêmio pelo livro Several perceptions, Angela foi morar no Japão por dois anos, deixando o marido. O divórcio seria consumado apenas em 1972, mas ela já provava, em uma época de costumeira repressão às mulheres, que um casamento frustrante não a impediria de seguir suas vontades. A estadia da escritora no Oriente – onde ela leu Jorge Luis Borges e encontrou na cultura japonesa uma combinação de delicadeza e violência – ajudou-a a expandir seu imaginário literário e foi imprescindível para a formação feminista; lá, descobriu “o que é ser mulher e se radicalizar”, como disse em um de seus livros. Comentários sobre essas experiências estão também em artigos e em outros livros, como Fireworks: nine profane pieces, sua primeira coletânea de contos.

é considerado por muitos o melhor trabalho da escritora. Não surpreende que seja o livro escolhido por Marina Colasanti para os associados da TAG. Envolventes, originais e de escrita impecável, os dez contos narrados por Angela Carter em A câmara sangrenta desafiam os paradigmas de representação das mulheres nos contos de fadas, ao mesmo tempo em que conservam certas convenções e tradições ao longo de uma prosa sensual e descritiva. A autora explora o tema do feminismo ao contrastar elementos tradicionais da ficção fantástica – que habitualmente descreve personagens femininas como frágeis e desamparadas – com protagonistas fortes e impositivas.

O ano de 1979 foi um dos mais importantes da carreira de Carter, quando duas de suas obras mais celebradas foram lançadas. Em The Sadeian Woman and the ideology of pornography, livro de não ficção, a autora causou imensa polêmica ao debater a obra de Marquês de Sade sob uma perspectiva feminista (ainda que tenha gerado críticas de dentro do próprio movimento); já A câmara sangrenta e outras histórias, coletânea de contos, teve ampla aceitação de público e crítica, e

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Como diz Adriana Lisboa no prefácio exclusivo de nossa edição, uma característica recorrente nos contos de A câmara sangrenta é o encontro das naturezas humana e animal: somos apresentados a seres híbridos, gatos lascivos, lobisomens, uma menina que vive entre lobos. No cerne das histórias, a sexualidade feminina, que nunca pressupõe a passividade das personagens como um mérito; vemos Chapeuzinho Vermelho e o lobo em condições de igualdade, assim como estão a Bela e a Fera. No conto de abertura, inspirado na fábula de Barba Azul e que empresta o título ao livro, acompanhamos um sinistro marquês na França do fim do século XVIII que, depois de enviuvar três vezes, dedica-se à sua quarta jovem esposa, tudo sob uma atmosfera de mistério e apreensão. Em “O sr. Lyon faz a corte” e “A noiva do tigre”, não sabemos a quem se deve temer, se à assustadora Fera ou à sorridente Bela. Já “O gato de botas”, em contraste com os primei-

ros contos, traz uma narrativa mais leve, onde jovens apaixonados que querem se casar são impedidos por um velho avarento e buscam a ajuda do esperto e mulherengo felino. Assim são as fantásticas narrativas de Angela Carter: recheadas de incertezas, personagens ambíguos, manifestações de desejos e suas variadas possibilidades. Histórias que inspiraram outros escritores, leitores e até cineastas – como foi o caso de Neil Jordan, que adaptou o conto “A companhia dos lobos” para um filme de sucesso, em 1984.

A câmara sangrenta e outras histórias foi, inúmeras vezes, descrita erroneamente como uma coletânea de contos de fadas misturados a um feminismo subversivo. A própria autora comentou: “Minha intenção não era fazer ‘versões’ ou, como a edição americana do livro chamou, horrivelmente, contos de fadas ‘adultos’, e sim extrair o contexto latente das histórias tradicionais e usá-las como o começo de novas histórias”. Angela Carter recusou-se a simplesmente rejeitar ou denunciar os contos de fadas clássicos (como antes

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fizeram Simone de Beauvoir e Betty Friedan); em vez disso, abraçou o já estigmatizado gênero, seus personagens e histórias conhecidas e deu vida nova a elas. A autora ainda lançaria outros títulos, todos marcados pela escrita de excelência; entre eles, destacamos Wise children (1991), sua última publicação, cuja ausência na lista de indicados para o Man Booker Prize do mesmo ano gerou revolta e motivou a criação do Orange Prize (hoje conhecido como Baileys Women’s Prize). O premiado autor britânico Salman Rushdie, amigo íntimo de Carter, costuma citar Wise children entre seus livros preferidos.

Em 1992, depois de um ano de batalha contra o câncer de pulmão, Angela faleceu, com apenas cinquenta e um anos. A obra da autora foi revisitada, e seu nome, embora já conhecido ao redor do mundo, passou a figurar entre os grandes autores britânicos de todos os tempos. Sem qualquer tipo de receio ou pudor, ela compartilhou propostas e novas perspectivas sobre o mundo em que vivemos. Mais do que uma coleção de histórias, sua obra é também um trabalho argumentativo, como afirmou: “Explorar ideias, para mim, é o mesmo que contar histórias, pois a narrativa é uma argumentação posta em termos ficcionais”. E Angela Carter foi uma mulher que transbordou ideias, não se resignando a escrever romances em que pessoas “tomam chá e cometem adultério”.

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ECOS da leitura



Origens dos contos O Barba-Azul

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s histórias de Angela Carter estão longe de apresentar a perspectiva tradicional dos contos de fadas; todas elas, no entanto, são baseadas em personagens e enredos já conhecidos. Alguns apropriamse de referências diretas, enquanto outros apenas apanham elementos para desenvolverem uma narrativa única. Dedicamos este Eco para relembrar as origens dos quatro contos mais célebres que serviram de inspiração para Carter em A câmara sangrenta e outras histórias.

Lenda do folclore francês imortalizada por Charles Perrault sob o título La Barbe-Bleue, foi publicada pela primeira vez no livro que ficou conhecido como Contos da Mamãe Gansa, de 1697. Apesar de ser considerada uma obra ficcional, estudos indicam que o personagem Barba Azul deriva de indivíduos reais, cujos relatos de atrocidades assustaram a população de sua época.

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O Gato de Botas Esta história tem origens diversificadas – como contos indianos do século XI e folclore italiano dos séculos XVI e XVII. O personagem Gato de Botas obteve notoriedade novamente com Charles Perrault, em 1697, com o título Le chat botté.

Chapeuzinho Vermelho Conto de fadas europeu de raízes que vêm desde o século X, quando era transmitido oralmente por camponeses da França, Itália e Alemanha; as narrativas mais famosas foram escritas pelos Irmãos Grimm e por Charles Perrault, e até hoje excitam a imaginação das crianças do mundo inteiro.

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Bela e a Fera

Tradicional conto francês de Gabrielle-Suzanne Barbot, publicado em 1740 com o nome La Belle et la Bête e eternizado na animação da Disney. Suas influências passam por lendas latinas do século II a.C até o folclore italiano do século XVI.

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O interesse de Angela Carter em questionar padrões de comportamento social sob o ponto de vista feminino ajudou no fortalecimento de sua relação com editoras de filosofias congruentes; é o caso da Virago Press, que desde 1973 vem publicando obras de mulheres como Margaret Atwood, Maya Angelou,

Sarah Dunant e Marilynne Robinson (além da própria Carter), com lançamentos e edições especiais. Como não poderíamos descrever o trabalho da Virago melhor do que quem a concebeu, trazemos neste Eco a breve apresentação da editora, em tradução de Julia Dantas, presente no site virago.co.uk:

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“A Virago foi uma ideia de Carmen Callil, concebida em um tempo, um lugar e uma situação política particulares. Depois de quarenta anos, a Virago é uma extraordinária editora internacional de livros escritos por mulheres. O cenário cultural, político e econômico mudou drasticamente nas últimas quatro décadas, mas a Virago continuou verdadeira em seus propósitos originais: colocar as mulheres no centro da cena; explorar as histórias não contadas de suas vidas e seu histórico; quebrar o silêncio acerca de muitas experiências das mulheres; publicar nova ficção de tirar o fôlego, ao lado de uma valiosa lista de clássicos redescobertos; e, acima de tudo, defender o talento das mulheres. Às vezes, publicamos para entreter, às vezes publicamos para dar aos leitores o puro prazer de lindas palavras, às vezes publicamos para mudar o mundo. O nome transmitiu de imediato a atitude da Virago. A palavra significa “heroica mulher guerreira”, ou, como define o Thesaurus, um tipo específico de mulher: bruxa, megera, dragão, belicosa, raivosa, harpia, rabugenta, assanhada, difamadora, ranzinza, diaba, sereia, fera, megera, tigresa, insolente, turbulenta, meretriz. Aí estava uma arrivista atrevida, feliz em chocar e provocar. A Virago nunca se viu como um nicho, nunca uma editora de butique. Podemos, às vezes, publicar o que está nas margens, mas nunca nos vimos como marginalizadas; sempre caminhamos pela via principal nas melhores companhias.”


Marina Colasanti O gênero contos de fadas, de característica altamente imagética, costuma nos trazer à mente obras com belas ilustrações, como é o caso desta edição de A câmara sangrenta e outras histórias. Um dos desafios na elaboração destes trabalhos é complementar texto e imagem, visando a maior coesão e aprimorando a experiência de leitura.

Imagine, então, que existam livros cujas histórias são contadas pela mesma pessoa que as ilustra. A narradora é, ainda, altamente premiada e também uma artista plástica de formação. Essa é Marina Colasanti, nossa curadora. Ilustramos este Eco com algumas de suas obras, retiradas do livro Mais de 100 histórias maravilhosas.

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Filmes & Fábulas Assim como o livro deste mês, há inúmeras obras que se valem do mundo mágico dos contos de fadas como ponto de partida para narrativas mais obscuras. O cinema costuma ser uma das plataformas que mais investe nesse “subgênero”, e não raras vezes os espectadores são agraciados com filmes magníficos.

A Bela e a Fera (1946, dir. Jean Cocteau) Adelaide, Bela, Felicie e Ludovic são filhos de um comerciante à beira da ruína. Um dia, perdido na floresta, o mercador encontra um castelo e apanha uma rosa do seu jardim para Bela. Mas o dono do castelo, um ser meio humano e meio fera, captura o comerciante e o condena à morte, e só aceita perdoá-lo com a condição de que uma de suas filhas o substitua na prisão. Bela sacrifica-se pelo pai e vai ao castelo, onde descobre que a Fera não é tão selvagem e desumana. Para conceber o visual gótico do filme, Cocteau inspirou-se nas gravuras de Gustave Doré.

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A companhia dos lobos (1984, dir. Neil Jordan) Adaptação do conto homônimo de Angela Carter presente em A câmera sangrenta e outras histórias, o filme desenrola-se a partir de um violento pesadelo da jovem Rosaleen, que a transporta no tempo para um mundo de florestas primitivas, lobisomens, monstros fantásticos que se escondem dentro de homens belos de sobrancelhas fartas e olhar ardente, e jovens donzelas que se desviam do que lhes era esperado. O filme faz uma incursão única a um imaginário sensual de terror, acentuado com efeitos especiais e predestinado a tornar-se um clássico filme cult.

O labirinto do fauno (2006, dir. Guillermo del Toro) Espanha, 1944. Oficialmente, a Guerra Civil já terminou, mas um grupo de rebeldes ainda luta nas montanhas ao norte de Navarra. Ofelia, de dez anos, muda-se para a região com sua mãe. Lá espera seu novo padrasto, um oficial fascista que luta para exterminar os guerrilheiros da localidade. Solitária, descobre um labirinto em seu jardim, que faz com que todo um mundo de fantasias se abra, trazendo consequências para todos à sua volta. Inspirado nos contos dos Irmãos Grimm, O labirinto do fauno sagrou-se vencedor de três Oscar.

Cisne negro (2010, dir. Darren Arenofsky) Beth MacIntyre (Winona Ryder), a bailarina principal de uma companhia, está prestes a se aposentar. O posto fica com Nina (Natalie Portman), mas ela é perturbada por sérios problemas pessoais, especialmente com sua mãe. Pressionada por um exigente diretor artístico, ela passa a enxergar uma concorrência desleal de parte de suas colegas, em especial Lilly (Mila Kunis). Em meio a tudo isso, busca a perfeição nos ensaios para o maior desafio de sua carreira: interpretar a Rainha Cisne em uma adaptação de O lago dos cisnes, clássico do ballet inspirado em um conto de origem russa e alemã.

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Espaço do leitor Nos últimos meses, muitos encontros de taggers aconteceram ao redor do país. Vários associados, de regiões e cidades diferentes, reuniram-se para expandir suas experiências literárias e discutir os livros enviados. E o mais importan-

te, é claro, é a possibilidade de fazer novos amigos que compartilham o mesmo gosto literário. Pra quem não conseguiu participar dos encontros, seguem alguns registros dessas reuniões literárias:

ENCONTRO BRASÍLIA

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ENCONTRO FLORIANÓPOLIS

ENCONTRO ESPÍRITO SANTO

ENCONTRO PORTO ALEGRE

ENCONTRO SÃO PAULO

CONEXÃO RORAIMA E GOIÂNIA Ah! Se você também quer participar desses encontros, fique de olho no Espaço do Associado, no Facebook! Os eventos costumam ser combinados por lá :)

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A indicação de

O livro indicado por Daniel Galera nos transporta para o faroeste americano na metade do século XIX. Dois homens são contratados para assassinar um garimpeiro em plena corrida do ouro: um deles, o narrador da história, é um homem ingênuo e cheio de compaixão, enquanto o outro é um executor pragmático e brutal. Em meio ao humor negro e à violência, brotam emoções intensas e reflexões profundas sobre honra, amizade, amor, misericórdia, família. Repleto de personagens marcantes e diálogos espirituosos, a obra venceu dois dos mais importantes prêmios do Canadá (país de publicação), além de ter concorrido ao Booker Prize.

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“É um ótimo romance de qualquer ângulo que se olhe. Toma um gênero conhecido, o faroeste, e faz dele algo novo e surpreendente. A boa ficção nos leva para outro mundo para que vejamos com mais clareza a nossa própria experiência e a condição humana. Essa obra triunfa nesse sentido.” – Daniel Galera


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