O olho mais azul
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Revisão Antônio Augusto da Cunha Caroline Cardoso Daniel Silveira
Capa Tereza Bettinardi hello@terezabettinardi.com
Ao Leitor O que é belo? No livro Uma noite, Markovitch, de Ayelet Gundar-Goshen, somos apresentados a Sônia, personagem que, insiste a autora, “possui olhos afastados um milímetro além do que postula a estética”. Sônia é bonita, mas seu rosto é mais assimétrico do que deveria. Historicamente, a estética impõe o que é agradável aos olhos e o que não é. Somos herdeiros de uma tradição concebida na Grécia Antiga (na qual o belo abarcaria um conjunto de proporção e harmonia) que se projetou no Renascimento e que permeia o juízo de gosto que a sociedade propaga até hoje. Em O olho mais azul, Toni Morrison, a primeira mulher negra a ganhar um Nobel, põe o dedo na ferida aberta pelos padrões de beleza tradicionais. O livro escolhido por Djamila Ribeiro – um dos maiores expoentes intelectuais no Brasil hoje – retrata o sentimento de inadequação estética potencializado pelo racismo e pela pobreza. Ao equilibrar uma história tão melancólica e intensa, Toni evoca um dos grandes poderes da literatura: a evolução da sociedade a partir do questionamento acerca das ideologias que cercam o que conhecemos como “real” e “normal”. Neste mês, convidamos os nossos associados a celebrarem mulheres como Toni e Djamila que, além de nos instigarem a desconstruir padrões hegemônicos, nos colocam em contato com uma obra inquietante. Um brinde à literatura que transforma! Boa leitura!
Sumário
A indicação do mês
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A curadora Djamila Ribeiro Entrevista com Djamila Ribeiro O livro indicado O olho mais azul, de Toni Morrison
Ecos da leitura
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Escritos que alçam voos A beleza no cinema Subversivos e banidos
Espaço do associado
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Mulheres e suas leituras
Leia depois de ler
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Toni Morrison e os limites da nossa humanidade, de Jarid Arraes
A próxima indicação
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O curador de abril Javier Cercas
Lucas Lima
A curadora
Djamila Ribeiro A filósofa e escritora Djamila Ribeiro é uma das vozes
mais ativas do feminismo negro brasileiro, considerada por muitos a principal referência intelectual negra do país na atualidade. Mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo, já publicou dois livros e vem percorrendo o Brasil e o exterior fazendo palestras, além de ter uma forte atuação nas redes sociais. Com passagem pela Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Djamila escreveu durante quatro anos para o periódico Carta Capital e atualmente assina colunas para a revista Marie Claire. Trazendo em seus discursos e textos temas de urgência nacional e internacional como racismo, feminicídio, genocídio da população negra e interseccionalidade, Djamila tem o mérito de atualizar e popularizar debates já trazidos por outras mulheres, mas historicamente restritos e marginalizados – e, como ela faz questão de afirmar, essenciais para a sua formação. Djamila segue os passos de grandes feministas negras brasileiras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Thereza Santos. Djamila nasceu em 1980, na cidade de Santos. Sua mãe era dona de casa e seu pai, um estivador ativista do movimento negro. Dos quatro filhos do casal, foi Djamila, a caçula, quem mais
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seguiu os passos do pai, participando desde cedo de manifestações, atenta à realidade política e social de seu país. Apesar da marcante influência do pai, a escritora também enfatiza o papel da mãe em sua formação. Segundo Djamila, era uma mulher forte que abdicou dos próprios sonhos para cuidar dos filhos e os ensinou a andar de cabeça erguida. No início dos anos 2000, no entanto, Djamila vivenciou duas tragédias: perdeu o pai e a mãe em um intervalo muito curto, ainda muito jovem. Encontrou amparo e força para enfrentar o luto na Casa da Cultura da Mulher Negra, em Santos, onde à época estudava com afinco o feminismo e onde descobriu que poderia pedir ajuda. Poucos anos depois, com uma filha pequena para cuidar e uma faculdade de jornalismo abandonada, quase caiu em depressão. Foi a busca por conhecimento que fez Djamila mudar de vida: aos 27 anos, ingressou no curso de filosofia da Unifesp, formou-se em 2012 e logo se matriculou no mestrado, centralizando seus estudos em Simone de Beauvoir e Judith Butler. Começou a escrever para o portal Blogueiras Negras e, em 2014, foi convidada para uma entrevista no programa Na Moral, na Rede Globo – o derradeiro ponto de virada na sua carreira. Ganhou espaço em revistas, tornou-se uma influenciadora digital e deu início à produção dos seus primeiros livros. O que é lugar de fala?, de 2017, foi a primeira publicação de Djami-
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la. Com uma linguagem didática e acessível, o livro questiona a epistemologia dominante e a existência da voz do homem branco como “universal” enquanto as outras figuram como vozes específicas ou “recortes”, reivindicando suas coexistências. Nessa obra, a escritora trata do polêmico tema por meio de diferentes enfoques. Em um primeiro momento, situa o leitor no contexto histórico que originou a necessidade da criação do termo, enquanto apresenta a produção intelectual de importantes feministas negras como Patricia Hill Collins, Grada Kilomba e Luiza Helena de Bairros. Em seguida, explica o que é o lugar de fala e os muitos equívocos que se criam em torno dele. Ela sintetizou, em entrevista para o Valor:
“Lugar de fala não é uma determinação de quem pode ou não pode falar. O que se quer dizer é que cada um fala de um lugar.” A obra inaugurou a série Feminismos Plurais, organizada pela escritora, que busca ampliar e valorizar a diversidade de vozes historicamente marginalizadas, tendo como protagonistas mulheres negras e indígenas e homens negros. “A ideia é mostrar que o movimento não é único e levar esse debate a pessoas que não estão acostumadas com o
Christian Parente
tema”, afirmou em entrevista para a Marie Claire.
e a FLIP 2018, onde encabeçou a lista de livros mais vendidos da edição.
Se 2017 foi marcado pela estreia oficial de Djamila no universo literário, 2018 foi o ano que consolidou a autora como fenômeno editorial, com o lançamento de Quem tem medo do feminismo negro?, obra que aborda temas como empoderamento feminino, políticas públicas e redes sociais. Reunindo artigos anteriormente publicados na Carta Capital e um ensaio autobiográfico inédito no qual discute suas experiências com o racismo quando jovem, a segunda publicação da autora se tornou um best-seller dos dois principais eventos literários do país: a Bienal Internacional do Livro de São Paulo
Na introdução autobiográfica de Quem tem medo... há uma passagem em que Djamila descreve suas angústias em relação à própria imagem, sintetizadas pela relação com o cabelo e o uso da chapinha para se sentir aceita nesse “mundo de padrões eurocêntricos”. Não é por acaso, portanto, que ela indica ao associado O olho mais azul, obra que mudou sua vida e que evidencia, pela brilhante escrita da americana Toni Morrison, as consequências devastadoras do racismo e da imposição sistemática de padrões de beleza sobre quem não está inserido neles.
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Entrevista com
Djamila Ribeiro TAG – Em swahili, “Djamila” significa “beleza”, tema que coincidentemente norteia o livro de Toni Morrison. Como você acha que os padrões estéticos hegemônicos afetam a infância de crianças negras? Djamila Ribeiro – Acho que meu pai me deu esse nome justamente para que eu tivesse orgulho das minhas raízes, características e ancestralidade. Mesmo assim, fui afetada pelos padrões hegemônicos e eurocêntricos que fazem a criança não se sentir pertencida. Acho que
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pertencimento é a palavra-chave. Imagine crescer em um mundo no qual as pessoas como você são colocadas como sub-humanas, feias, não aceitáveis. Esses padrões são totalmente nocivos para a construção da autoestima da criança negra e por isso é importante outros referenciais, entender que pessoas negras também pensam o mundo e que fazem parte da construção da sociedade. Os padrões são violentos, pois as crianças não são contempladas na sua humanidade. No livro, Toni Morrison mostra a infância de uma
“Toni Morrison é genial ao humanizar os algozes que normalmente seriam rotulados como monstros.” garota negra que quer ser branca porque sabe como é a violência em uma sociedade na qual meninas como ela não são vistas como humanas. Toni Morrison foi a primeira mulher negra a ganhar um Prêmio Nobel, em 1993. Como foi para você enfrentar o espaço predominantemente masculino da academia? Djamila – Toni Morrison é uma inspiração para mim desde o primeiro livro dela com o qual eu tive contato, O olho mais azul. A autora ganhou o Nobel de Literatura quando eu tinha 13 anos e esse fato foi inspirador, tendo em vista o que eu iria vivenciar na academia. Eu cursei filosofia e, durante a graduação, eu só estudei autores homens, brancos e europeus; nenhuma mulher era contemplada. Para estudar Simone de Beauvoir eu tive que tomar a iniciativa. Foi muito difícil, parecia que aquele espaço não havia sido feito para mim: eu era a única aluna negra na sala de aula, a bibliografia era totalmente falogocêntrica*, e o
conhecimento era pautado no homem branco e europeu. Era comum desacreditarem nossa produção, dizerem que o que nós estávamos estudando não era filosofia, não era ciência. Essas categorizações serviam para deslegitimar pensadoras e pensamentos. Mas hoje essa posição não me incomoda mais: esse não-lugar pode ser doloroso, mas também pode ter potencial de transformação. Conceição Evaristo afirmou que “a nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. Você acredita que O olho mais azul cumpre a função de incomodar? Até que ponto nossos marcadores sociais (raça, gênero, sexualidade, etc.) permitem e limitam a empatia? Djamila – As pessoas interpretam o lugar de fala como se fosse possível não tê-lo, mas todos nós somos localizados socialmente. Cada um fala a partir de um lugar e sob uma perspectiva. É um debate, sobretu-
* Falogocêntrico é um adjetivo que expressa dominância e superioridade masculinas. A indicação do mês
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do, sobre locus social. Toni Morrison é genial ao contar histórias de um modo que, além de prender a nossa atenção, humaniza os algozes que normalmente seriam rotulados como monstros. Nesse sentido, O olho mais azul me incomodou na primeira vez que o li, na segunda enxerguei de outra maneira, me fez refletir. Quando Toni Morrison conta a história de um antagonista sob a perspectiva dele, acaba sendo uma ferramenta muito interessante para evitar a dicotomia estéril de bom ou ruim. Ela flertar com esses lugares provoca até um pouco de simpatia em relação ao agressor, o que é algo bem estranho, incomum. Por outro lado, acho muito interessante porque também mostra a construção desse sujeito em uma sociedade violenta e que muitas vezes acaba por reproduzir essa violência. Em um primeiro momento me incomodou, mas depois eu compreendi, saí da posição de inquisidora para tentar reconhecer a humanidade daquele sujeito.
usadas para capacitar e humanizar”. Qual é o potencial da literatura na reivindicação de direitos sociais? E de O olho mais azul no combate do racismo estrutural? Djamila – Temos que entender que existem histórias. E quando há imposição de uma história sobre as outras existe uma violência muito grande. Abdias do Nascimento, em Genocídio negro brasileiro (2016), diz que genocídio é todo assassinato moral, intelectual, político e cultural de um povo. Quando a gente não tem acesso às suas histórias, estamos contribuindo para o assassinato de povos e culturas. Temos que entender que as histórias devem ser no plural, dar conta da diversidade e multiplicidade de vozes, de pessoas, de grupos, de histórias de vidas, de literatura, de modo de ver o mundo, de geografias da razão. Nesse sentido, O olho mais azul, por ser um livro renomado, ainda que pouco conhecido no Brasil, contribuiu muito para o não apagamento sistemático dessas histórias; histórias que foram silenciadas e ceifadas por conta da imposição de uma história sobre todas as outras.
“Temos que entender que as histórias devem ser no plural, dar conta da diversidade e multiplicidade de vozes.”
Segundo Chimamanda Ngozi Adichie, “histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser
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O que falaria aos 30 mil associados que lerão o livro pela primeira vez? Djamila – Eu diria para lerem de coração aberto. Diria para as pessoas terem em mente que O olho mais azul é um livro universal, que trata de dores, de temas dotados da complexidade própria dos humanos. Não é meramente – como algumas pessoas gostam de apontar – um livro sobre pessoas negras. É um livro que discorre sobre amor, esperança, conflitos, perdas: qualquer pessoa pode se identificar com ele. Simone de Beauvoir fala no livro O Segundo Sexo sobre a categoria do outro, que caberia à mulher, àquela que não é o homem, não sendo vista na sua humanidade. Grada Kilomba
diz que a mulher negra é o outro do outro, uma dupla antítese da masculinidade e da branquitude, aprofundando o conceito de Beauvoir. Acho que é importante as pessoas romperem com esse outro, e fazer de fato esse exercício de alteridade. Nós acabamos caindo em um solipsismo, sobretudo os homens brancos, de achar que o mundo é elaborado só por eles mesmos. Então, quando encaram grupos diferentes deles como outros, eles não estão reconhecendo a humanidade desse grupo. Assim, leiam com o coração aberto, reconhecendo a humanidade daqueles personagens, daqueles grupos, entendendo aquelas histórias como se pudessem ser suas também.
Tem na loja!
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O livro indicado
O olho mais azul de Toni Morrison É difícil mensurar a importância de uma escritora como
Toni Morrison. Os méritos da prolífica autora americana não se traduzem apenas em suas inúmeras premiações e condecorações. A exclusividade e ineditismo de algumas delas, no entanto, indicam vitórias que ultrapassam os limites da literatura. Se, ainda hoje, o mundo parece resistente aos efeitos libertadores da diversidade e da representatividade, imagine a força de carregar, desde 1993, o posto de única mulher negra vencedora do prêmio Nobel de Literatura. Conceber uma fração que seja do real impacto de Morrison requer mais do que conhecer seus feitos editoriais, suas aulas ou sua obra – por si só um monumento capaz de posicioná-la entre os grandes da história literária. Requer, também, entender por que quando, ao receber o prêmio máximo da literatura, a escritora percebeu que aquela vitória não era individual, mas de milhões de pessoas como ela. É necessário que se diga: Toni Morrison e sua escrita tão furiosa quanto destemida fizeram mais do que encantar críticos garbosos: ergueram vozes silenciadas pela história.
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“Ela não tem medo de ninguém. Ela não tem medo de nada.” – Chinua Achebe, escritor nigeriano Chloe Anthony Wofford é o nome de berço de Toni Morrison, nascida em Lorain, estado de Ohio, ao norte dos Estados Unidos, em 1931. Filha de um soldador e de uma dona de casa, foi a segunda de quatro irmãos e viveu seus primeiros anos em uma vizinhança miscigenada – realidade incomum que uniu diferentes famílias pela necessidade financeira. Perto da sua casa moravam poloneses, judeus, italianos e outros americanos negros, todos igualmente pobres. Na escola, onde as concepções racistas já impregnadas no imaginário americano se faziam menos presentes, Chloe teve a oportunidade de se destacar por meio de seus talentos. Ela lembra: “Quando eu estava na primeira série, ninguém pensava que eu era inferior. Eu era a única negra na classe e a única criança que sabia ler”. O incentivo à leitura vinha de casa, onde muito cedo a jovem aprendeu a apreciar os romances de Jane Austen, William Faulkner e Liev Tolstói. Na residência da família Wofford, cuja origem sulista deixou marcas incontornáveis do racismo, ler era
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um ato revolucionário – e a cultura negra, passo obrigatório para uma formação sólida, consciente e orgulhosa. Chloe e seus irmãos passavam tardes inteiras ouvindo a mãe cantando e o avô a acompanhando no violino, indo do jazz ao gospel, do blues à opera. À noite, narrativas folclóricas e contos de fantasmas arrepiavam as crianças, que eram encorajadas a recontarem as histórias sob suas perspectivas. Fora de Ohio e longe dos pais, no entanto, a realidade se impôs violentamente. Após uma exitosa passagem escolar, Toni partiu para a universidade de Howard, em Washington, onde estudou inglês e literatura clássica. Projetando uma utopia intelectual negra na universidade historicamente frequentada por afro-americanos, ela foi surpreendida por uma cidade segregada. Subitamente, estava impedida de comer em certos restaurantes, de comprar em certas lojas e de beber em certos bebedouros. Tal cenário era tão absurdo para Morrison, tão distante, que mais lhe parecia uma encenação teatral.
Em 1953, iniciou o mestrado em literatura na Universidade Cornell, em Ithaca, Nova York. Com o diploma em mãos – obtido após escrever uma tese sobre Virginia Woolf e Faulkner –, dedicou-se exclusivamente ao ensino por nove anos. Durante esse período, casou-se com o arquiteto jamaicano Harold Morrison, com quem, apesar do curto tempo de relacionamento, teve dois filhos. Toni deixou o marido quando ainda estava grávida do segundo, e teve que encontrar uma saída rápida para se sustentar enquanto mãe solteira. Surgiu, então, a oportunidade de trabalhar na famosa editora Random House, que colocou Toni em um ambiente até então estranho para ela – um mundo de agentes, editores e escritores.
imprescindível assimilação. Trata de racismo, de ódio, de padrões de beleza forçados a todos e da infeliz distorção da autoimagem infligida sobre os indivíduos mais marginalizados da sociedade. Fala de violência sexual, de desamparo familiar, de abuso. Mas não se preocupe: você também está diante de uma obra única, de ritmo envolvente, cuja narrativa Toni Morrison conduzirá com lirismo e poesia, explorando aspectos imprescindíveis da cultura, da história e do pensamento afro-americanos. Tudo isso sem deixar de contar uma história singular que, se em seus detalhes pouco tem de universal, é capaz de revelar com extremo realismo a complexidade da psicologia humana.
Era o momento ideal para produzir a própria ficção. Inspirada por autores como James Baldwin, Chinua Achebe e Camara Laye, Toni começou a reescrever um pequeno conto, elaborado em um grupo de escrita que frequentara em Howard, e que ganhava corpo e profundidade a cada vez que se sentava para imaginar os próximos passos de seus personagens. Baseando-se em uma marcante lembrança de sua juventude, escreveu pacientemente por cinco anos até que, em 1970, publicou O olho mais azul, obra que chega ao associado pela indicação de Djamila Ribeiro.
A trama da obra se passa na mesma Lorain da autora, no início dos anos 1940, quando o país ainda exibia reflexos da devastadora Grande Depressão. Contada por vozes diversas e evidenciando diferentes personagens, o romance é centralizado na vida de Pecola Breedlove, uma criança negra que sonha em ter os olhos azuis. A narradora de grande parte da história é Claudia MacTeer, amiga da menina e espécie de alter ego de Toni Morrison, que, logo nas primeiras páginas, revela que a narrativa tentará explicar, se não por que, como aconteceu o incidente de 1941, quando Pecola engravidou do próprio pai.
Leitor(a), prepare-se: a obra que você tem em mãos é de difícil, porém
Pecola é uma menina quieta e solitária. Na escola, é ridicularizada
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e constantemente chamada de feia por ter a pele escura. Em casa, negligenciada pelo pai, um homem violento e com sérios problemas alcoólicos, e pela mãe, que a culpa por tudo. Sem ter a quem recorrer e convencida de sua feiura, ela imagina que merecerá amor e carinho no dia em que tiver os olhos tão azuis quanto os das meninas e bonecas que todos dizem ser adoráveis. Claudia, por outro lado, não entende o desejo de Pecola. Chegando a se revoltar contra as bonecas e a transferir os mesmos impulsos destrutivos para as meninas reais, a narradora se questiona: onde está esse magnetismo que elas exercem, e a menina não? Enquanto a história vai se desenrolando rumo à grande violência mencionada inicialmente e suas consequências, presenciamos diversas outras microviolências que afetam não apenas a Pecola, mas a todos os personagens. O enredo fragmentado ajuda a ampliar as percepções do leitor sobre a vida dos MacTeers e de Pecola e sua família: todos são indivíduos complexos, com trajetórias particulares, não há ninguém essencialmente mau ou bom. Aqui reside, por fim, um dos grandes méritos atingidos pela autora: apresentar problemas sociais como o racismo e o machismo enquanto parte de uma estrutura que não justifica atos, mas os contextualiza, tornando O olho mais azul uma obra que não apenas evoca sentimentos, mas desperta reflexões.
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Hoje um reconhecido best-seller, o romance não foi inicialmente bem recebido. Seu grande boom, na verdade, ocorreu em 2000, quando a apresentadora Oprah Winfrey o indicou em seu popular clube de livros, alcançando mais de 800 mil exemplares vendidos. Nos anos 1970, entretanto, diversos fatores contribuíam para o insucesso da obra. A pouca visibilidade da literatura negra era um deles; as cenas de violência sexual – até hoje um argumento utilizado para banir o livro de escolas americanas –, outro. Morrison, porém, estava tão segura da singularidade do que produzia que não hesitou em dar seguimento a seus romances. Em cerca de dez anos publicou Sula (1973), o épico A canção de Solomon (1977) e Tar baby (1981). Com avaliações cada vez mais elogiosas e um público devotado, Toni Morrison foi conquistando uma posição de destaque entre os romancistas americanos e uma sequência de prêmios representativos: ela foi a primeira mulher negra a figurar no celebrado Book of the Month Club e a ser capa da revista Newsweek em mais de quarenta anos. Sua passagem de quase duas décadas como editora na Random House também merece menção: Morrison teve papel essencial na difusão de escritores negros como Angela Davis e Toni Cade Bambara, além de organizar antologias dos autores africanos Chinua Achebe e Wole Soyinka.
Angela Radulescu
Hoje, aos 87 anos, Toni ainda escreve. Sua obra já conta com onze romances, cinco livros infantis (produzidos em parceria com o filho, Slade Morrison, falecido em 2010), oito obras de não ficção, contos, peças de teatro e até libretos para ópera. Mesmo com a extensa bagagem, dois feitos excepcionais permanecem como os mais associados à imagem da escritora. Um deles é Amada (1987), romance baseado na história real da mulher escravizada Margaret Garner, até hoje seu livro mais celebrado e considerado uma das grandes obras americanas do século XX.
Book Award, do prêmio Pulitzer e, em 1993, Toni foi premiada com o Nobel de Literatura, por seus romances “caracterizados por uma força visionária e um influxo poético, [que dão] vida a um aspecto essencial da realidade americana”. A premiação, que fez a escritora se sentir “mais negra” e “mais mulher” do que nunca, também foi marcado por um discurso poderoso (falaremos mais sobre ele na página 19!), em que Morrison, fazendo uso de uma antiga fábula, reforçou o poder da linguagem: seu poder de subjugar e libertar, de violentar e redimir – sua inabalável influência na defesa e valorização das diferentes identidades.
Adaptada para o cinema em 1998, Amada foi vencedora do National
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Escritos que alรงam
voos
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Ecos da leitura
Em 1993, Toni Morrison foi a primeira mulher negra a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. Em seu discurso, Morrison discutiu fortemente essa questão, destacando como a linguagem que se diz neutra e universal, acaba por esconder um silenciamento de vozes dissidentes e marcadas por diferenças de gênero, etnia ou sexualidade. A autora americana, a partir de uma parábola sobre uma idosa e seu pássaro, diz que sem essas diferenças a linguagem tende a se homogeneizar e perecer. É a vitalidade da linguagem que está em questão quando se escutam as vozes de pessoas que até então encontraram ouvidos surdos para suas histórias.
“O trabalho com as palavras é sublime porque é gerativo; ele produz sentido que garante a nossa diferença, nossa diferença humana, a maneira como somos como nenhuma outra vida”, nos diz
Toni Morrison. No discurso, ela compara a língua a um pássaro em nossas mãos: se ele está vivo ou morto, se ele estará preso ou livre para voar, depende de nós. E assim como Morrison, hoje em dia podemos encontrar muitas escritoras que estão dispostas a manter as asas da linguagem abertas e prontas para alçar voo.
“Nós morremos. Esse pode ser o sentido da vida. Mas nós temos a linguagem. Esse pode ser o compasso das nossas vidas.” (Toni Morrison, 1993)
Ecos da leitura
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Zadie Smith A londrina Zadie Smith é uma das autoras contemporâneas que mais valoriza a diferença na linguagem. Desde seu livro de estreia, Dentes Brancos, a autora retrata a vida e a voz de imigrantes de distintas partes do mundo convivendo na Torre de Babel contemporânea que é a grande metrópole de Londres. Em NW, Zadie aprofunda seu ouvido atento aos dialetos ao narrar a vida de um grupo de jovens da classe trabalhadora no norte da cidade. Mas é em Sobre a Beleza, um livro quase irmão de O Olho Mais Azul, que Zadie Smith elabora uma afiada crítica acerca dos padrões de beleza que assombram as mulheres negras no contexto contemporâneo.
Octavia Butle
A literatura especulativa ganha destacado no panorama contempor Octavia Butler é talvez seu mais im lada a autores de ficção científica d Butler ganhou notoriedade por fund negra com artifícios da fantasia. E com Kindred – Laços de Sangue, rec história, Dana, uma escritora da Calif portada para o passado, mais espec cravidão americana, onde confronta traumático a partir de sua sensibilida
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Ecos da leitura
Chimamanda Ngozi Adichie A obra da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie desloca o eixo da literatura em língua inglesa para os imigrantes africanos e o embate cultural inevitável de sua chegada na América do Norte. Americanah, seu livro mais célebre, trata de uma estudante universitária nigeriana que ganha notoriedade ao escrever um blog que discute temas como racismo na sociedade americana pela sua visão enquanto estrangeira.
er
a um espaço cada vez mais râneo, e a norte-americana mportante expoente. Vincudo chamado Afrofuturismo, dir questões da identidade Esse estilo fica muito claro cém publicado no Brasil. Na fórnia do século XX é transcificamente o tempo da esa a realidade de um período ade contemporânea.
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Con
No con Evaristo uma voz linguage Ponciá V de desce sil. Narra Evaristo cheio de presente rural da
Jesmyn Ward Saudada como uma das maiores escritoras norte-americanas da atualidade, Jesmyn Ward se tornou a primeira mulher a vencer duas vezes o National Book Award. As obras de Jesmyn se aprofundam na questão que cerca o que significa ser pobre e negro na área rural e sulista dos Estados Unidos. Após a publicação da sua primeira obra, Where the Line Bleeds (2008), ela sentiu que não havia representado corretamente os seus personagens por tê-los protegido em demasiado da brutalidade da vida real. Mantendo isso em mente, o seu segundo livro, Salvage the Bones (2011), retrata a vida de uma adolescente grávida que tem de lidar com a aproximação do Furacão Katrina, que causou quase 2000 mortes em 2008. Além de William Faulkner, ela cita Toni Morrison e Octavia Butler como algumas das suas inspirações.
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nceição Evaristo
ntexto da literatura brasileira, Conceição o é uma unanimidade quanto à elaboração de z potente e contundente na construção de uma em que valoriza a diferença. Sua obra-prima, Vicêncio, acompanha a vida de uma família endentes de escravos no interior do Braado a partir de flashbacks, o romance de o consegue abarcar um passado arcaico e heranças culturais e tradições em um e marcado pelas dificuldades da vida população negra no Brasil.
Jacqueline Woodson Jacqueline Woodson é outra autora norte-americana que coleciona prêmios: além do National Book Award, ela venceu, em 2018, o Astrid Lindgren Memorial Award (Alma), recebendo 5 milhões de coroas suecas pelo conjunto da sua obra. Nascida em Nova York no ano de 1963, Woodson tem mais de 30 livros publicados, incluindo poesia e livros ilustrados. Em Harbor Me (2018), Woodson explora problemas contemporâneos a partir do olhar de meninos da sexta série que têm de enfrentar as realidades do racismo, da deportação e do encarceramento. Um dos seus maiores sucessos foi a autobiografia Brown Girl Dreaming (2014), que inclui a história do seu tataravô, que foi obrigado a frequentar uma escola na qual ele era o único menino negro.
Ecos da leitura
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A
beleza
no cinema Um dos pontos fortes de O olho mais azul é a relação das personagens de Toni Morrison com suas próprias aparências. As formas como encaram a vida e suas personalidades são muitas vezes definidas por determinados padrões de beleza, o que vemos muito claramente no fascínio de Pecola. A garota é hipnotizada pela imagem de Shirley Temple, atriz mirim de Hollywood, enquanto Pauline, sua mãe, se sentia diminuída ao ver as atrizes nos filmes dos anos 30. O cinema de Hollywood, especialmente daquela época, formava ideais de conduta e beleza para a sociedade americana, que frequentava as salas independentemente de sua etnia ou classe social. Toni Morrison articula como essas imagens não refletiam o público ou a sociedade americana tal como ela era, produzindo, ao invés disso, padrões de beleza sempre relacionados ao corpo branco e com traços europeus. Morrison dramatiza do ponto de vista psicológico algumas teses exploradas em O mito da beleza, de Naomi Wolf. A norte-americana conclui que a opressão feminina não apenas se expressa nas dinâmicas de trabalho e de relacionamento interpessoal, mas também a partir de mitos de aparência impossíveis de serem alcançados por mulheres reais. Dessa forma, a própria psicologia feminina se volta contra si mesma, produzindo um mal-estar constante relacionado a si. O que O olho mais azul desenvolve em suas páginas é justamente como esses mitos de beleza reproduzidos por Hollywood afetam a vida e o psicológico das mulheres negras nos EUA da década de 1940.
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Ecos da leitura
Bright Eyes, dirigido por David Butler em
1935, é o primeiro filme produzido exclusivamente para Shirley Temple, na época com apenas sete anos. Sucesso de bilheteria, o filme consagrou a atriz como o ideal de menina angelical, em boa parte devido ao trabalho de fotografia, que destacava a sua pele branca e seus cabelos loiros como uma auréola. Esse efeito não passa despercebido pelas personagens de Toni Morrison, que constantemente aludem ao filme durante o romance. Em uma das passagens mais importantes, Claudia rejeita a personagem de Shirley Temple e escolhe como sua preferida Jane Withers, a criança “vilã” do filme, mimada e egoísta. Essa atitude de Claudia tem a ver com o que a teórica americana bell hooks* chamava de “olhar opositor”, ou seja, a tentativa de quebrar o padrão dominante e dominador do filme. Mais adiante, numa discussão com Maureen, Claudia entende que a culpa pela hierarquização da beleza não é nem de Shirley Temple, nem de Maureen: Maureen Peal não era o Inimigo e não merecia ódio tão itenso. A Coisa que assustava era a Coisa que fazia com que ela fosse bonita e elas não. Para Toni Morrison, “A Coisa” é justamente a máquina de idealização do corpo branco reproduzida por Hollywood.
O filme de 1934, Imitation of Life, também
assume uma posição central no livro de Toni Morrison. No longa, vemos a história de Peola, a filha da doméstica recém-contratada por Bella Pullman (interpretada por Claudette Colbert) que, por ter a pele clara, rejeita a sua própria mãe. Em O olho mais azul, Pauline, mãe de Pecola, batiza sua filha em homenagem a essa personagem, ainda que com uma mudança na grafia, demonstrando o conflito interno dessa personagem, que prefere ser renegada pela filha desde que ela tenha uma aparência condizente aos modelos do cinema comercial. Toni Morrison critica o cinema de Hollywood dos anos 40 ao propor esse conflito, que equaliza os finais felizes das famílias perfeitas com uma ideia muito limitada de beleza e virtude. Os sonhos impressos em celuloide acabam gerando lembranças felizes ao mesmo tempo que propõem um mundo impossível de ser vivido por aqueles que não se enquadram na aparência de quem está na tela. * O nome da autora é escrito em letras minúsculas. Ecos da leitura
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Quando pensamos em livros banidos, é difícil não os associar à ideia de um regime totalitário ou governo religioso. Casos bastante emblemáticos são as três clássicas distopias do início do século XX: 1984, do britânico George Orwell, que discute a vigilância constante promovida por um governo autoritário através do “Grande Irmão”, Admirável Mundo Novo, do também britânico Aldous Huxley, sobre uma sociedade dividida em castas fixas que considera primitivo tudo aquilo que entendemos como sentimentos e emoções, e Fahrenheit 451, do estadunidense Ray
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E BA NID OS Bradbury, em que brigadas de incendiários perseguem e queimam livros para limitar conhecimentos “subversivos”. Esses três romances têm algo em comum: se passam em sociedades autoritárias e denunciam os mecanismos de limitação do conhecimento e de censura promovidos pelos governantes como forma de dominar a população. A ironia é que os três livros foram alvo de censura, tanto na época de seus lançamentos quanto nos anos subsequentes, provando que a distopia nem sempre está tão longe da realidade, mesmo nas sociedades mais democráticas.
“Temos a tendência de pensar que os tempos de limitação da circulação de ideias e pontos de vista ficaram no passado.” 26
Ecos da leitura
Entretanto, ainda hoje dezenas de livros são acusados de exercerem má influência, e sua retirada de circulação é exigida pelas mais diversas instituições ao redor do mundo. Um caso notável é o O Olho Mais Azul, considerado um dos livros mais contestados nos Estados Unidos. Pelo menos desde o fim dos anos 90, O Olho Mais Azul é alvo de polêmicas em escolas que indicam sua leitura, pois muitos argumentam que as cenas de violência sexual e linguagem ofensiva são inadequadas para adolescentes. Até o ano de 2018, o livro já foi contestado em mais de dez cidades americanas, inclusive sendo acusado de “pornográfico” pela presidente do Conselho Estadual de Educação de Ohio, estado natal de Toni Morrison e local onde se passa o romance. A literatura parece estar sempre navegando em um rio perigoso, entre as margens da denúncia política e da conservação dos costumes. Mas será que podemos separar tão claramente assim os motivos para as denúncias contra determinados livros? O caso de Toni Morrison é exemplar, pois discute de maneira bastante direta o racismo sofrido pelos negros nos Estados Unidos a partir de cenas simbólicas de violência e opressão, tornando aquilo que é da ordem dos costumes em ordem de política. O Olho Mais Azul
é perigoso por sua linguagem ou pelos temas desconfortáveis que aborda de maneira tão clara? Publicada em 1988 no Reino Unido, a obra Versos Satânicos gerou polêmica internacional por aquilo que muitos consideraram como “tratamento blasfêmico” da fé islâmica. Apesar de pedir desculpas publicamente, o autor Salman Rushdie foi ostracizado por líderes espirituais iranianos. Livrarias norte-americanas – entre elas, a gigantesca Barnes & Noble – removeram o livro das suas prateleiras depois de receber ameaças de morte. O editor do autor denunciou tal atitude como “censura por terror e intimidação”, enquanto Rushdie teve que viver escondido durante quase dez anos sob a proteção das autoridades britânicas. Tais casos são interessantes pois não deixam de afirmar a potência da literatura em questionar e causar desconforto ao discutir a sociedade. Se há alguma resposta fácil nessas polêmicas, é de que a literatura segue sendo chave para não apenas divertir ou confortar, mas também para nos dar uma compreensão mais alargada da experiência humana, seja pelas denúncias ou pela produção de vozes mais plurais, na busca da liberdade de qualquer opressão.
Ecos da leitura
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Mulheres e suas leituras Historicamente, a literatura foi um espaço de emancipação das mulheres. Algumas, confinadas ao âmbito doméstico, encontravam nos romances uma maneira de se aventurar em outros mundos, extra-muros. Em março, mês das mulheres, vamos homenagear nossas associadas com um espaço para expor suas palavras e ideias. Vamos ler o que algumas delas têm a dizer?
“Cada livro nos abre um horizonte, uma reflexão, e é um eterno lembrete de que a vida pode ser múltipla, inexata, complexa.” Renata Sanches nasceu em uma família de leitores ávidos, o que resultou na formação de uma leitora mirim: seu passeio favorito era ir à Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Uma personagem que marcou a sua trajetória foi Emília, do Sítio do Picapau Amarelo. “Queria engolir as pílulas de sabedoria do Senhor Visconde. Queria ser Marquesa de Rabicó, queria ser a rainha da Gramática, mas queria mesmo ter em mim todas as palavras do mundo!”. Renata indica: Noemi Jaffe, Ana Maria Machado, Socorro Acioli e Elvira Vigna.
“A complexidade que existe em mim precisa ser vivida de muitas maneiras diferentes.” Fidelainy Silva transformou sua paixão por livros em profissão: hoje é doutoranda em Teoria Literária. Lembra com afeto dos seus primeiros contatos com a literatura, quando o seu avô reunia os netos para contar histórias, apresentando os mitos amazônicos e a literatura de cordel. A personagem que a marcou foi Ifemelu, de Americanah (2013), que transformou sua concepção de persistência. Fidelainy indica: Conceição Evaristo, Paulina Chiziane e Jhumpa Lahiri.
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Espaço do associado
“Precisamos saber que existe alguém passando por algo semelhante a nós, seja esse alguém real ou fruto da imaginação.” Leitora voraz, Luciana Reis encontra na literatura uma forma de fugir da realidade e conhecer mundos. Vinda de uma cidade pequena, muitas vezes se sentia diferente, buscando refúgio nos mundos fictícios. Luciana sempre se interessou por suspense e lia muito Sidney Sheldon. Foi a partir dos livros da Rainha do Crime, Agatha Christie, que começou a escrever também. Luciana Indica: Natalia Borges Polesso e Carol Bensimon.
“Carrego comigo muito aprendizado dessas leituras femininas, pois desconstruí muitos conceitos e descobri um empoderamento a cada livro.” O hábito de leitura de Lara Farias surgiu em um momento difícil, enquanto a sua avó estava no hospital. “Minha primeira leitura foi A Insustentável leveza do ser e logo tive certeza de que a leitura estava me ajudando de forma incrível”. Em 2016, Lara assinou a TAG e começou a frequentar os Encontros da sua cidade. Hoje, publica resenhas no Instagram, possibilitando que mais pessoas façam parte da sua rede literária. Lara indica: Simone de Beauvoir, Arriete Vilela e Elena Ferrante.
“Aos poucos, fui conhecendo autoras e personagens que me mostraram que as mulheres podem, sim, salvar a si mesmas.” Criativa, Maihume Ribeiro tem acompanhado as primeiras leituras da Anastácia, sua filha. Grifinória de coração, a personagem com quem mais se identifica na literatura é Hermione Granger. Ela cresceu com os mistérios de Agatha Christie, absorveu os poemas de Cora Coralina e percebeu ao ler o livro de Lygia Bojunga que também carregava uma Bolsa amarela, repleta de sentimentos. Maihume indica: Chimamanda Ngozi Adichie e Jarid Arraes.
Espaço do associado
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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.
Spoiler!
Toni Morrison e os limites da nossa humanidade
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Quantas vezes uma mesma pessoa pode ser rejeitada pelos outros e por si mesma?
um grupo inteiro como alvo. Uma multidão de motivos. Uma sociedade inteira por trás.
Em O olho mais azul, Toni Morrison nos desafia com essa questão, provocando nossa capacidade de acreditar nas distâncias alcançáveis pela rejeição. O livro enviado pela TAG neste mês parece sem limites, um enfeite extravagante num ornamento que representa a crueldade humana. Mas só se você não entende muito bem como funciona o racismo. Toni Morrison é excelente em escrever personagens retalhados pela rejeição. Suas palavras são escolhidas a pinça. O corpo inadequado – o corpo negro que é negro demais –, é um tema que volta na sua escrita e vai além deste livro. Toni deseja mostrar que algo tão subjetivo que pode ter a aparência de ser inflingido contra uma só pessoa, mas na verdade tem
Pecola é um exemplo desse repúdio. As pessoas não estão dispostas a enxergá-la com humanidade. Quando olham para Pecola, escolhem agir com desprezo, repulsa ou violência. Ela sabe que sua aparência é o problema e, portanto, sabe que a única solução é que seus olhos se tornem azuis, como os olhos azuis das mulheres brancas, das bonecas brancas, essas sim idolatradas, elogiadas, consideradas lindas, agradáveis e amáveis.
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“A busca pelos olhos perfeitos é a busca por amor.”
A discussão racial da história é bastante didática. O desejo de modificar o próprio corpo (negro) para tentar chegar mais perto de um padrão de beleza (branco) é assunto familiar, sobretudo nos últimos anos. As bonecas totalmente diferentes das meninas, afinal, ainda nos soam muito reais. Vamos lá, aqui nós podemos fazer um exercício, pensar nos brinquedos que nos cercam, nas bonecas que presenteamos ou com que brincamos. Podemos até mesmo pensar nos livros que lemos quando crianças e adolescentes: quantos personagens e protagonistas eram negros? Quantos se pareciam realmente conosco? Quantos tinham os olhos azuis? Toni cumpre um papel inestimável dentro da literatura: ela incomoda os limites da nossa humanidade. Revela a vulnerabilidade em Cholly, criando uma oportunidade para dialogarmos sobre temas pouco discutidos. Nos faz ler sobre violência sexual, saúde mental e racismo com uma estética literária única. E sob a perspectiva de meninas: o paralelo entre Pecola e Claudia é arrabatador. Claudia tem a voz que Pecola não consegue ter. Nesse ponto, há bastante tristeza. O que dá a uma menina tamanho
senso crítico diante do racismo e rouba de outra qualquer percepção positiva de si mesma? Por que uma recebe apoio quando sofre abuso sexual enquanto a outra é completamente desacreditada? Diante de todas as circunstâncias, como a segunda não teria sua saúde mental destruída? Por isso, o fim de Pecola, embora terrível, é importante. Com seus olhos azuis conquistados em seu delírio, a garota ainda assim é, novamente, rejeitada. O amor que falta em sua vida não viria a partir de uma modificação corporal, pois a falta de amor e aceitação tinha raízes profundas demais. Vinha de seus pais, da escola, dos vizinhos, das outras crianças, de uma sociedade racista que ainda nem havia começado a combater seu racismo com honestidade. Pecola poderia ser lida como uma reunião de muitas outras Pecolas, meninas e meninos, mulheres e homens, que desde antes daquela época permanecem nas fronteiras da vida. O olho mais azul é, em sua mais profunda poesia, um doloroso espelhamento da desumanização que o racismo perpetua. Contra Pecolas, Claudias e até mesmo Chollys.
Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora dos livros Um buraco com meu nome, As Lendas de Dandara e Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis.
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O curador de abril
Javier Cercas
“Ao longo da minha vida, li múltiplas vezes esse livro, sempre com uma mescla de emoção, gratidão e assombro.” O curador de abril será o espanhol Javier Cercas, autor do romance A velocidade da luz, enviado em janeiro de 2019 e recebido com entusiasmo pelos associados da TAG. Conhecido por sua escrita singular, que mescla ficção e realidade, Cercas ganhou reconhecimento internacional após publicar o romance Soldados de Salamina (2001) e é um dos autores contemporâneos mais premiados da atualidade. A indicação de Javier Cercas ao clube reafirma a paixão do escritor pela literatura latino-americana. Nessa obra, somos levados até a Argentina da primeira metade do século XX e acompanhamos a trajetória de um jovem que, depois de vencer uma aposta, gasta a premiação inteira em um carnaval com seus amigos. Após dias de festa e excessos, o rapaz não consegue lembrar do que aconteceu. A busca pela resposta para os mistérios da última e mágica noite de carnaval se torna uma obsessão e o elemento central do romance deste autor argentino – um escritor que introduziu elementos fantásticos em universos aparentemente cotidianos de maneira inovadora.
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A próxima indicação
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“Imagino que uma das razões para as pessoas se agarrarem a seus ódios tão teimosamente é porque percebem que, assim que o ódio for eliminado, elas serão forçadas a lidar com a dor.” – James Baldwin