Junho de 2015 Sidarta
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AO LEITOR
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epois de, no mês passado, termos enviado um autor contemporâneo – o norte americano Philip Roth –, voltamos aos clássicos. Desta vez, o professor português José Pacheco encontrou na Alemanha, a quase um século de distância, o autor do livro escolhido para junho: Hermann Hesse, o escritor alemão mais traduzido do século XX. Hoje, Hesse encontra-se não menos prestigiado, porém menos lido: a edição que enviamos aos associados estava esgotada – havia no mercado apenas a edição de bolso. Solicitamos que a Editora Record, detentora dos direitos autorais, adiantasse a reimpressão desta edição, de modo a possibilitar que nossos associados a recebessem em casa, agora. Equipe TAG
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A INDICAÇÃO DO MÊS
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O curador: José Pacheco O livro indicado: Sidarta
ECOS DA LEITURA
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Sidarta Gautama A Escuridão que Ilumina Idolatria ou Espiritualidade Escrevendo com Aquarela A Escola que eu Sempre Sonhei Lendo e Escrevendo Nossa Própria Vida
A INDICAÇÃO DE JULHO
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Mario Prata
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O CURADOR: JOSÉ PACHECO
“José Pacheco, fundador da revolucionária Escola da Ponte, é do tempo do giz, mas apagou do quadro negro a ignorância de um sistema educacional mais preocupado com as respostas do que com as perguntas.” – era o que anunciava a enorme tela central, enquanto mil e quinhentas pessoas, aglomeradas em um auditório, aguardavam para ouvir um dos educadores mais renomados do mundo, que se apresentaria em seguida. Enquanto isso, nos bastidores, encontrávamos pela primeira vez José Pacheco, que sentado, sozinho, esperava o início da sua apresentação. Apesar da solenidade do momento, bastou nossa entrada pela porta para que o professor, com toda serenidade, erguesse os olhos e atentasse o ouvido. Como se nada o esperasse lá fora, contou-nos calmamente sobre sua relação com os livros. José Francisco de Almeida Pacheco, ou apenas Zé, como gosta de ser chamado, nasceu em 1951, em Portugal. Foi professor por sete anos, até o momento em que se questionou sobre o porquê de, por maior que fosse seu esforço, sempre ter alunos que reprovavam. Sem acesso a Piaget, a Paulo Freire e à literatura sobre educação, sem saber em que mudar ou o que fazer, estava decidido a abandonar a profissão. Com a carta de demissão em mãos, a caminho de entregá-la, acabou encontrando duas professoras, que compartilhavam a mesma angústia. Zé dobrou a carta, colocou-a dentro do bolso e iniciou, ali, em conjunto com elas, a busca por um novo modelo educacional. Naquele momento, surgiu o que viria a se tornar um grande marco para a educação – a Escola da Ponte, em Vida das Aves, Portugal.
O grande drama hoje é que as escolas continuam ensinando alunos do século XXI com professores do século XX e um modelo psicológico do século XIX. Depois, se espantam com 30 milhões de analfabetos. -José Pacheco
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A Escola da Ponte pertence à rede pública e possui um sistema de ensino que foge do tradicional, sem divisão por disciplinas ou turmas de alunos baseadas em faixa etária ou grau de instrução. No modelo idealizado por Zé, os próprios estudantes se dividem em grupos heterogêneos e definem quais suas áreas de interesse e como serão desenvolvidos seus projetos de pesquisa. Os jovens são autônomos para pesquisar, apresentar os resultados para os colegas e, quando se sentirem prontos, serem avaliados.
O professor não ensina aquilo que diz, o professor transmite aquilo que é. -José Pacheco
Pacheco não considera seus métodos inovadores – afinal, “tudo o que fiz já foi idealizado pelos grandes nomes da educação há mais de cinquenta anos”, afirma. Escola sem sala de aula, alunos sem professores, aprendizagem sem ensino, desempenho sem provas: nada disso é novo na literatura, mas José Pacheco foi pioneiro ao trazê-las à prática com sucesso. Zé não se dedicou apenas à teoria, mas a desenvolver uma nova práxis. A profusão de técnicas alternativas de ensino, a quebra de paradigmas educacionais, a criação de um novo modelo de escola, tudo isso veio como consequência. A inovação não está no método, mas na capacidade de resgatar a essência da educação, os valores do ensino, repensando e criando, a partir disso, uma educação mais humana. “Todo pai tem de deixar o filho andar por si próprio e, nesse momento, a Escola da Ponte caminha sozinha”, informou Zé, decidido a partir para novos desafios. “Além disso, quero continuar desassossegando os espíritos em lugares onde há gente generosa, que só precisa de um louco com noções de prática, como eu”. Para a nossa sorte, esse lugar foi o Brasil, onde há uma década supervisiona a aplicação de seu modelo educacional em mais de cem escolas brasileiras.
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Desgostoso com a gestão educacional do país, Zé afirmou que “nossas escolas são governadas segundo uma racionalidade administrativa e burocrática; pedagogia não está lá!”. É por isso que, mais recentemente, sexagenário, Pacheco voltou a ser professor: fundou, no Brasil, uma Escola da Ponte brasileira, feita por brasileiros: o Projeto Âncora, uma escola composta por crianças que foram expulsas de outras escolas, originárias de três das mais violentas favelas da periferia de São Paulo. Educá-las é tanto um desafio para José Pacheco, quanto um dos mais rigorosos testes para seu modelo de ensino. Por enquanto, o professor tem passado com nota máxima, e seu Projeto tem sido referência para a revolução educacional que tem logrado causar em nosso país. De onde vem essa motivação? Pacheco explica com uma história. Na época, Washington tinha dez anos. O pai? Não o conhecia. A mãe? Foi assassinada pelo tráfico. Uma vizinha o acolheu, mas abandonou-o após seu marido ter agredido o pequeno adotado. Então veio o tio, estuprador. Depois, o avô, também estuprador. Violado, não tinha mais controle sobre o esfíncter anal. Ele chegou no colégio batendo em todo mundo, agredindo seus colegas. Agarrei-o com meus braços, aquele corpo franzino de ossos com pouca carne. Xingou-me de coisas que eu nem conhecia, me cuspiu no rosto, se rebateu, cheirando a suor e fezes. Ficou assim por quase cinco minutos, quando se acalmou. Parei de fazer forças, soltei-o e fiquei sentado em sua frente. Ele olhou para mim, baixou os olhos e perguntou: “Tio, posso fazer uma pergunta?” “Sim, claro”, respondi. “Posso te dar um abraço?” E aquele abraço não era um abraço – era um apelo. Aquela mão franzina ficou em minhas costas por mais de um minuto. Então ele se senta novamente, olha para mim e diz: “Tio, posso fazer uma pergunta, só mais uma?” “Pode, claro”, respondi novamente. “Por que foi que o tio chorou quando eu dei um abraço?”
Chorou porque é o amor pelas crianças o motor de seu trabalho com a educação, e o abraço é a maior nota que se pode extrair de um aluno.
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Indicação do Mês
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EU TENHO A MINHA TRILOGIA, QUE FICA NA MINHA CABECEIRA, PARA ONDE EU FREQUENTEMENTE RETORNO EM MOMENTOS DA MINHA VIDA. SIDARTA, DE HERMANN HESSE, É UM DELES. – JOSÉ PACHECO
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Hermann Hesse
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O LIVRO INDICADO: SIDARTA Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1946, Hermann Karl Hesse nasceu em Calw, Alemanha, em 1877. Filho de pais missionários protestantes, acostumouse a viver no seio de uma família ortodoxa, que via no seu pequeno um futuro pastor. Hesse, porém, já demonstrava a personalidade forte de alguém que não modelaria sua vida aos ideais paternos, como sua própria mãe observou em carta, dirigindo-se ao marido, Johann Hesse.
Nosso pequeno garoto tem uma vida dentro dele, uma força inacreditável, um desejo poderoso, e, para seus quatro anos de idade, uma mente verdadeiramente surpreendente. Essa luta interna contra seu temperamento tirânico e sua apaixonada agitação realmente atormenta minha vida de mãe. Deus queira dar forma a esse espírito orgulhoso e transformá-lo em algo nobre e magnífico! -Marie Gundert, mãe de Hemann Hesse Seu espírito forte não tardou a se descontentar com a vida que lhe era imposta. Aos quatorze anos de idade, seus pais enviaram-no ao seminário de Maulbronn, com o intuito de iniciar sua preparação para pastor. Hesse passou a demonstrar sinais de insatisfação e depressão logo nos primeiros meses, culminando em uma tentativa de suicídio e no uso excessivo de bebidas e cigarros. Sua obra Debaixo das Rodas, lançada em 1906, retrata essa época de sua vida, criticando a educação por se dedicar exclusivamente à evolução do desempenho acadêmico. Durante esse período turbulento, Hesse descobriu duas fontes de escape para seu sofrimento: a biblioteca de seu avô e o lirismo de sua mãe. Doutor em filosofia e fluente em diversas línguas, Hermann Gundert encorajava o neto a navegar por sua vasta biblioteca, introduzindo-lhe ao magnífico universo da leitura. Marie
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Gundert, escritora, apaixonada por música e poesia, ensinou seu filho a rimar, talento logo desenvolvido pelo garoto que, inspirado, decidiu tornar-se escritor. Em carta ao pai, afirmou: “serei escritor ou nada”. Neste momento, abandonou o seminário, rompendo com os ideais familiares, e decidiu fugir. Registros evidenciam planos sérios de emigrar para o Brasil, mas, talvez seduzido pela facilidade do idioma, acabou partindo para a Suíça, onde passou a trabalhar como livreiro. Alguns anos depois, Hesse lançou seu primeiro volume de poesias – Canções Românticas (1896) – que vendeu apenas cinquenta e quatro das seiscentas cópias impressas, e sua própria mãe criticou-o negativamente, julgando-o “secular e vagamente pecaminoso”. Sua estreia como escritor, inflamada por elevadas expectativas e calorosas esperanças, mostrou-se um fracasso comercial. Logo após as frustrações por seu insucesso profissional, Hesse sofre ainda outro grande choque: falece sua mãe, o que intensifica sua depressão ao ponto de não conseguir presenciar o funeral. A obra que o faria superar essa má fase e iniciar sua trajetória de reconhecimento literário foi Peter Camenzind, lançada em 1904, que obteve tremendo sucesso comercial e crítico – Sigmund Freud elogiou o livro como sendo um de seus favoritos. Com o recente sucesso profissional, passou a viver em uma suntuosa vila às margens do lago de Constância, onde casou-se, teve três filhos e pôde dedicar-se à escrita. Não tardou para que o espírito inquieto de Hesse voltasse a protagonizar uma mudança em sua vida: fez uma viagem para a Índia, onde intensificou o contato com a cultura oriental e o Budismo. Transformado, voltou desejoso de abandonar sua vida burguesa, e passou a levar uma vida de pescador primitivo, o que resultou em divórcio. Os problemas conjugais, somados às doenças dos filhos e à descoberta da morte do pai, levaram-no a um colapso de nervos que quase o conduziu à loucura. Obteve o reequilíbrio emocional a partir da psicanálise, com o auxílio pessoal de Carl Jung, que o encorajou a novos desafios. Nessa mesma época, talvez como uma
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forma de transferir seu sofrimento para a produção literária, escreveu Demian (1919). Em 1920, com o término da Primeira Guerra, foi morar sozinho e arranjou vida nova nos círculos de poetas e pintores vanguardistas da Suíça, como Picasso e Apollinaire – “essa foi a época mais vívida, prolífica, trabalhosa e apaixonada de toda a minha vida”, afirmou Hesse. Ao longo desses anos, superadas as experiências turbulentas, escreveu seus mais renomados romances, como O Lobo da Estepe e Sidarta. Poucos anos depois, Hesse tornava-se o mais lido e traduzido escritor alemão do século XX.
A vida de Hesse foi um caminho de sucessivas autolibertações, através de revoltas do individualista contra a escola, contra a família, contra o cristianismo, contra o estilo burguês de vida, contra a guerra, contra a Europa e contra todos os tabus que o lar, a sociedade, a religião e o Estado querem impor. -Otto Maria Carpeaux, crítico literário Sidarta, lançado em 1922 e condecorado com versões cinematográficas em 1972 e 2013, retrata a trajetória de Sidarta, o pródigo filho de um respeitado brâmane, a classe sacerdotal hindu, em busca de si mesmo. O jovem, pela ânsia de trilhar seu próprio caminho, de descobrir e incorporar suas próprias verdades, de caminhar com suas próprias pernas, rompe com a família, com os costumes e os ideais brâmanes e mergulha em seu próprio destino. Acompanhado do amigo Govinda, Sidarta abandona o povoado sem destino certo. Logo na saída, avista um grupo de ascetas – que acreditam na austeridade, na escassez e na abnegação dos prazeres como caminho para a iluminação espiritual. Integrados ao grupo, os jovens passam a errar pelo mundo. O ascetismo, porém, é apenas o primeiro passo de uma longa jornada que se inicia. A “apaixonada agitação” de Hesse não tarda a refletir em Sidarta, que se aventura pelo mundo na sua busca constante por encontrar a melhor forma de viver. O livro passa então a acompanhar o início dessa jornada solitária,
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percorrida em passos cambaleantes, errantes, daquele que tenta caminhar com suas próprias pernas por um caminho tortuoso, que o conduz das certezas às incertezas, da amizade às divergências com Govinda, da proteção de sua família aos riscos do mundo, da pobreza asceta às riquezas burguesas, das primeiras experiências com mulheres até uma conversa íntima com Gautama, o Buda. A obra tem grande influência das experiências vividas pelo próprio autor, como a passagem da pobreza, vivenciada quando saiu da casa de seus pais e foi para a Suíça, para a riqueza, obtida com o sucesso de seus livros. Além disso, o sentimento de que a vida da burguesia não lhe era suficiente, o que motivou sua transformação para pescador primitivo, também é um elemento que está presente na história. “A vida de Sidarta parece-se com a do próprio Buda”, ponderou o crítico Otto Maria Carpeaux, “mas também se parece com a do próprio Hesse”. O autor insere na vida de seu personagem somente aquilo que consegue identificar dentro de sua própria alma – a segunda metade do livro, por exemplo, levou muito tempo para ser escrita pois, nas palavras do autor, “ainda não havia vivenciado esse estado transcendental de unidade que Sidarta almejava”.
A vida que levei foi deveras curiosa, e conduziu-me por caminhos estranhamente tortuosos. (...) Aonde me levará agora o meu destino? Meu caminho parece louco, faz curvas, talvez me conduza num círculo fechado. Seja como for, vou segui-lo! -Sidarta, trecho extraído do livro
E nós vamos juntos! Seguir o caminho de Sidarta, acompanhando seus passos através das páginas do livro, é a chance de ler uma das principais obras de um dos maiores escritores do século XX.
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1 Prêmio Nobel 2 Hermann Hesse e sua família 3 Com sua segunda esposa, Ruth Wender, e família. 4 Sentado à mesa onde escreveu grande parte de seus livros. 5 Em sua biblioteca pessoal.
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O primeiro Eco deste mês traz a história de Sidarta – não o personagem, mas Sidarta Gautama, o líder espiritual que deu origem ao nome do protagonista da obra de Hermann Hesse. O segundo Eco é uma pequena reflexão acerca da necessidade, que por vezes nos assola, de experimentar o sofrimento para descobrir a felicidade, a escuridão para encontrar a luz, em um processo semelhante ao ocorrido com Sidarta. Quando não conseguimos encontrar a definição de uma palavra, buscamos entendê-la pelo que ela não é – ou através de seu oposto. Qual seria o contrário de espiritualidade? Em nosso terceiro Eco, Henry Miller, o renomado escritor norte-americano, ajuda-nos a entender essa questão. A Escola que Sempre Sonhei é a homenagem de um dos expoentes da educação brasileira ao nosso curador de maio, José Pacheco. Para finalizar esta edição recheada de Ecos, trouxemos o poema de Ademar Ferreira dos Santos, publicado no prefácio do livro A Escola que Sempre Sonhei Sem Imaginar que Pudesse Existir, de Rubem Alves, que encerra evidenciando a intersecção existente entre a filosofia pedagógica do nosso curador e a filosofia de Sidarta. Equipe TAG contato@taglivros.com.br
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SIDARTA GAUTAMA | सिद्धार्थगौतम Na obra, Sidarta é um personagem e Gautama, o Buda, é outro. Fora dela, porém, os dois são a mesma pessoa – “A vida de Sidarta é a vida de Buda”, conforme comentou o crítico Otto Maria Carpeaux. Hesse faz um jogo com os nomes – e com as histórias. No ano de 563 a.C, em Lumbini, aos pés do Himalaia, uma senhora chamada Maia Devi banhava-se em piscina natural, momentos antes de dar à luz. Nascia, naquele instante, um dos maiores líderes espirituais do mundo: Sidarta Gautama, o Buda. Sidarta era um príncipe aristocrata, da casta dos guerreiros e governantes. Seu pai, Shudodhana, poderoso rei, temendo o cumprimento da profecia de que seu filho se tornaria um homem santo, cumulou-o de luxos e prazeres, mantendo-o ignorante ao sofrimento e aos problemas do mundo. Sidarta tinha um palácio para o inverno, outro para o verão e um terceiro para a época das chuvas. Na adolescência, vivia cercado por belas moças, ocupadas em diverti-lo em seus aposentos decorados com sugestiva arte erótica. Apesar do luxo, sentia-se infeliz, e permaneceu assim até que, certo dia, aos vinte e nove anos de idade, contra a vontade do pai, saiu para passear fora do palácio e deparou-se com um homem idoso, que esmolava por comida. Surpreendeu-se não somente com a miséria daquele homem, mas com sua postura ereta, suas feições radiantes e sua expressão que, apesar de sua condição, irradiava profunda serenidade e vitalidade. Sidarta, o erudito, o príncipe, abandonou o palácio enquanto todos dormiam para se tornar o andarilho asceta que havia visto naquele dia. Ao longo dos anos seguintes, aproximou-se de dois mestres espirituais, rapidamente alcançando os últimos estágios de absorção de seus ensinamentos. Ainda assim, não atingira a suprema realização que buscava.
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Não deveis aceitar nada por ouvir falar, tampouco porque está nas escrituras. -frase que teria sido proferida pelo próprio Buda
Conta-se que, após período de turbulência e frustração, Sidarta sentou-se em frente a uma figueira para meditar. Permaneceu imóvel por muito tempo, dedicado a alcançar a iluminação, o que ocorreu em uma noite de lua cheia, no mês de maio, quando trinta e cinco anos (essa é a cena ilustrada na capa desta edição da revista). A figueira ficaria conhecida como a árvore bodhi, ou árvore da iluminação, no mesmo instante em que Sidarta Gautama tornava-se Buda – que não é um nome próprio, mas uma palavra em sânscrito que significa “o iluminado”.
O TÍTULO DE BUDA PASSOU A DEFINIR A CONDIÇÃO DE SIDARTA GAUTAMA E FICOU LIGADO AO SEU NOME, DA MESMA MANEIRA COMO O TÍTULO DE CRISTO (“SALVADOR”) ASSOCIOU-SE AO NOME DE JESUS.COM O TEMPO, PORÉM, O CONCEITO DE BUDA JÁ NÃO SE RESTRINGIA A SIDARTA, QUE JÁ NÃO ERA MAIS “O” BUDA, MAS SIM “UM” BUDA. É POR ISSO QUE EXISTEM TANTAS IMAGENS DIFERENTES DO ILUMINADO. QUANDO ELE É REPRESENTADO COMO UM ASCETA ESQUELÉTICO, REFERE-SE AO SIDARTA DA FASE PRÉ-BUDA. QUANDO MOSTRADO COMO UM MEDITADOR SERENO, É SIDARTA APÓS SUA ILUMINAÇÃO. SE A FIGURA FOR UM SUJEITO GORDUCHO E SORRIDENTE, PROVAVELMENTE TRATA-SE DE ALGUMA DIVINDADE LOCAL, SÍMBOLO DE PROSPERIDADE NA CHINA E NO JAPÃO.
20 Ecos da Leitura
A ESCURIDÃO QUE ILUMINA O sol se põe lentamente, como uma pessoa alcançando a velhice, permitindo aos olhos se acostumarem à escuridão que se anuncia. Conforme ele se despede, as estrelas vêm ajudar, mas são tão insuficientes para iluminar o caminho quanto uma vela para iluminar um grande jantar. Mas a vela não é luz: é calor! Ela não traz luminosidade, mas fogo – fogo ao momento, fogo ao coração, fogo à imaginação. A luz das estrelas lança-se sobre as árvores, as pedras, o descampado de grama… mas não sobre os insetos, os cachorros, os pequenos riachos negros, que passam a ficar visíveis somente aos ouvidos. As estrelas lançam-se sobre o mar, mas não sobre o horizonte, visível somente na imaginação; lançam-se sobre as árvores, mas não sobre os pássaros, que cantam no invisível. As estrelas, assim como as velas, iluminam somente o essencial, e assim permitem a expansão dos sentidos. Conforme a luz vai embora, podemos ver cada vez mais. Um mundo que clareia enquanto escurece. Percebemos o vento, que acaricia o corpo; o grito das ondas do mar, que batem contra as pedras; os diálogos da natureza, que se proliferam entre os arbustos com grilos, mosquitos, corujas. Às vezes, é preciso escurecer para que possamos enxergar. Da mesma forma, às vezes é preciso parar de ouvir para que consigamos escutar. Foi o que fez Sidarta: no momento em que ensurdeceu seu ouvido aos ensinamentos dos mestres, passou a escutar sua voz interior.
Ouviste o canto do pássaro no fundo do teu coração. -Sidarta, trecho retirado do livro
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IDOLATRIA OU ESPIRITUALIDADE
Henry Miller
O renomado escritor norte-americano Henry Miller, em seu livro O Mundo do Sexo, expunha algumas palavras antagônicas: para guerra, selecionou paz; para a ignorância, selecionou cultura; e para a espiritualidade, selecionou a idolatria. Nada resume tão bem os enfrentamentos de Sidarta quanto essa dicotomia. O ensinamento proferido, aquele que vem de fora, quando idolatrado, nos cega e nos afasta do que significa espiritualidade: o cair dentro de si, o resgatar de seu próprio caminho, que só é possível quando tiramos as vendas das idolatrias que nos tornam sombras dos outros. “De vez em quando”, continua Henry Miller, “na história da humanidade, uma pessoa consegue de fato soltarse e ter vida própria, à sua maneira. Mas que espetáculo raro! Contam-se nos dedos de uma das mãos – imaginem só! – aqueles que conseguiram livrar-se do molde”. Sidarta, um dos personagens favoritos de Henry Miller, foi um deles.
Sidarta é, para mim, um medicamento mais eficiente do que o Novo Testamento. A leitura é tão poderosa que eu a entenderia em qualquer língua do mundo, mesmo que não soubesse uma única palavra dela. -Henry Miller, um dos responsáveis por convencer os editores norte-americanos a traduzir os livros de Hesse.
22 Ecos da Leitura
ESCREVENDO COM AQUARELA A relação de Hermann Hesse com a pintura só começou por volta de seus quarenta anos de idade, quando mudou-se para Ticino, Suíça, e passou a viver rodeado de artistas. Encorajado por seu psicanalista a transformar seu sofrimento em arte, Hesse descobriu a aquarela – desde então, diz-se que pintou mais de cinco mil quadros, costumando retratar cenários locais, como lagos e montanhas.
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De toda essa desolação, que muitas vezes tornou-se insuportável, encontrei minha própria fuga através de algo que eu nunca tinha feito antes. Para mim, a pintura foi uma maneira de imergir na pureza da arte de um jeito que a escrita não poderia me proporcionar. -Herman Hesse, em 1917, em carta para o escritor austríaco Felix Braun
24 Ecos da Leitura
A ESCOLA QUE SEMPRE SONHEI SEM IMAGINAR QUE PUDESSE EXISTIR José Pacheco estava conversando com algumas de suas alunas quando percebeu que uma das menininhas estava com um livro em mãos – era Estórias de Quem Gosta de Ensinar, do aclamado educador e escritor brasileiro Rubem Alves, recentemente falecido. Ela emprestou-lhe o livro, e Zé ficou encantado. Convidou o escritor mineiro a conhecer a Escola da Ponte. Foi então a vez de Rubem Alves encantar-se. Ao chegar à Escola, foi apresentado ao Diretor. Após os cumprimentos iniciais, Rubem mostrou-se ansioso para conhecer a Ponte. O diretor, então, acenou para uma das meninas que passava pelo corredor: - Querida, podes mostrar a Escola para o professor Rubem Alves? – perguntou o diretor. A demonstração de autonomia, primeira de muitas, chocou e encantou o escritor brasileiro, que em seu retorno ao país escreveu um livro em homenagem à escola que ele sempre sonhou sem imaginar que pudesse existir.
Contei sobre a escola com que sempre sonhei, sem imaginar que pudesse existir. Mas existia, em Portugal… Quando a vi, fiquei alegre e repeti, para ela, o que Fernando Pessoa havia dito para uma mulher amada: ‘Quando te vi, amei-te já muito antes…’ -Rubem Alves
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LENDO E ESCREVENDO NOSSA PRÓPRIA VIDA Esse diretor, que solicitou à aluna que apresentasse a Escola a Rubem Alves, era Ademar Ferreira dos Santos, escritor e professor português que trabalhou por longos anos com José Pacheco na Escola da Ponte. Foi ele o autor do poema que prefaciou o livro A Escola que Sempre Sonhei, de Rubem Alves. Com o mesmo poema, poderia ter prefaciado Sidarta.
Não cobiço nem disputo os teus olhos Não estou sequer à espera que me deixes ver através dos teus olhos Nem sei tão pouco se quero ver o que veem e do modo como veem os teus olhos Nada do que possas ver me levará a ver e a pensar contigo Se eu não for capaz de aprender a ver pelos meus olhos e a pensar comigo Não me digas como se caminha e por onde é o caminho Deixa-me simplesmente acompanhar-te quando eu quiser Se o caminho dos teus passos estiver iluminado Pela mais cintilante das estrelas que espreitam as noites e os dias Mesmo que tu me percas e eu te perca Algures na caminhada certamente nos reencontraremos Não me expliques como deverei ser Quando um dia as circunstâncias quiserem que eu me encontre No espaço e no tempo de condições que tu entendes e dominas Semeia-te como és e oferece-te simplesmente à colheita de todas as horas Não me prendas as mãos Não faças delas instrumento dócil de inspirações que ainda não vivi Deixa-me arriscar o barro talvez impróprio Na oficina onde ganham forma e paixão todos os sonhos que antecipam o futuro E não me obrigues a ler os livros que eu ainda não adivinhei Nem queiras que eu saiba o que ainda não sou capaz de interrogar Protege-me das incursões obrigatórias que sufocam o prazer da descoberta E com o silêncio (intimamente sábio) das tuas palavras e dos teus gestos Ajuda-me serenamente a ler e a escrever a minha própria vida.
26 Ecos da Leitura
ESPAÇO DO LEITOR Na edição de fevereiro, divulgamos a história de Felipe Pereira, associado TAG que decidiu pegar a caneta e aventurar-se no universo da escrita. Na época, Felipe estava lançando seu primeiro livro – fruto de uma longa viagem que realizou ao redor do mundo. Após a publicação da matéria, outro associado entrou em contato conosco. Era o paulista Gustavo de Oliveira Azevedo, que, inspirado, quis compartilhar conosco sua bonita história. Gustavo não viajou pelo mundo e não escreveu um livro (ainda!), mas sua história narra um desafio tão grandioso quanto: sua luta contra a depressão, e o papel que a literatura (e a TAG!) tiveram nesse processo.
ASSOCIADO@TAGLIVROS.COM.BR! Você pode nos enviar sua opinião a respeito das edições anteriores, uma foto sua lendo o livro ou abrindo nosso kit, alguma reflexão que deseje compartilhar, alguma referência relacionada às edições passadas, sua história pessoal ou qualquer coisa que queira compartilhar com os demais associados.
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Eu tenho depressão. Certo, esse não é o melhor jeito de começar um texto, mas é a verdade. Sofro de crises de depressão profunda há nove anos e não tem sido fácil. Desde o início tenho tentado de tudo com minha terapeuta e minha família: artesanato, estudos, jogos, passeios... E nada nunca ajudou muito. Até que a minha psicóloga sugeriu: porque eu não começava a ler? Foi quando mergulhei nos livros e tudo mudou. Comecei a ler com calma, mas depois o ritmo foi acelerando - cheguei a ler quase duzentos e cinquenta livros em um ano! Tudo começou com Harry Potter. Depois, diversos outros personagens entraram em cena, e juntos estão contribuindo para aliviar meu sofrimento e temperar minha vida. Ano passado, essa minha “experiência literária” ganhou um capítulo totalmente novo, um capítulo chamado TAG. Li a respeito do clube e logo me apaixonei. Decidi assinar um mês, já que poderia cancelar caso não gostasse. Mas me encantei com tudo – da embalagem do livro ao conteúdo da revista. A primeira obra que chegou até minha casa veio indicada pelo Patch Adams, e o nariz de palhaço que veio arrematando a embalagem me fez rir sozinho.
Esse foi o primeiro sorriso de muitos que a TAG tem me proporcionado. A ansiedade de receber o pacote, a descoberta do título da obra, o conteúdo da revista e os materiais que eventualmente vêm juntos – fico cada mês aflito de saber o que vem por aí. Até vir o pacote, eu abrir aquela fita e... alívio! É uma companheira que eu tenho todos os meses, a possibilidade de abrir uma nova janela e adentrar um novo – e sempre magnífico – universo. Hoje, posso afirmar que nutro o sonho de ser professor de Literatura e, pelo resto da minha vida, tentar salvar pessoas da mesma forma como eu mesmo fui salvo. Agradeço a toda equipe da TAG pelo trabalho que fazem e por me fazerem tão bem. Gustavo de Oliveira Azevedo
O sorriso de Gustavo ao receber o primeiro kit não deve ter sido tão grande quanto o nosso ao conhecer sua história. Ah! Ele ainda nos conta que conversou com Felipe Pereira para adquirir seu livro, e essa interação entre nossos associados deixou-nos mais contentes ainda. É para compartilhar, cada vez mais, as histórias e opiniões de quem faz parte do clube que criamos esse Espaço do Associado.
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A INDICAÇÃO De JULHO
Escrito por um dos mais célebres autores brasileiros dos últimos tempos, o livro indicado por Mario Prata à TAG retrata a década de quarenta a partir dos olhos de um homem que sonhava em ser escritor. Transitando entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, seguimos a trajetória do personagem, desde menino mimado, passando pelas primeiras experiências amorosas, culminando nos dilemas existencialistas enfrentados na vida adulta. O sucesso do livro superou as fronteiras brasileiras, e conquistou leitores na Alemanha, Espanha, Inglaterra e Holanda. Vencedor do Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras e por duas vezes do Prêmio Jabuti, o autor do livro de julho foi contemporâneo da época em que a nossa literatura apresentava nomes como Clarice Lispector, Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade.
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O CURADOR: MARIO PRATA
Foi o livro que mais marcou minha vida, devo ter lido pelo menos cinco vezes. Nascido em 1946 em Uberaba, Minas Gerais, Mario Prata ostenta cerca de oitenta títulos, em mais de cinquenta anos de carreira, entre romances, livros de contos, crônicas, roteiros e peças teatrais. Ao longo de sua extensa trajetória, recebeu dezoito prêmios nacionais e estrangeiros, com obras de destaque no cinema, literatura, teatro e televisão. Entre suas obras de maior destaque estão os livros Diário de um Magro (1997), e Purgatório (2007), as peças de teatro Fábrica de Chocolate (1979) e Besame Mucho (1982) e a novela Estúpido Cupido. Em seus mais recentes livros, Mario Prata traz a figura do detetive Ugo Fioravanti Neto, inspirado nos moradores de Florianópolis, local onde reside o autor há mais de dez anos, mesclando tramas que exploram a geografia da cidade, as praias e os costumes dos habitantes. Informações completas a respeito do curador do mês e do livro recomendado podem ser encontradas em www.taglivros.com.br ou então na revista do próximo mês. Caso já tenha lido o livro, envie e-mail para contato@taglivros.com.br para conhecer as alternativas.
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-Rubem Alves-