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TERESINA-PI, JAN/FEV/MAR DE 2012 • N° 30 • ANO VIII

DR/PI

ISSN 1809-0915

Informativo Científico da FAPEPI

Historiadores revelam relações de poder entre homens e mulheres do Séc. XX Gravidez, aborto e violência contra mulher sob uma perspectiva de saúde

ENGENDRE e outros núcleos discutem família, movimentos sociais e políticas públicas

QUESTÃO DE GÊNERO


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TERESINA-PI, JAN/FEV/MAR DE 2012 • Nº 30 • ANO VIII

EDITORIAL Ciência, gênero e evolução social

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ada mais oportuno que fechar a edição de nº 30 deste Sapiência abordando um tema que abarca um pouco do que é o homem e a mulher. Os resultados de pesquisas sobre gênero têm deixado enorme contribuição social e política, na medida em que trazem, para o seio das camadas sociais, reflexões sobre as mudanças e tradições produzidas pela própria sociedade na construção das relações. É por meio das pesquisas sobre gênero que hoje são sancionadas políticas públicas que visam a resolver conflitos e a diminuir as desigualdades, como, por exemplo, a criação de leis que resguardam os direitos das mulheres vítimas de violência e estabelecem punição aos agressores, bem como o reconhecimento da união estável de sujeitos homossexuais para fins jurídicos, novas formas de conjugalidades e de parentalidades, entre outras. A história da humanidade apresenta-se como geradora de conflitos entre homens e mulheres. Ainda existem países onde o homem é quem dita as regras, e as mulheres e os filhos reconhecem em si apenas o direito de obedecer. No Brasil, há bem poucas décadas, a mulher não tinha o direito de sequer votar e era vista muito mais como reprodutora, cuidadora da família e executora de atividades domésticas. Com a industrialização e a globalização, frutos do capitalismo dos países livres, ocorreram mudanças substanciais e também

conflitos. Até hoje, há profissões demarcadas para serem masculinas e outras meramente femininas. Ser gay em nossa sociedade ainda é uma questão tida, no mínimo, como diferente e, por isso mesmo, ainda não aceitável em alguns grupos. Com a consolidação do poder burguês, a partir do século XIX, novos valores se instituem, criando uma nova ortodoxia heteronormativa, baseada na dominação masculina, na misoginia, no reprodutivismo, no dimorfismo sexual, na heterossexualidade compulsória (e compulsiva), no adultismo, no sexismo e na homofobia. As pesquisas sobre as relações de gênero, nesse contexto, servem para detectar o momento em que as diferenças, arbitrariamente instituídas pela heteronormatividade, tornam-se desigualdades erroneamente consideradas como naturais e, por conseguinte, geram opressão. É sobre esses e tantos outros temas que esta edição vem apresentar, como nas reportagens sobre o comportamento de homens e de mulheres no início do século XX; outra sobre a violência contra a mulher, trazendo aí outros reflexos como o aborto e a gravidez na adolescência; as conquistas sociais de gênero alcançadas por meio do discurso de movimentos feministas, de gestores e parlamentares do Piauí, entre outros temas.

Combate à violência de gênero: desafios das DEAMS

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Mary Alves Mendes Profa. do Depto. de Ciências Sociais da UFPI mryam@uol.com.br

Nº 30 • Ano VIII Jan/Fev/Mar de 2012 ISSN - 1809-0915 SAPIÊNCIA Informativo produzido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL

CONSELHO EDITORIAL: Adriana Nadja Lelis Coutinho Bárbara Olímpia Ramos de Melo Diógenes Buenos Aires de Carvalho Francisco Laerte J. Magalhães Geraldo Eduardo da Luz Júnior Wellington Lage EDITORA: Márcia Cristina REDAÇÃO E FOTOS: Márcia Cristina (MTB - 1060)

REVISÃO DE TEXTOS Raimundo Isídio de Sousa IMPRESSÃO Gráfica Apollo TIRAGEM 6 mil exemplares DIAGRAMAÇÃO Invista Publicidade


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ARTIGO Estudos sobre desertificação no Piauí

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Claudia Maria Sabóia de Aquino Profa. Drª da UFPI cmsaboia@gmail.com

José Gerardo Beserra de Oliveira Prof. Dr. da UFC jgboliv@gmail.com

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sobrevivência do homem baseia-se num processo em que ele busca, no ambiente, os meios para prover o seu bem-estar. Este é um processo cíclico que, enquanto harmonioso, conduz a uma situação favorável a que o homem alcance o bem-estar. O centro dessa harmonia está no ambiente que, sob seus aspectos físicos, bióticos e antrópicos, possui uma organização que delimita não só a sua capacidade de produzir como também os limites dentro dos quais pode reajustar-se diante da demanda do homem pelos seus produtos. Basicamente o homem busca, no ambiente, bens como a água, o ar e os alimentos que utiliza direta ou indiretamente. Enquanto o processo de utilização, respeitando os limites dentro dos quais o ambiente pode reajustar-se diante da demanda, o homem vive de maneira sustentável. Quando, por outro lado, este processo excede tais limites, o ambiente sofre modificações que causam uma perda de sua capacidade de produzir, qualitativa e/ou quantitativamente. Estas modificações constituem o que chamamos de degradação ambiental. A desertificação, um tipo de degradação ambiental, tem causas complexas, e os estudos e discussões passaram a ter notoriedade a partir de 1930, quando ocorreu, nos Estados Unidos, o fenômeno conhecido como “Dust Bowl”, que afetou severamente boa parte dos Estados Unidos da América, trazendo sérias consequências de ordem econômica, social e ambiental ao meio oeste americano. No Brasil, a condução de estudos de desertificação remonta a década de 70. O e c ó l o g o p e r n a m b u c a n o Va s c o n c e l o s Sobrinho foi o pioneiro na condução dos estudos de desertificação no Nordeste

brasileiro. A desertificação é definida, segundo a Convenção de Combate à Desertificação, como a degradação da terra nas regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas, resultante de vários fatores, incluindo as variações climáticas e as atividades humanas. A agenda 21, em seu capítulo 12, considera degradação da terra a redução ou a perda da produtividade biológica ou econômica das terras agrícolas de sequeiro, de cultivo irrigado, dos pastos, das florestas e dos bosques. No Brasil, as áreas suscetíveis à desertificação localizam-se principalmente na região semiárida do Nordeste, numa área de, aproximadamente, 900 mil Km2, onde vivem cerca de 18 milhões de pessoas, que corresponde a 42% da população nordestina e a 11% da população do Brasil (IBGE, 2003). Aquino (2002), aplicando o índice de aridez (IA = razão entre a Precipitação e a Evapotranspiração Potencial) sugerido pela UNEP (1991), constatou que aproximadamente 45,3% da área total do Estado do Piauí têm climas subúmido seco e semiárido. Essa área, na proposição do UNEP (1991), é suscetível a processos de desertificação. A complexidade do fenômeno desertificação exige o emprego da abordagem integrada (BRASIL, 2004). Pautada nessa abordagem, foram empregados os seguintes indicadores biofísicos: i) erosividade da chuva; ii) erodibilidade dos solos; iii) declividade do terreno e iv) cobertura vegetal, objetivando avaliar os diferentes níveis de suscetibilidade das terras secas piauienses à desertificação, conforme indica a Figura 1. A metodologia empregada na pesquisa, fundamentada na abordagem integrada, permitiu identificar dois núcleos de desertificação no Estado: um localizado na

porção centro-norte, representado pelos municípios de Castelo do Piauí, Lagoa do Sítio, Pimenteiras, São João da Canabrava, São João da Serra, São Miguel do Tapuio e Juazeiro do Piauí, e outro na porção sul do Estado, agregando os municípios de São Raimundo Nonato, Coronel José Dias, São Lourenço, Dirceu Arcoverde e Bonfim do Piauí.

Núcleos de desertificação no estado do Piauí. Fonte: Aquino (2002, p. 117) A análise da figura permite inferir que 73,1%, 26,5% e 0,4% da área de estudo apresentam respectivamente severidade à desertificação nos níveis de baixo, médio e alto, com predomínio do nível baixo de desertificação para o Estado.

A ciência e a saúde da população negra no Piauí

ntre o grupo de excluídos da sociedade brasileira, os mais marginalizados continuam sendo os negros. Neste grupo, os negros do meio rural são os mais alijados dos novos processos de construção social. No caso específico do Piauí, o negro do interior, nas comunidades quilombolas, necessita de uma atenção redobrada, uma vez que a presença dos seus antepassados não consta da historiografia oficial. Para todos os fins, de acordo com as elites, no Piauí, o povo negro não participou da formação e da estruturação desta sociedade (BOAKARI & GOMES, 2005). Os estudos de Santos (2006, p. 136) afirmam que são duas as perspectivas da história da escravidão: uma pela visão cultural do colonizador e outra pelo modelo cultural do escravizado, quando existem modos distintos de um ver o outro. Esse autor, na sua pesquisa, confirma que os documentos oficiais da sociedade escravagista do Piauí não apresentam relatos sobre o negro escravo, entretanto “por meio da história oral das comunidades Quilombolas a memória coletiva é resgatada por meio da expressão de uma cultura particularizada que representa uma identidade distinta”. Segundo o último recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000), o Estado do Piauí apresenta-se como o quarto Estado em população autodeclarada negra, sendo o primeiro a

Bahia, seguidos do Rio de Janeiro e Maranhão. Na região Nordeste, o Piauí apresenta a segunda maior população entre pretos e pardos, correspondendo a um índice de 72,33%, superado apenas pela Bahia com 73,16% (Censo IBGE 2000). A falta de conhecimento científico sobre a saúde da população brasileira afrodescendente é fruto do conceito equivocado de que, no Brasil, existe uma democracia racial. A maioria das dificuldades relacionadas à saúde da população negra não é resultante de suas características genéticas (pelo fato de serem negros ou descendentes de africanos), mas das condições socioeconômicas e educacionais e das desigualdades históricas também relacionadas com a pobreza. A produção de conhecimento científico é questão fundamental para a saúde da população negra; para tanto, faz-se necessário incluir, na agenda estadual, prioridades em estudos sobre os temas vinculados à saúde desta população, buscando redimensionar a distribuição de recursos para pesquisa, capacitação e informação, com base nos indicadores epidemiológicos regionais e no princípio da equidade, condicionando o repasse de verbas para pesquisa, a capacitação e informação à inclusão de conteúdos sobre a saúde da população negra. O presente artigo visa chamar a atenção para a questão da saúde da população negra, levando-se em

consideração a sua elevada presença no Piauí. A produção contínua de indicadores de saúde da população negra irá contribuir na geração de políticas públicas de bem-estar para estas populações. Necessita-se de uma maior atenção às suas reivindicações, devendo haver sensibilidade dos gestores do Estado.

Leonardo Ferreira Soares Prof. Dr. de Farmácia da UFPI leonardosoares@hotmail.com


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REPORTAGEM Fortalecimento das pesquisas tem contribuído para o resgate de gênero

Algemira de Macêdo Mendes Profa. Drª. de Letras da UESPI e da UEMA algemacedo@ig.com.br

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FOTO: DIVULGAÇÃO

sta edição do Sapiência traz um tema muito em evidência em várias áreas das ciências: os estudos científicos de gênero. A geração de conhecimento nessa área tem obtido visibilidade em anais de eventos científicos, em publicação de livros e revistas científicas. Na virada da década de 1970 para 1980 e, sobretudo, ao longo da década de 80, cresceu o número de publicações no Brasil a respeito do tema. Nesse período, foi criado o Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina, que possui um periódico atualmente bem avaliado pela CAPES: a revista Estudos Feministas, com tiragem desde 1992 e, principalmente, surgiu, também na década de 1990, o Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da Universidade de Campinas-SP, com a publicação dos cadernos PAGU, também com boa avaliação pela CAPES. Muitos livros já foram publicados ao longo dos últimos 40 anos, tratando desde a condição da mulher nas relações de trabalho até a construção social da masculinidade e, a partir desse período, a contribuição

Um dos objetivos da pesquisa sobre literatura feminina é incentivar a leitura dessas obras

literária científica sobre o tema só tem crescido. É importante destacar que existe até mesmo um curso de graduação em Gênero e Diversidade na Universidade Federal da Bahia e um programa de Pós-Graduação em nível de mestrado e doutorado em gênero também vinculado à UFBA. A instituição também abriga uma vasta rede de estudos de gênero pelo Brasil, com ênfase na Rede Feminista do Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações de Gênero, o REDOR, que organiza eventos pelos Estados de ambas as regiões. O tema em questão está presente em diversas áreas pela necessidade que se tem de discutir as relações humanas que envolvem o homem e a mulher. No Piauí, as pesquisas sobre gênero estão imbricadas na sociologia, antropologia, nas ciências sociais, na história, na geografia, na educação, na filosofia, na pedagogia, nas Letras, em áreas da saúde, tanto em nível de graduação, quanto de pós-graduação, especialmente na UFPI e UESPI. Grande contribuição tem sido registrada por pesquisadores na área da literatura. Entre eles, está a professora de Letras da UESPI e da UEMA Algemira de Macêdo Mendes. Doutora pela PUC-RS, ela tem concentrado seus estudos sobre literatura feminina, atuando nos seguintes temas: literatura brasileira, literatura piauiense, literatura feminina e Literatura e ensino; além disso, a professora coordena o Núcleo de Estudos Literários Piauienses (NELIPI) e o Núcleo de Estudos Literários e Gênero (NELG), ambos vinculados à UESPI. A pesquisadora afirma que tem como objetivo estudar as fronteiras entre ficção, história e relações de gênero, com ênfase no contexto regional, visando a registrar e preservar a memória cultural e investigar as representações de gênero na literatura de autoria feminina. Entre os projetos de pesquisa, destacam-se: 1) Antologia de escritoras piauienses do século XIX ao XX e 2) A produção literária escrita por mulheres no Maranhão nos séculos XIX e XX, esta financiada por meio de edital do CNPq, em 2008. “A pesquisa Antologia de escritoras piauienses foi um projeto

idealizado com o financiamento da Fundação Cultural do Piauí (FUNDAC), que concluímos em 2009. Nela pretendeu-se incentivar e formar um público leitor em torno da produção de poesia e ficção de autoria feminina no Piauí, visto que há uma lacuna nessa área. Para tanto, propomos distribuir livros em bibliotecas de ensino fundamental, médio e superior”. Algemira afirma que o tema “A mulher na Literatura” tomou grande impulso nos últimos 30 anos, resultado da luta de algumas mulheres e escritoras que desempenharam um importante papel para uma conscientização das restrições impostas a elas em todos os aspectos sociais e, consequentemente, na literatura. Por isso, a questão começou a impor-se em virtude do interesse e da necessidade de pesquisas e estudos sobre a mulher. “No passado, tal assunto era impensável e nem haveria trabalhos suficientes para sustentar uma pesquisa como esta, em virtude da escassez de obras e da ausência de uma conscientização de sua importância. Sem se esquecer das outras precursoras do feminismo do século XIX, merecendo destaque a contribuição de Virgínia Woolf, na Inglaterra, que, em Um teto todo seu (1929), faz da nova mulher escritora seu principal tema, esboçando os problemas das mulheres intelectuais. Também destaco algumas escritoras nordestinas, como Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte; Emília Freitas, poetisa e romancista cearense; Amélia Beviláqua, no Piauí; Maria Firmina dos Reis, nascida no Maranhão, e tantas outras que ainda se encontram no anonimato”. Algemira ressalta ainda que “pretende-se, por meio dessas discussões, resgatar e verificar possíveis razões para a exclusão das mulheres, em geral, do cânone literário brasileiro e divulgar suas obras de forma que suas produções literárias venham a contribuir para descortinar novos horizontes no campo da literatura feminina, como também fomentar a crítica literária brasileira, dialogando com outros discursos”, destacou. Por Márcia Cristina Colaborou: Fabiano de Souza Gontijo


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REPORTAGEM Trabalho feminino: evidências de autonomia e desigualdades

s estudos feministas têm evidenciado o trabalho como importante categoria de análise das relações de gênero. As pesquisas, em geral, apontam que as mulheres se encontram em desvantagens em relação aos homens, sobretudo, no que se refere a salários e ocupações. A pesquisadora Mary Alves Mendes, doutora em sociologia e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí - UFPI, afirma que as desigualdades de gênero presentes na esfera do trabalho são “resquícios de uma sociedade patriarcal e machista e que, mesmo diante da visibilidade e do reconhecimento público que passaram a ter na sociedade contemporânea, as mulheres continuam em situação de desigualdade na esfera do trabalho”. Ressalta, ainda, que há um grande contingente de mulheres das camadas populares no mercado informal de trabalho e que este está associado a fatores, como desemprego estrutural, conciliação trabalho-família, baixo grau de escolaridade e de especialização profissional, flexibilidade e autonomia. A estudiosa, atualmente, desenvolve a pesquisa “Mulheres feirantes no mercado Mafuá: trabalho, família e poder”, que trata sobre a temática do trabalho feminino e que tem como objetivo analisar, a partir de um recorte de gênero, a condição dessas mulheres como trabalhadoras informais e a relação trabalho-família na constituição das relações de gênero. Na pesquisa, a autora considera a questão do trabalho feminino, concomitantemente, como fator de empoderamento e de desigualdades de gênero. É uma pesquisa de natureza qualitativa e tem como sujeitos de investigação empírica um grupo de 12 mulheres feirantes que trabalham no mercado do Mafuá, em Teresina. A pesquisa de campo contou com a participação de dois bolsistas de Iniciação Científica, alunos do Curso

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vistada a entrevistada, ou numa mesma mulher dependendo de fatores relacionados à geração, a peculiaridades da história de vida ou conforme o assunto abordado. A socióloga reconhece que houve avanços em termos da criação de programas e políticas públicas voltadas para as mulheres, mas julga ainda haver necessidade de serem bem mais efetivadas e revistas em sua aplicação e resultados, “a fim de que possam, de fato, minimizar essas desigualdades que são sociais e que se apresentam nas mais diversas esferas da vida social. Não é possível pensar no desenvolvimento social econômico e político de uma nação, se não levarmos em consideração a situação em que vivem as suas mulheres”, pondera a pesquisadora. Por Márcia Cristina

FOTOS: MÁRCIA CRISTINA

Mary Alves Mendes Profa. Drª do Depto. de Ciências Sociais da UFPI mryam@uol.com.br

de Ciências Sociais, da UFPI. Segundo Mary Alves, o trabalho exercido pelas feirantes se configura como elemento central nas suas trajetórias de vida e traz a essas mulheres certa autonomia e independência financeira no contexto familiar. A sociabilidade gerada no ambiente de trabalho proporciona-lhes informações, atualizações e aprimoramento das atividades que executam, assim como habilidades de argumentação, negociação e convencimento nas práticas de compra e venda dos seus produtos. Observou que, na condição de trabalhadoras, a maioria das entrevistadas se apresenta como provedoras únicas ou principais da família ou, ainda, compartilha a renda familiar com parentes e companheiros. Como trabalhadoras, mães e donas de casa, acabam sofrendo sobrecarga de trabalho, por serem as principais responsáveis pelos cuidados da casa e dos filhos. “Nesse sentido, várias estratégias são utilizadas por elas para conciliar trabalho e família. A condição de serem trabalhadoras informais e, particularmente, feirantes, de certa forma, torna possível essa conciliação, devido à flexibilidade de horários e à ausência de patrão, podendo, assim, gerenciar seus horários e dias de trabalho, além de terem maior liberdade. No entanto, raramente faltam ao trabalho, escolha que está associada não só à produção de renda, mas também ao prazer que o trabalho lhes proporciona, visto ser um espaço onde socializam e compartilham informações, aprendizados, alegrias e esperanças”, descreve. A pesquisadora também aponta a visão crítica e reflexiva dessas trabalhadoras quando reclamam de que nem sempre as suas reivindicações são atendidas quanto a melhores condições de trabalho e atendimento ao público. Queixam-se, também, de algumas discriminações que sofrem no ambiente de trabalho, por serem mulheres. As feirantes atestam lucrar menos na venda final dos seus produtos quando comparado aos feirantes masculinos, visto que elas têm que pagar carregadores para fazer o transporte dos produtos até o local de venda, enquanto os homens feirantes carregam seus próprios produtos. Quanto às relações de gênero, Mary Alves destaca que os discursos das mulheres pesquisadas evidenciam posturas tradicionais e modernas que mudam de entre-

Feirantes em dia de trabalho no Mercado do Mafuá


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REPORTAGEM Lideranças feministas e gestores públicos pela redução das desigualdades

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Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) possui financiamentos voltados para projetos que contemplam pesquisa na categoria Gênero. Em 2008, o órgão lançou edital para apoiar pesquisas científicas nas áreas de relações de gênero, mulheres e feminismos. As professoras do Departamento de Serviço Social da UFPI Francineide Pires Pereira e Lila Cristina Xavier Luz, membros do Núcleo de Estudos em Gênero e Desenvolvimento (ENGENDRE), que funciona no Centro de Ciências Humanas e Letras da UFPI, foram contempladas com o projeto “Gênero desenvolvimento entre formuladores/as de políticas públicas e lideranças feministas no Piauí”. O relatório foi apresentado em 2011. Nele, as pesquisadoras constataram que a formulação de políticas de desenvolvimento a serem implementadas no Estado depende da inserção de políticos e gestores comprometidos com as questões relacionadas ao tema gênero. “A conclusão principal é que as lideranças femininas, tanto de movimentos, quanto parlamentares sentem que é necessário interferir no processo para que haja melhorias para as mulheres. No entanto, avaliam que ainda não fizeram isso de modo consistente”, informa Francineide Pires Pereira, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. A pesquisa analisou a relação entre Gênero e Desenvolvimento, tendo como referência os discursos de parlamentares e lideranças feministas. Foram objetivos da pesquisa apreender e analisar o modo como gestores/as de políticas públicas e lideranças feministas tratam a questão de gênero no processo de formulação de políticas públicas assim como a relação destas com o desenvolvimento no Estado do Piauí. Para tanto, as estudiosas recorreram ao Plano Plurianual do Estado (PPA) 2008-2011 e ao Relatório das Emendas Parlamentares ao orçamento, além de realizarem entrevistas com lideranças feministas, gestores públicos e parlamentares. As duas pesquisadoras partiram de reflexões

civil, criando, no plano executivo, coordenações para o combate à discriminação e promoções de políticas afirmativas”, acrescenta Francineide Pires. Como a maioria das conquistas se firmou, de acordo com análise do PPA, no campo da violência contra a mulher, as pesquisadoras constataram que, no Piauí, o atendimento às mulheres vítimas de violência é concentrado praticamente na cidade de Teresina. Da rede especializada - composta por Delegacia da Mulher, Casa Abrigo, Serviço de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual, Núcleo de Atendimento à Mulher da Defensoria Pública, Centro de Referência da Mulher Vítima de Violência -, apenas as Delegacias estão descentralizadas para algumas cidades do Estado. Francineide Pires acrescenta que, após análise de emendas parlamentares na ALEPI, compreendendo alterações no orçamento do PPA, foram constatados poucos pedidos de emendas tendentes ao enfrentamento de desigualdades sociais ou de gênero. “A questão é se a reduzida participação das mulheres nas definições das políticas não levou a uma reduzida proposta legislativa que implicasse a equidade de gênero. Além disso, cabe ressaltar que o Plano Plurianual 2008-2011 do Estado contemplou apenas três propostas de políticas voltadas para questões de gênero, que sempre está relegada a segundo plano, como no caso de uma diretoria de políticas para as mulheres, subordinada à Diretoria de Direitos Humanos e uma coordenadoria de gênero, vinculada a uma ação maior - a política contra a discriminação”. Francineide Pires e Lila Luz apontam que há conquistas na concepção de ações políticas no Piauí, no entanto, no país onde existem quase quatro milhões de mulheres a mais que homens e onde há historicamente ampla desigualdade construída em todos os setores, as políticas públicas para as questões de gênero, especialmente quando se trata de busca de direitos das mulheres, ainda são apontadas como minorias e não como ações fortemente estratégicas e de desenvolvimento. Por Márcia Cristina FOTO: DIVULGAÇÃO

Francineide Pires Pereira Profa. Drª do Depto. de Serviço Social da UFPI francineidepires.2007@gmail.com

para construir um trabalho de investigação acerca das realidades da população feminina de Teresina e concluíram que as principais conquistas ocorreram na área de atenção à violência contra a mulher. “Não basta apenas o reconhecimento da desigualdade de gênero, é preciso promover uma verdadeira participação de homens e mulheres nas decisões e na gestão de políticas que lhe dizem respeito”, afirmou Francineide Pires, que está desenvolvendo outro projeto de pesquisa financiado pelo CNPq, sobre “Profissionais operadores(as) do direito e da assistência na área de gênero: repertórios discursivos e consequências para a vida de usuários/as”. O Plano Plurianual é um instrumento normativo do planejamento público que define a d otação o r çamen tár ia q u adr ianual p ar a o cumprimento de diretrizes e metas traçadas pela sociedade civil e pela administração pública. Francineide Pires informou que, em um primeiro momento, foram analisados documentos produzidos por entidades feministas do Estado e o Balanço de Realizações 2003-2005 do Governo do Estado, além das discussões sobre o plano, produzidos na Assembleia Legislativa do Estado (ALEPI) e pelo acompanhamento da realização de um dos fóruns, o Entre Rios, que aconteceu em Teresina, em 2007, com a participação de representantes de 31 municípios. Vale destacar que o PPA foi aprovado pela ALEPI e, em 2007, dos 30 deputados da Casa, apenas três eram mulheres. A participação das piauienses nas conferências estaduais e nacionais de políticas para mulheres foi ampliada e ganhou corpo no ano de 2007. Essas conferências são consideradas importantes para a conquista de alguns direitos, principalmente na educação, cultura, direitos sexuais e reprodutivos, enfrentamento da violência, etnia, geração de emprego, poder e democracia. “Porém, nas discussões dos fóruns estaduais para elaboração de propostas para o PPA Piauí não houve a participação formal dos movimentos de mulheres. No entanto, o planejamento participativo ganha força, institucionalizando a parceria com a sociedade


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REPORTAGEM Grupos de rappers e movimentos hip hop buscam firmar­se nos espaços sociais

Lila Cristina Xavier Luz Profa. Drª. do Depto de Serviço Social da UFPI lilaxavier@hotmail.com

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uventude e gênero têm sido objetos de estudo de um grupo de pesquisadores do Piauí. A professora Lila Cristina Xavier Luz, doutora do Departamento de Serviço Social e do Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPI e coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos sobre Crianças Adolescentes e Jovens (NUPEC), que funciona no CCHL-UFPI, tem apresentado projetos de pesquisa nessa linha. O interesse por trabalhar o tema juventude emergiu a partir da sua inserção no NUPEC, onde desenvolve, com outros professores, pesquisas e orientação de alunos de graduação, visando à construção de reflexões voltadas para compreender as questões juvenis dos tempos atuais. A pesquisadora também contribui com alguns estudos no ENGENDRE. Em seu doutorado, defendido na PUC-SP em 2007, Lila Xavier Luz analisou experiências de jovens rappers de Teresina, pertencentes a grupos de raps e, ao mesmo tempo, envolvidos em atividades de composição do rap (letra e canção) cantado em apresentações culturais. O foco da investigação foi a atuação desses jovens nas atividades culturais e sociais. Assim, a doutora recorreu a narrativas orais para apreender suas histórias de vida, objetivando compreender suas práticas sociais a partir da inserção no movimento hip hop. “O

Grupo de Hip Hop A Irmandade - Teresina-PI

trabalho teve os jovens rappers como narradores. A concepção de juventude adotada nesta pesquisa não partiu de referências etárias para identificar os rappers de Teresina, porque trabalhamos com a ideia de juventude histórica e socialmente construídas”, explica. A pesquisa identifica aspectos acerca da questão de gênero no movimento, evidenciando como jovens mulheres e homens ocupam os espaços, as atividades são desenvolvidas e o modo como as diferenças de gênero são explicitadas. Nesse sentido, Lila Xavier Luz esclarece que, no movimento, por um lado, existe uma “guetização” masculina; por outro, as mulheres estão resistindo, denunciando e construindo seus espaços, por meio das canções que criam, pelo modo como se apresentam nos shows, enfim, dos espaços que ocupam no movimento. “É possível afirmar que os jovens do sexo masculino vivem muito cedo algumas experiências que os possibilitam não apenas um encurtamento da fase de infância, mas também a substituição de práticas muito particulares a esta - como as lúdicas e a frequência escolar - pelo trabalho, pela mendicância, entre outras. Esta condição faz com que eles, desde muito cedo, tenham que assumir, não apenas responsabilidades como gente grande, mas também práticas incompatíveis com a vida em sociedade, como, por exemplo, a inserção em atividades ilícitas”, descreve. Por outro lado, as histórias das jovens mulheres evidenciaram no estudo que elas convivem com as proibições paternas e dos companheiros, na tentativa de mantê-las reclusas de algumas atividades em público. Os argumentos são diversos: deixá-las em casa para não namorar; não trocar experiências com as colegas e, quando elas demonstram resistências, os castigos aumentam. “Os companheiros as proíbem de se vestirem e de se pentearem da forma desejada e, quando eles não conseguem, valem-se da violência moral para colocá-las num lugar menor, de sedutora dos homens”, afirma. Segundo a pesquisadora, essas revelações na vida de jovens rappers servem de parâmetros para se entender que os jovens, os homens e as mulheres, por serem personagens de uma época, evidenciam novas formas de reproduzir o que compreendem como sendo lugares de meninos, ou de transgredir no caso das jovens, determinações culturais tão consolidadas em relação a papeis para homens e mulheres na sociedade.

Casa do Hip Hop no Conjunto Parque Piauí

Em outros projetos sobre recorte de gênero, Lila Xavier Luz tem-se dedicado, nos três últimos anos, a estudar juventude na temática do lazer. Um dos seus eixos “Os lazeres nas sociabilidades juvenis em Teresina” tem como objetivo principal configurar o contexto das sociabilidades dos jovens a partir dos sentidos por eles atribuídos, considerando as diferenciações de gênero e de classe. Assim, o estudo visa analisar as práticas de lazer dos jovens de Teresina, com vistas a compreender como eles desempenham suas atividades de lazer e como ocupam o tempo livre. “Em Teresina, as relações de lazer de ambos os sexos evidenciam diferenças nas práticas masculinas e femininas, quando o espaço e as atividades são considerados. Essas diferenças podem estar relacionadas à tradicional relação do indivíduo feminino com o espaço privado e por que não com a condição social secundarizada e, relativamente, de controle da sexualidade dispensada, por algumas famílias, às jovens”. Em relação à condição de classe, as informações revelaram que ela é definidora dos espaços e das atividades realizadas pelos jovens, limitando suas mobilidades pela cidade em busca de alternativas de lazer: falta transporte, espaços de lazer nas zonas periféricas, bem como dinheiro para custear algumas atividades. “É necessário repensar os espaços públicos de lazer como forma de melhorar a condição juvenil. Parece importante o desenvolvimento de programas públicos que possibilitem a ocupação do tempo livre dos jovens com atividades de lazer, considerando as diferenças de gênero e de classe. É preciso que o poder público organize atividades em praças e ruas da cidade, para práticas, como conversar, ouvir música e dançar. Também é preciso apoiar as iniciativas criadas por esses jovens como forma de proporcionar lazer a outros jovens, por meio do financiamento de equipamentos musicais, esportivos etc., para utilização, nas suas apresentações musicais, as rodas de brack e street dance, rodas de dança, entre outras.”, considera Lila Xavier Luz. Ela conclui ainda que o lazer para os jovens de Teresina foge da prescrição midiática da indústria de consumo que define lazer tendo por base um padrão de atividades realizadas por meio da aprovação e valorização das instituições tradicionais: escola, família, entidades destinadas a organizar tais atividades. “De um modo geral, os jovens da cidade vivem o lazer mediado pelo uso de equipamentos eletrônicos, tais como rádio, televisão e computador”. Por Márcia Cristina


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ENTREVISTA Rita de Cássia: “Existem pressões soc

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FOTO: MÁRCIA CRISTINA

oordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Gênero e Desenvolvimento (ENGENDRE), graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí, mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco, doutora em Ciências Sociais e pós-doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Rita de Cássia Cronemberger Sobral, professora da UFPI desde 1990, é uma estudiosa dedicada às questões de violência de gênero e família. É membro do Núcleo de Estudos da Criança, Adolescentes e Jovens (NUPEC/UFPI), ex-coordenadora do curso de Serviço Social da UFPI e é membro do corpo editorial do periódico Serviço Social e Contemporaneidade. Com relação às problemáticas de gênero, tema central desta Edição do Informativo Científico Sapiência, a pesquisadora possui vários projetos locais, além de ter participado de duas pesquisas nacionais sobre violência contra a mulher, sob a coordenação do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Universidade Federal da Bahia em parceria com a Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres. Criado em 2006, o ENGENDRE conta com a participação de professores pesquisadores da UFPI, estudantes e profissionais de outras instituições, funciona no Centro de Ciências Humanas e Letras (CCHL-UFPI) e surgiu do esforço em se difundir gênero nas discussões acadêmicas, assim como na movimentação da sociedade civil. Seus primeiros projetos eram voltados à discussão da violência contra a mulher, mas também incorporou pesquisas sobre o movimento de mulheres, sobre masculinidade e relações conjugais. Atualmente, o Núcleo pesquisa a violência sexual infanto-juvenil feminina e violência contra a mulher, tendo em vista o monitoramento da Lei Maria da Penha, entre outras. Devido às sucessivas pesquisas realizadas e seus resultados, o ENGENDRE é base de apoio no recém-criado Programa de Mestrado em Sociologia da UFPI e, mais particularmente, fortalece uma de suas linhas de pesquisas: Gênero e Geração. Sapiência - No Piauí, a Senhora foi uma das pioneiras a pesquisar gênero, partindo da concepção de que não se pode estudar apenas um perfil, homem ou mulher, mas principalmente a relação entre ambos. Em quais princípios se baseia esse entendimento? Rita de Cássia - O próprio conceito de gênero aponta para a relação entre as categorias de sexo. Assim, usar o conceito nessa perspectiva me pareceu mais correto. Nesse sentido, discutir o casamento surgiu como boa oportunidade de observar as relações de gênero. Tive oportunidade de trabalhar com 10 casais, de diferentes estados brasileiros, defendendo a tese de que há pares heterossexuais conjugais tentando viver seus casamentos

de forma igualitária, do ponto de vista de gênero. Minha primeira pesquisa foi sobre a vivência de gênero de mulheres militantes, no mestrado, que concluí em 1995. Há outras pesquisadoras que ajudaram, inclusive, a criar o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Gênero, também da UFPI, que contava com a valiosa contribuição de Maria Dulce Silva, vice-coordenadora atual do ENGENDRE. Destaco ainda as pesquisadoras Francineide Pires Pereira e Mary Alves, ambas do mestrado de Sociologia da UFPI. Sapiência - Por que gênero é motivo de pesquisa científica em tantas áreas do conhecimento? Por que são tão complexas as relações entre homens e mulheres? Rita de Cássia - A complexidade e a importância do uso do gênero na produção do conhecimento estariam na indicação das mudanças e transformações nas relações entre os gêneros como as mais notáveis e representativas do século XX, conforme Bobbio (1992) e Hobsbawm (1996), entre outros. A existência de linhas de financiamento/editais que consideram o gênero também levou o assunto como perspectiva analítica em várias áreas de conhecimento. Compreender que, embora sejamos constituídos por outros, mesmo estando sujeitos às determinações culturais e anatômicas, ainda assim homens e mulheres podem transgredir as determinações culturais e sexuais, pode ser um bom caminho para explicar a complexidade das relações de gênero. Sapiência – Pensar em gênero só pelo lado da mulher é uma visão feminista? Rita de Cássia – Não há unanimidade em movimentos sociais, há consensos, alianças em prol de interesses comuns. O movimento feminista, inicialmente, propiciou o questionamento da condição feminina, que precisava ser visibilizada. Simone de Beauvoir, em “O segundo Sexo”, lançado na França em 1949, trouxe o questionamento do que é ser mulher. Por outro lado, o questionamento do que é ser mulher tem como referência o que é ser homem e já estaria aí plantado o gênero. Não há como discutir a mulher sem falar do lado do homem, pois um se define em função do outro. O uso do gênero pelas feministas significou um avanço do movimento feminista, conforme Joan Scott (1990)


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ciais para a manutenção dos papéis” em seu famoso artigo “Gênero, uma categoria útil de análise histórica”, entre outras autoras. Mas, concordando com Heleieth Saffioti, citando uma de suas obras, “Gênero, patriarcado, violência”, significou também uma amplitude conceitual ou polissêmica de gênero, o que nos leva de novo à complexidade. Sapiência - Então, o movimento feminista, que vem a sofrer algumas críticas, por agir de alguma forma excludente, contribuiu para elevar as discussões e até por conseguir conquistas? Rita de Cássia - O movimento feminista foi decisivo para as conquistas sociais, culturais, políticas e econômicas das mulheres. A crítica inicial diz respeito à exposição da dominação masculina, tendo em vista visibilizar a violência sofrida pelas mulheres cometida por homens, à exploração das mulheres, sem voz, sem nenhum lugar na produção de riquezas. Ou seja, incomodava o poder masculino ao ser apontado como nocivo à outra parte da humanidade, as mulheres. Por outro lado, os homens também ganharam com esse movimento, ganharam a contribuição das mulheres como provedoras de riquezas, ganharam a qualificação do exercício da paternidade, enfim, a oportunidade de se (re)inventarem como ser homem. O movimento feminista, buscando transformar a subordinação das mulheres, deve levar em consideração as experiências masculinas, tendo em vista a necessidade de transformação de suas práticas de dominação; deve persuadir os homens a se implicarem com a igualdade de gênero. Sapiência - A sua tese de doutorado (PUC-SP, 2004) trouxe revelações sobre as relações entre homens e mulheres no casamento. Quais as principais conclusões? Rita de Cássia - Cheguei à conclusão de que as relações de gênero, embora tenham avançado em busca da redução da desigualdade entre os sexos, não resolveu essa desigualdade. As forças sociais colocam homens e mulheres em lados diferentes e as relações entre casais existem em nome do sentimento que eles têm um pelo outro; no casamento, eles procuram viver como iguais, mas sabem que, no âmbito social, as contradições estão presentes e os dois ainda sofrem pressões na relação. É, portanto, um esforço pessoal da parceria em nome do amor (que considera a satisfação de cada um na relação, pessoal e sexual). A responsabilidade com o provimento do lar ainda é uma marca. Na minha pesquisa, ouvi, por exemplo, que um casal, em um determinado momento, o homem estava desempregado e a mulher pagava as despesas; tanto um como outro revelaram sofrer pressões sociais e familiares. Isso acontece porque ainda se aceita que o homem tenha esse papel de provedor do lar. A questão da vivência sexual não é igual, tanto que a infidelidade das mulheres ainda hoje provoca sua morte. Assim, um dos ganhos nas relações conjugais é a proximidade entre amor e sexo, no sentido de que a vida sexual amorosa fortaleça a relação conjugal. Esse discurso de que “amo minha mulher, mas preciso procurar outras na rua para satisfação”, hoje é politicamente incorreto. Existem pressões sociais para a manutenção dos papéis, como a maternidade, o cuidar do lar; um exemplo é a escola que chama, na maior parte das vezes, as mulheres para as reuniões da escola. Os homens estão contribuindo mais com as tarefas domésticas, mas ainda se cobra mais das mulheres. Por outro lado, as mudanças, as representações e papéis associados à identidade de gênero, embora pareçam dar-se lentamente, não são mais, de modo algum, imperceptíveis. É necessário que o campo da

Antropologia, Sociologia, Psicologia, assim como o de demais disciplinas interessadas nos estudos de gênero, insistam em produzir instrumentais metodológicos que auxiliem a fazer aparecer cada vez mais possibilidades de relações igualitárias entre mulheres e homens, ou mesmo entre quaisquer pessoas. As mudanças precisam ser estruturais e não esforços particulares para romperem de vez com a desigualdade de gênero. Sapiência - A Senhora possui algumas pesquisas, inclusive uma financiada pela FAPEPI, em Fluxo Contínuo, sobre crianças e adolescentes longe do convívio das famílias que vivem temporariamente em abrigos do Piauí. Quais as conclusões? Rita de Cássia - Essa pesquisa trata da situação de acolhimento de crianças e adolescentes e da promoção do direito à convivência familiar e comunitária. Os dados mostram que há um número muito grande de crianças do sexo masculino em situação de acolhimento institucional, principalmente quando a casa abriga os dois sexos. As meninas têm sempre mais chances de serem adotadas, pois, do ponto de vista de gênero, ainda está presente que a mulher é mais fácil de ser controlada/dominada. Também foi possível observar que as meninas são mais vítimas de violência sexual que os meninos. Outro aspecto a ser considerado é que as famílias das crianças e adolescentes acolhidos são representadas pelas mães. São as mulheres que estão sozinhas com os filhos quando os perdem nas condições de abandono, maus tratos, negligência. Quanto à promoção da convivência familiar e comunitária, ainda há um longo caminho a ser percorrido. O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária ainda é muito recente, e as instituições ainda estão em processo de preparação para implementação dele. Sapiência - Outra pesquisa sua em andamento trata da violência sexual infanto-juvenil feminina, segundo a qual as meninas são as que mais sofrem com o problema. Por que isso acontece? Rita de Cássia – A literatura que trata da violência sexual aponta o perfil da vítima do segmento infantojuvenil o sexo feminino como a vítima preferencial e, como agressor, o pai ou o padrasto, avô, enfim, familiares. O fato de o abuso e de a exploração sexual ocorrerem majoritariamente com o segmento infantojuvenil feminino já denota que os crimes sexuais são baseados no gênero. Historicamente, as mulheres foram e ainda são tratadas como objetos sexuais, como se tivessem nascido para servir aos desejos sexuais masculinos. Os crimes de violência sexual cometidos contra o segmento juvenil do sexo masculino são inferiores aos cometidos contra as mulheres, ainda assim os agressores também são os homens adultos. O tráfico sexual de mulheres é comum, não ocorrendo o mesmo com os homens. Os crimes de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes nutremse do medo das vítimas de denunciar as agressões. E, pior, alimentam-se da omissão ou da impunidade do Estado em criminalizar e penalizar o agressor. As mulheres, mesmo meninas, ainda são consideradas objetos sexuais, e os crimes cometidos contra elas ainda são vistos com desconfianças, inclusive pela Justiça, que não vem conseguindo interromper e mesmo diminuir esse tipo de crime; além disso, a tendência da família, em que mais acontecem os abusos, é ocultar. Penso, porém, que, do ponto de vista de gênero, a estatística masculina também não corresponde, de forma nenhuma, à realidade, tendo sido relevante a violência sexual sofrida pelo sexo masculino. Nesse caso, o problema é mais encoberto por ferir a masculinidade das vítimas.

Sapiência - Quais as mudanças, nos dias atuais, em relação aos conflitos e às disputas entre homens e mulheres? Rita de Cássia - Muita coisa mudou e, sem dúvida, deve-se à participação das mulheres na política, no mercado de trabalho, também à liberação sexual. As mulheres atuam em funções que antes eram colocadas exclusivamente para os homens. A força do conceito de gênero está encaminhando para a indiferenciação de papéis, melhor dizendo, as relações estão mais intercambiáveis. Por outro lado, podemos observar que nos espaços onde essa diferença entre homem e mulher sempre foi mais arraigada, ainda se mantém, como nas obrigações domésticas, no cuidado com os filhos, no exercício da maternidade em relação ao da paternidade. Hoje existe a guarda compartilhada que, de certa forma, pode ser entendida como capaz de flexibilizar os cuidados e responsabilidades com os filhos. Porém, o homem para ganhar a guarda do filho, tem que pagar um bom advogado e a mulher ter sido uma péssima mãe. Além disso, ainda é questionável a motivação do desejo dos homens de se responsabilizarem pela guarda dos filhos. Sapiência - Como a Senhora vê a homossexualidade nas discussões de gênero? Rita de Cássia - Antes do século XX, não se discutia homossexualismo, existiam práticas sexuais, mas hoje é um termo reconhecido quase como um terceiro sexo e, claramente, os homossexuais e a homossexualidade ainda são vítimas de várias formas de preconceito. O próprio uso do termo homossexualidade – ou mesmo homoerotismo - também é questionável, pois exclui as mulheres. Daí o uso de lesbianismo, que considera as relações amorosas e/ou sexuais entre mulheres. Pessoalmente, acho que há várias outras categorias sexuais, tais como: heterossexual, homossexual, transexual, gay, lésbica, travesti, intersexual, bissexual, transgênero. O uso do gênero, por si só, já questiona as determinações da construção sociocultural e da anatomia em termos de definição da sexualidade. No entanto, o sexo ou a sexualidade podem enriquecer essa discussão. . Sapiência - A Lei Maria da Penha é um reflexo da disseminação do que é produzido e divulgado pela academia? Rita de Cássia - A Lei Maria da Penha é um reflexo do movimento de mulheres e da visibilidade da violência contra a mulher que não pode mais ser ignorada pela sociedade. A academia teve e tem um papel importante nesse processo. A produção de pesquisas revelando dados, situações de violência, denunciando como uma questão de direitos humanos foi e é fundamental. Além disso, os debates provocados pela academia junto com o movimento de mulheres favoreceram embates mundiais sobre a violência contra a mulher, que resultaram em conferências e que levaram os países/governos a se manifestarem sobre o problema. O texto legal tem muito da contribuição das pesquisadoras feministas e do movimento de mulheres. Do ponto de vista legal, posso lembrar a guarda compartilhada e a alienação parental como tentativas de promover melhor convívio do ponto de vista do gênero. Em termos de políticas públicas, creio que as iniciativas ainda não incorporaram o gênero como deveriam, tendo em vista que o mercado de trabalho ainda favorece os homens, por exemplo. Creio que a política pública deveria se voltar para a área da educação, para as escolas e criar, assim, uma nova mentalidade de gênero no sentido da igualdade. Por Márcia Cristina


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TESES Quantificação de biomassa e ciclagem de nutrientes em áreas de vegetação de caatinga no município de Floresta, Pernambuco

Diversidade, estrutura e dinâmica de uma Floresta Estacional com bambu (Chusquea ramosissima lindm) no sul do Brasil

OS RÓTICOS EM POSIÇÃO DE CODA: uma análise variacionista e acústica do falar piauiense

Allyson Rocha Alves Professor Adjunto I da UFPI Defesa: Univ. Fed. Rural de Pernambuco, 2011 allyson_engenharia@yahoo.com.br

Luciano Silva Figueirêdo Professor da UESPI, campus Picos Defesa: Univ. Fed. do Rio Grande do Sul, 2011 lucfigueiredo@uol.com.br

Lucirene da Silva Carvalho Professora da UESPI – Campus Torquato Neto, Teresina Defesa: João Pessoa, 2009 luciarvalho@ibest.com.br Nessa tese, examinou-se o comportamento fonético-fonológico dos róticos em posição de coda na fala de 36 informantes oriundos do norte do Estado (PI) e da capital – Teresina. Para a realização deste estudo, adotou-se a abordagem da sociolinguística variacionista. Nos resultados, foram encontradas quatro variantes, sendo a fricativa glotal [h], com 48,1%, e o zero fonético [ø], com 22,2% as que obtiveram maior percentual de ocorrências. Por outro lado, o tepe [] apresentou 19,01% e a fricativa palatal [] 10,6% de realização. De acordo com os resultados da pesquisa, as variantes mais recorrentes revelaram que decorrem de restrições linguísticas e sociais, conforme o programa Goldvarb. Os resultados mostraram que a restrição categoria gramatical foi a que mais favoreceu as variantes, e a variante fricativa glotal, a que apresentou resultados mais favoráveis. Do ponto de vista da acústica, recorreu-se à Teoria Acústica da Produção da Fala, na perspectiva de Kent e Read (1992), e de outros teóricos relacionados à mesma perspectiva, com vistas a empreender uma análise acústica dos segmentos //, // e //, dando-se destaque para as duas últimas, consideradas, nesse trabalho, variações de [h]. Para empreender essas análises acústicas, contou-se com o apoio do programa Praat. Os resultados obtidos com as análises linguística e acústica permitiram o encaminhamento das discussões relativas ao comportamento do rótico na fala do piauiense, observando-se que as quatro variantes são recorrentes nessa comunidade de fala. Contudo, o foco maior ficou para a variante fricativa palatal [], que se deu em virtude de ser uma ocorrência não encontrada na literatura pertinente. Esse fenômeno fonético-fonológico acontece sempre diante de uma fricativa glotal surda seguida de uma fricativa palatal, também, surda, que pode ser interpretada de duas maneiras: na primeira, descrita como [h], constata-se a oclusiva alveolar surda [t], que constitui a primeira consoante da africada alveopalatal surda a fundir-se com a consoante seguinte, sofrendo, desse modo, uma espécie de ressilabificação do tipo degeminação, mantendo o padrão silábico CVC.CV de modo mais simplificado; na segunda realização [h], percebe-se que a oclusiva alveolar surda [t] se mantém, permanecendo também a africada no ataque silábico seguinte. Nestas realizações, constatou-se uma assimilação do tipo regressiva, verificada, principalmente, na última ocorrência, na qual se observa o assimilador depois do elemento assimilado. Em tais fenômenos, verifica-se uma palatalização parcial, configurando-se uma particularidade linguística restrita ao falar piauiense.

Estudo etnofarmacognóstico de plantas medicinais popularmente indicadas para tratamento de doenças tropicais em nove comunidades ribeirinhas no trecho Coari-Manaus-AM

Elogio do cotidiano: a educação ambiental e a pedagogia silenciosa da caatinga no sertão do Piauí

Obtenção de diesel verde por craqueamento termocatalítico de óleo de buriti (maurita flexuosa l) sobre materiais nanoestruturados do tipo LaSBA-15

Ressiliane Ribeiro Prata Alonso Professora da UFPI – Campus Bom Jesus Defesa: Inst. Nac. de Pesq. da Amazônia, 2011 ressiliane@yahoo.com.br

Sádia Gonçalves de Castro Pesquisadora IFPI/CAPES/CNPq Defesa: UFC 2009 sadia_1016@hotmail.com

Geraldo Eduardo da Luz Júnior Professor da UESPI – Campus Torquato Neto-PI Defesa: UFRN 2010 geraldoeduardo@gmail.com


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REPORTAGEM Aborto e gravidez na adolescência sob uma perspectiva de gênero Adolescentes jovens frente ao processo abortivo”, em 2011, e da Profa. Ms. do IFPI, Idna de Carvalho Barros, defendida no Mestrado em Ciências e SaúdeUFPI, em fevereiro de 2012, com o tema “Fatores de influência ao abortamento entre jovens”. “Diante dos Profa. Drª. Inez Sampaio Nery com a mestra em Ivanilda Sepúlveda Gomes – Mestre resultados, observou-se em Enfermagem, enfermeira e servidora enfermagem Idna de Carvalho Barros a influência do homem ineznery.ufpi@gmail.com e idnabarros@ifpi.edu.br da UFPI - ivanilda@ufpi.edu.br na decisão sobre o aborto. Publicações aborto é considerado a quarta causa de abordam a questão de gênero na temática que envolve mortalidade materna e um problema grave de sexualidade e saúde reprodutiva. Na sociedade, ainda saúde pública. A morte materna é outra é comum se definir o que é próprio do homem e o que é violência, pois gera um trauma para o filho, que fica próprio da mulher, ou seja, algumas atividades só sem os cuidados e a proteção da mãe e também para o 'devem' ser praticadas pela mulher ou pelo homem, restante da família. Poderíamos estar tratando apenas como por exemplo, o homem pode ter várias parceiras de um problema de saúde da mulher, se não fosse o sexuais e a mulher, não; atividades domésticas são fato de estar relacionado ao tema central desta edição próprias das mulheres, assim como a submissão do Informativo Sapiência. A Profa. Dra. Inez Sampaio feminina. Então, diante desses fatores, tivemos o Nery, do departamento de enfermagem da UFPI, há interesse de saber se a prática do aborto na mais de 15 anos, vem desenvolvendo projetos de adolescência tinha relação com a questão de gênero”, pesquisa sobre Gênero, Violência, Sexualidade, justificou Inez Sampaio Nery. Saúde Reprodutiva e outras políticas públicas Sobre os papéis sociais, Ivanilda Sepúlveda voltadas para a atenção da mulher e da criança. Sua Gomes afirma que os prestadores de serviços que tese de doutorado, defendida pela Escola de trabalham com orientação sexual têm analisado o papel Enfermagem Anna Nery/UFRJ, foi sobre “aborto do homem na perpetuação da discriminação e violência provocado e questão de gênero: mulheres em contra a mulher; por essa razão, tem-se buscado evidências e a evidência das mulheres para as bases da envolvê-lo neste processo de discussão da sexualidade, assistência de enfermagem”. Assim, ela, que é pois os homens veem o sexo como forma de provar a professora de graduação de Enfermagem desde 1976 e masculinidade, mostrando, assim, a sua falta de dos Programas de mestrados de Enfermagem e de conhecimento sobre o próprio corpo e a sexualidade. Mestrado e Doutorado em Políticas Públicas da UFPI, As adolescentes que abortam têm entre 17 e 19 anos, vem investigando como as relações de gênero não planejam a gravidez, dependem economicamente interferem decisivamente na saúde da mulher. do companheiro ou da família e usam como método A questão de gênero na área de saúde é da maior abortivo principalmente medicamentos e chás. As importância; a própria política de atenção à saúde da adolescentes e jovens representam 7% a 9% do total de mulher inclui orientações de gênero como prioridade abortos em mulheres em idade fértil. Pesquisas revelam para que minimize os problemas, tais como violência, que 73% das jovens com idades compreendidas entre aborto, mortalidade materna, DSTs, climatério, câncer 18 e 24 anos cogitam a possibilidade de abortar antes de cérvico-uterino e de mama, entre outros. Membro do resolverem manter a gravidez. Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Mulher e Relação “Observou-se que as depoentes apresentam de Gênero – NEPEM, que é vinculado à Pró-Reitoria influência masculina marcante quanto à opção em de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPI e atualmente abortar. O motivo principal vai ser diferenciado por coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre aspectos econômicos, culturais e psicoemocionais da o Cuidar Humano e Enfermagem- NEPECHE, Inez Sampaio Nery tem cadastrado junto ao CNPq o projeto “Gravidez na Adolescência – fatores preditores da reincidência”, do qual é coordenadora, tendo como subcoordenadora Keila Rejane Oliveira Gomes, professora doutora do programa de Mestrado Ciências e Saúde, da UFPI. Desse projeto já concluído - do qual resultou a publicação do livro “Gravidez na adolescência - prevenção e riscos” e a formação do banco de dados resultantes da coleta de dados surgiram várias pesquisas, das quais seis dissertações de mestrado. Entre estas, estão a da enfermeira e funcionária do departamento de enfermagem da UFPI, Ivanilda Sepúlveda Gomes sobre “Vivências de FOTO: DIVULGAÇÃO

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mulher. Mas é notório que a ausência do apoio familiar e do parceiro está intimamente relacionada à decisão pelo aborto. A imaturidade e o não conhecimento sobre sexualidade também foram citados pelas adolescentes e jovens para optarem pela prática”, ressalta Ivanilda Sepúlveda Gomes. Sobre a questão da gravidez na adolescência, Inez Sampaio Nery informou que a relevância desse estudo é fazer com que os gestores e os profissionais de saúde se sensibilizem; consequentemente, é preciso que haja mais informação e mais educação. “Aumentou a prevenção, por causa da AIDS, mas não tanto ainda. Infelizmente não existe campanha, ou seja, uma política específica para a prevenção do aborto. Precisamos trabalhar com os(as) adolescentes por meio de oficinas sobre saúde sexual e reprodutiva nas escolas de ensino fundamental e médio, em uma disciplina Saúde Reprodutiva. Seria importante também que houvesse enfermeiras atuando nas escolas, assim como nas comunidades em que estes adolescentes e jovens estejam inseridos. Gostaríamos que esse programa fosse assumido pelo município e que fosse ampliado com uma equipe central trabalhando continuamente com estudantes, porque, tendo essa atenção, se reduziriam os índices de aborto provocado, a gravidez indesejada, haveria prevenção de DSTs e outros agravos à saúde. Penso que deveria ainda existir um centro ou instituto para atenção às(aos) adolescentes, além de maior capacitação da área técnica nos Centros de Saúde”, destacou a coordenadora do estudo. A Profa. Ms. Idna de Carvalho Barros esclarece que a rejeição pelo filho não planejado nem sempre ocorre entre o sexo masculino. Segundo ela, dependendo da idade, do nível educacional e econômico, podem-se encontrar situações em que a gravidez, mesmo não planejada, é desejada pelos jovens. “A chegada de um filho, em decorrência disso, o casamento e a formação de uma família podem ser interpretadas como modo de ascensão social, em que estes adolescentes saltarão para a fase adulta com novas atribuições sociais e responsabilidades. Assumir uma casa e uma família é interpretado como um novo ciclo. É possível encontrar esta realidade principalmente em situações nas quais a expectativa de futuro encontra-se limitada, e é interpretada por alguns pesquisadores como um modo de perpetuação do ciclo da pobreza, uma vez que o estudo é abandonado pela escolha de emprego mal remunerado devido à falta de capacitação”. Por Márcia Cristina


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Violência contra a mulher: desigualdade e subordinação

Tatianne Bandeira de Vasconcelos Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas-UFPI tatiannebandeira@hotmail.com

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eguindo a linha mulher e gênero, a Profa. Drª Inez Sampaio Nery orienta uma pesquisa junto ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPI sobre mulher vítima de violência, que tem como autora Tatianne Bandeira de Vasconcelos, delegada de Polícia Civil, lotada na Corregedoria da Polícia Civil no Estado do Piauí. A orientadora explica que, na sociedade, as diferenças de gênero resultam em formas diferenciadas de violência. Enquanto geralmente o homem é vítima de violência nos espaços públicos, a mulher o é no privado, dentro do próprio lar, tendo como agressor o marido ou companheiro. “Em um contexto cultural, surge uma relação de dominação e de subordinação impostas por regras estabelecidas social e hierarquicamente, em que o homem

classifica a mulher como objeto para satisfação de suas vontades”, define Inez Sampaio Nery. Tatianne Bandeira conta que, desde a graduação em Direito, havia o interesse em estudar violência contra a mulher, por tratar-se de uma temática relevante e por consistir num grave problema social, que envolve mulheres no mundo inteiro, independente da cor, idade, escolaridade, classe social, podendo acarretar sequelas, quer sejam físicas quer sejam psicológicas. O estudo tem como finalidade analisar a atuação das Delegacias da Mulher de Teresina, Piauí, como uma política pública de enfrentamento à violência de gênero. “Essa violência difere de todos os demais crimes, pois a mulher é vítima não de um estranho, mas de seu próprio companheiro ou marido, pelo qual muitas das vezes ela ainda nutre afeto”, explica a mestranda. Foi preciso a criação da Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/2006) - em homenagem à cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica devido à tentativa de homicídio sofrida pelo ex-marido -, para haver mais informações, questionamentos e melhorias no atendimento e proteção às vítimas, a partir das denúncias que vieram a ajudar as mulheres, já que antes da lei havia muito mais impotência tanto por parte das vítimas, quanto por parte dos poderes de coerção em solucionar os casos de violência doméstica. “Com a independência feminina, principalmente a financeira, esses casos vieram à tona, pois a mulher passa a ter condições de sustentar a si e aos seus filhos, não sendo preciso 'aguentar' agressões do marido ou companheiro. A Lei Maria da Penha representou um marco, porém se observa que os números de casos ainda são alarmantes. Ressalta-se que apenas a lei sozinha não pode transformar relações de dominação e subordinação, sem que haja uma efetiva mudança do pensamento da sociedade.

Livros

• 10 Mulheres antes da hora

• Introdução à teoria das obrigações: uma leitura contextualizada do fenômeno obrigacional

• AS CRIANÇAS CONTAM AS HISTÓRIAS: os horizontes dos leitores de diferentes classes sociais Autor: Diógenes Buenos Aires de Carvalho R$ 20,00 172 páginas dbuenosaires@uol.com.br O autor renova os estudos de estética da recepção por auscultar os horizontes de expectativas dos leitores infantis e por dar voz ao pequeno leitor, assumindo o lugar de receptor atento em vislumbrar o ponto em que o horizonte de expectativas do leitor se cruza com o da obra. Esta pode ajudar pais e professores a responderem a uma difícil questão: Afinal, o que (não) querem ler as nossas crianças?

É necessária a criação de mecanismos que possibilitem uma aplicação eficaz para erradicar essa violência”, disse Tatianne Bandeira. A pesquisa aborda as várias formas de violência doméstica contra a mulher, sendo a física a mais comum. Como marcas desse tipo de violência, têm-se desde inflamações, hematomas, contusões, fraturas até deficiência de membros e óbito. A violência física pode vir seguida ou não da violência sexual. A violência psicológica é aquela que causa prejuízo à saúde emocional e psicológica por ameaça, intimidação, isolamento, manipulação, humilhação ou rejeição: um exemplo é quando o homem impede a mulher de trabalhar e/ou sair de casa, de privá-la de afeto. Estudos comprovam que a violência doméstica pode levar a mulher a sofrimento crônico, ficando, em muitos casos, propensas ao uso de álcool e a outras drogas, prostituição, aborto, possibilidade de sexo inseguro, doenças ginecológicas, distúrbios psicológicos e até suicídio. “A violência contra a mulher revela as desigualdades socioculturais existentes entre homens e mulheres construídas ao longo da história, criando uma relação pautada na desigualdade, na discriminação, na subordinação e no abuso de poder. Na minha pesquisa, tento chamar atenção não apenas para a conscientização do homem, mas da própria mulher, para que ela não aceite como 'natural' essa violência, mas que a denuncie, pois o silêncio é mecanismo central da manutenção desse tipo de crime. O silêncio atua como elemento de consentimento e impunidade. A mulher violentada deve dirigir-se a algum órgão que compõe a Rede de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência, como Delegacias Especializadas, Defensorias, Centros de Referências. É a partir daí que a mudança pode acontecer”, esclarece. Por Márcia Cristina

• Antologia de Escritoras Piauienses – Século XIX à Contemporaneidade

• Médico, Medicina e Humanismo no Sertão

• A publicidade na internet e @ violação dos direitos do consumidor


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REPORTAGEM

Pedro Vilarinho Castelo Branco Prof. de Graduação e Pós-Graduação de História da UFPI pedrovilarinho@uol.com.br

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e, no século XIX, a mulher era pretensamente tida inferior em relação ao homem, posta em segundo plano nas relações sociais e familiares, no século XX, juntamente com as diversas conquistas sociais e culturais, ela começa a encontrar um certo espaço. Antes, pouco se falava nas mulheres e elas também deixaram poucos relatos sobre si, visto que ainda eram pouco instruídas e, assim, eram minorias nas rodas literárias. Em seu livro História das Mulheres, a historiadora francesa Michele Perrot, consagrada no meio científico nos seus estudos sobre mulheres, retrata a importância da historiografia para o entendimento do universo feminino, destacando maior visibilidade e firmação com os valores da família. No início dos anos de 1990, influenciado por Perrot e tantos outros autores, como Joan Scott, o professor do departamento de História da UFPI e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em História da UFPI, Pedro Vilarinho Castelo Branco, começou a se interessar pelo processo de modernização de Teresina do início do século XX e acabou sendo o objeto de sua dissertação de mestrado, defendida na UFPE. Ele estudou as identidades femininas, retratando como a mulher se comportava e como era tratada nos cenários sociais. Em 1996, fruto dessas pesquisas que tiveram o apoio historiográfico da pesquisadora piauiense Teresinha Queiroz, Pedro Vilarinho lançou o livro Mulheres Plurais: A Condição Feminina na Primeira República. O sucesso da obra foi tanto que ganhou uma segunda edição, com o esgotamento da primeira. Por meio desse importante recorte de gênero, surgiram peças teatrais, ensaios em revistas, jornais, além de dissertações e até tese de doutorado no departamento de História da UFPI. Trazer à tona questões de gênero para Pedro Vilarinho teve início em observação a partir de suas relações em família. Como cita Teresinha Queiroz, na historiografia brasileira, a questão da família e da mulher era tratada no cerne de assuntos, como a escravidão - aparecendo como escrava -, as práticas sexuais entre brancos e escravas, o concubinato, a situação jurídica dos filhos de escravas com brancos, casamento, entre outros. Mulheres Plurais é uma contribuição à memória da mulher brasileira especialmente as de Teresina no início do século XX, dando ênfase a três aspectos de sua vida cotidiana: o lazer, a educação e o trabalho. Essas mudanças se davam lentamente pela inserção de Teresina no mundo

capitalista. “As relações sociais são sempre marcadas por relações de poder. O poder, na perspectiva foucaultiana, sempre está presente. Nesse sentido, aponto como as mudanças que ocorriam nos espaços públicos exigiam que as mulheres, particularmente das elites e dos grupos médios, passassem a vivenciar de forma intensa as sociabilidades urbanas. Entre as novas possibilidades femininas, estava a de alcançar níveis de escolarização mais elevados, o que acabou por possibilitar o ingresso das mulheres em novos espaços de trabalho remunerados. Acredito que o livro ajudou a mudar as formas de abordagem da produção historiográfica piauiense, sendo hoje leitura obrigatória para os que pretendem trabalhar com história das mulheres e com as relações de gênero”, considera Pedro Vilarinho. O estudo sobre a mulher de Teresina do início do século XX discute sobre como ela atuava na sociedade e na família e ressalta que ela era atuante, como exemplo, exercia seu poder em eventos religiosos, culturais e sociais, muitas vezes em papéis de gerenciamento e organização, como os que aconteciam no Clube Recreativo Teresinense, no Teatro 4 de Setembro e no Clube dos Diários. A mulher começava a participar mais de festas, a frequentar os cinemas. O carnaval, que era severamente condenado e tido como mundano pela igreja católica, é, aos poucos, invadido pelas senhoras e senhoritas, seja nos bailes de máscara, nos corsos e nos blocos de rua organizados. No começo do século XX, a educação era voltada para os afazeres domésticos e a mulher quase que exclusivamente era criada para o casamento e procriação. Poucas escolas públicas existiam na cidade, e a participação feminina também era pequena. Nas escolas particulares, existia a preocupação com a educação moral e religiosa das alunas, porém, de uma forma geral, as mulheres eram excluídas, em sua maioria, de exercer o ensino formal da época, no máximo o ensino primário, além de serem educadas para costurar, bordar e também a tocar algum instrumento musical. No trabalho, poucas eram as oportunidades, mas exerciam o magistério ou se firmavam em fábricas de fiação ou mesmo como domésticas. Pedro Vilarinho aborda essas questões em pesquisas encontradas em relatos, artigos e em notícias de jornais da época.

“Divididas entre o novo e o velho, as mulheres teresinenses mostravam-se bastante seduzidas pelas novas propostas de vestuário, pelo aprimoramento da educação, pela participação frequente em eventos públicos e também pelas novas oportunidades de trabalho. Entretanto, continuavam ligadas fortemente à igreja católica, à família e abandonariam o emprego e outros projetos, se essa fosse a vontade do marido. Casar, ter filhos e cuidar do lar era preocupações e desejos marcantes da mulher do início do século XX”, disse o pesquisador. Posteriormente, ainda no contexto temporal das primeiras décadas do século XX, Pedro Vilarinho estendeu sua pesquisa para História e Masculinidades, que também foi transformada em livro, em 2008. O resultado desse estudo traz à luz transformações cruciais da sociedade teresinense, como os caminhos que as elites e os grupos médios de Teresina percorreram para reinventar as fases da vida (a infância, a mocidade e a vida adulta), ao tempo em que reinventavam as práticas masculinas na sociedade. A escola é cada vez mais inserida na vida masculina, atraindo os rapazes no universo das letras, ao passo que os distanciam do modo de vida ruralista. Em termos discursivos, o aprendizado obtido por meio da cultura escrita seria de suma importância para os novos modos de condução das famílias e para a ocupação dos empregos urbanos e dos inéditos espaços de lazer e sociabilidade materializados na Teresina do início do século XX, tais como o footing, o futebol e o cinema. Na fase adulta, o homem passa a dar novo sentido às relações afetivas, aos filhos e ao trabalho, buscando ser mais produtivo e atuante. Resenha publicada sobre História e Masculinidades pelo Prof. de História da UFC, Mário Martins Viana Júnior, retrata que, embora o homem tentasse alterar o que era tido como ser macho, conservava em si características do tradicionalismo, que era a dominação masculina sobre a feminina. “Nesse processo, o que se alterava era apenas o modo como isso era exercido: de forma mais branda e menos violenta. Nos discursos dos literatos daquela época, percebia-se uma reação contrária à feminização da sociedade, buscando manter o patriarcalismo e condenando as mudanças sociais”, pontuou o professor. Por Márcia Cristina FOTO DIVULGAÇÃO

FOTO: MÁRCIA CRISTINA

Urbanização de Teresina atraiu mulheres plurais e transformações masculinas

Foto antiga de Teresina mostrando desfile de carnaval por rua da cidade


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REPORTAGEM FOTO: MÁRCIA CRISTINA

As transformações do homem nordestino frente à crise da tradição

Valdinar da Silva de Oliveira Filho Prof. Dr. do Curso de História da UESPI

mestrecasanova@yahoo.com.br

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ebruçar-se sobre a história das relações do gênero masculino na tradição nordestina, marcada por padrões e estereótipos em crise do que é ser homem no Nordeste, especialmente nas décadas de 1940 a 1980, foi o eixo central de um trabalho do Prof. da Universidade Estadual do Piauí – UESPI, campus Torquato Neto, Valdinar da Silva Oliveira Filho, defendida há dois anos. O estudo utilizou recortes de folhetos de cordel e os romances clássicos de autores consagrados, que fizeram o registro apurado dessa dita masculinidade em uma época centrada na tradição patriarcal. A pesquisa, resultado da tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ), tratou de apresentar o retrato de uma crise nos padrões estabelecidos na sociedade dita nordestina no começo do século XX, apresentando os conflitos por que passaram o homem em relação aos espaços em que ele se encontrava. O Prof. Valdinar ressalta que a violência e a masculinidade estão sustentadas por um fio e que o homem temia o nivelamento de gênero que ia estabelecendo-se. A pesquisa apresenta os limites do mando e os limites do mundo e da necessidade de (re)afirmação do que é ser homem no Nordeste num espaço e cenário que se mudava e se caracterizava em diversas metáforas, que foram retratadas em “Fogo Morto”, por exemplo, clássico da literatura regionalista de José Lins do Rego que apresenta personagens em uma sociedade decadente, ressaltando a problemática existencial delas. Outro

exemplo da pesquisa é “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre. “Este discurso nos permite perceber que esta componente violenta das relações entre os gêneros vem-se modificando historicamente, à medida em que as relações sociais e de poder mudam, à medida em que novos padrões de sociabilidade e sensibilidade se apresentam, o que parece tornar a figura do macho nordestino uma figura obsoleta, em crise de identidade, exatamente porque ela não é natural, mas historicamente construída e pode, portanto, ser desconstruída”, explica o pesquisador. Como o autor diz na pesquisa, ser homem era ser e ter valentia, coragem, destemor, virilidade e violência. A literatura de cordel, como é retratada na pesquisa em versos de vários cordelistas, associa masculinidade, nordestinidade e violência em um espaço agrário. “A historicidade se elabora justamente na produção da distância, na produção da diferença entre passado e presente. Ser homem, muitas vezes, era condição de garantia para nunca ser “traído”, não ser “chifrado” e, caso fosse, não deixava “barato” tal condição de “corno” da região”, descreve o pesquisador. O professor explica que estudos sobre homens são recentes, partindo da década de 1990, e que trilham os mesmos caminhos abertos pelo debate feminista e pelas conquistas teórico-metodológicas trazidas pelos trabalhos acerca de gênero. A partir de então, passou-se a falar de uma crise da masculinidade, em que muitos homens de classe média se sentiram impelidos a ensaiar outros modelos de ser homem, pai ou marido, por causa das próprias transformações por que passavam a família e as relações entre os gêneros,

motivadas pelas conquistas das mulheres, desde os anos sessenta. A pesquisa evidenciou que, no Nordeste, a mulher que não se enquadrava no seu estereótipo coadjuvante e submisso, dependente do marido e satisfeita com a condição social que ocupava, podia sofrer as mais variadas agressões e punições, além de ser vista e tida como “estranha”, “menos mulher”. Em muitos casos, isso acontecia quando ela assumia determinadas posturas masculinas do forte, do destemido, do chefe da casa, a partir de situações e contextos específicos, muitas vezes, decretados pela ausência do marido, pela viuvez precoce ou, então, todos estes casos mais a condição de viver numa terra inóspita, de difícil sobrevivência onde, na maioria das vezes, acreditava que só sendo homem, só sendo macho mesmo, para sobreviver num lugar destes. “O que se constata a partir de todos esses elementos é que, entre 1940 e 80, devido a diversos momentos como, por exemplo, o fim dos engenhos, o processo de industrialização que leva o homem do campo a se tornar cada vez mais um homem da cidade, há um embate entre a tradição e a modernidade e o que vai acontecer é um nivelamento de papéis, horizontalização dos gêneros, homens mais amorosos. Em tese, todos esses elementos transformam as relações espaciais entre os gêneros”, considera o pesquisador. Segundo o estudo, o cordel é o produto de uma memória individual e coletiva, tendo sempre uma relação com o sublunar, pois para ser bem aceito pela comunidade, ele deverá ter pelo menos aparência de realidade, sendo quase sempre fruto do que o poeta viu e ouviu no seu dia a dia. “Dentre as expressões da cultura produzidas pelas classes populares, optamos por estudar a figura do nordestino na literatura de cordel, ou seja, em folhetos impressos e expostos à venda, pendurados em um barbante (cordel), nas feiras e nos mercados populares, também disponíveis em redes online de internet, em “sítios” próprios de diversos autores, além da presença nos grandes centros urbanos, realidade já há bastante tempo reconhecida por todos”.


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Impedir a variação de papéis na sociedade é barrar a liberdade de mudança e pensamento

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clássico de 1933, “Casa Grande & Senzala”, Os estudos feministas se iniciaram na retrata o autoritarismo masculino na sociedade década de 1960 por meio de movimentos pernambucana pré-capitalista. “Gilberto Freyre culturais e políticos nos EUA. Na década de é um dos fundadores dessa visão do patriarca 1980, no Brasil, passou-se a estudar a como elemento central, em todas as suas obras. masculinidade. As relações entre o feminino e o Se o patriarca é o elemento central, o feminino masculino não podem ser pensadas de forma passa a ser o elemento submisso à figura daquele separada; a partir disso, intensificaram-se os e dele sofre vários tipos de violência, por estudos sobre a masculinidade, para justamente exemplo, a proibição de ocupar um espaço fora compreender como o homem pensa o feminino do que é determinado para a mulher e que, em si, para, a partir daí, se pensar em políticas públicas já é uma forma de violência”, reforça Valdinar voltadas para a saúde, para a educação e para o da Silva Oliveira Filho. social. “Fogo Morto”, de José Lins, é a narrativa Valdinar da Silva Oliveira Filho explica não apenas do declínio social e econômico da que os elementos que passam a apontar essa aristocracia tradicional dos engenhos, mas é o crise de masculinidade em meados do século canto do cisne de formas de ser homem que XX são mulheres ocupando espaços que antes estavam tornando-se cada vez mais inadequadas os homens dominavam, homens cada vez mais à nova ordem social. Para o autor da tese, o abandonando a tradição e a herança do patriarca próprio escritor é um sujeito masculino que em relação ao campo, para assumir cargos vive, com muita angústia e sofrimento, o fato de públicos oferecidos no mundo urbano e até no que já não se pode ser homem como meio rural. O homem tradicionalmente tem uma antigamente, como fora seu avô. Em “Fogo relação mais próxima do carnal e a mulher muito Morto”, os personagens pareciam homens cada mais próxima do sublime, do amor. Em outras vez mais ensimesmados, calados, remoendo palavras, ao homem não caberia ter esse internamente suas angústias e incertezas. As sentimento, e isso se vai verificar nas cidades; o verdades e as certezas que ordenavam suas vidas homem urbano apaixonando-se e sendo visto, pareciam já não ser partilhadas por suas muitas vezes, como fraco. mulheres, por seus filhos. “Nenhum de nós teve um professor do Valdinar da Silva de Oliveira Filho gênero masculino nas séries iniciais de ensino, afirma que falta ainda uma história da porque a relação na educação nessas séries é sensibilidade humana em relação aos espaços baseada numa tradição em que as mulheres em que os indivíduos praticam sua variada foram levadas a lidar com crianças, por causa da forma de existência. “A sensibilidade tem uma maternidade, da sensibilidade. É papel da história e essa história, quando revista, mulher, pela tradição, ocupar espaço na pesquisada e percebida pela sociedade, pode educação. A tradição serve para preservar O casal de cangaceiro mais conhecido do Nordeste: Lampião e Maria ajudar a compreender porque só existem valores”, atesta. O pesquisador entende que o Bonita, retratando a força e a inversão de papéis do homem e da mulher professoras do gênero feminino na educação problema é o impedimento da variação dos básica. A sensibilidade histórica nos permitirá papéis de gênero na nossa sociedade. “Por só a mãe que incentivam o filho do gênero masculino a não só ver a mudança que ainda falta realizar-se em exemplo, se o homem não pode ocupar o papel de namorar cedo, a ter uma iniciação sexual e a orientar, nossa sociedade, mas também aceitá-la com menos professor nas séries iniciais, isso abre um precedente por exemplo, que determinados jogos são masculinos e sofrimento. A sociedade, quando se depara com as para que a mulher não ocupe o papel de gerente numa outros são femininos. É só verificar quais são os jogos relações de gênero, surpreende-se ainda com as empresa qualquer, porque quando se impede a variação que identificam o que é ser homem ou mulher - a possibilidades de variações de gêneros ainda possíveis. de papel de gêneros na nossa sociedade, está-se sinuca, o jogo de peteca e o triângulo são os que Para conviver melhor com as mudanças, é preciso impedindo qualquer forma de mudança no insinuam e metamorfoseiam práticas masculinas. A passar pela ordem do sensível, daí perceberemos que pensamento, na política, na cultura etc.”, ressalta boneca é exclusivamente para meninas. As mulheres essa sensibilidade histórica, cada vez mais, está sendo Valdinar da Silva Oliveira Filho. também contribuem para que papéis tradicionais de constatada pela presença do matriarcalismo e Para o autor da pesquisa, a tradição não é só a gêneros permaneçam. É impossível pensar o nivelamento social do gênero presente nos tempos de preservação de valores ou de estereótipos, mas masculino sem relacioná-lo com o feminino. As hoje”, conclui. também, principalmente, a constituição da hipocrisia feministas têm sua importância, por chamar a atenção no meio da sociedade. Por exemplo, o moderno aceita para aqueles que estão à margem social, como as Por Márcia Cristina conviver com o diferente, a tradição concebe a lésbicas”, defende. diferença como ameaça. “Na família A literatura Freyreana serviu como não é só o pai, nem é elemento na pesquisa em questão. O


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REPORTAGEM

Fabiano de Souza Gontijo Prof. Dr. do Depto. de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e de Políticas Públicas da UFPI

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m artigo publicado internacionalmente pelo Prof. Fabiano de Souza Gontijo - doutor em Antropologia e professor do departamento de Ciências Sociais da UFPI e professor dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Políticas Públicas da UFPI - “Outros campos, outros desejos? Considerações sobre Família, Amor, Gênero e Sexualidade no Piauí”, o pesquisador apresenta alguns resultados parciais de pesquisas, buscando caracterizar algumas narrativas biográficas homossexuais piauienses, em particular no que diz respeito às vivências da família, do amor, das relações de gênero e dos relacionamentos afetivos. O autor traz à tona discussões de gênero partindo de questões, como a heteronormatidade hegemônica, que definem padrões rígidos de masculinidade e de feminilidade. Segundo o pesquisador, o artigo baseia-se no entendimento de como as diferenças sexuais culturalmente construídas são transformadas em hierarquias e, logo, em desigualdades sociais e como as transformações ocorrem com a globalização. “Um dos objetivos do estudo é tentar entender como, no

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contexto das grandes transformações sociais dos últimos tempos, aqueles que mantêm relações sexuais com pessoas do mesmo sexo se constituem como sujeitos sociais, formulam suas identidades e caracterizam suas formas de pertencimento”, acentua. Paralelo a isso, entender como se dão os novos relacionamentos ou a “nova família”, formada por casais homossexuais das capitais Teresina-PI e São Luís-MA, é a proposta de uma pesquisa coordenada por Fabiano de Souza Gontijo, que continua seguindo a linha de estudo sobre homossexualidade e gênero. O projeto “Homoparentalidades, homoconjugalidades e cidadania: pais, mães e famílias homossexuais no Meio-Norte brasileiro na era dos direitos humanos” visa obter informações para implementar ações contra a discriminação e gerar novas discussões sobre a união civil homossexual, sobre adoção de filhos por casais homossexuais e sobre as transformações sociais que têm gerado novas formas de vida dos homossexuais. O trabalho conta com três alunos de graduação bolsistas do PIBIC da UFPI e alunos de pós-graduação em Antropologia e Arqueologia da UFPI (PPGAArq) e Ciências Sociais da UFMA, todos vinculados aos grupos que são coordenados por Fabiano Gontijo, além de estar cadastrado como pesquisa de bolsa de produtividade do CNPq, nível 2, vigente desde 2007, e de obter recursos do PROCAD-NF, contemplados em parceria entre o PPGAArq e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Gontijo ressalta que a pesquisa pretende delimitar o universo simbólico, socialmente construído e culturalmente (re)formulado, que vem servindo de referência para a construção das identidades homossexuais, das relações conjugais e familiais e das relações parentais entre pessoas do mesmo sexo (homossexualidades identitárias, homoconjugalidades e homoparentalidades na região Meio-Norte do Brasil. “Assim, temos um leque de questões relacionadas às relações sobre gênero, como: o que é o amor? O que é o amor entre pessoas do mesmo sexo? O que é ser pai ou mãe homossexual? Percebe-se que ainda há muitos estigmas a serem desfeitos

As uniões de casais homossexuais faz parte do universo da pesquisa

FOTO: BERNARDO SOARES/FOLHAPRESS

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Casais gays buscam espaço na sociedade por meio do “novo” modelo de família

Casal de Pernambuco conseguiu na Justiça o direito de registrar a filha, gerada por meio de barriga de aluguel

relacionados aos modos de vida em sociedade, principalmente no que se refere ao modelo de família. Muitos casais homossexuais têm buscado reivindicar seus espaços de cidadania na sociedade”, explica Gontijo. Foram entrevistados casais homossexuais nas duas capitais na busca por um mapeamento de diversas questões. Uma etapa da pesquisa trata da produção bibliográfica científica e literária sobre gênero e sexualidades, amor, afetividades e conjugalidades, família, parentesco e parentalidades, buscando-se entender a construção de uma suposta particularidade homossexual. Outra etapa pretende desvendar o imaginário e ideário e das representações emitidas por homossexuais identitários teresinenses e ludovicenses acerca das identidades homossexuais, a partir de uma investigação quantitativa; por fim, a pesquisa tem como foco investigar perfis, trajetórias, memórias e histórias de vida de homens e de mulheres que se relacionam de forma duradoura (mais de um ano) com pessoas do mesmo sexo e que têm filhos (“naturais”, fruto de relacionamentos heterossexuais anteriores, ou adotados) e de pais e mães homossexuais que não estejam vivendo, atualmente, um relacionamento estável. Gontijo afirma que, com as transformações sociais e culturais, especialmente nos últimos 40 anos, as relações homossexuais vêm deixando de causar choque ou de serem vistas como pecado, crime e vergonha para as famílias ditas tradicionais (as formadas por casais heterossexuais). A família que, aliás, era vista como natural, não questionada, agora passa a se configurar com “novas relações de parentesco”. “A sociedade brasileira tem-se tornado cada vez mais complexa, heterogênea, diferenciada e as identidades tradicionais vêm-se desfazendo. Com isso, percebemos que é preciso a investigação para compreender esses processos e demandas, que nem sempre se dão sem conflitos, ao contrário, formam-se com variadas formas de exclusão”, destaca. Por Márcia Cristina


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