Melancolia

Page 1



PREFÁCIO As primeiras relações mãe-bebê viabilizam ou não a confiança necessária para formar o desejo pela vida. Receber um bebê no mundo é imprimir em sua psique dados sobre o ambiente. A partir de como a criança é tratada, aprende a confiar ou não nas pessoas. Formam-se memórias básicas que não são acessíveis posteriormente nem facilmente transformáveis. São marcas que ficam sem tradução. O bebê não pensa sobre elas, apenas sente. Melancolia é sombra de rejeição. É o peso que afeta a viabilização do humano num ser que é funcionalmente normal. Alguém com cérebro, coração, pulmão e sistema digestório que só não consegue digerir a rejeição sofrida. Não consegue afastar os ecos “você não sabe” , “você não é”, você não pode” que o acompanham a partir de seu interior e interferem no sistema simbólico de trocas e compreensão de mundo. O medo de viver, a angústia de enfrentar o social faz parte, está nas entranhas, nasceu nos primórdios de uma existência em que os seres mais importantes de afeto e proteção descuidaramse do carinho (depressão pós parto pode ser um dos motivos) e protegeram apenas o suficiente para que o bebê não morresse. O trágico é que a sombra da melancolia encobre o Eu, cria um estilo de resposta ao mundo, forma um traço de personalidade. Essa criança com déficit de amor um dia vai sentir, ao mesmo tempo, medo e vontade de morrer, sem saber direito como e por quê isso ocorre. Sente que É O problema. Sua presença, sua vida é um problema que incomoda o mundo. O melancólico carrega a marca do sofrimento, como gado marcado com ferro em brasa, de memórias iniciais indizíveis mas muito fortes que o fazem sentir-se extramamente culpado por uma inadequação incompreensível: o mundo não é para ele. A vida oferecida assim, como um favor, é cobrada constantemente e torna os agressores (cuidadores descuidados) ironicamente generosos. Ao melancólico cabe o papel de usurpador do tempo e da alegria dos que se incomodaram com sua presença. Alguém fez o favor de cuidar daquele bebê. Um bebê que cresce de uma relação de favor, dificilmente acredita que sua vida vale a pena. A situação é percebida por irmãos que podem reproduzir e amplificar o efeito de inadequação e o drama cresce. Superar nem sempre é possível, mas também nem sempre é impossível. Depende. Depende muito do grau de estrago que foi feito no Simbólico, do poder de alcance do Imaginário. Depende da força pessoal e da compreensão e acolhimento social. Depende da possibilidade de descobertas e de novas experiências de sucesso nos diversos campos da vida humana. Depende do tipo das relações possíveis de serem estabelecidas. Se humanizadoras ou coisificantes. Se encontra expressão para seu valor humano ou se continua passando pela vida como pedra carregada por um rio que não vê nem fala com os dejetos que leva. Depende da possibilidade de ser escutado, ter voz num determinado campo social. Se o meio em que vive é democrático ou castrador. Se convive com seres delicados ou com senhores, donos do poder e autoritários. Depende da desmilitarização das almas. Tânia Amares


Akaki, empresta o capote meu frio não passa . e dizem que tudo passa a indiferença o ódio a crueldade . por mais que mudem os chefes os móveis, os diretores . Akaki, você não passa meu frio não passa . eu e você na cama pensando juntos . morremos no assalto roubaram nosso capote .



Céu de Narciso agora sou pérola ostra fechada em culto compenetrada vida abstrata processo em curso ato ortodoxo quinto mistério interno sangue vertido em taça, ofertório ergo-me e brindo a mim altar perdido no tempo ausência de senso arte no átrio ventre atrevido salgada em Iemanjá é minha a memória de mar séria sereia sozinha na areia lanço-me ao céu e caio corpo de estrela alma cadente


setembro quando o amor chegar serĂĄ primavera serei um sorriso desabrochando na primeira manhĂŁ eterna no momento efĂŞmero


ful么Zinha devagar foi abrindo e abrindo camada por camada inv贸lucro por inv贸lucro no oco de tudo no centro segredo o nome da rosa Choque


vidas quase impossível fazer o luto da própria vida separar-se das memórias jogar fora o cheiro das alegrias que um dia foram risadas quase impossível embalar o que foi esperança sonho horizonte colocar num saco preto deixar na calçada olhar o lixeiro pegar de qualquer jeito jogar no caminhão de qualquer jeito quase impossível não sei o que fazer se luto contra o luto e abraço minhas memórias se esqueço tudo e me jogo junto no lixo


Vida é mais que ordem, é um caos que produz música, cores de Matisse a Van Gogh e sabores de mingau a moqueca A vida sai do ninho e voa sozinha. Quando Vida vira História, ela já acabou.

( lendo Bordieu e pensando sobre interpretação e seus descaminhos na análise e a opção de Lacan por uma terapia fora do sentido e dentro da Língua )

" É significativo que o abandono da estrutura do romance como relato linear tenha coincidido com o questionamento da visão da vida como existência dotada de sentido, no duplo sentido de significação e de direção. Essa dupla ruptura, simbolizada pelo romance de Faulkner O som e a Fúria, exprime-se com toda a clareza na definição da vida como anti-história proposta por Shakespeare no fim de Macbeth: "É uma história contada por um idiota, uma história cheia de som e de fúria, mas desprovida de significação". Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. Eis porque é lógico pedir auxilio àqueles que tiveram que romper com essa tradição no próprio terreno de sua realização exemplar. Como diz Allain Robbe-Grillet, "o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta descoberta: o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório". Robbe-Grillet, A. Le miroir qui reviel1l. Paris, Minuit, 1984. p. 208. "Tudo isto é o real, isto é, o fragmentário, o fugaz, o inútil, tão acidental mesmo e tão particular que todo acontecimento ali aparece, a todo instante, como gratuito, e toda existencia, afinal, como privada da menor significação unificadora" (Robbe-Grillet, 1984.)" in "Usos e abusos da história oral" cap 13 "A Ilusão biográfica" Pierre Bourdieu)


Pedra Palavra

jogadas em lances vozes ouvidos ecos paredes retornos ritornelos eco eco Narciso nem ouve Eco nem fala e o que fica 茅 s贸 som, imagem e o que se consome e o que se con some



quero um deus que ri que abraça quero um deus que veja além do seu umbigo um azul com rabo de peixe um deus desses que não valem nada e enxergam sorrisos não falam só de si não pedem só pra si quero um deus sabiá os sábios não sabem cantar

sabiá, sem você meu canto é só melancolia um dia, um ser de luz nasceu numa cidade do interior ao se batizar transformou-se numa sabiá e onde chegava espantava a dor com a força do seu cantar (João Nogueira )


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.