Isso é Kitsch!

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decoraçãO DECORAÇÃO

por Rafaela Tasca

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Bruna Moreschi

Isso é Kitsch! Pingüim de geladeira, flores artificiais, estampa de oncinha, bibelôs, lantejoulas... Para alguns o kitsch é a estética do exagero, do cafona, do brega e do mau gosto. Mas nesse mundo do bricabraque e das quinquilharias, quem nunca foi kitsch, que atire seus balangandãs!

O termo é utilizado com freqüência para designar as produções artísticas de qualidade inferior. Tem origem nas línguas germânicas com o sentido de trapacear, baratear. Mas, somente no início do século XX se firmou no terreno da cultura para definir um tipo de arte de consumo. É alvo de associações com o brega, o cafona, o mau gosto e a falsificação

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Na página anterior: Luminária Cubo Comic, porta-lápis Pavão Pintor, cofrinho de porco rosa e almofada Mimosa. By Imaginarium. Nesta página: 1/ Divino em madeira criada por Edson Luis Marinho Santos. Peça disponível na Fuxico. 2/ Estandarte em lona e fuxico confeccionado por Malcy Teresinha Gomes. Peça disponível na Fuxico.

de objetos valiosos. Mais que um estilo, é uma atitude de aceitação do prazer proporcionado por produtos culturais mais rasteiros como souvenirs, miniaturas, adornos, bibelôs, estatuetas, reproduções com figuras célebres, talismãs religiosos e uma infinidade de outros objetos encontrados nas vitrines e prateleiras das casas comerciais. O kitsch é isso tudo e muito mais. Fingindo ser Em uma edição da Bienal de Artes de São Paulo, Alex Vallauri, artista plástico e precursor do grafite no Brasil, realizou a instalação “A rainha do frango assado”. Para sugerir a casa de uma emergente, Vallauri utilizou a famosa estampa de oncinha nas paredes, eletrodomésticos e vasos sanitários da exposição. Representação do brega?

Kitsch? Emergente? A professora de comunicação Carmen Lúcia José, doutora em Semiótica pela PUC de São Paulo e autora do livro “Do Brega ao Emergente” (Editora Marco Zero, 2002) esclarece as diferenças: “O kitsch e o brega são rótulos sociais. O kitsch dilui o texto artístico para que haja essencialmente o auto-reconhecimento, ou seja, atua em um sentido descendente. Já o brega promove o popular e o ordinário dando a impressão de sofisticação, portanto, atua em um sentido ascendente”. Em outras palavras, o kitsch seduz com uma espécie de mentira estética que proporciona prazer. “A sensação de se ter o original de uma obra pode ser conquistada, por exemplo, pelo uso de materiais com características similares a


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outros de custo elevado. Na decoração de interiores temos o exemplo de um jogo de jantar colonial, que é feito de madeira de lei, pesadíssima e cara. Para que este mobiliário entre para o consumo de massa, há que reproduzi-lo em um material mais barato, como um compensado de madeira. O compensado é uma cópia barata do original. O importante passa a ser meramente reconhecer os traços do estilo colonial. Isso é o kitsch”. Outro caso possível de ser ilustrado é que na inacessibilidade da aquisição de obras de artes, como um autêntico Picasso, Mondrian, Da Vinci ou Pollock, há o processo de reprodução ou falseio. “Nesse processo não importa se o pintor da Mona Lisa escolheu aquela tinta, porque com aquela textura

tal sensação seria produzida em quem olhasse o quadro. O que importa é reconhecer que a Mona Lisa está ali, naquele imã de geladeira ou caneca. Ocorre, por assim dizer, um nivelamento por baixo das obras de arte, que são reembaladas em forma de mercadoria para o consumo”, analisa a semioticista. Com uma origem um tanto obscura, o brega pode estar relacionado com o termo “esbregue”, que se refere àquilo que é de baixa qualidade, reles, ordinário. Mas, o brega assume uma carga pejorativa em algumas localidades do Brasil, muito possivelmente por ser identificado com prostíbulos. Conferir a alguém, ou a algo, a qualidade de brega é estar propenso ao desconforto que a associação pode proporcionar. Por isso, ao mesmo tempo aparece

um novo vocábulo, o emergente, para designar algumas aspirações ao universo de poder e sofisticação. “Uma estampa de oncinha pode remeter à forma com que alguns grupos primários associavam a pele deste felino a símbolos de poder, mais ou menos como aquelas cabeças de veados ou alce que vemos decorando as paredes de casas norteamericanas e que nos chegam especialmente pelos seriados enlatados de televisão que eles produzem. Ostentar o animal caçado confere um sentido de domínio do homem sobre seu habitat, e isso é um símbolo de poder”, pondera a professora. Clássico “inutensílio” Como dos mais

significativos símbolos kitsch, graceja, solitário ou aos pares, o pingüim de geladeira. Há tentativas de explicar o surgimento desse enfeite de cozinha. Na década de 40, eletrodomésticos, como o refrigerador, eram considerados artigos de luxo e se limitavam a fazer parte do ambiente requintado das casas das classes mais privilegiadas. Nesta época, uma geladeira por si só já era um luxo, portanto era de grande elegância enfeitar o lugar mais frio da casa com uma ave que vive no gelo. Com a popularização dos eletrodomésticos, o pingüim adquire o status de kitsch. Guinado pela vontade popular de aquisição de símbolos de riqueza, o enfeite caiu no jogo da reprodução em série e aos poucos o hábito foi jocoso, caindo em desuso nas camadas mais

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abastadas, pelo fato de ter virado um objeto vulgar. Meio século depois, impulsionado por um certo saudosismo e tom lúdico, o pingüim voltou a agradar designers renomados e lojas de decoração, passando novamente a ser moda. Lar doce lar Dos ambientes, a casa é espaço privilegiado de atuação do kitsch, por ser onde há uma relação mais emocional com os objetos. Para a designer de interiores Mila Machado, há uma vertente do kitsch que mantém uma interlocução com a cultura local, motivo pelo qual existem tendências diferenciadas entre o décor brasileiro, venezuelano, europeu e norte-americano. “No Brasil, há uma linha do design de interiores que utiliza as referências da cultura popular na composição dos ambientes.

Utilizar signos que fazem parte do imaginário social do brasileiro gera a possibilidade de remeter a uma memória afetiva, que é reino de histórias e lembranças, proporcionando sensações de aconchego e conforto”, analisa a designer. Mila cita um exemplo de sua própria experiência: “Quando olho para este relicário que fiz, tenho uma sensação de conforto que não está no nível da adoração religiosa. É um aconchego que vem da lembrança de minha avó, que sempre ofertava um copinho de café para a imagem de São Benedito”. Composto por uma estatueta de São Benedito, tecido de paetês preto, flores de plástico, medalhinhas e um material de estrutura em gesso pintado na cor terra, o relicário a que se refere tem cerca de 40 centímetros e fica sobre a cristaleira de sua

1/ Trio de pingüins “Sim, Não, Talvez” assinado pelo designer Ricardo Spindola; boneca “Maria do Ingá” criada pelo grupo Líndio e as pernas sensuais de uma mulher. Peças disponíveis na Fuxico. 2/ Relicário desenvolvido pela designer Mila Machado.

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1/ Bibelôs em cerâmica e flocos coloridos de nylon com imagens de Buda, Nossa Senhora da Aparecida, Cristo Redentor e São Jorge (peça vermelha ao fundo). Coleção “Santos” by Imaginarium. 2/ Vasos e flores de plástico by Imaginarium. 3/ Porta-lápis Pavão Pintor, cofrinho de porco rosa e almofada Mimosa. By Imaginarium.

sala de jantar. De tudo um pouco Fitas de cetim das mais variadas cores balançam dos relicários, pingüins de geladeira nas prateleiras, chaleira com jeito de faz tempo, penduricalhos e patuás aos montes, bibelô colorido com as pernas sensuais de uma mulher, frutas artificiais na cumbuca de madeira... Esse mosaico dos mais variados objetos é a Fuxico, uma mistura de comércio, ateliê de artes e eventualmente, bazar beneficente. Um lugar que a diretora do estabelecimento, Etelvina Colchea, define como “sem verniz”, por ser espaço de “ficar à vontade”. Há mais de dois anos, a Fuxico atua no mercado das peças para decoração com um conceito de trabalhar

com o artesanal, que por vezes tem aquele trato com o folclórico, o regional e também com o kitsch. Umas das frentes de atuação é a idéia de potencializar o desenvolvimento artístico, com peças de designers e artistas da região, além de fazer o intercâmbio com produções de outras paragens. O tom regionalista é visível em souvenirs como os que remetem à Maria do Ingá - a cabocla da composição musical símbolo de Maringá. Mas Vina, como prefere ser chamada, observa que muitos ainda se assustam com os valores das peças e diz: “sempre afirmo que algo assinado não é o mesmo que uma outra versão, aparentemente idêntica, vendida por bagatelas em


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Características kitsch

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O objeto kitsch pode assumir uma, algumas ou todas estas características:

alguns estabelecimentos de preço único”.

apenas com variação na distribuição de cores.

No horizonte da Arte Pop Esta apropriação artística do universo do kitsch foi amplamente realizada pela Arte Pop, tendo como ícones centrais Andy Warhol e Roy Lichtenstein. Movimento artístico que surgiu como expressão nos Estados Unidos e Inglaterra do período pós-guerra, a Arte Pop utilizou como sustentação imagens, signos e ícones que alimentavam a sociedade de consumo. Conferindo propriedades artísticas para objetos banais do cotidiano, a estética do pop trabalhava com idéias como a de repetição de imagens, facilmente reconhecíveis. No quadro intitulado “200 latas de sopa Campbell´s”, Warhol utilizou a técnica da serigrafia para representar a imagem repetida do produto. Com esta mesma abordagem, diversas outras obras da Arte Pop utilizaram a imagem de Marilyn Monroe, a loira sex symbol projetada por Hollywood. Possivelmente o mais famoso quadro de Marilyn é o que Warhol repete por diversas vezes uma única imagem do rosto da diva,

Kitsch no museu No Brasil, o kitsch também é assunto de museu. A exposição Technokitsch, de Guinter Parschalk, é um exemplo. Realizada em 2004, no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, mostrou dez luminárias desenvolvidas por Parschalk – designer, arquiteto e inventor de obras e engenhocas brilhantes. Technokitsch norteavase pela integração lúdica da alta tecnologia em iluminação com objetos considerados kitsch ou populares, como latas de manteiga, flores de plástico e utensílios de cozinha. O maior e mais completo acervo de obras consideradas kitsch está sob os cuidados do Museu de Arte de São Paulo. O Masp realizou duas exposições com esta temática, a primeira, em 1984, intitulada “Pequeno inventário de um grande mau gosto” e a outra, em 2001, com o nome de “Viva o kitsch!”. Com curadoria de agentes culturais do Masp e do artista plástico, jornalista e colecionador, Olney Krüse, a exposição “Viva o Kitsch” reuniu, por assim dizer, a fina flor destas

quinquilharias. As mais de 1.500 peças expostas na Galeria Prestes Maia buscavam dar à exposição um certo ar caseiro, com suspiros de “lar doce lar”. Eram caixinhas de música, pingüins, jarras de plástico com forma de fruta, flores artificiais, e tantos outros objetos e artefatos. Em uma espécie de “altar”, souvenirs dedicados a Marilyn Monroe, Elvis Presley e outros ícones hollywoodianos, adquiridos por Krüse no mundo todo, eram expostos para o deleite do público. Ele passou mais de 45 anos compondo sua coleção com peças vindas dos mais inusitados lugares e afirma: “Ninguém escapa do kitsch”. 1/ Souvenirs em miseen-scène com os cristais de Mila. 2/ Mila Machado ao lado de sua cristaleira e seu relicário kitsch. 3/ Etelvina Colchea no espaço da Fuxico.

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Melodrama: apelo sentimental e excesso de romantismo. Culto aos ídolos: Astros de Hollywood como Marilyn Monroe, Elvis Presley e James Dean são ícones imbatíveis nas reproduções em canecas, badulaques, pôsteres, canetas, estatuetas, etc. Este tipo de souvenir aparece como uma forma de perpetuar a idolatria por esses artistas. Curvas complexas e dégradés: vários pontos de inflexão e quase nenhum espaço em branco, cores fluorescentes, brilhos e cores contrastantes. Ausência de superfícies não interrompidas: as superfícies são preenchidas com adornos, símbolos, representações e repetições. Materiais que imitam outros materiais: O plástico apresenta textura de madeira; a madeira é pintada imitando o mármore. A norma consiste em dissimular a matéria-prima considerada inferior - por exemplo, fazer com que o gesso, estuque, ferro e zinco pareçam ouro pela força do dourado. Seguindo este princípio, incorpora-se a falsificação de marcas famosas e caras. Desproporção das dimensões em relação ao objeto representado: catedral famosa em chaveiro, borboleta gigante, miniatura de um Ferrari ou BMW. Inadequação: Desvio do objeto em relação à sua função básica ou contexto de origem. Acumulação: princípio do quanto mais, melhor e do “de tudo um pouco”. Muitos desses objetos acabam por não ter uma unidade de estilo ou mesmo um sentido, sendo, em muitas ocasiões, acumulados por valores emocionais. Imãs de geladeira são os campeões neste quesito. Percepção Sinestésica: múltiplas relações sensoriais. Cartão perfumado e sonoro, caneta perfumada e iluminada, etc.

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