Manual ilustrado da arquitetura doméstica _ Lorena Galery

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manual ilustrado da arquitetura domĂŠstica -



Para cada objeto novo da casa, um manual. Abrir, conservar, manter, utilizar, atenção. Mas a casa não é feita desses verbos. Sonhar, conviver, adentrar, chorar, perder, desistir, lembrar: são essas as palavras que procuro em manuais, em vão. O presente manual não é como os outros, que servem para todos os produtos de uma mesma série, ou até de vários modelos de uma mesma marca. Acima de tudo ele é um manual de manuais inexistentes. -


CORPO

ET

O

Parede O

BJ

Jardim Desconstrução Objeto

Vão da porta Corpo Visita Despensa

CORPO

Janela

DESPENSA


JARDIM

VÃO DA PORTA

PAREDE

VISITA

CORPO JANELA DESCONSTRUÇÃO

CORPO





tentativas de ocupação As janelas são vazios (vãos) preenchidos por ordenações geométricas. Quatro partes, divididas cada uma em nove quadrados. As duas partes inferiores são moveis e se erguem em sentido vertical, deixando o vão explícito e, ainda assim, geométrico: dois retângulos horizontalmente vazios. E ainda, uma cortina dividida em duas, metade em cada extremo da janela, que se movem horizontalmente, aumentando ou diminuindo a marcação vertical das dobras do pano, tampando parcialmente o grid da própria janela. Há ainda a luz que perpassa os quadrados de vidro mas, como no diafragma de uma câmera fotográfica, se ajusta a abertura da cortina que, contraditoriamente, a atravessa quanto mais essa estiver fechada.






Mas a janela e toda sua geometrização só existem em função dos mais orgânicos elementos. Esse "espaço-entre", essa ausência-presença que a janela materializa e simboliza, deve ser habitado. Exercício de existência, existir em um não-lugar. Para habitarmos de fato a casa precisamos exercitar as mínimas habitações, os cantos da parede, a sujeira do liquidificador, a infiltração da parede que cresce. INfiltração que, às vezes, é quem habita melhor o espaço. Ao habitar a janela, relativiza-se o dentro e o fora, a paisagem adentra a casa e a vivência transforma-se paisagem. E ainda, é possível habitar sem o corpo propriamente dito. Adesivos, namoradeiras, vasos de planta podem, é claro, ser extensões do corpo ou, ao menos, caminhos para a habitação. "Estar-entre" é desconfortável, transitório e desnecessário. Mas não confundir habitar o vão com viver em vão.






sobre a necessidade de um sumário (trecho)

Importante notar que a estrutura da casa possui em si a mudança e a desconstrução. A moradia é sempre transitória, muda de cômodo, de endereço, de casca. O tempo passa descascando a parede, enferrujando os canos, as flores brotam, morrem, são replantadas, os objetos somem, são substituídos, o telhado é reformado, a goteira seca, compra-se um abajur. O contrato de aluguel acaba, algo se renova.


cronograma

julho,

2012

setembro,

2012

agosto,

2012

outubro,

2012


novembro,

2012

dezembro,

2012

mudança

janeiro,

2013

abril,

2013






notas sobre a experiência I Já havia muitos meses que saía semanalmente pela cidade, com uma câmera, a procura de grades. Dessa vez subia a Pouso Alto, rua íngreme, na qual eu já havia morado perto e caminhado bastantes vezes. Me lembro detalhadamente de uma. Mas, para além da altura da minha rua, que era perpendicular a essa, eu nunca havia subido, era a primeira vez. No caminho, flores no chão formavam um desenho bonito. Fotografei para depois olhar de perto: ossinhos de galinha e objetos estranhos, só podia ser macumba. Continuei andando e achei uma casa enorme, de lindas janelas e jardim imenso. Claramente abandonada. Quis morar ali, mas sem que sumisse a aparência de abandono. Poucos passos depois, olho pra trás e Belo Horizonte se revela pra mim, linda, como nunca a tinha visto: serena, acolhedora. Coração aperta, continuo andando. Terreno baldio, um carro suspeito, a favela. Coração aperta mais, agora de medo. Quero seguir em frente mas não consigo. Volto, desço por outra rua. Nunca havia passado por ali, aonde vou sair? Como se tivesse entrado numa passagem secreta, saio perto da minha antiga casa. Ela está i g u a l z i n h a . A rua toda mudou: alguns prédios, muros mais altos, casas em reforma. A minha não, está igualzinha. C o m e ç o a c h o r a r .




"hรก um sentido em tomar a casa como um instrumento de anรกlise para a alma humana".

Gaston Bachelard








o preço dos objetos Uma casa pode ser avaliada pelo preço dos objetos que ela contém. Porém cada casa possui sua própria tabela de preços, é necessário encontra-la. Ainda assim é possível traçar características que se adequam, mais ou menos, a grande parte das casas. Objetos pequenos e desnecessários são os mais fáceis de valorizar um espaço doméstico. Mas é preciso ser cuidadoso: eles podem se multiplicar de forma incontrolável e se tornarem um problema clássico de excesso de valor.



O número de televisores e veículos automotivos não deve ser nunca superior ao número de habitantes. Sempre desconfie das pessoas que possuem mais de um televisor. Livros podem agregar valor, mas não são de forma alguma imprescindíveis ao espaço doméstico. É necessário manter por perto livros que tenham mais do que palavras (imagens, memórias ou mofo). Livros que possuem apenas palavras podem estar ocupando, em vão, o lugar de objetos mais caros. Álbuns, porta retratos e imagens fotográficas são indispensáveis e devem seguir uma progressão geométrica diretamente proporcional ao número de crianças que habitam o espaço. Não acredite em alguns teóricos da fotografia que dizem que as imagens fotográficas são perversas, pois perversão também é indispensável em um ambiente doméstico saudável.






de . morar . se



notas sobre a experiência II Minha cama fica debaixo da janela. Nesta, há quatro vasos de flor que comprei recentemente. Logo depois que os comprei eles cresceram rapidamente, mas já fazia um tempo que tinham parado de crescer e as flores começavam a cair. Um dia acordei e ainda deitada olhei pra cima, e na janela eu via um dos vasos de flor. Fiquei um bom tempo parada, fitando o vaso. Parecia que eu podia perceber o m o v i m e n t o do cáule crescendo. Agora as flores começavam a brotar, as folhas iam se abrindo, ganhando tamanho, o cáule se enroscava na grade da janela, ia fazendo voltas, estava quase batendo no teto e não parava de crescer. Logo depois acordei e as flores continuavam a cair.


para não deixar o jardim morrer É preciso estar consciente que um vaso de planta é sempre uma possibilidade de fracasso. As plantas não surgiram em vasos. Além disso, como se sabe, as plantas morrem. Um jardim é sempre uma t e n t a t i v a de organização do caos. Plantas crescem independente de nossa vontade, vivem e morrem sempre indiferentes aos nossos desejos e esperanças. Um jardim é também uma tentativa de “trazer vida” à ambientes assépticos. Perceba que este não é um recurso muito inteligente, uma vez que “trazer vida” através de um ser tão efêmero quanto uma flor, pode vir a trazer mais morte do que vida no fim das contas. Questão que apresenta outro pensamento importante para nós: viver é sempre se aproximar da morte? C ult i va r p l a nt a s é est a r sempre pron t o para o luto.



janela para além do vazio Fique atento aos problemas poéticos que a janela pode te trazer. Ela é sempre buraco, v a z i o , ausência ao mesmo tempo em que m o l d u r a , presença, vínculo. Perceba que ela é o tempo todo antagonismo de si mesma: abrimos buracos em nossas paredes para atrairmos o que precisamos do exterior: luz, ar, paisagem. Mas não admitimos que todas as outras coisas do exterior adentrem nosso espaço privado. Antes de reclamar de ladrões, poeira ou barulho, é necessário cogitar a cimentação de nossas janelas.



Quando crianças quase não usavávamos a porta. A janela grande e larga da casa da fazenda era porta, poltrona e lugar ideal para o almoço. Anos depois um ladrão invadiu a casa arrombando a porta. Colocou-se grade nas janelas. Agora almoçamos nas redes.



notas sobre a experiência III No norte de minas o sol incide de forma diferente, muito mais decidido e incisivo que por aqui. Quando pequena, acordava cedo e o quarto já estava completamente inundado da luz que perpassava pela janela de madeira. Certo dia acordei virada para a parece branca, com a mão dormente. Eu não sabia onde estava nem o que estava acontecendo. Olhava a mão, olhava para a parede. Parede branca e dormência até hoje são a mesma coisa pra mim.







o c u p a รง รฃ o

d o

e s p a รง o


pela luz, pelo corpo e pela ausĂŞncia.











vão S.m. Espaço vazio; intervalo. Espaço ocupado por uma porta ou janela. adj. Sem valor; inútil, ineficaz: esforços vãos. Fútil, frívolo: prazeres vãos. Falso, aparente: sabedoria vã. Vazio, oco.


instruções:

Em

um cômodo de paredes brancas,

deitar-se sobre uma mão até esta ficar dormente.

Fotografar

a mão e com a mão

enquanto ela estiver dormente.



instruções:

“Se

esconda até todos irem pra casa.

Se

esconda até todos se esquecerem de você.

Se

esconda até que todos morram.”

Yoko Ono



instruções:

Ao

anoitecer escrever na parede um

adjetivo para descrever a luz.

Repita

até o outono terminar.



instruções:

Ao

acordar com enxaqueca, apertar os olhos

com a ponta dos dedos até a dor passar da face às mãos.





por Lorena Galery, 2013


puxadinho -



Lorena Galery

- manual ilustrado da arquitetura doméstica -

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado ao Colegiado de Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção

do título de Bacharel em

Artes Visuais. Habilitação: Artes Gráficas Orientador (a): Prof. (ª) : Patrícia Azevedo Coorientador (a): Prof. (ª) : Fernanda Goulart Belo Horizonte Escola de Belas-Artes da UFMG 2013



Agradecimentos:

_ Fernanda e Patrícia (e aos professores) pela orientação para muito além do TCC. _ Isabel e Djalma (e à família) pelas narrativas e habitações. _Bruna e Luiç (e aos amigos) por caminharem comigo, estando sempre um passo a frente.


Um meta-manual “Manual ilustrado da arquitetura doméstica” é, concomitantemente, um texto de relato e um convite. Não seria diferente para quem acredita que não é possível determinar usos para o espaço da casa, mas, ainda assim, que é possível universalizar certos procedimentos e experiências que a tomam como cenário. Tanto pelo meio verbal como visual, palavra e fotografia tentam se aproximar e criar, talvez, um manifesto discreto: de que o cotidiano possa ser belo e, consequentemente, político, estético. Não só o cotidiano presente, mas o passado (memória) e o futuro (projetos).

Usar meu arquivo

fotográfico - de imagens geradas por

mim ou, anos antes de eu nascer, por alguém - parecia ser, a princípio, um procedimento de olhar e organizar o passado. Surpreendentemente, esse


procedimento deu origem a projetos diversos, norteando, a partir de então, o meu processo artístico. Utilizar o dispositivo do livro para relacionar palavra e imagem pareceu o caminho mais confortável. Neste processo de conclusão da habilitação em Artes Gráficas, o livro seria uma possibilidade de diluir a aparente barreira entre os trabalhos prático e o teórico exigidos. Realoco as palavras de Luis Alberto Brandão, na introdução de seu livro “Grafias da identidade”, para este manual:

“Este livro opera com o pressuposto de que todo texto literário também é, em certa medida, teórico, ou pelo menos traz em si um poder de teorização, uma espécie de ‘teoria imaginária’, em geral bastante difusa, por não fazer uso dos protocolos que identificam o gesto explicitamente teórico”. (BRANDÃO, 2005, p.17)


Tendo o conceito de manual como pressuposto gráfico, tento desenvolver um texto que tensione limites entre as dimensões informativa, poética e acadêmica. Mesmo que o conceito e a materialização de um manual propriamente dito tenham se diluído, a palavra ainda me é cara e propositiva. “Manual ilustrado da arquitetura doméstica” foi pensado justamente como uma publicação que pudesse ser lida, tanto quanto objeto poético, como texto teórico. Seja na galeria ou na monografia, o manual é uma das partes constituintes dessas duas esferas. Naquela, inserido dentro de uma instalação e aqui, como um objeto gráfico, o manual funciona como norteador desses processos. Ou seja, no contexto da pesquisa, ele é realmente um manual, um guia do próprio processo. Para além disso, ele é um anti-manual, que relata todas as desorientações que estão contidas no ato de habitar mas que caracterizam também o processo artístico em si.


A materialização do livro, entretanto, não foi exatamente confortável. Se, a princípio, o momento era de finalização de uma trajetória, o que se deu, como afinal ocorre ser, foi a abertura de novas portas e janelas, armários e gavetas ainda por organizar. Estes, por vezes, parecem não ter um formato ideal, um local exato, se não o da constante mudança.


sobre a necessidade de um sumário “Colecionar fotos é colecionar o mundo” (SONTAG, 2004)

Muito antes do ato propriamente artístico, meu processo de produção de imagens é displicente e ingênuo. Atravesso os quintais e as janelas como quem precisa redescobrir a própria casa, a própria história, minha própria imagem. Com a câmera fotográfica coleciono sensações, invento memórias, percebo o tempo passar e passo a existir. A câmera é uma lupa que conserva as imagens, que se proliferam indefinidamente entre meus arquivos, tão caóticos quanto a história que tento escrever com eles. Mas, para contar aos outros, é necessário sistematizar.


“Logo que uma ordem se impõe ela tende a caducar.” (MACIEL, 2009)

Tento, então, construir aqui um lugar de morada, em que eu possa me situar e receber visitas. Para isso é necessário saber o que é quarto, o que é sala, onde fica a caixa dos objetos inclassificáveis, cada coisa, imagem, texto e também o que fica vazio. A planta desta casa se divide em janelas, jardim, parede, objetos, mudança, corpo, desconstrução e despensa, como todas? Dentro de cada um desses espaços: armários, gavetas, arquivos, caixas, latas de lixo, como todas. Tento aqui organizar cada coisa em seu lugar e criar um manual para seus usos. Mas algumas imagens teimam em não se encaixar em nenhum lugar, ou pertencer a vários lugares ao mesmo tempo. Nada é definitivo, nem mesmo a casa.


Importante notar que a estrutura da casa possui, em si, a mudança e a desconstrução. A moradia é sempre transitória, muda de cômodo, de endereço, de casca. O tempo passa descascando a parede, enferrujando os canos, as flores brotam, morrem, são replantadas, os objetos somem, são substituídos, o telhado é reformado, a goteira seca, compra-se um abajur. O contrato de aluguel acaba, algo se renova(?). E ainda: a casa não é uma e minha moradia se divide por diferentes pontos geográficos. A organização é então uma necessidade fundamental: ter três quartos, quatro guarda-roupas e só uma alma para habitar tudo. Poesias, citações, memórias, referencias teóricas e imagéticas, às vezes compartilham uma mesma estante ou uma mesma prateleira. Não é por descuido ou bagunça, cada um tem seu jeito caótico de se organizar.



vão da porta VÃO S.m. Espaço vazio; intervalo. Espaço ocupado por uma porta ou janela. adj. Sem valor; inútil, ineficaz: esforços vãos. Fútil, frívolo: prazeres vãos. Falso, aparente: sabedoria vã. Vazio, oco.

Habito espaços. Mas habito também memórias, sensações, objetos, imagens, arquivos. Pra mim, habitar nunca é um exercício fácil ou passivo. Pesquisar, poetizar e falar sobre minhas habitações é, acima de tudo, uma tentativa de sistematizar e facilitar essa experiência custosa. Criar manuais.


“Uma espécie de atração concentra as imagens em torno da casa. Através das lembranças de todas as casas em que encontramos abrigo, além de todas as casas em que já desejamos morar, podemos isolar uma essência íntima e concreta que seja uma justificativa para o valor singular que atribuímos a todas as nossas imagens de intimidade protegida? Eis o problema central.” (BACHELARD, 2012, p23)

Notas sobre a experiência: IV tendo meus pais se separado, o apartamento era grande demais e caro demais para se/nos sustentar, iríamos morar com meus avós. Paro na porta do meu quarto para me despedir daquele espaço. Os olhos percorrem cada centímetro, cada sensação.Tento criar uma imagem para não (me) perder daquele lugar. O sentimento de perda me é percebido pela primeira vez e dói. Minha mãe, preocupada e impaciente, me diz: é necessário não se apegar tanto assim as coisas.


Apesar do conselho de minha mãe, o desapego não veio, nem com o tempo, nem com o excesso das casas. Em sonhos, elas se misturam: corredor da casa da infância, que dá para o banheiro da casa atual, que saindo do qual chega-se em algum lugar não reconhecível, mas obviamente conhecido. O desapego não veio e as imagens das casas não se foram. Talvez aquele exercício de despedida seja mesmo indispensável e ainda habito todas as casas.

“... não se trata de descrever casas, de pormenorizar-lhes seus aspectos pitorescos e de analisar as razões de seu conforto. É preciso, ao contrário, superar os problemas da descrição — seja ela objetiva ou subjetiva, isto é, quer se refira a fatos ou a impressões." (BACHELARD, 2012, p.24)


Não se trata de descrever, assim como também não se trata de endereços, de uma ou outra habitação, uma ou outra experiência. É na verdade um “corpo de imagens” como me diz Bachelard, de dezenas de casas, previamente habitadas, ou não, habitáveis, ou não, existentes, ou não. As experiências dentro do espaço doméstico podem ser muitas vezes universais e generalizáveis, ao mesmo tempo em que cada rotina no espaço da casa, define a forma de cada um habitar o mundo. De uma ou outra maneira, é necessário estar atento ao corpo da casa e ao corpo na casa. Um peixe cresce de acordo com o tamanho do aquário e ilustra o que acontece com qualquer habitação: ela molda o(s) corpo(s) que a contém. A diferença essencial do peixe é a nossa capacidade de moldar também o espaço que nos cerca e nos abriga, de domesticá-lo.


A fotografia é mais do que documentação dessa vivência, ela é, principalmente, condutora das experiências e, em seguida, uma forma de tornar consciente, melhor dizendo, de tornar visível essa tentativa de uma habitação poética, ativa, propositora e pensante. Pensante no sentido que pensa o habitar no momento mesmo que este acontece. Que consegue acessar a memória – individual ou coletiva – para observar e inferir sobre o espaço doméstico que, em geral, é vivido de forma alheia ou inconsciente. É através da câmera que consigo, de fato, adentrar o espaço ou traduzir sensações e percepções. Muito se fala sobre a relação antropológica do fotógrafo com o outro e de como a câmera funciona como um meio de adentrar a individualidade do outro a ser fotografado. No meu caso, é através da câmera que consigo me comunicar comigo mesma, adentrar ativamente meu próprio espaço, ter


acesso às minhas memórias, histórias e vivências. Ainda assim, essa experiência com câmera fotográfica dentro dos espaços domésticos nunca foi muito consciente de si mesma. Revisitar essas imagens, reuni-las, pensar e escrever sobre elas, mudou minha relação com as mesmas.


visitas imaginárias – Lucia Koch — Lucia Koch, quando conheci seu trabalho “Amostra de Arquitetura”, onde algumas caixas fotografadas por dentro, deixam a luz adentrar seu interior, através de recortes feitos em suas “paredes”, fiquei extremamente impactada por ele. Foi um dos poucos trabalhos que percebi tratarem de forma tão subjetiva mas, ao mesmo tempo, com tanta propriedade, a minha percepção sobre o tema “arquitetura”. Eu também tenho tentado trabalhar com esse tema, através de um discurso nem um pouco direto, mas muitas vezes sinto que é tão indireto que a palavra “arquitetura” poderia ser suprimida. — “A arquitetura me interessa porque eu respondo a um espaço que já foi pensado, não só pelo arquiteto que o desenhou, mas por quem o habita, quem vai transformando o espaço no que ele é. E pensar sobre o espaço é pensar também sobre arquitetura.”¹ “Como não estudei arquitetura na universidade, meu conhecimento de arquitetura é todo movido pelo contato direto com ela. É a experiência nos espaços construídos


e a chance de transformá-los para propor outras possibilidades que me leva a pesquisar arquitetura...”¹ — A sua fala, assim como o seu trabalho, me esclarece muitas questões relativas a meu próprio processo. Mas eu ainda tenho o fardo de trabalhar com a arquitetura no sentido estritamente do dentro, o habitante é sempre eu mesma. - Nesse caso, acredito que você esteja trabalhando com uma questão a mais, que é a narrativa, onde a arquitetura é mais um cenário para os acontecimentos diários ou extraordinários que se passam no seu cotidiano. Pensando assim a arquitetura, de fato, não é seu principal objeto de estudo. — Concordo, mas ainda assim, é sempre movida pela arquitetura, ou mesmo pela construção civil, que esses acontecimentos diários me interessam. Volto a ressaltar meu interesse pelo seu trabalho com as caixas, como percepção muito contundente do espaço arquitetônico. Não saberia explicar de forma mais objetiva: a arquitetura se aparece pra mim muito em sonhos e estes mudam completamente minha percepção da realidade, como a sua obra, como a arte mesmo.

1- Trecho de entrevista de Lúcia Koch, < http://luciakoch.com >. Acesso: maio 2013.


visitas imaginárias – Duane Michals

— Ah, Duane Michals, meu querido, suas fotografias despertam em mim algo de indescritível. Nesse processo de revisitar e analisar meu processo, às vezes é tão difícil dar continuidade à feitura de imagens. Me dá uma certa saudade de produzir imagens intuitivamente e displicentemente; toda essa tomada de consciência do meu próprio processo às vezes parece realmente nocivo. Quando esses sentimentos me acometem eu recorro desesperadamente a suas imagens, que, além do conforto estético que me trazem, eu percebo como uma obra que,é absolutamente consciente de si e de seus processos, e ainda é tão doce. Usando palavras de Denilson Lopes, suas imagens me propõem uma “necessidade de


resgatar o afetivo, o corporal, como possibilidade de comunicação, diferente de posições meramente intelectualistas, construtivistas e cerebrais”, mesmo que sejam imagens milimetricamente construídas. — Tomar consciência nunca é nocivo, desde que você mantenha certo humor e às vezes até um pequeno descaso com o que você produz. Ainda que você estude e reflita intensamente sobre seu próprio processo e se sinta completamente consciente dele, não se pode nunca dizer com absoluta certeza o porquê de se construir sua própria pirâmide, não é?


visitas imaginárias – Cildo Meireles

— Cildo Meireles, você tem uma obra “espelho cego”. Você acha que eu posso afirmar ter a ver com a minha fotografia homônima? — Lorena, “espelho cego” no meu caso, é uma intervenção direta e “dura”, entende? Cimentar um espelho e expo-lo não é o mesmo que registrar um espelho tampado por um lençol. O registro, assim como o lençol, são maleáveis, se deixam levar pelo vento e pela poesia. Meu ato é concreto. Em certo momento você diz “é necessário cogitarmos a cimentação de nossas janelas”, você está novamente poetizando com o mesmo assunto. Eu não, eu cimentaria a janela e a arrancaria da parede. Penso que esse não é o seu processo.


— Mas Cildo, estou cada vez mais me afastando do registro “de lençol” em prol de um registro da intervenção. — Você tem buscado esse caminho arduamente não é? E te faz falta o lençol em troca do liquidificador. E ainda, liquidificadores não são cimento. Seus gestos são breves, pequenos, silenciosos e dúbios. — Você tem razão, tem sido árduo ser tão propositiva, ao invés de apenas observadora. Você também tem razão sobre a minha dubiedade, não sei existir aqui ou acolá, afirmar isto ou aquilo, só sei viver no meio, só sei dizer da dúvida. Eu acho...


visitas imaginárias - Rochelle Costi — Olá Rochelle Costi, quando recebo alguém aqui, procuro trazer alguma obra ­­ específica de quem me visita, mas no seu caso não consegui escolher um trabalho só. Penso que, como você, estou aqui, interessada na minha relação com o espaço, em testá-lo, deslocá-lo e também em habitá-lo. — Em “Quartos-São Paulo”, por exemplo, me interessa o espaço como forma de ocupação. “A observação dos hábitos e costumes popuIares vem sendo uma importante fonte de pesquisa desde o início de meu envoIvimento com a fotografia e com as artes pIásticas. O registro fotográfico de simpIes ambientes encontrados dentro do espaço urbano - os domínios do Iar, instaIações comerciais ou reIigiosas - mais do que oferecer beIas fotos como resuItado, nos propõe um vasto materiaI de pesquisa. Ao observar, por exempIo, a maneira como o cidadão se reIaciona com o espaço, as cores e as texturas que escoIhe para conviver, de que forma eIe iIumina seu cotidiano, quais os objetos que eIe conserva de seu passado, vem à tona dados antropoIógicos de fundamentaI importância para a compreensão do ser urbano que


esconde na intimidade do ambiente doméstico os segredos maiores de sua existência.” 2 — Esse trabalho que você cita tem uma conexão visual forte com o meu trabalho, uma vez que relata o espaço doméstico, suas cores, luz, objetos... Mas você tem outras obras que me tocam mais profundamente, a respeito de como você lida com o espaço, com a memória, as vezes até algo de infantil, que me lembra muito a minha própria experiência com o espaço. Como nas obras “Enquanto espaço” e “Desmedida”. Você poderia falar sobre elas? — “Estas são recordações que fotografei. Há tanto tempo habitam minha memória que não me espantaria se não as encontrasse para este registro. São as casas para onde sempre volto em imaginação. O que faço é deslocá –las pouco mais de cem quilômetros para que à luz do rio se possa observá - las, enquanto pensamos no espaço que nos cerca, enquanto pensamos no espaço que nos resta, enquanto pensamos no espaço.” 2

2. Trecho de entrevista de Rochelli Costi. < http://www.rochellecosti.com/ Quartos-Sao-Paulo-Rooms-Sao-Paulo-XXIV-Bienal-de-Sao-Paulo-1998 13 maio 2013>. Acesso: maio 2013.


Concretizar

E de repente, habitar imagens se tornou construir imagens. Apesar desses verbos serem intimamente conectados, indissociáveis, construir nunca é tão displicente, ingênuo e poético como habitar.

“Este, o construir, tem aquele, o habitar, como meta. Mas nem todas as construções são habitações” (HEIDEGGER, 2002)

Algumas construções se tornam habitações, é claro, mas o exercício de construir é ainda outro, bem distinto do de habitar. Tomar consciência de si como habitante de determinado espaço, talvez seja, um ato, em si, de construção. De tornar-se construtor desse mesmo espaço, tomando consciência de seus atos e das potencialidades poéticas do habitar mesmo.


Essa transição de habitante para construtor modifica visivelmente o processo. Quando digo visivelmente, estou atentando para o processo retiniano de fato, do ver, enxergar, tornar visível, aparente, da superficialidade das imagens. Talvez, posso dizer que sempre houve uma ação construtiva no meu processo. De construir uma história, uma memória, através das imagens. Mas quando a construção de imagens, por si só, torna-se o foco, o objetivo, algo muda irreversivelmente. O habitar deixa de ser investigado através da câmera fotográfica para, ele mesmo, “posar” para as fotos, ou seja, as experiências dentro da casa se confundem com experiências propriamente artísticas. Ao tentar habitar poeticamente deixo de ser habitante passivo para me tornar proponente poético dentro do espaço doméstico. É necessário contabilizar as perdas deste processo.


Bibliografia: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2012. BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BRANDÃO, Luís Alberto. Grafias da identidade: literatura contemporânea e imaginário nacional. Belo Horizonte: Faculdade de Letras; Rio de Janeiro: Lamparina, 2005. CHACHAM, Vera; DUTRA, Eliana Regina de Freitas. A memória dos lugares em um tempo de demolições : a Rua da Bahia e o Bar do Ponto na Belo Horizonte das décadas de 30 e 40.1994. 257 f., enc. : Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Sociologia. COTTON, Charlotte. A fotografia como arte contemporânea. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994. FERNÁNDEZ, Horacio; BRODSKY, Marcelo. Fotolivros latino-americanos. São Paulo: CosacNaify, 2011. FERREIRA, Gloria; MELLO, Cecilia Cotrim de. Escritos de artistas: Anos 60/70. 2.ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009.


FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: HUCITEC, 1985. GUIMARÃES, César Geraldo.; LEAL, Bruno Souza.; MENDONÇA, Carlos Camargos.; GUIMARÃES, César Geraldo.; BARBOSA, Ricardo.; GUMBRECHT, Hans Ulrich.; OTTE, Georg.; LEAL, Bruno Souza.; BRASIL, André.; MEN. Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. MACIEL, Maria Esther. As ironias da ordem: coleções, inventários e enciclopédias ficcionais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. VALÉRY, Paul. Eupalinos, ou, O arquiteto. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 1999. < http://luciakoch.com >.

Acesso: maio 2013.

< http://www.rochellecosti.com/Quartos-Sao-Paulo-Rooms-Sao-Paulo-XXIV-Bienal-

de-Sao-Paulo-1998 13 maio 2013>.

Acesso: maio 2013.



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