SER APREENDIDO PELA TIPOGRAFIA Notas sobre uma resolução material-instrumental - Fábio Martins

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SER APREENDIDO PELA TIPOGRAFIA Notas sobre uma resolução material-instrumental



FÁBIO DE OLIVEIRA MARTINS

SER APREENDIDO PELA TIPOGRAFIA Notas sobre uma resolução material-instrumental

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado ao Colegiado de Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais, Habilitação em Artes Gráficas. Orientadora: Profa. Dra. Ana Utsch

Belo Horizonte Escola de Belas Artes – UFMG 2013



On en parle par métaphore comme d’une main lieuse qui, par divers apprêts, s’infléchit et oriente afin de lier1 GIORDANO BRUNO

1 Giordano Bruno. Des Liens (1589-1591), traduit et annoté par Danielle Sonnier et Boris Donné. Paris, Éditions Allia, 2006, p.9.



SUMÁRIO

1- Da liga, dos homens e dos gestos

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2 - Resoluções de problemas

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2.1 - Problemas relativos às máquinas e ferramentas

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2.2- Problemas relativos aos materiais

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3 - Os três períodos de uma apreensão

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3.1 - O exemplo

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3.2 - A imitação

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3.3 - A deliberação

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4 - Sobre Micrômegas e a tipografia

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5 - Considerações Finais

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DA LIGA, DOS HOMENS E DOS GESTOS



Certamente, não poderemos compreender e problematizar – nesses parcos escritos – acepções que, relativas às técnicas tipográficas, exibem uma continuidade de aproximadamente sete séculos, desde sua suposta invenção por Johann Gutemberg 1. Mas é possível perceber, prioritariamente, que, no século XV, a brusca assimilação de uma nova rede de materiais e instrumentos, gestos e símbolos, como as impostas pela fundição dos tipos, definiu o sistema de composição e de impressão em caracteres móveis – a tipografia –, sistema 1 (KARCH, 1966. P. 33), (POLK, 1948. P. 14), (MEGGS e PURVIS, 2009) e (DUPONT, 1854. T.1).

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acompanhado, imediatamente, de uma acelerada difusão da cultura escrita, então impressa, por todo o mundo ocidental. Paul Dupont, no primeiro volume de sua História da Impressão, afirma que “a impressão se propaga com uma rapidez incrível e, antes do fim do século XV, ela já se estabelece nas principais cidades da Europa” 2. A fabricação dos tipos móveis, pelas técnicas de fundição a partir de matrizes individuais – e que por sua vez eram geradas pelo choque de uma punção metálica com a matriz de cobre 3 –, estabeleceu uma longa tradição gráfica e gestual própria de suas técnicas de fabricação e das comunidades de artífices, editores e impressores que a sustentavam. Em uma história de longa duração, estes homens de letras e chumbo definiram os protocolos que ainda hoje regulam, pela força da tradição, a materialidade das formas da cultura impressa. As matrizes individuais de liga tipográfica4, com os movimentos e gestos precisos que elas supõem, são, desta forma, a imagem forte eleita aqui para representar o sistema tipográfico, justamente, por encarnar o extraordinário artifício – cíclico e infinito – da composição e da recomposição. Com efeito, frente às outras modalidades de caracteres móveis que antecederam a tipografia, 2 DUPONT, Paul. Histoire de l’Imprimerie, t. 1.1854. P. 408. 3 (ROCHA, 2013. PP. 13-23) 4 80% de chumbo, 5% de estanho e 15% de antimônio (MEGGS e PURVIS, 2009. P. 99).

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como aqueles constituídos em madeira ou argila – já conhecidos dos chineses alguns séculos antes de Gutenberg5 –, a liga metálica e as técnicas de fabricação e de uso por ela imposta constituiu um sistema racionalizado e ativo, que funda a noção de tipografia. Compreende-se então que as operações desencadeadas pela união intrínseca e indissociável estabelecida entre matéria e gesto se expressam como “formas de materialização do pensamento”, para utilizar a bela formulação de Christian Jacob em um projeto de antropologia histórica do saber que se dedicou a estudar “as mãos do intelecto”. Para o autor, que organizou recentemente a obra monumental Lieux de savoir 2: les mains de l’intellect 6, as operações tangíveis – reguladas por regras, técnicas e sistemas tecnológicos – produzem, fixam e conservam os “atos intelectuais”.

5 FEBVRE, Lucien et MARTIN Henri-Jean, L’apparition du livre. Paris: Les Éditions Albin Miche, 1958, p. 108.

6 JACOB, Christian (org.). Introduction. In: Lieux du Savoir 2: Les mains de l’Intellect. Paris, Albin Michel, 2011.

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Figura 1 - Composição com tipos móveis (POLK, 1948)

Um grande exemplo desta forma de materialização do pensamento, plasmado em uma realidade técnica e concreta, é, sem dúvida, a ruptura dos protocolos gráficos operados por Aldo Manuzio ainda no final do séc. XV. Inscritas em um contexto de oposição ao pensamento e à tradição gráfica medieval, o célebre editor constituiu uma nova visualidade para as letras de chumbo e para a página de papel, ambas unidades técnicas e estéticas que concretizam a cultura gráfica do sistema tipográfico. Duas obras, dois monumentos da cultura escrita são emblemas desta oposição; vejamos o que diz George Painter através do biógrafo catalão do célebre impressor renascentista: A Bíblia de Gutenberg é sombria e severamente germânica, gótica, cristã e

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medieval; o Hypnerotomachia, em troca, é radiante e gostosamente italiano, clássico, pagão e renascentista. Ambos são as mais extraordinárias obras primas da arte da impressão, situados nos dois polos das aspirações e dos desejos humanos7. Ainda para além dos Sonhos de Polifilo, Aldo Manuzio, na Veneza Renascentista, conferiu à fundição tipográfica outro aspecto que marca a oposição com o passado gótico (ainda prisioneiro das formas geradas pelas formas geradas pelo livro manuscrito), pois, apoiado pelo joalheiro Francesco Griffo de Bologna, deu ao desenho tipográfico moderno de Jenson outra faceta, com a invenção da fonte inclinada – popularmente chamada de itálico, ou grifo. Enric Satué, no conhecido livro que aborda a vida editorial de Aldo Manuzio, afirma: Embora pareça ter sido Amerbach – o bom impressor alemão, amigo de Erasmo de Rotterdam – o primeiro a gravar um tipo móvel não gótico, acabou sendo o eminente tipógrafo francês quem entalhou a primeira grande tipografia moderna, 7 SATUÉ, Enric. Aldo Manuzio: Editor, Tipógrafo, Livreiro: as pegadas de

Aldo Manuzio. Trad.: GIORDANO, Cláudio. Cotia-SP, Ateliê Editorial, 2004. P

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conhecida ainda hoje com o seu nome: Jenson.8 Nesse momento, uma enorme rede tipógrafos, editores, impressores, encadernadores e livreiros – os atores responsáveis pela produção e difusão do livro no ocidente – já teria se estabelecido pela Europa e constituído a revolução do impresso9. Mas, anos após a existência da brutal experiência editorial Aldina, os europeus teriam como principais representantes da tipografia o francês Claude Garamond, quem, sucedendo Jenson, desenhou letras inclusive a partir dos itálicos de Manuzio. A fundição de Garamond ganhou tamanha aceitação e atenção de sua parte, que é considerada como marco para o “início da fundição de tipos como uma atividade à parte” da edição 10.

8 SATUÉ, Enric. Aldo Manuzio: Editor, Tipógrafo, Livreiro: as pegadas de Aldo Manuzio. Trad.: GIORDANO, Cláudio. Cotia-SP, Ateliê Editorial, 2004. P. 96.

9 Sobre a noção « revolução do impresso » ver: EISENSTEIN, Elisabeth.

A revolução da Cultura Impressa: os primórdios da Europa Moderna. São Paulo, Ática, 1998.

10 (POLK, 1948. P.16).

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Figura 2 - Lista dos primeiros impressores europeus (KARCH, 1966)

Na Inglaterra, desde a impressão do primeiro livro em língua inglesa, próximo a 1470, impresso na Bélgica por William Caxton, não se esperava pelo surgimento de um grande representante da tipografia, até William Caslon11, no século XVIII, de onde surgiriam as bases para a constituição de uma tipografia norte-americana. Mas, apesar de se poder sugerir uma herança europeia deixada à tipografia norte-americana, os Estados Unidos da América não foram o primeiro país a receber as máquinas e ferramentas gráficas da Europa, mas o México – enviadas pelo Rei de Espanha, em 1536. 11 (POLK, 1948. P. 17) e (KARCH, 1966. P. 38).

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Figura 3 - Lista dos primeiros impressores norte-americanos (KARCH, 1966)

No Brasil, um dos últimos países a receber as ferramentas e máquinas tipográficas em toda a América, somente em 1808 receberia a intitulada Impressão Régia, oficialmente a primeira gráfica brasileira, uma vez que as gráficas anteriores a ela eram clandestinas12. Com a fundação da Impressão Régia, porém, diversas gráficas foram criadas por todo o Brasil e, segundo a introdução histórica do Manual do Tipógrafo, de Ralph W. Polk, adaptado para o Brasil por Antônio Sodré C. Cardoso, a difusão das gráficas sucessoras à Impressão Régia, tem as datas de: Ceará, 1824; Paraíba, 1826; São Paulo e Rio Grande do Sul, 1827; Rio de Janeiro, 1821; Goiás, 1830; Santa Catarina e Alagoas, 1831; Rio Grande do Norte e Sergipe, 1832; Espírito 12 (POLK, 1948. P. 18)

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Santo e Mato Grosso, 1840; Paraná, 1848 e Amazonas, 1852. 13 Contraditoriamente, o silêncio imposto pela ausência da palavra impressa no Brasil Colônia – e pelo seu tardio aparecimento – é, ele também, uma consequência das formas de materialização – neste caso, imaterialização – de um pensamento monárquico que viu na difusão das letras uma ameaça ao controle político-ideológico promulgado pela lusofonia14. Este atraso, com relação a outros países latino-americanos, marcou, sem dúvida, os usos e as práticas próprias da tipografia no Brasil, ainda hoje carente de discursos construídos em torno de suas técnicas, de seus gestos e de seus homens, constatação evidenciada pelas poucas publicações que se dedicaram a estudála, seja como técnica, seja como estética, seja como história. A ausência destes discursos – que pode se afirmar pela indiferença – traz consigo a ameaça do apagamento das práticas que produziram e agenciaram os sistemas de circulação da cultura impressa15.

É com a consciência da indissociabilidade entre os modos de produção da tipografia – seus modos de existência – as formas 13 (POLK, 1948. P. 19) 14 Ver: BRAGANÇA, Anibal e ABREU, Marcia (Org.). O impresso no

Brasil. Dois séculos de livros brasileiros. São Paulo, Editora UNESP, 2011.

15 Sobre os rastros deixados pelas obras artísticas e literárias do passado ver

o magnífico ensaio: SCHLAGER, Judith. Présence des œuvres perdues. Paris: Hermann, colection Savoir lettres, 2010.

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de sua difusão e as modalidades de suas diferentes recepções que se inscreve nossa tentativa de compreender as formas de “Apreensão” do universo tipográfico em uma experiência desenvolvida no interior de uma oficina tipográfica na Belo Horizonte do séc. XXI.

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RESOLUÇÕES DE PROBLEMAS



Pode-se considerar com certo otimismo a emergência de autores que, desde os anos de 1940, fazem germinar nas disciplinas da Filosofia e Antropologia proposições metodológicas que considerem fortemente as técnicas, ainda que de modo mais abrangente e não associadas diretamente à tipografia: Andre Leroi-Gourhan – quem brilhantemente deu novas diretrizes à proposição de Marcel Mauss de constituir uma disciplina intitulada Tecnologia – nos dois volumes de “Evolução e Técnicas” e nos consecutivos volumes de “O Gesto e a Palavra”. Da mesma forma apresenta-se o trabalho de André-Georges Haudricourt, que dedicou esforços no estudo

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do cultivo de plantas, dos transportes apoiados por animais, além dos numerosos artigos e ensaios buscando os parâmetros teórico-metodológicos de uma Etnologia das Técnicas, alguns deles presentes em “Tecnologia, uma Ciência Humana” e “Do Gesto às Técnicas” 16. Além disso, oscilando vigorosamente entre a Psicologia e a Filosofia, Gilbert Simondon desenvolveu diversas proposições acerca de uma Filosofia das Técnicas, ou de uma Psico-Sociologia das máquinas e ferramentas – o que chamou de Mecanologia –, além de sua célebre teoria da individuação17. Mais recentemente, estes autores têm sido eleitos como forte influência para a constituição de teorias que dialoguem com a Cultura Material e a História das Técnicas, como é o caso de, respectivamente, Pierre Lemonnier e de Anne-Francois Garçon, bem como o centro de estudos l’Atelier Simondon, o qual apresentam novas proposições intelectuais sob a égide da obra de Gilbert Simondon. No Brasil, pesquisas relativas às técnicas através das abordagens citadas acima têm sido fortemente desenvolvidas, 16 Os títulos mencionados não possuem, traduções para o português, tendo sofrido, portanto, livre tradução das citações por parte do autor.

17 Na primeira parte de sua tese de doutoramento, Gilbert Simondon define a

individuação como uma operação perpetuamente variável, ou seja, como uma contínua “mudança de estado”, diferenciando os indivíduos da massa saturada que os gera e os discernido a partir dos fenômenos da Individuação Física, Vital e Psicossocial (SIMONDON, Gilbert. L’Individu et as Genèse PhysicoBiologique. Paris, Presses Universitaires de France, 1964).

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há mais de dez anos, pelo grupo de pesquisa da Unicamp Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe), tendo como alguns de seus agentes Laymert Garcia dos Santos, Pedro Ferreira Peixoto e Emerson Freire18. Estes, animados pelas compatibilizações que perpassam disciplinas como a Sociologia, a Antropologia e a Filosofia, empregam análises que vão da música às artes plásticas, além de ações que vão da escrita às produções videográficas. É no interior deste quadro teóricometodológico que se inscreve a presente monografia, que se apropria, principalmente, das proposições dos já mencionados Leroi-Gourhan e Simondon, esclarecidas a seguir. Disse Andre Leroi-Gourhan, nas primeiras páginas de um dos volumes de Evolução e Técnicas: “O testemunho das técnicas é, portanto, precioso” 19. Essa acepção, que recebe os tons de uma conclusão antecipada, pode remeter à herança deixada peLo célebre antropólogo Marcel Mauss em sua proposição de uma análise das técnicas e que se apresenta, historicamente, como umas das primeiras proposições relativas à Etnologia, que voltou 18 Conferir: SANTOS, Laymert G. Politizar as Novas Tecnologias – O

impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo, Editora 34, 2003; PEIXOTO, P.F. Música Eletrônica e Xamanismo: Técnicas Contemporâneas do Êxtase. Tese de Doutoramento em Ciências Sociais. Banco de Teses – UNICAMP, 2006; FREIRE, Emerson. Da sensação ausente à sensação como potência: tema e variações sobre a relação arte-tecnologia. Tese de Doutoramento. Campinas, banco de teses –UNICAMP, 2012.

19 Para os textos em línguas estrangeiras há tradução livre nossa.

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olhares para a associação homem-ferramenta – associação que sustenta nossa abordagem. Mas, para além de considerá-la como expressão cultural somente, e inserir a análise das técnicas como o tópico de uma análise antropológica, Leroi-Gourhan dispõe a Tecnologia como centro de apoio de suas acepções, como controlador gravitante de suas atenções. Arqueólogo de profissão – qualificado em Etnologia pelo programa de Marcel Mauss e Paul Rivet20 –, na primeira metade do século vinte publicou os dois volumes de seu título Evolução e Técnicas – intitulados O Homem e a Matéria e Meio e Técnicas–, que expuseram o resultado de suas pesquisas realizadas principalmente no Musée de l’Homme, este fundado no ano de 1937, em Paris. Leroi-Gourhan marca uma ruptura fundamental nas disciplinas dedicadas às técnicas, seja sob a forma de seus objetos, seja sob a forma de uma história, ao identificar, no âmbito da etnologia, uma preponderância dos objetos plasmados pela técnica e uma negligência dos processos próprios de seus sistemas de fabricação: 20 No texto que introduz a tradução inglesa de outro título de Leroi-

Gourhan, O Gesto e a Palavra – LEROI-GOURHAN, A. Gesture and Speech. Trans.: BERGER, Anna B. London, MIT Press, 1993. P. xv e xvi –, Randall White apresenta alguns aspectos do percurso acadêmico do arqueólogo, o que inclui seus diplomas em língua russa e mandarim, além da já mencionada qualificação em etnologia. Além disso, é também apresentada sua convivência com Claude Lévi-Strauss, ocupando os dois cargos de diretores assistentes do Musée de l’Homme, em 1946.

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“Os quadros classificatórios das técnicas não são estabelecidos pelos tecnólogos, mas pelos etnólogos, que preferem a repartição dos produtos de um grupo que estudam sob divisões cômodas, ao invés de uma análise da fabricação. Em outros termos, eles consideram antes o forjado que o trabalho dos metais, os tecidos que a tecelagem, a vestimenta que o trabalho das fibras. Um quadro estabelecido sob esses princípios supre corretamente as necessidades de uma análise cultural, mas desconsidera os problemas propriamente tecnológicos” 21. Ao indicar a necessidade de uma observação tecnológica das técnicas, Leroi-Gourhan, afirma ser exigida do tecnólogo a atenção para o dinamismo associativo presente em uma operação, em detrimento de análises linguísticas e descritivas. Para ele, é necessário que não sejam concentrados esforços em deter o que há de estático e invariável do fabrico, o que supõe não cercar a técnica de méritos funcionais, em vista de compatibilizá-la ao cumprimento de um trabalho, de incluí-la no dever de concretizar adequadamente um objeto. Isso seria considerar, ainda, a técnica remetendo-a ao seu produto funcional, a ação ao objeto, e – para 21 (LEROI-GOURHAN, 2010, v.1. P. 13.)

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increver o nosso objeto nessa crítica – a tipografia ao impresso. Para então observar as dinâmicas internas a um determinado conjunto de técnicas, é necessário que o observador se remeta diretamente à pormenorização dos métodos elementares de ação sobre a matéria 22, das técnicas de transporte e das técnicas de fabricação que o compõem, compreendendo as cadeias de relações que constituem o agrupamento humano produtor desse conjunto de técnicas. Efetivar a descrição completa das ações supostas por Leroi-Gourhan, compatibilizando-as com a tipografia, não é, claro, a tarefa do presente estudo. Contudo, a atenção devotada ao processo tipográfico, em detrimento do objeto impresso, constitui a base das inquietudes que guiam a narrativa desenvolvida sobre a apreensão de um jovem desenhista pelas técnicas tipográficas suscitada em uma gráfica de Belo Horizonte. Apreender um problema tecnológico pode remeter, mesmo que preliminarmente, ao que, desde Marcel Mauss, era intitulado como “resolução de problemas” 23. O técnico, sujeito de apurada inteligência operatória – ou material –, recorre aos objetos como solidários solucionadores de incompatibilidades que impedem, ou interceptam, uma ação concreta e objetiva. 22 Compostas por preensões, percussões, emprego de água, emprego do ar, e uso de motor humano. (LEROI-GOURHAN, 2010, v.1. Pp. 43-109)

23 MAUSS, Marcel. Manuel d’Ethnographie. Paris, Bibliotheque Scientifique, 1947. P. 41.

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Incompatibilidades, essas, que podem ocorrer tanto nas circunstâncias acidentais de uma invenção, como na operação de uma máquina ou ferramenta. Podemos assim supor que, para o tipógrafo, a impressão de uma tiragem é o seu problema, por excelência. Mas a encomenda dos exemplares de uma série de impressos não é senão o problema inicial, o estopim para irresolutas redes de operações por realizar, de progressivas concreções, até o estado final da resolução que é a tiragem mesma. Seja inventando novos mecanismos e objetos, ou operando máquinas e ferramentas gráficas, o tipógrafo impede que esse germe de irresolução ganhe campo, ou seja, emprega o intenso esforço de conter o problema inicial, impedindo sua difusão, ou desdobramentos consecutivos em problemas secundários. Mas essa é uma difícil tarefa, o que nas palavras do mestre tipógrafo mineiro Ademir Matias – que há mais de quarenta anos convive instrumentalmente com a tipografia – é expresso pelos dizeres “imprimir é o mais fácil, o que demora é preparar”. A preparação, nesse sentido, não é senão a cadeia de resoluções empregadas nos problemas secundários à tiragem, que aqui discernimos como problemas relativos às máquinas e ferramentas, ou relativos aos materiais.

Certamente, tais categoriais são inter-relacionadas e

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compõe antes duas intensas manifestações de um continuum, do que, propriamente, uma divisão em um par de oposições.

2.2. PROBLEMAS RELATIVOS ÀS MÁQUINAS E FERRAMENTAS

Se as borrachas de um rolo gráfico sofrem rachaduras, se o motor da impressora não apresenta controle de velocidade, ou se uma chave-de-cunhas se quebra, temos aí problemas que concernem diretamente às máquinas e ferramentas gráficas. As soluções para esses problemas podem ser compreendidas em três níveis, respectivamente: Nível de Resolução

I – simples

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Descrição Nível em que um componente ou ferramenta é de fácil obtenção, geralmente compreendendo a aquisição ou empréstimo.


II – média

Nível em que o componente ou ferramenta não é localizado para aquisição ou empréstimo, mas são conhecidos os parâmetros de sua fabricação. Esse nível compreende a realização de projetos mecânicos e elétricos, cuja execução é delegada a técnicos especializados.

III – complexa

Nível em que o componente ou ferramenta não é localizado para aquisição ou empréstimo ou fabricação por outro técnico, exigindo a concepção do projeto e a construção do objeto. Nesse caso, a complexidade é afirmada pela necessidade de que o técnico compreenda as propriedades dos materiais que constituem o componente ou ferramenta perdido, o que a associa à segunda categoria.

Tabela 1 - Níveis de resolução para problemas instrumentais

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2.3. - PROBLEMAS RELATIVOS AOS MATERIAIS

Mais complexos que os problemas relativos às ferramentas, tais problemas compreendem desde o esgotamento das reservas de tintas, até a falta de papéis, passando por solventes, adesivos e graxas. Sua resolução pode também ser dividida em três níveis: Níveis de Resolução

I - simples

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Descrição Nível que compreende a aquisição ou empréstimo de um material de fácil obtenção, como por exemplo, papel Couché Fosco, tinta Offset e querosene.


Nível em que o material não é de fácil obtenção, mas cujos

II - médio

III – complexo

parâmetros de fabricação ou síntese físico-química são conhecidos, como é o exemplo de fabricação de tinta Offset seguindo um catálogo Pantone, ou a encomenda de papéis artesanalmente fabricados. Nível em que não é possível a aquisição, o empréstimo, ou a encomenda do material, mas há o conhecimento a respeito das suas propriedades físicoquímicas, possibilitando sua síntese ou fabricação in-loco. O que não se aplica à gráfica de Ademir Matias.

Tabela 2 - Níveis de resolução para problemas materiais



OS TRÊS PERÍODOS DE UMA APREENSÃO



Os episódios que seguem darão a ler e a ver as operações e estruturas técnicas compreendidas por uma oficina tipográfica belo-horizontina. A individualidade de um atelier se prolongará até a individualidade mesma de cada operação e de cada objeto. Exibir o funcionamento desta oficina, que transborda os desígnios de subserviência supostos como única relação possível dada pelo polinômio homem-técnica-natureza – afirmada pela noção de trabalho24 –, será a tarefa da narrativa que tenta apreender 24 Gilbert Simondon, em Du Mode d’Existence des Objetes Techniques, critica a associação das técnicas unicamente ao trabalho, afirmando que “foi apreendido através do trabalho humano, pensado e julgado como instrumento, adjuvante, ou produto do trabalho” (SIMONDON, 2012. P. 327).

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a afecção de Ademir Matias pelas operações, pelos mecanismos e pelas invenções, enfim, para utilizar uma bela expressão de Simondon, as “alegrias instrumentalizadas”25 entre gesto, matéria e ferramenta. Alegrias essas que compõem o fundo diacrônico e fragmentado das memórias narradas e descritas que conferem forma a este capítulo. Divididos em três períodos, as narrativas de operações – como podemos intitular, nesse momento, as crônicas que seguem –, além de privilegiar, em larga medida, a exposição dos processos de composição e impressão tipográfica, expressam minha progressiva associação às técnicas, ferramentas e materiais empregados na tipografia praticada pelo Sr. Ademir Matias de Almeida. Ainda que não seja possível discernir os níveis exatos dessa associação26, podemos compreender os episódios dessas narrativas como divididos em: I – as coordenadas preliminares de uma resolução material, técnica e fisiológica, para problemas subjetivos; II – a delegação, ainda que desconfiada, ao aprendiz, para o auxílio em operações concernentes à montagem de uma 25 (SIMONDON, 1996) 26 Rainer Miranda Brito, em um brilhante artigo, discerne três níveis presentes

no que chamou de uma “sociogênese” da associação operador-ferramenta, dos quais extraímos: Interação – menor nível –, Cooperação – nível médio – e Possessão – nível máximo (BRITO, R. M. A Possessão Rítmica ViolaVioleiro. Artigo para o II Encontro Internacional sobre Imaginários Sonoros. 2013. P. 5. No prelo). Ainda que não sejam diretamente transponíveis para a tipografia, os períodos dessa associação suposta por Rainer Miranda dão a ver a constituição progressiva e variável da habilidade operatória.

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base para estampagem a quente; III – a confiança prolongada, a delegação de uma tiragem, quase integralmente, ao aprendiz. Tais fases expressam, nas mínimas medidas das associações gestuais-instrumentais que as inspiram, a complexa constituição do que podemos nomear tipografia – enquanto tecnologia de produção do impresso – em uma gráfica em Belo Horizonte. Ainda que de maneira preliminar, esses escritos exibem a necessidade de que, para dar o devido início a uma observação tecnológica das cadeias operatórias da tipografia, sejam consideradas suas ações mais elementares. Porém, essa proposição poderia ser efetivamente concretizada somente se antes forem discernidos os aspectos da minha apreensão pela tipografia, na miríade de sinais que ocupam a realidade perceptiva de um aprendiz: a de um sujeito atento, de olhos abertos e ouvidos dispostos – uma silenciosa e quase translúcida presença no atelier. O estado de aprendiz se configura, talvez, na sua presença entre as máquinas em jornadas de horas quase integrais, observando-as em suas mínimas medidas, em suas miúdas operações, em meio aos encontros que o arrebatam e o convidam para novas investigações. Assim, atentar para as parcelas constituintes de uma tipografia exigiu do aprendiz a resolução dos excessos informacionais que podemos supor para todo aquele que seja pouco habituado com o universo da

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tipografia. Em outras palavras, a intensa experiência de inclusão de um jovem desenhista em uma gráfica como a de Ademir Matias, tem sua expressão garantida pela divisão nestes três episódios e que discernem três etapas fundamentais dessa relação: o exemplo, a imitação, e a deliberação. Tais etapas, por sua vez, exibem a progressão de um aprendizado centrado na resolução de problemas, das quais extraímos: I – o exemplo de uma resolução; II – uma resolução conjunta, entre eu e o tipógrafo; III – uma resolução parcial a mim delegada. A eleição por narrativas, em detrimento das descrições27, foi provocada pela necessidade de encontrar, em meio à miríade de ocorrências sinestésicas, um ponto focal de uma análise tecnológica: a operação. Convidado pela leitura das obras de Gilbert Simondon, André-Georges Haudricourt e André LeroiGourhan, podemos considerar a necessidade de uma observação das técnicas tipográficas em seu estado dinâmico, no tempo próprio de sua não menos singular ordem interna. Isso significaria 27 O discernimento entre descrição e narração pode ser mais bem apreciado

em um artigo sobre literatura comparada de Georg Lukács, o qual dissocia os pares narrar-participar e descrever-observar, acerca de romances burgueses do século XIX e a literatura soviética do início do século XX e, ainda que trate de temas muito específicos, são exibidos os aspectos constituintes dessas duas modalidades textuais (LUKÁCS, Georg. Narrar ou descrever? In: Ensaios Sôbre Literatura. Coord.: KONDER, Leandro. Rio de Janeiro, Editôra Civilização Brasileira S. A, 1965. Pp. 43-94).

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captar, em máxima proporção, os índices dessa dinâmica própria à Tipografia Matias, o que poderia não ocorrer imediatamente caso apenas fossem descritos os objetos que compõem à oficina do Sr. Matias, pois, é na integração gestual-instrumental que ocorre, propriamente, o que chamamos de uma operação técnica. Essa integração não ocorre senão em ação, podendo ir da catação de tipos móveis à impressão de milhares de folhas de papel. Dedicando esforços analíticos e narrativos sobre as operações empregadas na gráfica do Sr. Matias, pode-se objetivar essa progressão sob a noção de empréstimo, reforçada por LeroiGourhan 28, que o define como “a transplantação de um novo elemento técnico em um meio interior29 que dispõe dos métodos de como assimilá-lo imediatamente” 30. Nesse sentido, os três períodos que apresentam a “apreensão pela tipografia”, dão a ver os sucessivos empréstimos que constituíram a noção de resolução de problemas e a gama de experiências de um pouco hábil operador de tipos e máquinas gráficas.

Primeiramente, o exemplo configura o empréstimo da

28 (LEROI-GOURHAN, 2010, v.2, P. 351). 29 Por sua vez, definido como um meio constituído pelas “tradições mentais

de determinada unidade étnica” (LEROI-GOURHAN, 2010, v.2. P. 336), o ambiente interior – milieu interieur – pode ser considerado, em certa medida, tanto a gráfica de Ademir Matias, quanto o Museu Vivo Memória Gráfica, onde fui aprendiz e auxiliar do tipógrafo José do Monte e onde amiúde tentei introduzir soluções propostas pelo próprio Ademir Matias.

30 (Id. P. 359).

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própria noção de resolução de problemas, ou seja, do significado de uma resolução material-instrumental para problemas diversos; no segundo período, a imitação, que constitui um empréstimo gestual-instrumental, com a demonstração de uma cadeia de operações e a inclusão do aprendiz nelas; por fim, a deliberação, composta por um empréstimo instrumental, pela permissão para o uso das máquinas e ferramentas da gráfica. Pode-se, em outros termos, considerar que esses três períodos compreendem os “índices do que fazer”, os “índices de como fazer” e a “permissão para fazer”, os quais nós podemos discernir na tabela que segue:

Exemplo Empréstimo de uma noção

Imitação Empréstimo gestualinstrumental

Deliberação Empréstimo instrumental

Tabela 3 - os três níveis de empréstimo

A deliberação é por esse título tratada – e não por liberação –, pois, ainda que seja o último estágio, ela ainda compreende uma restrição residual, um impedimento a cada novo problema. Isso se expressa pela constante necessidade de novos empréstimos gestuais-instrumentais, alimentando a realização de consultas, ou indagações, relativas a uma dada operação, ferramenta ou material. O ato de direcionar uma questão, ou problema, até

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um operador mais experiente – nesse caso um hábil tipógrafo – não indica necessariamente uma resolução, mas possibilita, pela inclusão de uma nova perspectiva, uma série de operações conjuntamente empregadas, tendo como governador dessas ações a figura do mestre. Assim, ocorre um retorno parcial ao segundo período, em que o tipógrafo estabelece novamente o controle dos gestos do aprendiz 31, conferindo nitidez às coordenadas que suscitam os movimentos do menos experiente operador. Os três períodos dessa associação permitirão compreender como o jovem desenhista foi incorporado pelo complexo conjunto de operações ocorrentes na gráfica do tipógrafo Ademir Matias, os quais são apresentados a seguir.

3.1. O EXEMPLO

Em frente ao portão número 96 de uma rua do bairro Santa Efigênia, pela manhã, após pressionar uma das campainhas instaladas na parede, eu aguardava a recepção de Ademir Matias. Mal correram alguns segundos e pude ouvir uma vagarosa 31 Esse controle pode se dar ao entendimento através de um recurso linguístico

de recorrente emprego nesses momentos: o modo verbal imperativo. A utilização de um verbo em imperativo, no discurso de um técnico, significa a designação de um sentido preciso às ações do aprendiz: até onde ir, o que fazer e em que período de tempo.

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caminhada, seguida pelo brusco desentrave do trinco e, tendo deslocado em sua direção a seção do portão, Ademir aparecia, já se dispondo surpreso com a visita. Solicitava uma apressada entrada, mas, antes, olhava para direita e a esquerda da rua e, cumprimentados alguns passantes, dirigia-se para dentro da casa. Seguimos por um estreito corredor, desviando-nos de algumas plantas e, detrás de uma área de serviços domésticos encoberta por telhas de amianto, podia-se perceber que repousava, sobre uma porta de metal, um velho letreiro assinalando que ali era Tipografia Matias e, gentilmente, era-me oferecida a entrada. Os blocos de papel próximos a uma mesa de plástico, uma caixa com espirais ao lado de uma televisão de tubo, um poema de Shakespeare impresso e colado na porta de uma geladeira ou as aparas de fitas adesivas pelo chão se dispunham como indícios de que se estava em uma gráfica, ainda que dividissem a área com um fogão e outras ferramentas concernentes à alimentação doméstica. Ademir, solícito, tentava dispor algumas xícaras e uma garrafa com café sobre a mesa, enquanto procurava a mínima área hábil para se depositar as louças entre os papéis dispersos. Desde o portão, ele descrevia uma recente encomenda, da tiragem ao número de técnicas associadas: o número de cores exigido, ou se haveria estampagem a quente, relevo seco, etc. A descrição das demandas então cedeu lugar à descrição dos problemas que teve durante as operações e, quando nos dispúnhamos sentados à mesa e bebendo do café, a fala de Ademir então tomava o aspecto

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de crítica aos recentes orçamentos requisitados à sua gráfica, afirmando sobre os seus clientes certa inabilidade descritiva dos resultados desejados, da tiragem necessária e da gramatura dos papéis, por exemplo. Nesse momento, outro ânimo lhe tomava. A inquietude o fez se levantar, caminhar até a porta, volver à esquerda e desaparecer. Retornou portando uma pasta de plástico translucida, na qual reservava impressas as descrições das encomendas. Foi a mim requisitado o exame dos orçamentos e, ouvindo minha leitura, Ademir afirmava não terem sido elencados os nomes dos papéis, sua gramatura e, não raro, ouvia-se na descrição das encomendas os termos de uma incompatibilidade entre a tecnologia de impressão e as operações desejadas pelos seus clientes: cores indicadas em percentuais CMYK ou códigos Pantone, grandes zonas de cobertura – o que Matias nomeia chapados –, vernizes e texturas, além de ilustrações em policromia, que se apresentavam como os documentos que conferiram força à afirmação dele de que é necessário que se conheça a gráfica para a qual seja requisitada a prestação de serviços. O gráfico – como às vezes se intitula – converteu, então, a prolixidade de sua reclamação em uma sucinta afirmação de que, sendo um técnico, dispunha-se para a resolução de problemas, mas, não lhe sendo identificados os parâmetros do problema a resolver, pouco poderia fazer, uma vez que não desejava longos

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períodos de dedução do que lhe era encomendado. Deste modo, frente o mínimo sinal de incompatibilidade, Matias poderia recusar o pedido e, inclusive, não responder às mensagens. Sua impaciência para as operações em computadores não permitiu que aprendesse a enviar e receber arquivos pelo correio eletrônico e, nessas condições, deixou sob a responsabilidade de seu irmão a impressão dos pedidos de orçamento. Sua insatisfação se expressava no juízo que fazia acerca da comunicação não falada que tinha com os seus clientes, mas que não se resolveria em um telefonema. Alegando insuficiência nas descrições dos programas oferecidos para suas operações, exigia que se comunicassem in-loco, nas condições em que fosse possível demonstrar aos clientes algo que houvesse de concernente às suas máquinas e ferramentas. Discutidas algumas das mensagens eletrônicas que Matias me exibia, a furiosa velocidade de suas analogias o dispôs para justificar suas exigências no título que deram ao dia em que nasceu – 5 de maio, o dia da comunicação – e, não menos veloz, iniciou a narração de uma resolução que propusera para um problema, o que nos dá a oportunidade de identificar a dimensão do pensamento gráfico do mestre. De início, não sabendo identificar, cronologicamente, quando havia ocorrido, narrou a sua inscrição em um curso oferecido pela prefeitura de Belo Horizonte; soube identificar a rua e o andar do prédio onde, por uma ou duas semanas, pôs-se à disposição de um grupo de colegas e de um professor ao qual

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estava atribuída a tarefa de definir e discutir as características de sua personalidade. Passados alguns dias, Ademir fora noticiado do que lhe faltava ao ânimo: a comunicação. Uma tabela lhe foi entregue como comprovação do que era desprovido a sua mentalidade, e lhe foi requisitado – tal como aos outros alunos –, que propusesse uma solução para o que, sendo talvez uma mera timidez emudecedora, fora elevada a um nível geral de isolamento. Não me disse, Ademir, quantos dias ele teve para apresentar a resolução, mas, demonstrou, foi o suficiente para que pudesse levar consigo a tabela com a pontuação que lhe foi designada e, após produzir algumas fotocópias, recortou-as em pequeno formato, imprimindo nelas um convite, acompanhado de um gráfico, o qual foi redesenhado em cada folha. Antes, ele negociara a reserva de algumas vagas, o suficiente para todos os seus colegas e acompanhantes, em uma churrascaria de endereço próximo ao do local do curso, e disso tratava o convite. Poucos convidados não foram, ou talvez um, e, em uma celebração paga por Matias, gastaram algumas horas associados a uma mesa e louças, alimentando-se.

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Figura 4 - Convite para o jantar de Ademir Matias

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O convite para o jantar32 pode constituir, em certa medida, a “resolução de problemas” de que falamos anteriormente. A resolução de Ademir para o “problema de comunicação”, identificado no gráfico como necessidade de associação33, foi centrada no impresso, mas partiu de suas máquinas, tipos e papéis, em uma poderosa junção, em operação. Pode-se perceber que sua maior pendência em “associação” tem uma brusca oposição – de 20 pontos – empregada pela força “fisiológica” do avaliado e foi na união desses fatores que Matias, possivelmente, tenha encontrado a solução para o problema suposto. Nas palavras de Rainer Miranda Brito, poder-se-ia considerar o que foi acima descrito como “um problema de recursos e não de discursos” 34 e, tendo sido assim compreendido o problema por Ademir, a solução não pôde ser por ele executada senão com os recursos disponíveis: uma resolução material, empregando máquinas, ferramentas, tipos, tintas e papéis na concretização do mencionado convite impresso.

Há 26 anos, a invenção do convite35 constituiu uma

32 Ao qual tive acesso somente meses após me ter sido narrado esse episódio.

33 Foi-me dito pelo tipografo, em outra visita, que a pontuação indicava uma

necessidade, levando-nos a compreender que, quanto maior era o nível do indicador, era suposta uma menor disposição do avaliado para a qualidade indicada.

34 (BRITO, R. M. 2013. P. 4) 35 Gilbert Simondon, na tese complementar ao seu doutoramento em

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resposta concreta e objetiva ao problema que foi suposto ao tipógrafo: uma resposta fisiológica e técnica, que o associou a todos os alunos do curso, como anfitrião em um jantar, cujos veículos iniciais e finais foram os objetos. Inicialmente, foram empregados os materiais e ferramentas de sua gráfica na geração do convite e, no jantar, louças e alimentos. Eis uma resolução objetiva para problemas subjetivos, uma apreensão técnica das irresolutas organizações emocionais, dando às últimas outro aspecto, outra faceta, que lhes conferem um sentido compacto, expresso, nesse caso, pela tiragem dos convites. Ademir associase às máquinas para imprimir o convite, e realiza o convite para se associar a seus convidados. Por isso considerar a geração desse folheto uma resolução material-instrumental, pois, ela parte das disposições musculares e da afeição do tipógrafo por suas máquinas e ferramentas em direção ao seu suposto isolamento discursivo. Eis o exemplo da noção de resolução de problemas, tal como compreendida pelo tipógrafo.

Psicologia, afirma que, a concretização – ou seja, a constituição progressiva de um dado objeto – é “condicionada por uma invenção que supõe o problema resolvido” (SIMONDON, 2012. P. 68) e é na suposição, imaginativa, de Ademir que residem os potenciais inventivos que elogiamos nos presentes escritos, apesar de não podermos nos delongar em observações acerca de seus inventos, propriamente.

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3.2. A IMITAÇÃO

Entremeava à tarde de sábado sob o sol das dezesseis horas e o calor tomava conta da rua quando toquei a segunda campainha do número 96 e aguardei Ademir. Novamente a lenta e invisível caminhada que se fazia notar pelo som do arrastar dos calçados no chão, o portão aberto num gesto poderoso, a surpresa, o olhar de Matias para a direita e a esquerda da rua, o convite para a entrada. No corredor que nos encaminhava ao fundo da casa – que eu soube depois, era de seu irmão, Adelmo –, aproximando-nos da porta da gráfica, Ademir descreveu uma recente encomenda, a qual exigia impressão a quente e, apesar de amiúde designar as largas tiragens de hot stamp a um vizinho e colega impressor, Lulu, optou por imprimir em sua gráfica. Disse-me que as encomendas eram escassas e, ainda que houvesse, diariamente, telefonemas e mensagens eletrônicas dos desejosos em calcular a tiragem de cartões de visitas ou convites de casamento, poucos eram continuados. Assim, sendo pouco o dinheiro que receberia pelo “serviço” – como não raro ouço serem intituladas as encomendas –, Ademir elegeu suas máquinas para a impressão da tiragem. Passamos pela porta da gráfica e fui convidado a depositar sobre uma das cinco cadeiras as bolsas. Deixei-as próximas ao armário de metal e segui a caminhada do tipógrafo por um estreito vão entre uma pia, pacotes de papel

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sobre o chão, um cavalete de tipos e a esteira de um forno – operado em tiragens que exijam relevo americano. Fomos à bancada sobre a qual era preparada a rama para a operação de estampagem a quente e, então, rapidamente, foi a mim apresentado o problema: a lâmina do clichê era maior que a base disponível em cerca de 6mm. Deixássemos de sustentar o que se prolongou do clichê para além da base metálica, facilmente ele seria dobrado e, para tal, o apoio suplementar exigiria uma altura compatível com a espessura da peça. Tal base era componente de um conjunto inventado na gráfica de Ademir, que consiste em uma adaptação de sua impressora Catu Formato 4 de leque para impressão a quente. Eram retirados os rolos emborrachados da máquina e, num suporte era acoplada uma caixa metálica com um potenciômetro que modulava o calor informado por vias elétricas; da caixa, alguns fios conduziam a corrente até pinos de cerâmica que, penetrados na dita base, aqueciam-na. Matias, na ocasião de usinagem da base de latão projetou uma sequencia de orifícios para difusão de calor em sua parte anterior, concentrando o aquecimento na região de contato da base com o clichê. Nestas condições, a dimensão da base não era o suficiente para garantir que a matriz fosse sustentada e não danificada. Sugeri, então, que justapuséssemos um azurê

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de latão à base, uma vez que o componente tipográfico – cuja uma das faces imprime linhas contínuas e paralelas – possuía “altura tipográfica” 36 e também era composta de latão. Deste modo, duas incompatibilidades se dariam por resolvidas: a altura tipográfica do azurê excedia a altura da base, mas o primeiro poderia sofrer desbaste por lixamento até que as medidas de suas alturas equivalessem; as ligas que compunham a chapa e o azurê poderiam diferir minimamente nos percentuais de metais acrescidos, mas, aquecer-se-iam de modo um tanto mais equivalente do que a associação de ligas das quais os elementos químicos sejam distintos – latão e o chumbo tipográfico, por exemplo. Ademir, então, recolheu um azurê em uma das gavetas metálicas de sua bancada e, depois de contornar a grande mesa de metal, abriu a porta de correr, que o levaria ao estreito labirinto de sucatas. Lá se encontrava uma serra de bancada – montada por ele com os restos de um ampliador fotográfico e cujo eixo, na lateral da máquina, revolucionava também um disco de lixa quando acionada. Não seriam poucas as vezes que descreveria os caminhos entre a bancada e a serra: a calibragem do esquadro da máquina com uma de suas peças tipográficas37, a retirada do 36 2,356 cm ou um pouco superior. 37 Não raro se percebe que Matias, quando desejoso de geometrizar

as coordenadas de uma operação, apropriar-se de um componente de espacejamento tipográfico, como uma guarnição de ferro – cuja largura e comprimento geram distâncias acima de 48pt – equivalente a 1, 8048 cm –, convenientemente medida em Furos e Cíceros.

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disco de lixa, a colagem de uma nova folha de lixa sobre o disco metálico usando adesivo de contato, o marco traçado à faca no azurê, o disco recolocado, o acionamento da máquina. Só então foi iniciado o lixamento e, em menos de um minuto, o componente se aqueceu bruscamente. Involuntariamente, Matias retirou suas mãos e, antes que fosse a ele possível pressionar o acionador e interromper a corrente elétrica da máquina, o pesado azurê se fez acompanhar pela velocíssima rotação do disco e foi lançado em minha direção. Sequer pude fazer juízo de minha condição e vi minha perna direita se deslocar para a minha esquerda, enquanto eu ouvia retumbar a parede da bancada, atingida. Olhamo-nos, eu e Ademir e, sem feridos, retomamos as operações.

Figura 5 - Fios e Azurês de Latão (POLK, 1948)

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Recolhido, o azurê foi disposto em frente o disco de lixa, desta vez, seguido por uma guarnição e só então as mãos de Matias. Cinco minutos consecutivos de desbaste e a já abafada atmosfera poeirenta da gráfica ganhou algum calor a mais, exigindo dele a interrupção para uma primeira checagem: um milímetro ou menos o que havia sido retirado, de outros quatro por lixar. Novamente a lixa, o azurê, a guarnição, as mãos e, por mais alguns minutos outro milímetro foi diminuído entre a borda do componente e a linha que equivalesse sua altura à da chapa que suporta o clichê. Mas, quase meia hora passada nos relógios e com os dedos correndo da base para o apoio suplementar sem que houvesse degraus, percebemos que os pinos de cerâmica teriam entrada possível em apenas uma das laterais da chapa, o que por sua vez não permitiria aquecer todo o clichê. Então, outros minutos, outras montagens experimentadas e, recolhendo outra peça de latão em sua gaveta, colocando-o à esquerda da borda posterior da chapa e deslocando a segunda peça para a direita da borda anterior, Matias me disse ter mediado uma nova solução. Ele argumentou sobre o que ele percebeu como necessidade de que as fontes de calor não se concentrassem em uma borda, pois, caso ocorresse, ocupando o clichê amplamente a área da chapa, apenas a região mais aquecida imprimiria a camada metálica da fita no papel. Para tal, seria dele requisitado que dedicasse novos esforços para o desbaste do segundo azurê: à faca, demarcou as coordenados para o desbaste

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do mencionado lingote, levou-o à mesa da máquina e, frente o disco de lixa, dispôs o que haveria de lixar, seguido da guarnição, e empurrou-os com uma das mãos, enquanto com a outra acionava o motor. Lentamente os minutos passaram e, desta vez, talvez não tenhamos alcançado meia hora e tínhamos já a altura tal como demarcada. Ademir montou a rama – guarnições, lingotes e fios –, certificou-se que estavam disponíveis os orifícios da chapa de latão e observou o encaixe do clichê, colando-o em seguida. Só então, girou o quanto pode num único gesto o cunho mais próximo de si, depois, da mesma maneira, o que estava à direita da base; com o martelo de borracha, cada peça da rama foi rebaixada, e os cunhos foram abertos, pressionando-as.

Figura 6 - Lingotes e guarnições tipográficas (POLK, 1948).

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Da bancada, a rama foi levada à impressora, os pinos de cerâmica inseridos, a fita metálica acoplada à haste e, quando eu poderia esperar alguma notícia sua ou pedido de auxílio, Ademir desligou a sua máquina e me disse que, mesmo que apreciasse o meu auxílio, preferia descansar, deixando para o próximo dia impressão da tiragem exigida pelo cliente. Disse-me, também, que Eliana, sua esposa, o auxiliaria e, por já ter anoitecido, não iria me ocupar até muito tarde. Insistiu em argumentar que o que restou – a impressão – era, para ele, menos problemática e desgastante que as operações de desenho dos registros e alçamento das composições tipográficas – argumento que ganharia força na sucinta frase “passo mais tempo preparando que imprimindo”. Eu, quem desde a primeira de suas justificativas ofertadas já estava satisfeito, concordei verbalmente. Então, enquanto nos encaminhávamos à mesa em frente sua televisão, fechávamos as janelas e portas e pressionávamos os interruptores das lâmpadas, apagando-as. Matias acionou o televisor, sentou-se, e pediu que eu fosse a padaria buscar algo para o nosso café da tarde e, quando retornei, conversamos um pouco. Ainda que o cansaço o tornasse um pouco menos falante, ele se dispôs a monologar as anedotas que lhe eram de predileção, descrever quem estivera na gráfica nos últimos dias, falar do que lhe impressionava – e enquanto isso comia e bebia –, mas, enfim, eu tinha de ir embora. Despedi-me, ele permaneceu sentado e, quase emudecido pelo cansaço, pediu que eu fechasse o portão ao sair.

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3.3. A DELIBERAÇÃO

O ar quente e úmido que sucedia uma chuva de primavera abraçava a calçada sob a árvore. Até mesmo era possível observar no asfalto as manchas escuras da água que ainda não haviam evaporado enquanto se ouvia Ademir caminhar em direção à entrada de sua casa e gráfica. Rapidamente o portão se abriu, ele detrás, com o rosto despido da barba que, diria ele depois, persistiu por mais de um ano e só foi retirada para um tratamento dentário. Sorriu, mas não deu espaço para os cumprimentos, logo dizendo que não havia cronograma para pausas e que meu auxílio ali seria valioso, pois, há uns dias, era dele requisitado um “serviço” – como ele mesmo denomina as atividades concernentes ao trabalho – que exigiria a interrupção de outros, mais urgentes e caros. Perguntou a mim se eu estava disponível, durante o fim-de-semana, para imprimir o verso de mil cartõesde-visita que ocupavam, em algumas caixas e sacolas, o chão próximo às quinas de sua estante papeleira e que ali estavam havia mais que um mês. Enquanto caminhávamos pelo corredor, abrindo caminho entre as plantas que haviam se prolongado até metade da largura da passagem, Ademir elencava os serviços, as tiragens e os prazos acordados para a entrega dos impressos. Sem

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delongas, pediu-me, assim que passamos pela porta da gráfica, que eu deixasse sobre as cadeiras as bolsas para que fossemos até os prelos de platina para que ele me mostrasse o que em suas próprias palavras se configurou como “o que me aguardava”. Mas, antes que passássemos pela cozinha, a campainha foi tocada. Fui convidado por ele para me sentar à mesa e esperar que atendesse a quem o chamou pelo portão e, para que eu me ocupasse, ofereceu-me um orçamento impresso para leitura. Corri os olhos da primeira letra ao ponto final das três linhas que compunham o pedido algumas dezenas de vezes e, algumas outras dezenas de vezes, eu observei as fotografias anexadas em uma segunda folha. Enquanto isso, eu podia ouvir Ademir abrir o portão, conversar com os seus clientes, leva-los ao seu escritório, discutir as ofertas, narrar algumas anedotas, encaminhá-los até o portão e se despedir. Retornando, Matias me convidou para que retomássemos o problema inicial da impressão dos cartões de visita. Caminhamos até sua bancada metálica com tampo de mármore e de um envelope foi retirado o clichê metálico – com o qual seria impresso o milheiro de cartões – e depositado sobre a bancada. Ademir pediu-me que recolhesse em uma caixa, próxima ao seu cavalete de tipos, duas bases de ferro de 5 furos de comprimento e duas de 4 furos e, tendo limpado as peças com estopa embebida em querosene, experimentamos a posição do clichê, que coube

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sobre as bases, apesar de algumas rebarbas38. Percebendo alguns excessos na matriz, Ademir contornou a bancada e, levando o clichê em uma das mãos, foi até o seu robusto torno – que ele também nomeia morsa – e, prendendo o clichê em uma de suas zonas rebaixadas, retirou parte das bordas com um pequeno serrote de fita dentada – também apelidada de segueta. Em seguida, retirou o clichê, girou-o, prendeu-o e retirou o que restou das bordas. Deixando o serrote sobre o monturo que ocupava há anos sua bancada de ferramentas fixas, ele quem verbalizava todas as operações amiúde as anunciando por “agora a gente vai...”, continuou a frase dizendo “lixar para não deixar que as rebarbas do corte manchem a impressão”. Alguns minutos foram dedicados ao desbaste das mencionas rebarbas no disco de lixa que compunha a serra circular de mesa construída por Ademir e, passado isso, ele contornou a bancada para retomarmos a colagem do clichê sobre as bases, que rapidamente foi executada. Mas, também rapidamente, tivemos de desfazer a montagem, pois percebemos, remetendo-nos à impressão, que não haveria espaço para inclusão das peças de ajuste – os “quadrados” deMDF e as pinças metálicas39 –, o que nos levou a substituir 38 As operações de desbaste mecânico e manual dos metais, além de gerar o

que é chamado pelos industriais de cavaco – resíduos da retirada de material –, quando não conferem à peça trabalhada o acabamento planificado, deixam as rebarbas. No caso do clichê, as rebarbas eram saliências pontiagudas em suas extremidades e que, além de poder cortar o operador durante o manuseio da peça, poderiam ser impressas junto da “área de interesse” da matriz.

40 Componentes empregados no registro de impressão, também inventados

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uma das bases de 4 furos por uma outra de 3 furos, deixando um vão suficientemente espaçoso para a inclusão de uma pinça sobre a mesa da impressora, sem que o clichê fosse arranhado. Com isso imaginamos ser possível mediar os ajustes de composição – a inclusão dos “brancos” –, mas somente até percebermos que uma das bases era mais baixa que as demais em aparentes 3pts, o que nos exigiu a complementação tipométrica. Sem que fosse necessário recorrer ao tipômetro, Ademir logo recolheu uma entrelinha de 3 furos de comprimento, 3 pontos de espessura e 2,05cm de altura40 e, tendo passado sobre ela um bastão de cola PVP41, pôde a unir à base. Pediu-me, em seguida, que conferisse se havia ainda algum desnível e, para tal exame, eu deveria arrastar um dos dedos da entrelinha para a base. Fi-lo e não percebi brusca passagem, o que para Matias serviu de sinal para que passássemos à inclusão dos lingotes e das guarnições. Assim, na medida em que estavam os componentes ao alcance de por Matias, substituindo os “quadrados” tipográficos e as pinças de papel. Matias argumenta que, dada a dificuldade em encontrar componentes tipográficos para a compra, a substituição dos caracteres danificados seria prejudicada, levando-o a “economizar os tipos” – em suas próprias palavras. A solução, portanto, foi empregar outros componentes, de fácil fabricação: os paralelepípedos de MDF, recortados de chapas de 4mm; as pinças metálicas, recortadas de latas de alumínio e dobradas em seguida. Além disso, ao invés de usar adesivo PVA para a adesão das pinças de paralelepípedos ao tímpano da impressora, são usados adesivos em fita dupla-face.

41 O que, somente em pontos, equivale a 144 x 58,6 x 3 pts. 42 Ademir a chama, usando da metonímia de uma marca pelo produto, de Cola Pritt.

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sua mão por ele eram buscados e, para as mais distantes, pediame que os catasse: era a mim indicado o lugar que ocupavam – em uma das duas estantes sobre a bancada, ou em algum lugar do cavalete tipográfico – e as medidas da espessura e largura da peça – em furos para as guarnições e pontos para as entrelinhas e quadrados. De modo a garantir a coesão do que se compunha, as peças eram estreitamente acopladas e, para evitar que escorregassem entre si – em caso de baixa compressão –, Ademir acrescentou o que chama de “capim”: finas tiras de papel nos intervalos das guarnições, acentuando o atrito dos componentes. Seguidamente, os cunhos42 foram um pouco abertos, para que apertassem a composição e a mesma chave que abriu os cunhos foi reorientada para martelar um retalho de madeira forrado com blanqueta43 e apoiado sobre a composição, nivelando-a.

43 Componente metálico bipartido com uma rosca interna, chamada castanha

e que, quando revolucionada, afasta seus dois lingotes, pressionando os tipos e peças de espaço contra as paredes do chassi metálico onde são depositados e que recebe o nome de “rama”.

44 O assentador tipográfico, por Ademir intitulado “toquinho de bater

chapa”, por José do Monte, tipógrafo do Museu Vivo Memória Gráfica, é intitulado “tamborim”. Mas, para além de sua nomenclatura, ambos utilizam da combinação de um retalho de madeira forrado com a manta emborrachada usada em impressões Offset, a que ambos chamam “blanqueta”.

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Figura 7 - Modelo de Assentador Tipográfico (KARCH, 1966)

O assentamento garantiu uma altura aparentemente simétrica a todas as peças de espaçamento e, ao clichê, a planificação das superfícies de seus altos-relevos. Com isso, os cunhos foram abertos ainda mais, pressionando as bases e os lingotes de espaço e, para testar a compressão dos componentes, a rama foi içada, sendo colocada sob ela a chave-de-cunhas. Com as mãos, Matias pressionou as peças, procurando alguma que caísse com facilidade e, não tendo isso ocorrido, considerou finalizada a montagem, levando-a para próximo da máquina onde eu imprimiria a tiragem dos cartões-de-visita.

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Figura 8 - Modelo de Cunha e Chave-de-Cunhas (KARCH, 1966)

Espalhei a tinta sobre a platina da máquina e puxando

uma comprida alavanca uma primeira vez, o leque se fechou e o conjunto de rolos de borracha da máquina correu para fora do vão entre a mesa de alimentação e o leito da rama e, sobre a platina, distribuiu a tinta. Por algumas dezenas de vezes mais eu baixei e icei a alavanca da máquina44, até que a tinta 45 A impressora de platina manual recebeu dos gráficos o apelido de “tocada

a feijão”. O termo se explica na exigência, pela máquina, de que o operador seja a sua fonte de energia e informação, o que, segundo Gilbert Simondon, define uma modalidade operatória, a saber, a artesanal (SIMDONDON, 2006). Essa exigência de uma regulação manual de percurso e intensidade de movimento

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cobrisse suficientemente todo o disco metálico sobre o qual a depositei inicialmente. Iniciei, então, os ajustes de impressão: duas lâminas de cartão calandrado coladas sobre o tímpano45, a rama encaixada no leito, um primeiro teste. A medição – em centímetros e milímetros – das distâncias da impressão até as extremidades do tímpano, quando comparadas com as medidas da folha da tiragem, forneceram a posição exigida para que as folhas da tiragem fossem impressas segundo a orientação de uma prova anteriormente fornecida. Com esquadro e lápis, contornei a área de impressão, em seguida delimitando o lugar onde seriam depositadas, uma por vez, as folhas por imprimir. Nesse momento, foram inclusos os retalhos de MDF, cortados em cubos, bem como as pinças metálicas e, em seguida, impresso o primeiro exemplar da tiragem de cartões-de-visita que nos foi requisitada.

– tendo como foco a alavanca da máquina –, implica, naturalmente, maiores gastos energéticos que uma regulação somente informacional: como é o caso de impressoras alimentadas por eletricidade, que liberam o operador de controlar manualmente a intensidade dos movimentos da máquina, atendose somente a controlar o percurso de seus mecanismos internos.

46 Mesa móvel onde se dispõem as folhas, uma a uma, para a impressão.

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Figura 9 - Inclusão de “quadrados” e pinças sobre o tímpano da impressora (KARCH, 1966)

Em uma das laterais do cartão a impressão estava clara, isso devido a uma brusca diferença de corpo tipográfico entre essa região e as demais áreas. Além disso, a matriz estava encharcada de tinta, o que me levou a crer, junto de Matias, que os rolos passavam muito próximos do clichê. Ademir sugeriu que recolhêssemos duas canaletas de contra-vinco46, já utilizadas, e, desviando-as de sua função47, as colássemos sobre os trilhos por 46 Componente de tamanho variável, constituído de uma fita plástica com uma canaleta central, utilizada para acentuar os vincos mecanicamente produzidos.

47 Os “desvios de função”, recorrentes em todas as nossas narrativas de

operações, são definidos por Christian Pierre Kasper como “casos em que um artefato é submetido a um uso outro que não aquele considerado adequado”

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onde corre a rolaria, elevando-a em 2pt. Feito isso, retirei a tinta excessiva da matriz e imprimi mais um cartão, obtendo dessa vez mais nitidez nas áreas de impressão, apenas restando que ajustasse a compressão na área mais clara, então sendo possível que eu iniciasse a tiragem. Para tal, foi necessário realizar o que Matias e Zé do Monte chamam de alçamento, ou calço, o qual pode ser dividido em duas etapas:

1 – Alçamento geral

Realizado, geralmente, com a inclusão de uma folha de papel entre a rama e o leito, ou com a colagem de uma folha de papel diretamente na base da rama.

2 – Alçamento localizado

Realizado, geralmente, com a inclusão de um recorte de papel, ou fita-adesiva, sobre o tímpano, nas áreas identificadas como pouco nítidas.

Tabela 4 - Etapas do Alçamento para Impressoras de Leque (KASPER, Christian Pierre. Habitar a Rua. Tese de doutoramento em Ciências Sociais. Campinas, Banco de Teses e Dissertações – UNICAMP, 2006. P. 140).

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O alçamento se justifica no fato de que as técnicas de impressão tipográfica empregam, principalmente, a compressão mecânica como recurso para o transporte de camadas localizadas de tinta, do topo dos caracteres tipográficos para o papel. Nesse sentido, o estreitamento do contato da matriz com o papel, independente da modalidade de impressão tipográfica, ocasiona maior penetração da matriz na folha, o que se apresenta como uma das resoluções possíveis de impressão. Para o caso de uma impressora de tímpano – também intitulada impressora de leque, platina48, ou minerva49 – os calços são efetuados entre a matriz e o leito, na base da matriz diretamente, ou sobre o tímpano. Este último é empregado principalmente em caso de alçamentos localizados, ou seja, de áreas de impressão restritas, para o seu equilíbrio com as demais porções da chapa.

48 Nomes considerados tanto por Ademir Matias como por Zé do Monte e que também foram encontrados nos manuais eleitos como principal bibliografia para a presente monografia, (KARCH, 1966) e (POLK, 1948).

49 Ralph W. Polk, sobre a nomenclatura “minerva”, considera que “o nome

minerva para máquinas dêsse tipo está, aliás, embora indevidamente, bastante divulgado e deve ser evitado para não fazer confusão com a marca” (POLK, 1948. P. 104).

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Figura 10 - Modalidades de Impressão Tipográfica (POLK, 1948)

Tendo feito o alçamento, uma nova prova foi impressa, a qual eu apresentei a Matias, que indagou: “estabilizou?”. Respondi um tanto hesitante, temendo que houvesse alguma armadilha retórica de sua parte, mas, pareceu-me em seguida, não havia malícias, nem o habitual deboche: o silêncio pouco constrangedor que habita a concentração de um operador em ação imperava. Retomaria a tiragem dois dias depois, tendo me ocupado até aquele momento apenas dos preparativos. *

No domingo, estive ao portão próximo ao meio-dia, quando Ademir comumente sai da gráfica para almoçar em algum dos restaurantes próximos à sua residência e oficina.

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Devido à interrupção do fornecimento de energia elétrica, apenas 30 minutos após a minha chegada à calçada é que o tipógrafo se deparou comigo, surpreso que eu estivesse à beira de seu portão. Explicou a mim sobre como se prolongava a ausência de eletricidade desde a madrugada, pediu desculpas por não ter me recebido prontamente e me convidou para almoçarmos. Tendo retornado à gráfica, pude ordenar as fileiras de cartões seguindo a respectiva gramatura de cada lâmina. O projeto envolvia a seleção de embalagens e o uso imprevisto delas como lâminas para cartões-de-visita e, por terem sido empregadas diversas embalagens, eu pude discernir 15 tipos diferentes de papel para o milheiro: com diferentes espessuras e tratamentos de superfície – como vernizes e outras impressões –, organizei a estranha tiragem que, não raro, tinha entre as sortidas pilhas de cartões ora cem, ora cinco exemplares de um tipo de papel, quando não somente um. Feita a seleção preliminar, organizei-os em três grandes grupos para a impressão: I - fina espessura, II - média espessura e III - larga espessura, o que diminuiu a necessidade de alçamento a cada novo tipo de cartão. Empilhei, então, as lâminas de média espessura ao lado da impressora, e iniciei a condução da primeira folha: empurrei-a em direção ao esquadro gerado pelo registro de impressão, puxei a alavanca, fechando o leque com alguma força, aguardei um segundo, elevei a alavanca que,

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abrindo o leque, permitiu-me recolher do tímpano o cartão recém-impresso. Observei a folha, em busca de incongruências, de algum problema a mais para resolver, mas, ao que me parecia naquele momento, a resolução restante concernia, finalmente, à impressão de todos os mil cartões-de-visita. Assim sendo, preparei o ânimo e continuei a realizar a mencionada cadeia de impressão, a qual foi bem descrita em 10 quadros – de A a J – por Ralph W. Polk e que, por sua vez, podem ser discernidas em: A – Verificação das condições da máquina; B – Posicionamento do operador em condições ergonomicamente favoráveis ao movimento dos braços; C – Ventilação da pilha de papéis e sua inclinação, em vista de facilitar o manuseio das folhas; D – A catação da folha, na extremidade mais próxima do operador; E – O Avançar da folha sobre o tímpano em movimento de abertura; F – A aproximação da folha com as guias de registro sobre o tímpano; G – O ajustar da folha junto às pinças inferiores; H – o deslizar das folhas em direção às guias laterais; I – A retirada da folha impressa do tímpano com a mão esquerda e a simultânea inclusão de uma nova folha com a mão direita; J – A deposição da folha impressa sobre uma segunda pilha.

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Figura 11 - As 10 etapas supostas para a condução do papel à prensa (POLK, 1948. P.120)

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Tais etapas compreendem a condução de papel, principalmente, em impressoras com acionamento elétrico, as quais, como já visto, não dependem do operador como recurso energético. Durante a impressão do milheiro de cartões-de-visita na pequena impressora manual essa cadeia foi interrompida, devido à necessidade de se mover a alavanca que promove o fechamento do leque e a distribuição de tinta pela platina. Essa interrupção ocasiona, assim, a inclusão de um item, a que chamaremos H’. Esse item compreende a etapa de impressão propriamente, podendo ser dividido em dois semiperíodos, a saber, H’1 – rebaixamento da alavanca até o fechamento total do leque – e H’2 – elevação da alavanca, dando total abertura ao leque. Somente então a operação é continuada, com os consecutivos períodos I e J, seguidamente retornando ao período F. A sequência prevista – e compreendida durante toda a impressão – é de: A, B, C, D, E, F, G, H, H’ (1 e 2), I, J, F... Até o cumprimento da tiragem. Tal cadeia compreende a solução geral do problema fundador que é uma tiragem, um problema que dá força a uma miríade de outros problemas que, ora sendo resolvidos, ora sendo negligenciados, dão visibilidade à cadeia de resoluções que integram o que compreendemos por “imprimir”. Desde o início da tarde até o início da noite, a impressão dos mil exemplares dos cartões de visita ocorreu de maneira atribulada. Uma cadeia de novos problemas exigiu que certas operações fossem empregadas com certo excesso de cálculos: o recorrente

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fornecimento de apenas um exemplar de um determinado tipo de papel, forçando a realização de testes preliminares em outras folhas; a baixa viscosidade e a transparência da tinta que exigiu, para a matriz, sucessivas limpezas e, para os cartões, duplicação da cobertura 50. Por fim, de ombros doloridos, pude considerar que: se foram mil cartões-de-visita impressos, muitos, também, foram os problemas auxiliares interceptando a concretização dessa linhagem. Esses problemas concerniram tanto às máquinas e ferramentas quanto aos materiais e, ouso dizer, exibiam incontáveis incompatibilidades que quase impossibilitaram a conclusão do milheiro. Mas, foi após essa sucessão tirana de interceptações que pude concluir a tiragem, o que marca o período de deliberação, onde as ações não sofriam mais as conduções de um mestre. Ao invés disso, a deliberação configurou ao tipógrafo a imagem de um hábil colega, mais experiente, ao qual recorrentemente seria possível indagar e questionar sobre novos problemas. O segundo período, o de uma imitação, havia sido superado, e não mais necessitaria retornar a ele, ou menos, não como o jovem pouco conhecedor das entranhas constituintes daquele conjunto técnico a que chamamos gráfica.

50 O que Matias nomeia “bater”, ou seja, imprimir. Nesse caso, “bater duas vezes” significa imprimir duas vezes sobre o mesmo cartão.

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SOBRE MICRÔMEGAS E TIPOGRAFIA



Desde uma experiência como assistente de composição e impressão tipográfica, em 2011, para a produção de um livrode-artista de Amir Brito Cadôr, transbordei das interações contemplativas uma associação particular com a tipografia. Tendo conhecido, nesse período, o tipógrafo Ademir Matias, sofri a inclusão periódica em seu círculo de conviventes operadores, como um aprendiz não declarado, seguindo-o em suas atenciosas demonstrações de inventos, técnicas e materiais.

Figura 12 - Micrômegas, de Fábio Martins, 12 x 22,5cm

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Como os objetos não obedecem não se concretiza de forma autônoma e espontânea – tenham eles intenções artística ou não –, optamos por discernir os níveis que cumprem, em certa medida, com a gênese do livro intitulado Micrômegas. Essa impossibilidade foi expressa e justificada, em amplo discernimento, por Leroi-Gourhan, que cito: Quando nos dispomos a investigar o que é a invenção, devemos problematizar a invenção pura, ex nihilo, perguntando-nos se essa não é uma noção ardilosa. Para que as técnicas evoluam, é necessária a aquisição ligada a qualquer coisa preexistente, mesmo que distante e de maneira inverossímil (LEROIGOURHAN, 2010, v.2. P. 344). Uma invenção artística justificada pela geração espontânea, além de transformar o objeto concretizado por miríades de operações mentais em algo inapreensível, daria a qualquer discurso que o contornasse o aspecto de um exercício retórico51. Mas isso não significa que uma síntese mental de 51 Ana Utsch, discorrendo acerca da conservação-restauração de documentos gráficos, estabelece uma discussão sobre a oposição matéria e espírito no âmbito das disciplinas formalistas de descrição do livro : análises bibliográficas, paleográficas e de críticas literárias e textuais,. Sob tal abordagem,as produções próprias da cultura escrita aparecem como atemporais e universais. (UTSCH, 2013. P. 2). À matéria é atribuído o sentido de algo que corrompe a autenticidade da “Obra” (UTSCH, 2013. P.2) e, nessas circunstâncias, tais

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incompatibilidades sensíveis52 possa ser unicamente remetida ao discurso do inventor, pois, ela pode e revela as complexas cadeias de resoluções materiais que a concretizam. O objeto artístico é, antes de tudo, um objeto mensurável, quantificável, e as ações que o suscitam não poderiam ser menos concretas: o objeto artístico é precedido de uma operação técnica e, em sua construção, são empregadas diversas ferramentas. Micrômegas é um livro, com folhas de papel cortadas em guilhotina, impressas com clichês tipográficos e tipos móveis; seus bifólios foram dobrados manualmente e, com pincel e cola, as fotografias que o compõem foram encoladas. A expressão dessa relação, entre tipógrafo e desenhista, não somente é suscitada pelo livro, mas só foi possibilitada pelos consecutivos empréstimos gestuais-instrumentais entre os dois operadores – um mais especializado para a condução de impressoras tipográficas, outro mais especializado para a condução de pontas-secas e canetas em curtos percursos, sobre acepções dão a perceber uma ação objetiva, técnica, alijada das atividades do intelecto e desconsiderada como saber.

52 Podemos aqui nos remeter diretamente à tese de doutoramento de Emerson

Freire, na qual, em uma fala sobre a angústia de Cézanne – mencionada por Merleau-Ponty –, encontramos “Ele próprio a manifestava diversas vezes, pela sua dificuldade em realizar suas sensações, como quem lida com algo superior a si mesmo, insuportável, uma batalha maiúscula” (FREIRE, Emerson. Da sensação ausente à Sensação como Potência: tema e variações sobre a relação arte-tecnologia. Tese de Doutoramento. Campinas, Banco de Teses e Dissertações – UNICAMP. 2012. P. 83).

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papéis de pequenos formatos. A gráfica, como meio favorável às trocas materiais, possibilitou a concreção desse objeto que, em pensamento, era uma rede de noções irresolutas acerca da própria matéria da presente monografia, dessa apreensão pela tipografia. A constituição do livro pertence aos períodos dessa inclusão, é reflexo e matéria de reflexão das relações ocorrentes em gráfica. Micrômegas retoma a gênese dessa apreensão, encenando a catação de um primeiro tipo no caixotim de uma gaveta tipográfica e o desdobramento de uma constatação: a de que as pequenas dimensões desse caractere tipográfico compreendiam uma estrutura, diversas facetas, ranhuras e reentrâncias que configuravam uma das incontáveis singularidades microscópicas da gráfica. Essa gênese, retomada ou inventada, somente pôde ser reativada pelos dificilmente numeráveis empréstimos de noções, gestos e instrumentos entre mim e Ademir Matias de Almeida. Para reiterar essas relações de empréstimo, cabe considerar a tabela que exprime os níveis de resolução de problemas instrumentais e materiais, dessa vez considerando o próprio livro como incentivador dessas trocas:

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Resoluções para problemas instrumentais I – A realização do livro na oficina tipográfica de Ademir Matias, com seus tipos, máquinas e ferramentas; a utilização de instrumentos de desenho técnico, como esquadros, réguas, tipômetros e compassos. II – A encomenda de clichês flexográficos – em resina sairel – e a divisão do trabalho de impressão com o próprio tipógrafo. III – A combinação de peças de compassos e fios tipógrafos na invenção de uma ferramenta para gravar linhas paralelas sobre as impressões fotográficas do livro. Tabela 5 - Resoluções para problemas instrumentais em Micrômegas

Resoluções para problemas materiais I – A aquisição e empréstimos de papéis, cartões, tecidos e tintas. Nesse caso, com majoritária associação ao nível I da tabela anterior. II – Não se aplica. III – Não se aplica. Tabela 6 - Resolução para problemas materiais em Micrômegas

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As fotografias, que compõem os bifólios do livro, exibem os componentes tipográficos em seus abrigos regulares, cujas dimensões são reconsideradas através de uma orientação da tipometria ampliada para todo o domínio da gráfica. Mesmo as estantes metálicas, ou os apertados corredores da tipografia tiveram, nas proporções das fotografias impressas, as suas medidas novamente calculadas em cíceros, pontos e furos. A ordem própria a cada objeto, em seu rincão microscópico e individual, foi observada e posta em relação de grandeza com os objetos vizinhos através da tipometria: máquinas de escrever, serras circulares, ferramentas, estantes e caracteres tipográficos tiveram sua inclusão na gráfica reafirmada através da medição, ainda que nunca tenham deixado de participar, de algum modo, do orgânico e contínuo ordenamento da oficina. Ou, ao menos, a inclusão de todos os dispersos elementos nesse imenso grupo a que chamamos gráfica foi percebida somente após a sua compreensão métrica, uma vez que tais desenhos exprimem a experiência mesma de ser incluído e incluir em si os gradientes de operações concernentes à tipografia. A tipometria, portanto, é o mote para o reconhecimento de problemas gerais: na composição tipográfica, identificando as porções não preenchidas das chapas, pode ser considerada a ferramenta que compatibiliza um problema a um dado código, o que por sua vez sugere uma resolução precisamente delineada; nos desenhos, a tipometria é tornada uma ferramenta trans-analítica, ampliada

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como maneira própria a uma apreensão perceptiva, como caráter de uma mentalidade.

Figura 13 - Micrômegas, de Fábio Martins, 15 x 22,5 cm

Quando nos três períodos de construção da noção de “resolução de problemas” – as três narrativas –, a tipometria se fazia presente, como um recurso de visualização dos problemas relativos à composição e à impressão tipográfica, possibilitando encontrar as peças compatíveis para ocupar os vãos entre a chapa composta e os limites da rama, entre as fileiras de caracteres – as “linhas de texto” –, entre os tipos. A medição tipográfica é um dos aspectos constituintes de união menos instável entre o tipógrafo e os tipos, ela é um método de comunicação entre esse

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hábil operador e suas máquinas e ferramentas gráficas, inclusive, possibilitando a distinção deste frente um visitante pouco conhecedor. Nesse sentido, o conto de Voltaire se apresenta como forte auxiliar na reconstituição da gênese da mencionada inclusão do jovem desenhista na tipografia. “Micrômegas” narra a visita do habitante de uma estrela distante, a Síria, ao planeta Saturno, onde conhece um dos habitantes desse lugar. A diferença entre as dimensões do habitante da estrela, Micrômegas, e o habitante do planeta é brusca: é preciso que o “pequeno gigante” se deite, para que o saturniano, de pé, possa falar com ele. Após conversarem sobre as medidas de seus sentidos, suas cores primárias, seus sóis, comparando-os, ambos dirigem-se em uma viagem interplanetária – o que para eles não passa de uma mudança de ares entre distintos países –, chegando ao planeta Terra. Junto de outros companheiros que com eles viajaram, dão a volta em todo o globo em apenas 36h e, não tendo encontrado ninguém perceptível aos seus sentidos, discutem sobre a existência de vida nesse lugar. Voltaire dirá que eles “curvaram-se, deitaram-se, tatearam por toda parte, mas, como seus olhos e suas mãos não eram proporcionais aos pequenos seres que por aqui rastejam, não tiveram a menor sensação que os fizesse desconfiar de que nós e nossos coirmãos, os demais habitantes desse globo, tivéssemos a honra de existir” 53. Nessas condições é iniciada uma discussão 53 (VOLTAIRE, 2012. P. 32).

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entre os dois extraterrestres e, tendo o saturniano se apressado nas conclusões de que não havia vida nesse planeta, Micrômegas o responde: – Pois – dizia ele – com seus olhinhos você não consegue perceber certas estrelas de quinta grandeza que eu vejo com muito claramente; daí, você pode concluir que essas estrelas não existem? – Mas eu apalpei bem – disse o anão. – Você sentiu mal – disse o outro. 54 Entre o Micrômegas de Voltaire e o Micrômegas realizado na gráfica de Ademir Matias, pode-se supor fortes semelhanças. Evidentemente, não se trata de uma viagem interplanetária a um lugar desconhecido completamente, mas de um terreno novo para um dos falantes: indo até a morada de Micrômegas, o jovem saturniano se dispõe para o reconhecimento das dimensões dos instrumentos e materiais que a constituem e cujo regente e habitante não é senão o tipógrafo. As fotografias que integram o Micrômegas tipográfico exibem, sob o mote das medições, um reconhecimento em dinâmica de execução55: 54 (VOLTAIRE, 2012. P. 33). 55 Gilbert Simondon, em um artigo intitulado Mentalidade Técnica, apresenta dois postulados de projeto filosófico de compreender a técnica como

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como desdobramento da experiência estética fruída em novos domínios, a tipometria – às vezes obsessivamente empregada –, refere-se diretamente à necessidade de ampliação das potências analíticas e perceptivas do observador. Entra-se uma primeira vez em uma tipografia e, tendo saído, as percepções todas são demudadas: olhar, sentir, ou mesmo desenhar, não suscita as mesmas definições após essa primeira visita.

parte de uma mentalidade particular. Destes, extraio o segundo: “se tentamos compreender completamente um ser, é necessário que façamos tomando-o em sua enteléquia [em ato], e não em sua inatividade, em seu estado estático” (SIMONDON, 2006. P 347).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS



Na miríade de influências, estímulos e impressões estéticas a que se pode sentir e viver em uma gráfica, a constituição desse livro Micrômegas se apresenta como síntese da associação de um desenhista e um tipógrafo, ou, como o próprio Ademir Matias prefere ser intitulado, gráfico. Isso, pois, foi na conjunção dos contínuos esforços em possibilitar recorrentes empréstimos gestuais-instrumentais, de trocas de experiências, que uma noção surgiu, foi aceita e utilizada em larga escala: a resolução de problemas. Não houvesse essa convergência de interesses, centrada em uma noção a que ambos apoiamos o emprego, talvez a associação mestre-aprendiz aqui exaltada – inclusive por sua contemporânea escassez – teria sido impossibilitada, o que por sua vez anularia a possibilidade de concretização do mencionado livro. Micrômegas, por fim, apresenta, em alguns de seus aspectos, essa conjunção de conhecimentos e empréstimos mediados por dois humanos com diferenças de idade a superar 40 anos, também nasceendo dessa conjunção. E, não poderia deixar de considerar, o livro suscita a continuidade dessa associação, constituindo uma progressiva continuação gestual-instrumental vista entre os homens que dividem admirações em comum e, cuja amizade provoca, por fim, incontáveis alegrias instrumentalizadas56. 56 Termo cunhado por Gilbert Simondon em uma carta endereçada a Jacques

Derrida e que exprime, justamente, a alegria no emprego de um instrumento, resolvendo problema determinado (SIMODON, 1996).

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BIBLIOGRAFIA

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