A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da LĂngua
Mito Elias - Cabo Verde
A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua Antologia Poética
Coordenação Amosse Mucavele
Coordenador do projecto “Esculpindo a Palavra com a Língua” Amosse Mucavele Conselho Editorial Abreu Paxe - Angola Jorge Arrimar- Angola Victor Oliveira Mateus - Portugal Mbate Pedro – Moçambique Claudio Daniel - Brasil Rita Dahl – Finlândia Maria Ângela Carrascalão – Timor- Leste Conceição Lima – São Tomé e Príncipe Alberte Momán Noval- Espanha (Galiza) Maria do Sameiro Barroso- Portugal Frederico Matos Cabral – Guiné-Bissau Ficha Técnica Titulo: A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua- Antologia Poética 1ª Edição Editora: Revista Literatas, Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona Pontos de fuga: Susanna Busato, Paulo Seben, João Adalberto Campato Jr., Ana Barbara Rosa, Luzia Barros, Armando Artur, Marcelino Freire, Delmar Gonçalves. Email: arqueologiadapalavra@gmail.com Tiragem: 500 exemplares Pintura da Capa: Mito Elias Layout da Capa: Mario Lhamine Maquetização: Ângela João Matabel N° de Registo: 7747/RLINLD/2013 Impressão: CIEDIMA, SARL Maputo, 2013
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Apresentação “minha pátria é a minha língua” Fernando Pessoa
Difícil é fazer uma sinopse da viagem na qual o leitor é o nosso principal passageiro, difícil foi reunir estes poetas de terras distantes que juntos residem nesta pátria que se chama língua portuguesa. Contudo esta reunião de poetas oriundos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal, São Tomé e Princípe, Timor-Leste, Macau e Moçambique, em momento algum vem autenticar ou revelar os melhores muito menos os piores, mas sim, dar uma visão panorâmica da poesia produzida no presente tempo que corre neste espaço de reencantamento; tornar esta viagem num momento único de celebração da literatura escrita na língua portuguesa em todos seus desdobramentos, suas transmigrações, em toda sua gestação, pulsação, profanação, fertilização, assim sendo, mostrando-a em todas as suas latitudes, em suma, esta é, uma radiografia da produção literária destes países ligados umbilicalmente pela palavra mágica, poderosa, tal como o mar a séculos navegado (desde Camões até aos nossos tempos ou por outra até ao cais deste nobre espaço de diálogo intercultural, de divulgação da literatura moçambicana e lusofóna -Revista Literatas) e pelas variadissímas operações cirurgícas no corpus da língua portuguesa (ora ao longo do percurso o leitor encontrará poetas traduzidos do México, Espanha, e Finlândia); essa expansão subversiva a outras fronteiras traz consigo a ideia da lusofonia como um espaço ilimitado que não se define somente pelos mapas de uma comunidade). Daí que procurou-se cavar ao
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mais profundo degrau da criação poética até a exaustão e esculpir a palavra esta mina que esconde a riqueza destes povos detentores da prodigiosa língua unida na sua diversidade cultural. E por fim esta antologia pretende ser a Chave no Repouso da Porta (tal como pediu Abreu Paxe) para que o querido leitor possa abrir e entrar na casa da palavra buscar de forma incessante a linguagem imagética, magnética, rizomática, o verbo solitário, depurado, conhecer os compartimentos da poesia da língua portuguesa na sua plenitude (num ângulo de 360º, não a lupa tal como tem acontecido), e conquistar a beleza desta paisagem da poesia contemporânea escrita na língua portuguesa. Boa leitura! O coordenador Amosse Mucavele
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O coordenador desta obra, deixa o seu total agradecimento ao Fundo para o Desenvolvimento Artístico Cultural (FUNDAC) pelo patrocínio concedido. Esta obra é dedicada aos poetas Lêdo Ivo (1924-2012) – Brasil e Manuel António Pina (19432012) – Portugal.
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Agradecimentos Agradeço a fundamental orientação e contribuição da (minha irmã) Micheliny Verunschk, Miguel Almeida, Jorge Arrimar, Ricardo Riso, a valorosa ajuda da Profa. Dra. Simone Caputo Gomes, Profa. Dra. Inocência Mata, Prof. Dr. António Carlos Secchin, poeta Luís Serguilha. Agradecimento especial aos membros do Conselho Editorial, aos poetas participantes, ao artista plástico Mito Elias, ao design gráfico Mauro Manhiça pelo logotipo, ao Mario Lhamine pelo arranjo gráfico, aos meus colegas do Movimento Literário Kuphaluxa, Revista Literatas, Revista Mallarmagens, à Associação dos Escritores Moçambicanos. E não poderia deixar de mencionar os professores que tanto contribuíram e contribuem nesta nossa empreitada: Prof. Dr. Calane da Silva, Prof. Dr.Paulo Seben, Profa. Dra. Carmén Lucia Tindó Secco, Profa. Dra. Susanna Busato, Profa. Dra. Ana Mafalda Leite, Prof. Dr. João Adalberto Campato Júnior, o escritor Marcelino Freire, o poeta Delmar Gonçalves e minhas princesas doutorandas Luzia Barros e Ana Barbara Rosa. Amosse Mucavele
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EU, NÁUFRAGO Quando eu recebi o convite para escrever aqui algumas linhas, fiquei feliz e faceiro. Esse festejo em torno de nossa Língua Portuguesa. Esses poetas, irmãos, que agora conheço.E reconheço. Tamanha celebração! Quelimane, Arcoverde, Ilha de Santiago, Alcochete, Fortaleza, Benguela... Diversas cidades, lugares de uma mesma pátria, de uma mesma casa: a poesia. Fui lançando a minha vista além-mar. Em cada verso: um reino. A cada palavra: um voo. Difícil não sentir saudade. Difícil não se reconhecer pertencente ao mesmo sotaque. Verbo, terra. Cheguei a anotar em cadernos algumas linhas. Colhidas durante a leitura. Li em voz alta, aos amigos brasileiros,uns cantos que encontrei nesta aventura, por dentro das conchas, pelas florestas. Ancestrais. Colhi uma “rosa entre cadáveres”. Peguei navios de guerra. E paz. Subi em “limoeiros”. Adormeci perto de um “velho vulcão”. Abri o meu coração. Como há tempo eu não fazia. Essa antologia poética serviu, sobretudo, para este meu mergulho profundo. Na linguagem. Um verdadeiro inventário. Sonoro. Um testamento. De um povo, de um rio, de um sentimento.Esquecido. Nem lembro qual foi a última vez em que eu me lancei, assim, na alma da palavra. Têmesse tesouro os autores ora reunidos: o verbo exato, o peso preciso. Uma bravura melancólica. Um grito antigo.
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E atual. Agradeço ter feito com vocês essa viagem. Cabe agora, a outros leitores, náufragos como eu, embarcar nessa mesma nau. E salve, salve!
Marcelino Freire é escritor. Nasceu em 1967 em Sertânia, Pernambuco, no Nordeste do Brasil. Vive em São Paulo desde 1991. É autor, entre outros, de “Contos Negreiros” (Prêmio Jabuti 2006 – Editora Record).
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Em A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua podemos ver o que de mais rico uma antologia pode trazer: a diversidade, tanto no sentido de encontro como de tensão. Nesta produção não se estabelecem hierarquias. Compõem o exemplar nomes consagrados e principiantes, várias gerações dialogam, vários géneros e diversas nações. Unindo esses diversos poetas um elemento: a língua portuguesa. Com o “abraço do idioma” podemos apreciar poemas belíssimos, de realidades distintas, mas com o conforto que só o domínio do idioma pode proporcionar. O livro é, sem dúvida nenhuma, uma iniciativa necessária e bem realizada.
Maria Luzia Carvalho de Barros Paraense, doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo (USP).
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Seria particularmente difícil e provavelmente inútil desconstruir, reconstruir e analisar manchas criativas de tão grande e diversa subjectividade e experimentação cultural, estética e estilística aqui presentes. No entanto, como dizia Don Marquis, “publicar um livro de poemas é como deixar uma pétala de rosa no grande canyon e ficar à espera do eco”. A poesia não precisa de eco, pois ela própria é eco com a sua miraculosa melodia. Porque escrever é um eterno acto de solidão e porque publicar é sempre um sublime acto singular de resistência, ousadia e coragem, esta obra antológica é e será sempre uma obra de continuidade, dando sentido e expressão aos processos criativos em língua portuguesa na sua riqueza e indiscutível multidiversidade, onde há demasiado mar, demasiada terra e demasiada língua para gerir. Como a loucura é uma outra forma de lucidez, digo apenas parabéns pela poesia representada. Convicto que estou que só publica poesia quem vive, respira e acredita na poesia.
Delmar Maia Gonçalves, presidente do Círculo dos Escritores Moçambicanos na Diáspora.
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A poesia é, pois, um meio de busca e de reencontro do ser consigo próprio. Mas a poesia acontece porque existem as palavras – essas entidades místicas cuja essência última e magia da sua transmutação só Sartre soube descobrir. Por isso assumo-as também como a principal matéria-prima da própria poesia. Mas as palavras que sejam fiéis depositárias da essencialidade das coisas. Palavras que deixem de ser apenas sinais convencionais para participarem, para se transformarem e para se converterem nas próprias coisas nomeadas. Por exemplo, quando digo água, ela tem que jorrar no poema. Ela tem que abrir sulcos na geografia do tempo, onde possam crescer livres e abertas as plumas que levam á liberdade e à totalidade assentida. E quando assim acontece é quando o poema se realiza em toda a sua extensão e plenitude, na medida em que na poesia a palavra deixa de ter a função de significação passando a ser o próprio ser. Este postulado é a condição fundamental para o acontecimento da poesia.
Armando Artur, poeta e actual Ministro da Cultura da República de Moçambique.
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Arqueólogos da Palavra Micheliny Verunschk (Brasil), Eduardo White (Moçambique), Alberto Estima de Oliveira (Macau), Ana Mafalda Leite (Moçambique), Bárbara Lia (Brasil), Victor Oliveira Mateus (Portugal), José Luís Hopffer C. Almada (Cabo Verde), José Inácio Vieira de Melo (Brasil), Léo Sidónio de Jesus Cote (Moçambique), Danny Spínola (Cabo Verde), Donizete Galvão (Brasil), Luís Carlos Patraquim (Moçambique), Abreu Paxe (Angola), Luís Ferreira (Portugal), Il Bonde (Moçambique), Maria do Sameiro Barroso (Portugal), José Luís Mendonça (Angola), Paula Virgínia Andrade Vasconcelos Lopes (Cabo Verde), Mia Couto (Moçambique), Alberto Riogrande (Portugal), Rita Dahl (Finlândia), António de Névada (Cabo Verde), Camila Vardarac (Brasil), Marília Miranda Lopes (Portugal), Japone Arijuane (Moçambique), Maria Ângela Carrascalão (TimorLeste), Frederico Ningi (Angola), Jorge Melícias (Portugal), Dina Salústio (Cabo Verde), Gociante Patissa (Angola), Claudio Daniel (Brasil), Emmy Xyx (Moçambique), Filinto Elísio Correia e Silva (Cabo Verde), Jorge Arrimar (Angola), Mauro Brito (Moçambique), Yao Jingming (Macau), Maria Teresa Horta (Portugal), Mario Lúcio Sousa (Cabo Verde), Calane da Silva (Moçambique), Miguel Almeida (Portugal), Nina Rizzi (Brasil), João Melo (Angola), Lau Siqueira (Brasil), Frederico Matos Alves Cabral (Guiné-Bissau), Guita Jr (Moçambique), Cláudio Portella (Brasil), Vera Duarte (Cabo Verde), Victor Sosa (México), Luísa Demétrio Raposo (Portugal), Sangare Okapi (Moçambique), Zetho Cunha Gonçalves (Angola), Luis Avelima (Brasil), Rolando Chagas Alves (Macau), Izidine Jaime (Moçambique), Alberte Momán Noval (Espanha), Marcelo Ariel (Brasil), Conceição Lima (São Tomé e Príncipe), David Capelenguela
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(Angola), Dinis Muhai (Moçambique), Lurdes Breda (Portugal), Margarida Filipa de Andrade António Fontes (Cabo Verde), João Rasteiro (Portugal), Eduardo Quive (Moçambique), Fernando Aguiar (Portugal), Ronaldo Cagiano (Brasil), Nelson Lineu (Moçambique), Maria João Cantinho (Portugal), Wilmar Silva (Brasil), João Tala (Angola), Mbate Pedro (Moçambique), Aurelino Costa (Portugal), Luís Kandjimbo (Angola), Ademir Assunção (Brasil), Miguel Ángel Alonso Diz (Espanha), Victor Burity da Silva (Angola), Amosse Mucavele (Moçambique), Maria Helena Caldeira Marques de Morais Sato (Cabo Verde), J.A.S.Lopito Feijóo K. (Angola), Carlos Marreiros (Macau), Affonso Romano de Sant’Anna (Brasil), Adelino Timóteo (Moçambique), Filipa Isabel (Portugal), Edson Cruz (Brasil), João Maimona (Angola), Gisela Ramos Rosa (Portugal).
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Uma palavra que se esculpe no poder da língua que a alimenta Susanna Busato
Nada é fácil numa antologia. O trabalho de reunir num mesmo espaço poemas de autores diversos cobre o céu desse terreno de cores várias, como se o víssemos em momentos especiais do dia, em que o sol matiza as nuvens e os gazes com sua luz, perfazendo uma zona de raios que se movimentam num sentido serpentino de contração e refração. Eis como percebo a reunião de poemas que se unem nesta antologia organizada/ coordenada por Amosse Mucavele e Micheliny Verunschk. Nesta antologia, os poemas se reúnem sob a ação do esculpir com a língua a palavra, metáfora que remete à poiesis, ao fazer equivalente ao fazer de um escultor que retira da pedra bruta a sua essência, ou melhor, a essência que o artista procura ou investiga ao tocar e sentir a matéria bruta de seu ofício. É a palavra, no caso desta antologia, a massa bruta que se submete à ação do poeta escultor, que tem somente na língua a sua ferramenta de trabalho. A língua portuguesa na sua extração cultural também matizada pelas cores das quais se nutre em sua nascente continental variada: África, Portugal e Brasil. É essa língua que também dá a universalidade necessária para que os poemas se reúnam nesse mesmo espectro, em esculturas várias, douradas na língua que lhes molda o perfil. A língua do poeta, sua potência, seiva que navega de um poema a outro, mostrando para o leitor a diversidade expressiva marcada pela experiência de cada autor. A poesia que anima este espaço é uma poesia que deflagra antes de tudo conhecimento: de si própria, do mundo, do
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sujeito. A poesia tem esse caráter estranho de promover as molduras de um mundo criado com os olhares que vêm da natureza, travestidos de signos, que nascem do próprio sujeito, se auscultando em seu exercício de escritura, buscando na palavra o tema de si própria. Em outros momentos, é o mundo que invade a dicção dos poemas desta antologia. Um mundo vivido, um mundo da experiência do sujeito. A voz nasce como pode no desenho dos versos: em prosa corrente e dilacerante; em versos fragmentados, mimetizando a espontaneidade do pensamento que é flagrado em pleno vôo; ou ainda em versos que desenham a imagem na palavra, lavrando em som e sentido a nota que se ouve do mundo, um apelo, uma sensação, um retrato da experiência vivida que se traduz no poema em pura imagem. Poetas de línguas portuguesas (e o plural aqui enfatiza o matiz da diferença e sua importância de marcar a escritura de uma voz e sua cultura) se reúnem aqui com suas vozes particulares. Muitas delas desenham no poema o abstrato dos olhos, aquilo que num fluxo imagético se espande em figuras em movimento de lagarta, num certo erotismo de expressão, expondo o corpo como desejo. Ou ainda, desenhando o tempo e a espera, lugarescomuns da lírica que flagram o sujeito circunscrito numa referência a si mesmo. Outros poemas constroem imagens que tecem num fluxo que se desdobra em mais imagens (num certo tom verborrágico em alguns poemas). Inauguram mundos possíveis, saídas amenas de uma realidade insustentável, da guerra, da situação feminina, da incompreensão do mundo, mencionadas na sua presença dramática, por uma voz reivindicadora da diferença. Percebe-se em alguns poemas um traço de romantismo matizado, em que o sujeito sonha ser um pássaro, uma voz de luta, ou ainda um maldito, que, sem voz, assinala a própria sina como imprópria.
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Parece que para muitos poemas a palavra, esculpida com a língua, signifique ser esculpida pela voz flagradora de um desejo, de uma experiência que necessita ser ouvida, tornarse concreta, em palavra matizada. O recurso à metalinguagem reforça a presença de um dizer inaugurado pela palavra que se afirma como voz. Muitos poemas têm pressa em dizer. O trabalho com a forma se nutre de um querer dizer, um querer traçar o que oprime o sujeito. Em outros poemas, percebe-se a forma pensada em si, escultura de si mesma, flagrada no processo da espera em se postar como voz no espaço. Em outros poemas os versos se rompem prosaicos, como a estabelecer uma coerência entre a prioridade da fala e a imagem da vala, daquilo que a experiência reprimiu e que ensinou: a guerra, a saudade da pátria, os terrores da violência, o medo, o amor, a esperança. Nestes, a forma se dilata e sede lugar ao grito, ao desejo de semantizar o mundo. Transcrevo aqui a saudação de abertura da Antologia, no poema de Micheliny Verunschk, que traduz em poesia o que percebi nos poemas e o que o leitor irá encontrar plenamente realizado aqui. Um salve à palavra, língua rica, que nos representa e nos alimenta. Um salve à poesia!
“Ave, língua púrpura, ostra, estrela úmida.
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Ave, língua rubra, lâmbda, bruta, rubi. Ave, língua minha e tua, beijo luso parafuso. Ave, língua rosa, barroca, louca, gostosa. Ave, língua, íngua, água, híbrida de mar, salgada. Ave, língua régua incerta, latinoibérica incorreta.
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Ave, língua negra prosa, resistência de Lorosa’e. Ave, Salve, língua puta, moura torta, minha musa.”
Susanna Busato é uma gaivota paulistana. Filha dos anos 60, meio hippie nos anos 1980, virou professora universitária nos anos 1990 com a poesia na rota da vida. Durante os voos virou Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC/SP) e Doutora em Letras (UNESP/São José do Rio Preto), onde fincou o bico como professora de Poesia Brasileira. Hoje se dedica a devorar nos lírios as serpentes que habitam seu corpo. Por isso traça roteiros pra tudo. Viaja dormindo, sonha acordada e realiza os desejos em voo rasante. Deixou seus rastros e pensamentos em várias revistas como a Revista Cult, Revista Brasileiros e nas eletrônicas como Zunái, dEsEnrEdoS e Aliás, Cronópios, Gérmina, e outras revistas acadêmicas. Num dos vôos, ganhou o Prêmio Mapa Cultural Paulista na fase estadual, Categoria Poesia, em 2010. Prefaciou dois livros de poemas, Signicidade, de Frederico Barbosa e Poesia sem Pele, de Lau Siqueira e organizou três livros de ensaios sobre questões estéticas da poesia contemporânea. Agora está aguardando o nascimento próximo de sua plaquete de poemas, Papel de Riscos, pelo Centro Cultural São Paulo
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Língua
[Ao modo de saudação]*
Ave, língua púrpura, ostra, estrela úmida. Ave, língua rubra, lâmbda, bruta, rubi. Ave, língua minha e tua, beijo luso parafuso. Ave, língua rosa, barroca, louca, gostosa. Ave, língua, íngua, água, híbrida de mar, salgada.
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Ave, língua régua incerta, latinoibérica incorreta. Ave, língua negra prosa, resistência de Lorosa’e. Ave, salve, língua puta, moura torta, minha musa
Brasil *Micheliny Verunschk é escritora e crítica literária brasileira com trabalhos publicados em Portugal, França, Espanha, Canadá e Estados Unidos. Finalista em 2004 do Prémio Portugal Telecom com o livro Geografia íntima do Deserto (2003) é ainda autora de O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003) e A Cartografia da Noite (Lumme, 2010). Mantém o blog http://www.ovelhapop. blogspot.com.br/
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Moira
Este tempo cabe no meu corpo corto-lhe o molde emendo a gosto. Este tempo é meu (dizem-me) ainda que me imobilize os braços que me sufoque o peito um aperto na cintura. Um céu tinto de roxo despenca sobre mim e suas gotas lavam a vidraça suja. A tesoura range e repete que sou uma deidade morta. Mas este tempo é meu, envolve-me o corpo.
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Moçambique Eduardo White, nasceu em Quelimane, em 1963. Foi membro fundador e pertenceu ao conselho de coordenação da revista Charrua. Dirigente da AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos), é poeta, dramaturgo, cronista. Tem colaboração dispersa na imprensa e em antologias em Moçambique, Angola, Brasil, Portugal, França. Vencedor de vários prémios literários, entre eles o Prémio Gazeta da Revista Tempo, Prémio Nacional de Moçambique e Prémio José Craveirinha. Publicou: Amar sobre o Índico, (1984); Homoine (1987); Vozes de sangue (1988); O país de mim (1989); Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave (1992); Os materiais do amor seguido de O desafio à tristeza (1996); Rostos da língua – breve antologia de autores de língua portuguesa (1999); Dormir com Deus e Um navio na língua (2001); As falas do escorpião (2002); O manual das mãos (2004); O homem a sombra e a flor, e outras cartas do interior (2004); Até amanhã coração (2007); Dos limões amarelos do falo às laranjas vermelhas da vulva (2009), entre outros.
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Uma mão relampeja na casa da escrita. Faísca. Procura um claro instante para a aparição. Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel, deitada do seu lado ou do seu modo rastejante, pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras a sua rasante arrumação, e leva vozes aquela mão em cada delicada paisagem, rítmica, latejante ou um nervo animal que faz lembrar a textura pedestre do papel. Mas a mão voa, explosiva, e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica. Voar é um fervoroso recolhimento. E no que é quase a medida elementar do esquecimento a escrita navega num estuário de silêncio. Escrever é uma droga antiga, uma bebedeira que queima com lentidão a cabeça, traz as luzes desde as vísceras, o sangue a ferver nas vias tubulantes, traz a natureza estimulante das paisagens que temos dentro. in Nudos, Antologia Poética
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Quero dizer:
– Um navio na língua. Entro. Sigo-lhe o curso da própria vida. Ele está ali para demorar, exigido a essa arte. Um navio ancorado á saliva, não para a fuga mas para o delírio que é estar recolhido pelo túnel da linguagem. Um navio assim pode parecer, de repente, uma sepultura. Mas, não é o caso. Este está voltado para onde respira. Para o mar, para a esperança, para os Destinos do que quererá voltar. Toco-o. É como se esse gesto fosse uma Vontade penitente. Uma língua com navios não se balbucia, exerce-se. Chão intestínico, vagueada imagem. Guardo o súbito desse registo, a sua fleumática contradição. O que é certo é que posso dar-me a cogitações incongruentes. A nave iliba-me dessa heresia combalida. Por isso, falo-a, devagar e nítida, para que comecem a trabalhar. O navio na língua. O navio e a língua. Duas realidades tão ogivais no poema: A ternura nítida da segunda e a realidade abstracta da primeira. Que essência terá isso? Que contornos as causará? Inevitável será testemunhar que desconheço. O navio está num caminho e a língua está para além dele. Olho pelas redondas vigílias da máquina tudo isto e descubro que a língua tem essa sede de viajar caminhos. Não de sê-los mas conhecê-los, de os sonhar, de os evocar, de os descrever. Os longes são sensações que possuímos numa determinada língua. Um navio, um sonho inclinado para eles. Perecível ou não. Além. in Nudos, antologia poética
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Macau Alberto Estima de Oliveira nasceu em 1934, em Lisboa. De 1957 a 1975 viveu em Angola, tendo publicado poesia nos Cadernos Vector II e III (Nova Lisboa, Huambo) e Kuzuela III – 1ª Antologia de Poesia Africana de Expressão Portuguesa (Luanda), coligida por David Mestre. Publica o seu primeiro livro de poesia, intitulado Tempo de angústia, na cidade do Lobito, e Cadernos Capricórnio, em 1972. Em 1977 foi viver para a GuinéBissau e, a partir de 1982, fixa residência em Macau. Publicou seis livros de poesia e colaborou nas revistas Macau e RC : Revista de Cultura. Em 2003 publicou, em Lisboa, a antologia MESOPOTÂMIA espaço que criei (Aríon). Está representado em várias antologias, entre elas a Antologia Poética do 1º Festival Internacional de Las Palmas de Gran Canária (1996) e Antologia de Poetas de Macau (1999), organizada por Jorge Arrimar e Yao Jingming. Participou do Encontro de Poetas de Macau (1994); I e II Festival de Poesia em Las Palmas, Canárias (1996, 1998); III Festival Internacional “Curtea de Arges Poetry Nights”, realizado na Roménia, onde lhe foi atribuído, pela Academia Internacional Oriente-Ocidente, o Grande Prémio Internacional de Poesia de 1999 e do XIX Congresso Mundial dos Poetas, 1999, em Acapulco, México.
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tocar as tuas asas a resposta ao diálogo interdito o espaço no rio limitado pelas margens a ânsia de liberdade na tua voz o grito. in Infraestructuras. Macau, ICM, 1987
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Macau 22 horas
na noite amordaçada cheia de luzes e nada sobre montras de ilusão fecham-se portas pesadas onduladas feitas de chapa de ferro na rua estreita cansada abandonada de vida soam passos de incerteza pela ausente madrugada nos olhos tristes das casas de sorrisos reduzidos recortam-se silhuetas nos postigos. in O diálogo do silêncio. Macau, ICM, 1988
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Moçambique
Ana Mafalda Leite nasceu em 1956, em Portugal e com alguns meses de vida foi para Moçambique (Tete-Moatize), onde viveu até aos dezoito anos, tendo feito parte dos estudos universitários em Maputo, na Universidade Eduardo Mondlane. Literariamente vincula-se ao país onde cresceu, com o qual mantém uma relação de pertença afectiva, bem como apaixonada intervenção criativa e crítica. É professora na Universidade de Lisboa e especializou-se em Literaturas Africanas, desenvolvendo atividade de pesquisa e de docência em várias universidades de língua portuguesa e estrangeiras. Publicou os ensaios: A Poética de José Craveirinha (1990), Oralidades & escritas nas literaturas africanas (1998) e Literaturas africanas e formulações pós-coloniais (2003). Poesia: Em Sombra Acesa (1984), Canções de Alba (1989), Mariscando Luas (em colaboração com o pintor Roberto Chichorro e com o poeta Luís Carlos Patraquim, 1992), Rosas da China (1999), Passaporte do Coração (2002), Livro das Encantações (2005), O Amor essa forma de desconhecimento (2010).
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Fronteiras, de que lado pergunto-me
onde terá começado a fronteira do dia com a noite? a fronteira da água com a terra? a do azul com o lilás? porque tão dividido o mundo em dois? no tratado de tordesilhas levou-se a ibéria ao novo mundo e mais tarde sentados em berlim muitos outros desenharam os mapas a compasso e esquadro um continente não interiormente navegado diziam kurtz apontando o dedo ao acaso em caligrafias de cor ou a tinta da china um coração das trevas mapa cor de rosa a estilete gravado na mão os mistérios arcos de décadas em bissectriz dançando a caneta em forma de bisel de que lado pergunto-me nasce o aroma do coração? meu índico pé ponto de nó laçada entremeio azzurro azure azula-me o chão em haurir de fogo misturo-me nas volutas e entranço-me num subir de velas talvez copra e curcuma o lançado mapa estilhaçado em panos esvoaçante desafia-me as escolhas de territórios em água marinha lápis lazúli quartzo de lua resplendor quero ser assim repartida em minhas pedrinhas espalhada em rios de terra e minérios quentes carvão bauxite malaquite em chama meu amor minha terra meu leito de desejo não me procures nas fronteiras que não tenho de que lado se põe o amor ao entardecer? onde me deita ele? levanta-me e torno raiz plantada exactamente no interstício de uma falha inaugural um lençol me exila ou exulta o destino transbordo entre muitos lugares nuvens e águas por isso questionam por vezes as minhas fronteiras a marca da diferença que me
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extraterrioraliza e me lança ao avesso das identidades o forro por fora a seda por dentro vim vestida aos avessos das linhas de costura que fronteirizam macanga marávia mutarara chiúta zumbo moatize, furancungo zobué em ponto pé de roseta ziguezague em duplo nós elos em cadeia raiz quadrada noves fora sempre indago a matemática sem resultado será que é indígena? será que é alienígena? será que é? qual anjo sobranceiro a todas as terras, espreito esse estranho rosto de cabelos alaranjados em fogo entre muzimo e valquíria sou austral e sou oriente a baunilha de madagáscar exala-me devagar muitos desertos apetecíveis sou ocidente e morde-me na boca um papiro de apagada escrita alexandria? atravesso me nos céus a sul um cometa que passa: ano nyenyeza dizes me foi quando? a luz irrompe em múltiplos lugares estranhos estou em casa sempre a descobrir que voando se foram as andorinhas pousadas nos fios de eléctricas ondas invisíveis os postes de madeira brotando folhas novas caligrafias encriptadas por isso na areia desenho rotas ruas endereços que não existem procuro as montanhas sagradas da angónia as pedras gigantes que sobem as escarpas do interior de outros mapas úteros ainda mais recônditos no entanto sentado ele olha-me e aconchega na pele de antílope o som da terra de que lado me olha o sol? e a lua? porque canta assim o pássaro bique-bique a íbis preta quando me cega o brilho das tuas pulseiras nos pulsos dádiva nas mãos em concha vem uma mudança no tempo alimentar o espírito diz a sua boca nhau que me fala através das pedras
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Fenómenos das cores
por exemplo o arco da luz colorida com o nome de íris nasce de uma refracção da luz do sol nas nuvens ou na névoa que prismam os raios solares em extâse de sete tons e conforme a inclinação da curvatura do arco em escala de música sete vezes sete se desdobram a íris do céu deslumbram ao infinito in Livro dos Azuis
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Brasil
Bárbara Lia escritora brasileira nascida em Assaí, norte do Paraná. Publicou poemas em jornais literários como Rascunho, Revista Literatas, Revista Coyote, Zunai, Cronópios, Mulheres Emergentes, entre outros. Foi por duas vezes finalista do Prémio Sesc de Literatura: em 2004, com o romance Cereja & Blues e em 2005 com o romance Solidão Calcinada. Premiada no concurso de Contos Grotescos – Prémio Edgar Allan Poe/2009 e Prémio Ufes Literatura/2009. Em 2010, ao lado de Affonso Romano de Sant’Anna, Augusto de Campos, Claudio Daniel, Marcio André, entre outros, faz parte do livro de ensaios O que é poesia? (Confraria do Vento), organizada por Edson Cruz. Publicou O sorriso de Leonardo (Edições Kafka, 2004), O sal das rosas (Lumme editor, 2007), A última chuva (ME-ed. Alternativas-MG, 2007) A solidão calcinada (Secretaria da Cultura/ Imprensa oficial de Paraná,2008)
ALONE / ENOLA A solidão É o avião Que leva A Bomba Atômica in Deus no Orvalho
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Deus no orvalho
(para Jorge Luis Borges)
Jardim perfumado de Istambul Sol intolerável beija a rosa azul Dois cães ao redor, da cor da lua Teus olhos se perdem na rosa nua Olhos da cor do Mar Cáspio na aurora. Gota de orvalho baila na pétala - Cristal Ponto no espaço Aleph descortina o universo: Sonhos enxertados de sóis desertos aromas fauna primavera borrascas Todo universo na gota clara que cobre a rosa A lágrima desce solar ao lábio carmesim e o peito arde de amor e luz in Deus no Orvalho
Antologia Poética
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Portugal Victor Oliveira Mateus é natural de Lisboa e licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica da mesma cidade. Tem sete livros de poesia publicados e uma novela. Traduziu alguns clássicos, bem como poetas contemporâneos. Organizou Antologias poéticas e de contos, portuguesas e luso-brasileiras. Tem poemas, contos e textos de cariz ensaístico publicados em Antologias e Revistas Literárias de Portugal, Brasil, Espanha, Itália e Macau. É sócio da A.P.E. (Associação Portuguesa de Escritores).
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
O que dói não são as ruturas, o afastamento, a incapacidade a minar como um cancro oculto e certeiro. O que dói não é a pouca solidez com que se disse esta ou aquela palavra, esta ou aquela frase; com que se insistiu, apesar de receios vários, na grotesca encenação do que se previa muito aquém de qualquer futuro. O que dói não é a viscosidade das emoções a grafar-se em algum mapa antecipadamente condenado, nem tão-pouco a insistência de uma insolúvel lembrança a fugir. O que dói verdadeiramente é acordarmos um dia e descobrirmos que nada disso teve importância alguma. inédito
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Ícaro
Alisa as penas no canto do parapeito, onde o peito – já sem canto – lhe atiça penas de outros tempos, quando a espera de coisa nova era haste na fúria dos ventos. Alinha-as segundo a cor, o tamanho, a doçura, e com elas desafia o sol, os tiranos, tudo o que sem vontade pura recusa asas em aceitação de danos, vasas ou tortura. Alisa as penas no canto do parapeito, avesso às ameaças de Minos, aos labirintos de Cnossos e seu despeito, ao roncar dos carros rua abaixo: misto de falsidade e destroços. Afaga as asas já concluídas e, encostado ao vidro fosco da varanda, entristece a futura queda, cera e ousadia derretidas, para que assim surjam ilhas, terras verdejantes e todas as coisas prometidas. inédito
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Cabo Verde José Luís Hopffer C. Almada, jurista, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico. Nasceu no sítio de Pombal, Concelho de Santa Catarina, ilha de Santiago, Cabo Verde (1960). Reside actualmente em Lisboa. Licenciado em Direito pela Universidade Karl Marx, de Leipzig, e pós-graduado em Ciências Jurídicas e em Ciências Políticas e Internacionais pela Faculdade de Direito de Lisboa. Associado a diversas iniciativas culturais em Cabo Verde, como o Movimento Pró-Cultura (1986), o suplemento cultural Voz di Letra do jornal Voz di Povo (1986-1987) e a revista Pré-Textos; director da revista Fragmentos (1987-1998); co-fundador da Spleen-Edições (1993) e dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (19891992/1998). Participação regular em colóquios, em diversos países, como Senegal, Cuba, Bélgica, Brasil, Angola, Portugal, Holanda, Suíça, Moçambique. Utiliza os nomes literários Nzé di Santý Águ, Amizé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana (crónica literária e prosa de ficção), tendo outros, designadamente Zé di Sant´y Águ e Alma Dofer, caído em desuso ou sido abandonados” Organizou Mirabilis – de Veias ao Sol (Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e O Ano Mágico de 2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-Verdianas (2008). Publicou À Sombra do Sol, I e II, (1990); Assomada Nocturna (1993), Assomada Nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005); Orfandade e Funcionalização Político-Ideológica nos Discursos Identitários Cabo-Verdianos (2007), e Praianas (Revisitações do Tempo e da Cidade) (2009).
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Mulheres de Verde Como doem as mulheres vestidas de verde! Vestem-se de verde as mulheres da minha dor quando se travestem de mulheres pedintes Vestem-se de verde as mulheres dos meus amores quando se mascaram de poetisas perdidas perduláriaspoetusas carentes pitonisas Como doem as mulheres vestidas de verde! Vestem-se de verde as mulheres dos meus ardores quando fêmeas insones esbeltas amantes ardentes predadoras se transfiguram em húmidas alucinações em mim branco delas esculturais sob a impura a lasciva cumplicidade dos lençóis sonolentos
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Como doem as mulheres despidas do verde! Despem-se do verde da máscara das suas fulgurações as mulheres dos meus alvores quando discretos emboscamos os íntimos medos os seus pavores e devoramo-nos e ressurgimos límpidos fogosos de amor e paixão os risos amplos lúbricos cristalinos
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Passarinha de bico de lacre (Poema de Nzé de Sant´Y Águ) Canta passarinha canta que desde há séculos é rubro o teu bico e já eras púbere de sangue ainda eram as árvores rostos verdes imberbes naufragados com o corpo rochoso da ilha no imenso e azul oceano Canta passarinha canta que já eras sequiosa de alegria e eros sedento da terra libidinosa e éramos quase-cadáveres trilhos fúnebres da esperança silêncios resguardados sob as culatras da cólera quando da germinação primeira do flagelo da terra irromperam nativas as inúmeras máscaras do sol sobre as sombrias feições dos habitantes
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Canta passarinha canta que os cativos se exauriram no triste frémito da insana sina e secaram o séquito do silêncio e entre a pedra e a parda perda da branca cruz fizeram a negra metamorfose da dança dos rebelados Canta passarinha canta que nesses tempos de primeva eclosão dos frutos primeiros e dos ritos da revelação era a lemba-lemba grávido umbigo sangrando das raízes a ancestral semente do verde e tu boca silvestre colorindo as rezas às chuvas e nós anónimos pastores da infância dos sonhos
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Canta
passarinha de bico vermelho lacrado de esperança canta que és persistente azul murmúrio ecoando úbere e fundo rente ao árido rosto da terra passarinha canta!
Canta
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Brasil José Inácio Vieira de Melo nasceu em 1968. Alagoano radicado na Bahia, é poeta, jornalista e produtor cultural. Publicou os livros: Códigos do silêncio (2000), Decifração de abismos (2002), A terceira romaria (2005) – Prémio Capital Nacional de Literatura 2005, de Aracaju, Sergipe, A infância do Centauro (2007), Roseiral (2010) e a antologia 50 poemas escolhidos pelo autor (2011). Coordenador e curador de vários eventos literários, como o Porto da Poesia, na 7ª Bienal do Livro da Bahia (2005) e a Praça de Cordel e Poesia, na 9ª e na 10ª Bienal do Livro da Bahia (2009, 2011). Foi coeditor da revista de arte, crítica e literatura Iararana, de 2004 a 2008. E-mail jivmpoeta@gmail.com. Edita o blog www.jivmcavaleirodefogo.blogspot.com
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Escrituras
Eu chego no silêncio que acende as quatro ferraduras do tempo e encontro a inesgotável jazida, catedral do rubi que me habita. Na madrugada, sonho com os rumos, gesto que inventa o cristal das palavras, surpreendendo as pedras com a chuva a derramar a escritura sagrada. Agora, apenas ando com os pássaros a escutar as belezas desta terra e sustento as parábolas salvíficas com esta medula que me carrega. Escuta, dos confins do longo dia, a noite a chegar – cortina de versos que revelam as estrelas de abril aos meus olhos pasmos de tanto ver.
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Aurora
A liberdade do crepúsculo trémula. Escuto o alarido dos pássaros do Sertão. Debruço-me no ninho do Cosmo. Minhas mãos trabalham no vazio. Minhas mãos trabalham na imensidão. Longa batalha em busca da beleza. Da boca dos pássaros, os violões do Sol. Rezo benditos e grito os nomes da Terra. Contemplo a mansidão do silêncio que voa. As minhas sandálias são feitas de aurora. De meus dedos esplendem labirintos. Meu caminho é o strip-tease da solidão.
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Moçambique Léo Sidónio de Jesus Cote nasceu em 1981, em Maputo, é estudante finalista do curso de Linguística e Literatura na Universidade Eduardo Mondlane, e um dos fundadores do Grupo Arrabenta Xithokozelo. Publicou: Carto Poemas de Sol e Sal (2012)
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Aborrece-me sorrir ou fazer um gesto qualquer com as mãos, por isso, os músculos doem-me e não tardará que escolham outro destino. Escrevo e isso é indiferente às minhas alegrias ou pesares, e não posso fazer nada a respeito. As minhas tristezas tempestuam-me e não sei bem como chorá-las ou libertá-las desse pesar. Bem quisera pôr um fim nisto e parar, mas não posso. O passado é um cadáver a enterrar voluntariamente esquecendo-me, como se cada coisa tivesse o seu lugar. O corpo é uma angústia e posso medir essa quantidade que morre. in Carto Poemas de Sal e Sol
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Da janela quebradiça vejo a ponte que é minha, abandona as conjecturas, apanha os pedaços da vidraça essa mantilha de retalhos. As horas vazias sucedem-se sem aviso e eu estou ameaçado de morte, e a madrugada tem uma existência prematura e o rio corre em direcção ao mar para morrer nele. E tudo apodrece na chuva. E tudo está morto como se lê. in Carto Poemas de Sal e Sol
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Cabo Verde Danny Spínola (Daniel Euricles Rodrigues Spínola) nasceu em Ribeira da Barca, concelho e freguesia de Santa Catarina da ilha de Santiago de Cabo Verde. Cursou Língua e Literatura Portuguesa no Curso de Formação de Professores do Ensino Secundário da cidade da Praia, Cabo Verde, e Licenciou-se em Língua e Cultura Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi assessor do Ministro da Cultura para as áreas da comunicação e da cultura, e é doutorando em Estudos Literários – Literatura Comparada, pela Faculdade de Letras de Lisboa. Publicou, entre outros, Lágrimas de Bronze (E.A, , 1991), Na Kantar di Sol (E.A, 1991); Adon y Éva, (ICLD, 1999); Infinito Delírio, (IBNL, 2002); Evocações (ensaios, IBNL, 2004); Vagens de Sol (IBNL, 2005); Lagoa Gémia, contos em crioulo, (Spleen-edições, 2006) e Ámen Na Nha Xintidu, poemas em crioulo, (EA, 2006); Os Avatares das Ilhas, ficção, (Spleen-edições, 2008); Cabo Verde e As Artes Plásticas (edição especial do Ministério da Cultura, 2009). Foi distinguido pelo Governo de Cabo Verde, em 2005, com o 1º grau da Medalha de Mérito, em reconhecimento pelo seu especial mérito demonstrado no domínio da cultura; e em 2007, pela Câmara Municipal da Praia, com uma medalha de mérito enquanto escritor. Em 2010 foi condecorado pelo Presidente da República com a 1ª classe da Medalha do Vulcão, em reconhecimento pela sua importante contribuição para a promoção e o desenvolvimento da Cultura Nacional.
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Pasárgadas de Sol
I Como água e como sol que somos, De nós mesmos nos alimentamos e procriamos Inventando cascatas de luz no escuro das trevas Concebendo luares de água em inóspitos desertos Construindo pontes, jangadas, céus e paisagens mil. Às vezes passamos, como um sonho, Ou como uma brisa pelas asas de um pássaro; Outras vezes somos um pesadelo, uma alucinação, Numa planície louca que é o outro lado de nós E, para se ser mais explícito, é preciso confessar Que, se por dentro trazemos esse rio, onde nos bebemos e saciamos, Na mesma proporção somos esse Sahel e esse sol insaciável Que nos consomem inteiramente e não nos deixam florescer. Mas, assim como uma ameba, dela mesma se faz, Nós, também, nos completamos – de água e de luz E saímos a voar, girando como uma nebulosa, Ou nos quedamos silenciosos, Qual Oásis sedentário Povoados de conchas e de estrelas celestiais.
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
E assim seguimos o nosso caminho Refrescando a vida, Aclamando o mundo; Melodia nos nosso passos Pomos, De cantos os nossos gestos Enchemos E o verbo encontra-se sempre presente, Na extensão da nossas mãos, pronto para o conforto e a consolação, Esconjurando a desolação e o pranto do rosto do dia in Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea
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II
Fechemos os olhos E abramo-los por dentro Para não nos perdermos No labirinto que somos. Incendiemos O nosso olhar Entre o palpitar Dessas colméias Que Em bemol de coloridas serenatas No coração das ilhas deleitar-se vêem. O nosso sentir É sangue que se desata Sob a derme desses sonhos Longínquos Em farol de vítreas espumas. Entre o ver do nosso olhar E o sentir dos nossos sentidos Um punhal de melancólica melancolia Pousa Com o semblante de um luar que a viver Vive Entre o ver que vemos E o sentir que sentimos Há essa voragem e essa vertigem De sermos uma estátua de luz faminta Exsudando a espelhos em maré de monção e marulho
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
As ilhas De búzios e Vesúvio Ruidosas e estivais se estendem Com a circum-navegação dos tambores em erupção Líricos poros e sedentárias mãos Promessas de raízes incendiadas Ressuscitam Pelas vagas dos anseios e das emoções Navegando, Ao redor do mundo, no âmago do universo. in Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea
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Brasil Donizete Galvão nasceu em Borda da Mata, sul de Minas, em 1955. Cursou a Faculdade de Administração de Empresas de Santa Rita do Sapucaí e, em São Paulo, fez jornalismo na Cásper Líbero. Trabalha como jornalista e publicitário. Tem poemas gravados, colaboração dispersa em revistas, jornais e em antologias. Foi premiado na I Bienal de Literatura e Leitura em Brasília, em 2012. Publicou, entre outros Azul navalha (T. A. Queiroz, Editor, 1988, Prêmio APCA de autor revelação e indicação para o prémio Jabuti), A carne e o tempo (Nankin Editorial, 1997, indicado ao prémio Jabuti (CBL) e ao prémio Ciudad de Madrid, em 1998), Mundo mudo (Nankin Editorial, 2003, indicado ao Prémio Portugal Telecom), e O homem inacabado (Dobra Editorial, 2010, finalista do Portugal Telecom 2011).
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Cisterna
Água parada de poço. Só um feixe de luz da lua vem tocar-lhe a superfície. Não mais se ouve a música da carretilha. Não mais se ouve o balde batendo nas paredes de tijolos e a água a se derramar. Ninguém mais lava o rosto e a bebe com sofreguidão. Água parada de poço: ambos estamos estáticos, imersos no negrume da noite.
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Nigredo
Farão de você uma espécie de sombra, mas uma sombra que deseja a vida e nunca morre. Cesare Pavese
Há muito habitas um reino escuro onde te imaginavas apenas hóspede. Cadê o júbilo ao avistar o mar e quando sentias o cheiro da maresia? No reino escuro não há memória dos dias de luz com sol a pino. Entre sombras guardas o núcleo de tua nódoa, pedra de aluvião. Não te escapas da obra em negro, purgatório infindo de suas feridas.
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Moçambique Luís Carlos Patraquim nasceu em Lourenço Marques (actual Maputo), Colaborador do jornal A Voz de Moçambique, refugia-se na Suécia em 1973. Regressa a Moçambique em 1975. Membro do Núcleo Fundador da AIM (Agencia de Informação de Moçambique) e do Instituto Nacional de Cinema (INC), de 1977 a 1986, como roteirista, argumentista, e redactor principal do jornal cinematográfico Kuxa Kanema. Criou e coordenou em conjunto com Calane da Silva e Gulamo Khan a Gazeta de Artes e Letras (1984 a 1986) da revista Tempo. Actualmente reside em Portugal, foi consultor para Lusofonia do programa Acontece, de Carlos Pinto Coelho e colabora com o programa A Língua de Todos, comentando assuntos africanos, com enfoque especial sobre Moçambique no programa Debate Africano da RDP-Africa. Publicou, entre outros Monção (1980), O Osso Côncavo (2005), Pneuma (2009), A Canção de Zefanias Sforza ( 2010) e Matéria Concentrada – Antologia Poética ( 2011).
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Saga para Ode é preciso a distância para chegar onde o poema parte e se reparte com cinzas nocturnas e a madrugada nas mãos é preciso o lugar ainda que doa a emoção azul de sangrar por dentro com o pensamento na galáxia terna do olhar é preciso tudo como haver morte e flores na raiz ao vento dos braços inteiros que se deram por um nome uma ideia rubra nos lábios da liberdade é preciso ver musgo a alegria até ás ilhargas da tua imagem garça a deslizar e sorver a água na exuberância lustral dos teus seios é preciso a insurrecta solidão dalguns dias quando os arquipélagos de ser dizem barco e os teus passos espreitam e tímidos percorrem o horizonte coral do silêncio é preciso inventar-te porque existes enquanto os deuses adormecem nas paginas dos livros e o real é a infinita medida do canto como acender as luzes ao meio-dia e no mais sol de pétalas abertas verter a seiva a singrar na terra é preciso, meu amor, percorrer o tempo que nos deram suspensos onde estamos nas pálpebras do verão in Matéria Concentrada – Antologia Poética
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Gulamo Khan
Um pássaro caiu Vindo da espiral de um búzio! * Devolvo, contigo, a macerada carne Ao labirinto das formas E canto o vermelho dos teus panos, Virgem das sensações. Corpo exterior a toda a gramática, Nostálgica era a semente onde O Tigre te contemplava. Kubla Khan Em Xanadu da Mafalala E agónico tropel de cavaleiro mongol Enlaçando a águia, A gazela pulsando E o búzio recolhendo o mar.
*Rainer Maria Rilke, A Terceira Elegia in Matéria Concentrada – Antologia Poética
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Angola Abreu Paxe é mestre em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa, no Instituto Superior de Ciências da Educação, ISCED de Luanda da Universidade Agostinho Neto (UAN). Licenciou-se, na especialidade de Língua Portuguesa na mesma instituição, onde é docente de Literatura Angolana, Introdução aos Estudos Literários e Teoria da Literatura. É Membro da União dos Escritores Angolanos (UEA), na qual é Secretário para as Relações Exteriores. Publicou os seguintes livros de poesia A Chave no Repouso da Porta, (INALD, 2003) que venceu o Prémio Literário António Jacinto e O Vento Fede de Luz, (UEA, 2007). No Brasil, colabora e foi publicado nas Revistas Dimensão (MG), Et Cetera (PR), Comunitá Italiana (RJ), nas Revistas Electrónicas Zunai e Cronopios (SP), na Antologia Ovi-Sungo, 13 poetas de Angola, Org. pelo Claudio Daniel (SP),” Lumme, 2007” e na Revista Literária Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro (MG). Em Portugal na Antologia Os Rumos do Vento, (Câmara Municipal de Fundão, 2006). Foi membro da comissão organizadora e curador da primeira bienal internacional da poesia realizada em Angola.
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
1. Muna ulunga da brevíssima existência
sinto em mim oposto ao medo - lá para dentro minha pedra (brevíssima existência) -, o viver silenciado como se desta vez a existência abrisse a alma que o guia muna ulunga a calma mas próxima função conduz-me anunciando a sedução a noite ganha razão como ferida a glória no duro labirinto muito perto do sofrer morre em mim oposto a amargura a doçura da vida espumas de luz lá para diante: o fracasso, a desonra. que importa a vitória talvez sobre os dias porque alguém me esmaga a cidade pó só pó sobre os ombros da morte o vazio efectivamente intervalo de noites a brevíssima, inacreditável existência (a pedra) já nada seduz in Projecto poético Nkalu a maza
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6. Em sexo livre a língua
entre as trevas e a seiva da sintaxe abundam palavras inofensivas nada dizem à pátria por imitação os impérios renovam os aspectos os tempos os modos outro soldado emergia unia a habitação a fonética e a fonologia ao sol de casa pirâmides e intervalos o corpo cego texto regenera cidades ppor visitar falida interacção as meninas árvores nocturnas com portas e janelas polares tudo treme sobre o papel a mesma travessia dispersa tudo in Projecto poético Nkalu a maza
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Portugal Luís Ferreira nasceu no Barreiro, em 1970, e vive actualmente em Alcochete. Publica em diversos sites ligados à escrita e às artes. Obteve menção honrosa no XIVº Concurso de Poesia da APPACDM (Associação Portuguesa dos Pais e Amigos do Cidadão com Deficiência Mental) – 2009. Publicou: Mar de Sonhos (2007), Rio de Sal (2008), Momentos… (2009), Rosas & Espinhos (2010), O céu também tem degraus (2011). A sua poesia encontra-se publicada em diversas colectâneas como Nas Águas do Verso 100 autores/100 poemas (2008), Entre o sono e o sonho, volume 3,(2012), Primeira Antologia “UNIVERSUS” (2012), Poetar Contemporâneo, volume 2 (2012).
Sonhos Entre os sonhos Liberto as asas, Rasgando o infinito Entre o meu voo de desejo. Sou, Um pássaro alado Que viaja no manto azul celeste Até onde a face do céu Levar o meu ser. Nada mais… Além do meu destino.
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Ilusão
Que fazer das minhas asas, Moribundas e sujas, Secando o voo do meu pensamento No triste pó que me tapa. Na inútil vertigem Jaz o corpo no chão, Na pequenez dos sentidos Que esconderam o meu nome Aquele… pelo qual me tratavam. Afinal nada sou… Será que fui algo, algum dia? Apenas um espectro sem nome De face despida Que caminha na cidade.
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Moçambique Il Bonde ( Macvildo Pedro Bonde) inicia-se na arte literária em Maputo em 2000, integrando mais tarde os movimentos de declamação de poesia. Foi membro do grupo de Canto e Dança Relâmpago, em 1998, no bairro do Aeroporto, integra o movimento Arte em movimento na Casa Velha, em 2002, e forma com Mbate e Boaventura o projecto Jovens e Amigos da Cultura (JOAC) entre 2003-2004. Faz parte dos jovens poetas e declamadores da AEMO no mesmo ano. Em 2004 é convidado para fazer parte do grupo Arrabenta Xithokozelo.
Ontem sonhei outro dilúvio trazendo o resto da espécie salva na canoa do Noé. – Um par de deuses e anjinhos, e vi-me alegre, com a lembrança do primeiro golo da infância. Então, as espigas nocturnas se quedaram ao destino, pois, nada se perdeu no desabrochar. A terra seguia na sucessão dos dias, trazendo consigo a sombra da morte e uma esperança ténue numa noite que não fora. E o crânio enchera-se-me de nódoas enquanto, o sangue escorria sob o joelho cravado das faltas. Quando despertei, o meu destino estava no fio de questões efémeras, e o vazio palpitava de fome. Quero em mim o alvor, o cântico do devir, que não se cale ao sol, guardião que entoe o silêncio. inédito
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O nada pode seguir-me. Eu curvo os meus neurónios à preguiça, deusa poética dos peregrinos da noite. O Nada! Paira em mim o sonho de mártir, e sento o meu corpo sobre o soalho, imaginando-me a beber chá com golos maiores que a chuva à janela. – Confessarei meu pecado ao vento, perto da gaivota solitária que cantarola à hora da criação! E, o que será o Nada oculto ao sol? ... O céu adiante desfaz-se e fico com os grãos de pó. As sombras são incómodas como os cabelos que coloquei no átrio dos pensamentos. Agora, as árvores correm ao vento, e as lágrimas do firmamento não cessam, apoderando-se da minha jangada na encosta da cidade. inédito
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Portugal Maria do Sameiro Barroso, nascida em Braga, licenciada em Filogogia Germânica e em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Lisboa, é poeta, tradutora, ensaísta, investigadora. Tem colaboração em inúmeras antologias e revistas literárias, em Portugal e no estrangeiro. Vencedora de vários prémios, entre os quais o Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica 2009, com o original Uma Ânfora no Horizonte. Tem nove livros de poesia publicados. O seu penúltimo livro Poemas da Noite Incompleta, foi publicado no Brasil, Editora Escrituras, São Paulo, 2010. O poeta Ángel Guinda prepara uma antologia da sua poesia, traduzida em castelhano, pela Editora Olifante, Madrid, em 2013, e a Editora Labirinto vai dar à estampa o livro “Luas de Gengibre”. É Vice-Presidente do Pen Clube Português e delegada do World Poetry Movement em Portugal.
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Portas brancas
Escrevo de uma idade de ouro, antiga como a infância, umbrosa e carregada como um jardim de Hespérides. E tudo o que retenho é sombra tresmalhada, pedras, vidros rodeados de aroma, orquídeas de veludo, renques de âmbar, peixes que rolam, barcos, ilhas sobrevivendo, entre camélias, portas brancas, esfacelos de luz, sobre pássaros demiurgos sobrevoando os pântanos de outrora. inédito
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Oriental
A noite é uma ilha negra, égua criadora, esplendorosa estrela de ornamentos e pavões, limões de areia enleando najas/serpentes numa batalha que pode esmagar os sentidos, ampliando o silêncio na terra que Ananta sustenta em seus anéis de limbo e fertilidade, ostentando o céu, o sol, antídotos para um veneno, sangue e carmesim, janelas sobre uma paisagem interrrompendo uma mão imortal sobre os ombros. inédito
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Angola José Luís Mendonça nasceu em 1955, em Mussuemba, no Golungo Alto, Kwanza-Norte. Jornalista de profissão e jurista de formação. Publicou, entre outros, Chuva novembrina (1981, Prémio Sagrada Esperança/INALD – Instituto Nacional do Livro e do Disco), Respirar as mãos na pedra (1990), vencedor do Prémio SONANGOL de Literatura; Se a água falasse (1997, primeiro prémio dos Jogos Florais do Caxinde), Quero acordar a alva (1996, Prémio Sagrada Esperança/INALD). Em 2005, o Ministério da Cultura atribui o Prémio Angola 30 Anos à obra Um Voo de borboleta no mecanismo inerte do tempo. Publicou também duas antologias de poemas em Portugal, nomeadamente Um canto para Mussuemba (2002) e Africalema (2011).
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Minha língua taciturna serpentina Minha língua taciturna serpentina ao redor do teu sexo a fragmentação causal da ideia do brilho perene que um diamante lunda hoje vende na loja Cartier de Paris. Te (e)laboro sensações de outras eras na pesquisa inacessível à semântica de um protão dentro do qual talvez foste substrato das espécies entre as cinzas flutuantes do universo. Te sentes ascese moribunda estrela te sentes prenúncio de papel de seda entre os canais contritos das veias acesas num empório de ternura estearina e viço jamais concebido à face da Terra. Rios de canela assomam à janela do teu corpo nu um bronze de esterco de luz de néon construindo as brânquias de sonhar a prata das vogais concisas. Uma ausência de navios no alto-mar agridoça os teus olhos. E enquanto ainda os teus olhos rasos desse brilho doce mancham as vogais eu lambo essas tardes maternais feéricas de rebentação e quissanges de chuva de metal tocado pela evolução das espécies na medusa do teu sexo. in Esse país chamado corpo de mulher
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Teoria económica do afecto
O meu olhar comemora a acumulação primitiva do capital afectivo quando desvenda o potencial marítimo da tua bunda onde se agitam deuses instrumentais. Nos meus olhos o dia sempre contorna as leis da natureza. Assim me tem sobrado tempo à brava para construir pedra a pedra as fábricas de areia do teu púbis ou o ondular dos navios nas tuas ancas até registar nos livros contabilísticos da memória o sonho de alguma gaivota que anuncie à luz evanescente do sol pôr o mavioso ícone da tua bunda. Sobre ela decomponho beijo a beijo a principal teoria económica do afecto que redunda na desconhecida riqueza das nações metálicas hipóteses de saliva tépida extraordinária ciência da produtividade do sémen desalojadas pelo gemido aduaneiro do teu corpo fundeado na areia da praia morena. in Esse país chamado corpo de mulher
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Cabo Verde Paula Virgínia Andrade Vasconcelos Lopes, (que assina como “paula”), nasceu em 1966, na Freguesia de Nossa Senhora da Luz, na ilha de São Vicente, em Cabo Verde. Começou a escrever poesia e prosa aos 9 anos de idade. Fez jornais de escola, participou em programas de rádio, publicou no Voz di Povo, Sopinha de Alfabeto, Folhas Verdes, Ponto &Vírgula. Começou a tirar fotografias aos 13 anos. Estudou medicina em Lisboa onde também fez a especialidade de Saúde Pública. E continuou a escrever prosa, poesia e crónicas no jornal O Cidadão, A Semana, Artiletra, entre outros. Tem viajado e trabalhado em vários países do mundo, mantendo sempre uma ligação umbilical à sua ilha de origem. Continua a escrever e a tirar fotografias. Actualmente vive na parte mais luminosa da cidade de Lisboa. E olha. E escreve. Com uma câmara de bolso e uma caneta azul quando calha.
As palavras Sobre a esquina do teu sonho a morte dos capítulos a reinvenção dos livros um abraço infinito o medo e os fantasmas que se vão com as historias emprestadas. E entre mãos a leve textura das palavras. in Cabo Verde: antologia de poesia contemporânea
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Harmattan
Chegaste tu poeira em bruma secando o ar e quase o mar. Armo um barco para te enfrentar estiro cordas e velas e sem falar a navegar me fico. in Cabo Verde: antologia de poesia contemporânea
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Moçambique Mia Couto nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Foi jornalista. É professor, biólogo, escritor. Está traduzido em diversas línguas. Entre outros prémios e distinções (de que se destaca a nomeação, por um júri criado para o efeito pela Feira Internacional do Livro do Zimbabwe, de Terra Sonâmbula como um um dos doze melhores livros africanos do século xx), foi galardoado, pelo conjunto da sua vasta obra, com o Prémio Vergilio Ferreira 1999 e com o Prémio União Latina de Literaturas Românicas 2007.
Idades No início, eu queria um instante. A flor. Depois, nem a eternidade me bastava. E desejava a vertigem do incêndio partilhado. O fruto. Agora, quero apenas o que havia antes de haver vida. A semente. in Idades cidades divindades
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A espera
Aguardo-te como o barro espera a mão. Com a mesma saudade que a semente sente do chão. O tempo perde a fonte e a manhã nasce tão exausta que a luz chega apenas pela noite. O relógio tomba e o ponteiro se crava no centro do peito. Fui morto pelo tempo No dia em que te esperei. in Idades cidades divindades
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Portugal Alberto Riogrande, pseudónimo. Estudou na Universidade de Coimbra. É professor na área das Humanidades. Viajou pela Europa e norte de África. Descendente de agricultores, mantém viva a matriz ancestral e o encantamento deslumbrado pela Mãe-Natureza. Admirador do mundo feminino, é um apicultor apaixonado. Nasceu numa quinta, entre duas montanhas, à beira do M ondego. A par com as palavras incendiadas, o rio, a mãe e a natureza correm pelos seus poemas. Viveu durante longos períodos na Provença, Luxemburgo, norte dos Balcãs e em Paris, e também, durante quatro anos, abraçado pelo oceano, na ilha do Pico. Tem cinco irmãos e dois filhos, a sua mais bela e admirável criação.
Antologia Poética
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Minuto
Passaste por mim a correr, raio abrasando o meu corpo ávido desse toque, mas que importa se nesse minuto, já árido de ti, fui o núcleo a arder dessa corrente, enxurrada torrente em lava, desse infindável choque. in A lua no teu umbigo
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
As tuas mãos
As tuas mãos reinventam o meu corpo cansado de esperar pelos teus dedos, quando o percorrem passo a passo, repetidamente , sem mostrar enfado, tristeza ou cansaço, em silêncios devagar, na cadeira de balouço onde me estendo me alongo até acordar e te falo adormeço e te ouço os silêncios e os passos do teu andar. E repetidamente é nelas que viajo me partilho me conjugo me abro, nas tuas mãos errantes, apressadas como o vento a ulular devastado em febre. Andam versos deslumbrados a povoar a minha mente quando os teus dedos cansados, subitamente despertos e empolgados, vêm até mim, sonhadores, e me percorrem ao de leve. in A lua no teu umbigo
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Finlândia Rita Dahl nasceu em 1971, em Vantaa, Finlândia. É escritora e jornalista freelancer e publicou os livros de poemas Kun luulet olevasi yksin (Loki-Kirjat, 2004), Aforismien aika (Poesia, 2007), Elämää Lagoksessa (ntamo 2008), Aiheita van Goghin korvasta (Ankkuri 2009), Bel canto nieriöille (Kesuura 2010). Também publicou um livro de viagem sobre Portugal, O Encantador de Milles Escadas (Avain 2007), uma colecção dos artigos Kuvanluojat das artistas visuais finlandesas que morreram jovens, poetas jovens finlandeses e escritoras internacionais (Kesuura 2009), A liberdade da palavra finlandizada (Multikustannus 2009) e o livro de viagem, Savukeitaan Brasilia (Savukeidas 2011). Foi responsável pela revista de poesia Tuli & Savu, em 2001, e também pela revista cultural Neliö (www.page.to/nelio). Traduziu uma antologia da poesia dos anos 1970 de Alberto Pimenta (Palladium-Kirjat). Atualmente prepara uma antologia de poesia portuguesa contemporânea, e editou uma antologia da poesia nova finlândesa em português no Brasil, lançada em 2011 pela editora Confraria do Vento. Mantém o blog www. arjentola.blogspot.com
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
A rosa, também a rosa
A rosa, também a rosa, Lisboa não é perfeita sem que floresça a rosa em cada estação do ano, esta rosa não floresce em qualquer lugar mas no meio do Rossio, os espinhos dela tocam ninguém tão suavemente como todos os passageiros, esta rosa é rosa de Lisboa, ela é todos os sentimentos ternos que florescem nesta cidade, ela é a rosa dos bandidos, das prostitutas e dos traficantes, a rosa que acaricia com os seus espinhos quem quiser, esta rosa que não zomba, não odeia, ela recebe quem quiser apesar do cor a pele, ela é a rosa da amizade e da ajuda, por isso ela floresce no meio do Rossio e esta rosa é a rosa dos loucos é dos narcómanos, ela vai ser entregue ao querer tornar-se um amigo do forasteiro, ela é a rosa da amizade In O Encanto das Milles Escadas – Voltas da Cultura em Portugal, Avain 2007,tradução Teresa Salema
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El Corazón del Tiempo
O coração do tempo é feito das folhas em forma de meia despedaças pelos sapatos da caminhada, machucadas bolas do papel amarratados tronos falando na noite verde, a haste do feijão, a vagem e o João a vontade e os colibris faladores do céu; é feito deles e muitas outras coisas no coração do tempo. O coração do tempo fala só para quem não sabe porque eles que sabem, já não têm tempo para o ouvir. O tempo em si mesmo já passou porque não pode ser preso num molde escorre sempre pelos desvão escapa até o horizonte mais longe, não pode ser domesticados, como o coração pode ser impedido de bater mais vezes, o coração que já perdeu a esperança, o nome, o espelho e a imagem, porque o coração é sempre novo, em cada nova batida, atravessa montanhas mesmo quando quem o porta dorme, não leva dentro de si uma só imagem que fosse mais valiosa que outra, é um coração democrático, bate, bate, bate, quando o sol escurece no céu e o canto do ultimo pássaro se cala ao longe, contudo bate sem pausa até quebrar-se uma pedra, uma cadeia, uma imagem, um imaginário, qualquer coisa que faça o vento soprar as nuvens movimentar-em-se, uma pessoa esquerecer-se, lembrar-se o tempo quando a floresta era a casa do coração vivia ao céu aberto com os passáros até começarem os preocupações… Tradução Rita Dahl, revisão Jorge Melícias
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Cabo Verde António de Névada, poeta cabo-verdiano, nasceu em 1967. Viveu a infância e fez os estudos liceais em Cabo Verde (Mindelo) e os estudos universitários em Coimbra. Começa a publicar em periódicos literários em fins dos anos 1980. Durante os primeiros anos da década de noventa faz teatro universitário em Coimbra. Em 1993, é editado pelo ICLD (Instituto Caboverdeano do Livro e do Disco) o seu primeiro livro de poesia, Acto primeiro ou o desígnio das paixões. Em 1999 lança, pela Angelus Novus Editora, o segundo livro de poesia, Esteira cheia ou o abismo das coisas.
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Canto IV da canção “Vozes em Dissonância ou apenas Vozes” (pertencente ao poema Cânone Silábico ou uma Canção de Amor,) Canto IV Fui navegador e dobrei o mundo para lá do Adamastor. Nem os versos de Camões me valeram nem as líricas E as rimas em redondilhas, labutei o inelutável e contra Zeus Perdura a luta e o luto, Confúcio está coxo e prostrado Na sua poltrona, Picasso já não pinta máscaras africanas E pouco me importa a orelha de Van Gogh! Cristo, sem a varinha e o condão, já só faz milagres por encomenda, E esqueceu-se da partilha do vinho e do pão! Ainda assim, há Quem crê que a essência do homem nasce da sua vocação do amor, Que o segredo da vida seja o mel que colhemos do melhor favo, Que nada faça mais sentido que a simplicidade de nos recolhermos ao aconchego da lua. Vimos o albatroz debalde fulminado em pleno voo E o arcanjo tocando a lira e o banjo cair do céu abaixo E estatelar-se no chão! Ó homem chega a ser O que és – diria Píndaro, indelével e assaz… A memória é a ínfima parte da alma que recolhe a pedra do tempo! Entre o vazio e os escombros restamos nós, e não há terra firme Nos sonhos que nos assombram! No lugar da perenidade os braços
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
E o cansaço, a cadência longa e a louca insinuando-se à morna e ao tango, O flamengo dedilhando a voz rugosa e o fado e a milonga desapaixonada, O peito pulsando esta dança e a música em crescendo pelo caminho da solidão. Sobre a alma do nómada a contemporaneidade e a coetaneidade Baralham-se numa orgia caótica! Certamente, não será o mundo Que doaremos ao mundo! Que a morte nos não doa e a vida doendo Se encarregue da dor que permanece na usura e no âmago das coisas! O latido distante da cadela em cio fere os ouvidos do violinista! (atrás dela seguem cães famintos…) No limiar da banalidade, as pontas cintilantes da constelação, Os gritos e a alegria das crianças devolvem ao quotidiano O barro lamacento e as casas caiadas! E desfiando o novelo Das palavras o eco labiríntico prevalece na dramaturgia coeva. Não se tratam de histórias ou factos, dos lugarejos de Roma quando visitei Fellini! Não encontrei em viagem alguma a ponta ao fio. Vou desfazendo os membros e os dedos num arabesco, As teias e os bordados que deflagram em formas barrocas, A mente e o ser, a meada completa e o novelo à alma. As palavras ocas, doravante, o fio sem ponta que lhe pegue! Eis a cidade e o caos que habito, Basquiat não me indicou o caminho
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Nem as portas da via latina, decompus os cacos que soçobram da composição E escrevo a toada e o canto onde a vida deposita o seu peso incontestável! Que amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza…* *Albert Camus
in Cabo Verde: antologia de poesia contemporânea
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Brasil Camila Vardarac nasceu no Rio de Janeiro, em 1987. Cursou cinema. Tem poemas publicados em revistas digitais e nas antologias Todo começo é involuntário – a poesia brasileira no início do século 21 (Lumme Editor, São Paulo), Pequena cartografia da poesia brasileira contemporânea (Edições Caiçara, São Paulo), Escuela Brasileña de Antropofagia (Kodama Cartonera, Tijuana).
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I–
É incessante o som dos cascos que antecede a tua chegada. Nesse tempo de aguardo o sono queima pelas bordas. Eu masco vidros, e sorrio sangue em meio ao cerco das gardênias. Sou a loucura aprimorada por uma obsessão. Prometo-te: desnudar-me-ei para ti sem que a inocência caia com meu vestido. inédito
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
II –
Levito sobre o fogo da culpa com uma estrela cravada entre os olhos porque a dor é a condição pela qual existo em liberdade retorno sempre a ti para o alívio nunca me encontrar. inédito
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Portugal Marília Miranda Lopes nasceu a 22 de maio, no Porto. Poetisa, crítica literária, dramaturga e compositora. Formouse em Línguas e Literaturas Modernas (variante de Estudos Portugueses) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.É professora de Língua Portuguesa do Ensino Secundário e formadora pelo Conselho Científico Pedagógico de Formação Contínua nas áreas das Didácticas Específicas e das Oficinas de Escrita – Poesia e Teatro. Foi bolseira dos Serviços de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian. Publicou: Poesis em Oásis (poesia, 1994), Framboesas (Teatro, 1996), Geometria (poesia, 1998), O Escudo Invisível (conto da antologia Histórias Tiradas da Gaveta – edições Tellus); O mais belo segredo do mundo (poema da antologia “Pequeno Cancioneiro de Natal, 2000); Maria da Silva, pastora e rainha (peça representada pela FilandorraTeatro do Nordeste; 2002) Templo (poesia, colecção Tellus, nº10; 2003); Duendouro – Era uma vez um rio… (Teatro, 2007 - Edições Afrontamento); Aqua (conto incluído na antologia “Pegadas”, editado pela Q de Vien, com autores portugueses e espanhóis); e “Castas” (Poesia, 2012 - edições Q de Vien Cadernos da Porta Verde do Sétimo Andar).
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Prelúdio
Este prelúdio folhas passas cascas de pêssego Meto um bago à boca nas noites de lareira acesa Noite lá fora uma escuridão de socalcos bichos revolvendo o mosto do pensamento À cabeça vêm capões Acender o meu lume este instante Chego do palco negro aconchego-me trinco rosários de figos Enquanto não abrem valados no meu corpo. in Castas
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Engrenagem
A vinha é uma máquina na labuta dos dias Na engrenagem há gente faminta enterrando ervas daninhas O bago é o sangue na boca do lavrador enquanto a sinistra lhe faz sombra e lhe revolve os molhos de junco Pensamento moscatel ainda trincado por essa corja de gente governante. in Castas
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Moçambique Japone Matias Lourdel Caetano Agostinho, assina Japone Arijuane. Membro activo e fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, e da Revista Literatas; além de poeta é romancista e ensaísta. Zambeziano. Formando em Ciências de Comunicação, habilidades em Publicidade & Marketing, na Escola Superior de Jornalismo. “Escrevo desde que aprendi a escrever, mas mesmo assim continuo aprendendo”.
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Contas
A luz da minha poesia não foca a mesa, requebra-se na vertigem de uma menstruação machista da jihad dos deuses que lutamme adentro da silhueta diária. E fazem do meu corpo arena onde harpas e farpas construem o escudo de uma luta de gladiadores africanos siameses pelo medo que as minhas estrofes suburbanas, tenazes, soerguem na mesma chacinada vontade.
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A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Pode ser que amanhã seja tarde
Pode ser que amanhã seja tarde Antes que haja essa incerteza aparte os meus sentidos no sarcófago das suas coxas. Deixe-me calcinado no seio da sua lembrança e deixe que eu te digo tudo, tudo quanto menos foi dito em todos compêndios de amor!, tudo mais do que Craveirinha cantou a vida toda à Maria.
Pode ser que amanhã seja tarde Mostre-se aos mistérios dessa vida que nascemos para dividir a matemática dos nossos problemas de amor. Mostre-se freguês no mercado da minha vontade a venda.
Pode ser que amanhã seja tarde Vem…!? vaticina a pedra atirada na direcção da nossa cidade de plumas de ar, forjada a delírios e suspiros, em arranhacéus de afectos e pavimentada em cristais de carinho que não descrevem a sensação das pontas dos seus seios em meu peito abutre.
Pode ser que amanhã seja tarde Antes que impere essa incerteza, coroe a rainha da sua púbis para reinar diante desse meu território de bestas de sémen selvagem Coroe de diademas de excitação e a corrente o cio dos escravos que existem em mim. Pode ser que amanhã seja tarde… tarde em demasia para que sempre seja tarde!
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Timor-Leste Maria Ângela Carrascalão nasceu e vive em Dili; Timor-Leste.
Mulher Menina Escondes-te na tua lipa não sorris. Receias mostrar tua boca vermelha de bua e malus1 plantas teus olhos no chão Em nahi biti2 formal Negoceiam teu dote Cinco búfalos dez cavalos Três morténs3 Ulsuku de prata Uma pataca mexicana... Amar ou não amar Que importa? Esquece-o! Comerciada mulher menina vales bom preço! Combina-se tua festa, dão-te ordens É a hora! Aparece agora! Areca e bétel Estender a esteira onde se desenrolam as conversações preparatórias do barlaque 3 Colar de coral raro e de grande valor 1 2
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Sorri, levanta teu olhar do chão! Batem palmas olham-te és um belo exemplar! Adivinham tua alma profunda. Tímida teus olhos brilham. Choras para ti só Dizes adeus à vida! Olhas e choras, em silêncio sofres te dás sem gozo, com dor A teu senhor serves e obedeces em silêncio te submetes emudeces. Geras teu filho, dás-lhe vida em silêncio morres... Timor, Agosto de 2005
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Angola Frederico Ningi nasceu em Benguela, a 17 de Fevereiro de 1959. Fez os estudos primários e secundários na cidade natal e em Luanda realizou estudos de jornalismo. Integra uma das quatro tendências em que podemos analisar a poesia da geração dos anos 1980. Faz parte de grupo de poetas iconoclastas, que além de perturbar a estrutura morfológica das letras e palavras com o jogo de maiúsculas, a presença de termos em línguas nacionais, introduz uma ordem visual nos seus textos, combinando fotografia, grafismo monocromático e gravuras manipuladas digitalmente. Dedica-se igualmente à fotografia cuja actividade desenvolve de modo quase profissional. É membro da União dos Escritores Angolanos e da União dos Artistas Plásticos.
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Portugal Jorge Melícias nasceu em 1970. Poeta e tradutor, é autor de Aqueles que incendeiam os telhados (1996/1998,inédito); Iniciação ao remorso (2004, Cosmorama); A luz nos pulmões (2000, Quasi); O dom circunscrito (2003, Quasi); Incŭbus (2004, Quasi); A longa blasfémia (2006, Objecto cardíaco); Disrupção (1998/2008 – (poesia reunida, Cosmorama) e Agma (no prelo). Tem poemas traduzidos para o espanhol, o inglês, o finlandês, o servo-croata, o letão ou o lituano e publicados em várias antologias e revistas, nacionais e estrangeiras, como a Inimigo Rumor, A Confraria do Vento, a Zunái ou a Coyote (no Brasil), a Literat ra ir Menas ou a Naujoji Romuva, de Vilnius, a 26, studies of poetry and poetics, ou a 2nd Mind, de São Francisco. Uma recolha de três dos seus livros, sob o título Disruption, saiu nos E.U.A, pela editora Durationpress, de Los Angeles.
A chacina é uma indução à espera do seu tempo. Sobre esse propósito estabeleço-me unívoco. E onde cães e homens disputam a carniça à lisura dos ossos inscrevo a consolação. in Agma, inédito
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Vi os campos inçados pela improbidade. Os justos como plainas alucinadas sobre a incontrição das esquírolas. E o desespero era uma forma de beatitude. in Agma, inédito
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Cabo Verde Dina Salústio (Bernardina de Oliveira Salústio), nasceu em Cabo Verde, Ilha de Santo Antão, em 1941. Tem formação como professora primária assistente social e e em jornalismo. Publicou Mornas eram as Noites (contos, 1994); A Louca de Serrano (romance, 1998); Estrelinha Tlim Tlim (infanto-juvenil, 2000), entre outros. Está presente em algumas antologias cabo-verdianas e estrangeiras. Sócia-fundadora da Associação dos Escritores Caboverdianos. 1º Prémio em literatura infanto-juvenil (1994), Cabo Verde e 3º Prémio em literatura infanto-juvenil dos PALOP, Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (2000). Galardoada pelo Governo de Cabo Verde com a Ordem do Mérito Cultural (2005) e com a 1ª Classe da Medalha do Vulcão por Sexa, o Presidente da República de Cabo Verde em 2010.
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Por que havias de chegar num dia enevoado de bruma nessa manhã de vento forte que me roubou a (minha) máscara? Por que havias de entrar num dia de porta aberta e me surpreender nua a um canto tiritando procurando confusa os trapos para me tapar? Por que nesse maldito dia em que desprevenida lavava uma saudade e arrumava a um canto um tempo que me doía? Por que me terias que abraçar e me chamar mulher e abrir a janela e inventar um sol sussurrar uma canção? Para quê? Se foi o tempo de um cigarro? Praia, 1986 in Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea
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Estavas do avesso. Despudoradamente. Nas mãos tinhas uma pedra e apontavas para mim. O cheiro embaciava os vidros maculava o tempo amachucava o corpo Tapei o rosto engolia a dor interroguei a vida Tardes de silêncio anos de mãos dadas juras de mulheres cumplicidade de fêmeas eram música para esquecer defesas amordaçadas não escondi o choro quando a porta bateu. in Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea
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Angola Gociante Patissa nasceu na comuna do Monte-Belo, município do Bocoio, província de Benguela, em 1978. Formado pela Universidade Katyavala Bwila, ex-Agostinho Neto, na especialidade de Inglês do curso de Linguística, é desde 2009 membro efectivo da União dos Escritores Angolanos. Colabora nos blogs http://angodebates.blogspot.com/ e http:// ombembwa.blogspot.com/, onde divulga o que recolhe da tradição oral africana. Tem participação nas antologias III Antologia de Poetas Lusófonos, Folheto Edições, Leiria, Portugal 2010; Conversas de Homens no Conto Angolano – Breve Antologia (1980 – 2010), União dos Escritores Angolanos, Luanda, Angola, 2011; Balada dos homens que sonham - Breve Antologia (1980 – 2010), Clube do Autor, Lisboa, Portugal 2012. Publicou os livros Consulado do Vazio (poesia), KAT–Consultoria e empreendimentos, Benguela, Angola, 2008; A Última Ouvinte (contos), União dos Escritores Angolanos, Luanda, Angola, 2010; Não Tem Pernas o Tempo (romance com edição em curso pela União dos Escritores Angolanos).
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Viagem com asas da noite
Às vezes basta a palavra emprestada às asas da noite para ponte no gélido veludo do sofá Às vezes basta um gesto lembrado na pluralidade da voz um foco, um parto A palavra é a própria mulher cada sintonia, uma viagem e viajar é elevar-se à altura do tempo (à Filomena Maria, Rádio Benguela) inédito
Antologia Poética
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Quase voo
verbo no infinitivo ave liberta sexo dos adjectivos e no poiso enquanto chove fecunda cansaço do tempo não voado. in Guardanapo de papel, inédito
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Brasil
Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em 1962, em São Paulo, onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, cursa atualmente o doutorado na mesma instituição. É curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo. Publicou 20 livros de poesia, ficção, antologias e traduções, entre eles Figuras Metálicas (Perspectiva, 2004) e Fera Bifronte (Lumme Editor, 2010). É editor da revista literária Zunái. Participou de diversas antologias de poesia brasileira contemporânea no Brasil e no exterior, entre elas Pindorama — 30 Poetas de Brasil, organizada e traduzida por Reynaldo Jiménez (revista Tsé Tsé n. 7/8, Argentina, 2001); New Brasilian and American Poetry organizada por Flávia Rocha e Edwin Torres (revista Rattapallax, no 9, Estados Unidos, 2003) e Antologia comentada da poesia brasileira do século XXI, organizada por Manuel da Costa Pinto (Publifolha, São Paulo, 2006).
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Anticabeça (i)
apartado de mim; ferocidade; esse olhar atravessando folhas; cegasse o vento reptante: replicantes jias, alinhavando deserções. entre breus, seara difratada onde retráteis garras do ínfero. ao modo de borrão: ambíguo desgarre, em acúmulo áspero de grafias. escavasse desde o centro em desmedida, e anulasse as cores da paisagem. *** ambivalência do inseto que se desenha íbis, amêijoa, escaravelho, folhas ou fíbulas, fúrias ou órbitas insustentáveis de outra orla, outro círculo plasmático. tudo está no dorso da pupila. Para Wilson Bueno, 2006
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Escrito em flor
paisagem musical onde o amarelo dá sentido ao vermelho: esta é uma canção de amor. * lábio (pétala) submerge em topázio-tigre, até sangrar as ilhas do desejo. * esfinge do espelho ou cegueira: (real) imaginária. * uma flor (a lebre), partículas do mundo nas retinas. * cada abelha sonha uma rosa imantada. *
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violetas indagam onde trópicos noturnos, ritmos bruxos, areias núbeis de contato. * no avesso das pálpebras: onde ver o porto da viagem, do mistério ao desatino.
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Moçambique Emmy Xyx é o pseudónimo de Manuela Xavier ( M.X.). Nasceu em 1958, em Vila Coutinho, actual Ulóngwé, Distrito de Angónia, Provincia de Tete. Cursou Jornalismo em 1974/1975 na então Cidade de Lourenço Marques, tendo trabalhado no Jornal Notícias, e colaborado nos Semanários “Embondeiro” e “Zambeze” com a sua coluna denominada “Kunyola-nyola”. É designer de malambes, e licenciada em Gestão pela Universidade Eduardo Mondlane. Publicou: Espelho ( prosa, 2011), Contar ser gregos (poesia, 2012).
Bebedouros Bebedouros trovejam faíscas em vidros partidos de pára-brisas sorvem tormentos feitos iscas ensaiam peças fundas e lisas in Contar ser gregos
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Degrau a grau
Línguas coladas em reboco cimentam poisos articulados dívidas perdidas em cocos assumem dizeres em quaisquer lados. E assim caminha a história de vontades, aspirações e crueldades degrau a grau sobre a glória despida de consumos e de ver tardes.
in Contar ser gregos
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Cabo Verde Filinto Elísio Correia e Silva, poeta e cronista no arquipélago de Cabo Verde. Tem formação em biblioteconomia e administração de empresas. Foi professor em Boston e em Somerville, nos Estados Unidos da América. Foi também assessor do Ministro da Cultura. Atualmente é consultor internacional, assessor do Primeiro Ministro e administrador do semanário A Nação, em Cabo Verde. Publicou as obras: Do lado de cá da rosa (poesia), Prato do dia (crônica), O inferno do riso (poesia), Cabo Verde: 30 anos de cultura (antologia), Das Hespérides (poesia, prosa e fotografia), Das frutas serenadas (poesia) e Me_xendo no baú. Vasculhando o U (poesia).
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Viagem
Em torno da odisseia das ilhas, creio levar Neste puro desejo que me transcende, a senha E a palavra-chave de os labirintos serem aqui Simples lugares de passagem, apenas paisagem... O andarilho palmilha as dunas, as areias De intermináveis desertos e todas as ondas Que os oceanos concedem, quando furibundas Ou, mesmo, serenadas e das praias acariciadas... Sem culpa, nem sina – ou de Job puro devedor –, Percorro de lés a lés o mapa que é de ti e do mundo Como quem responde à morte o saldo estival... Como quem salta para a eterna idade da vida E fica suspenso entre a estrela e sua cadência A riscar, de viajar tão-somente, o céu da noite... in Cabo Verde: antologia de poesia contemporânea
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Do conhecido Deus
De repente, o homem sabe desmerecer O Deus que conhece. Ao que, no escuro, Em prece ou meditação lhe convirá ser Horda pura, hora fugaz, trivial deidade.
Senão, ignaro flato seja, tão profano, Quão de sábio, falseando ora de poeta, Ora de profeta, sua palavra derramada E crase, de soletrada sintaxe, acidental.
Haverá, no primeiro verbo, a dialéctica De Epicuro e, em seu maldito sussurro, As entrelinhas com que a metáfora se cose.
Nos demais verbos, como aos seus versos, Assintomáticos uns, febris outros, em ardis De frases feitas desse Deus que se conhece…
in Expoemas e Textamentos, inédito
Antologia Poética
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Angola Jorge Arrimar nasceu em junho de 1953, em São Pedro da Chibia, província da Huíla, Angola. Na década de 1970 foi um dos fundadores do GRUCUHUÍLA (Grupo Cultural da Huíla). Na Faculdade de Letras da Universidade de Luanda iniciou os seus estudos superiores, concluindo em Portugal a Licenciatura em História, a Pós-Graduação em Ciências Documentais e o Doutoramento em História Moderna. Residiu nos Açores, onde foi professor do ensino secundário, e em Macau, onde desempenhou o cargo de director da Biblioteca Nacional/ Central de Macau (1986-1998). Encontra-se representado em várias antologias literárias e tem colaboração dispersa em revistas angolanas, brasileiras, macaenses e portuguesas. É autor de nove títulos de poesia, três de ficção e dois de História. Tem a sua poesia traduzida para o galego, inglês e chinês. Participou, entre outros, do I Encontro de Poetas de Macau (1994); I Encontro de Escritores Angolanos (2004); 1º e 2º Encontros Internacionais de Poetas em Almada (2002, 2003). É membro da União dos Escritores Angolanos.
122 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Doze (Re) Cantos do Poema Ao Alberto Estima de Oliveira
5.
ardem os pulsos abertos e no sangue que jorra há uma pedra de sal, a bóia facetada de um diálogo de silêncios. nós sabemos porque calámos a voz, quando a palavra pesava como uma cabaia de jade. antes foram tantas as angolas suspensas na conversa dos finais de tarde, quando o cantar das cigarras era o mesmo, lá e aqui. mas a morte é o lume que aquece o rosto invisível dos poetas, a lareira de um tempo de angustia onde se moldou um esqueleto (con) sentido. nesta margem esperamos por ti, um seixo a brilhar na madrugada in revista Zunái, Brasil, abril/ 2012
Antologia Poética
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Proposta
procurei a luz e aguardei pelo silêncio dos teus olhos escondidos na concha das mãos. o que não deixavas ver era a silhueta de uma vergonha ancestral, a antecipação do peso a transportar nas cacundas da vida. no nosso retiro, retira as mãos, ou o lenço estampado de figuras geométricas que te cobre o rosto e deixa-me entrançar uma esteira com as tuas pestanas e as minhas, para que os nossos olhos se possam encontrar. Já oiço o chocalhar das vagens secas que trazes nas pernas como argolas, quando danças a despedida do tempo infantil, da idade despreocupada e sobre o chão onde os teus pés desenham o leito por onde corre o rio da vida quero ser eu a cobrir-te os rins e as nádegas com a flor rubra do aloés. in Ovatyilongo: poesia da terra
124 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Moçambique Mauro Brito Combo, nascido a 17 de Fevereiro de 1990 em Nampula, residente em Maputo. Estudante e membro do Movimento Literário Kuphaluxa desde a sua fundação e membro do Movimento Humanista. Participou e foi um dos classificados do “Prémio Poetize 2012 do Brasil”, com um poema intitulado “Remendos”, passando assim a ter o seu poema antologizado. Embora sem livro, as suas crónicas, poemas e ensaios são publicadas em revistas literárias, a destacar, revista Tarja Preta da Academia Onírica de Piauí, Revista Blecaute do Brasil, a Revista Rebosteio do Brasil (São Paulo) e Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona – Literatas.
Antologia Poética
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Arca de Noé
O rio que vive – é uma ave grampeada no limite litoral da anatomia da canoa gritando de milhafre ferido pela morte dentro, e o que maningues gajos topam em volta da kanganhiça da ordem natural das coisas, são sonhos das águas negras. Desarrruma as flores nesse jardim podre de bonito Que querem mais senão a alforria quando fere todas asas de vidro quebra todas possibilidades de voar para dentro da cama de papel onde sonha-se muitas mortes fermentadas. na casa de pedra erguem-se corpos de vermes podres, na pedra com casa dentro onde os peixes fizeram paredes dos homens de chapéu de palha.. os peixes debaixo da ponte ja foram uma vez capulanaas de cores de tons de luz entremeadas de baixo custo que não queimam a nada senão o beijo da costa do sol... o corpo liquido de quem espreita a própria sombra quatro vezes antes dos patos colocarem ovos e cantar na supremacia das penas e o corpo liquido de todos corpos suspensos em cada manhã de inverno.. aqui não temos primavera antes dos equinócios cada corpo com seu sangue carimbando os passos dos abutres morenos inédito
126 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Entre mãos molhadas em Janeiro
1- Sempre vivi convencido que a sombra da chuva era coisa de parvos 2 -Mas hoje cai a chuva depositada em mãos cheias de óleo 3 -Não devo para-la em meu nome 4 -E nem sequer um arco-íris pintado a cores de verão 5 -Que mantém a ilusão da chuva novembrina 6 -Nem o palácio de vermouth olhou os pingos 7 -Sempre pensei que um dia assim era para ter arco-íris a pairar 8 -E de longe pudesse nomear as nuvens que caem 9 -Já exaustas Sempre questionei o neurónio, os meus hemisférios, A fita magnética que faz-me ouvir Marvin Gay Ou uma folha de vinil filtrada nas casas de pasto. Hoje na malanga chove mas em marracuene apenas sol condenando E de longe o sol adentra na baía de Maputo e os meus dedos estreitos, tentam abrir um flanco esquerdo Onde vai acender a festa de canhu, e as melgas estancam a palidez dos copos na copa Que os pássaros não cheguem tão cedo Assim no meu quintal passageiro em forma de xipoko Maningue nice, era para ser um título de livro Amarfanhado desde o dia da nascença No lixo do luxo luxus….. inédito
Antologia Poética
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Macau Yao Jingming nasceu em 1958, em Pequim. No Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim obteve a Licenciatura em Língua e Cultura Portuguesas e, na Universidade de Macau, concluiu o Mestrado em Literatura Portuguesa. Trabalhou, entre 1988 e 1991, na Embaixada da República Popular da China, em Portugal. A partir de 1992 passou a residir em Macau, sendo, actualmente, professor na Universidade de Macau. Tem vários títulos de poesia publicados em chinês e português, entre os quais Confluências (1997), de parceria com Jorge Arrimar. Com este organizou a Antologia de Poetas de Macau (1999). Tem traduzido para chinês, vários escritores portugueses, nomeadamente os poetas Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner Andersen. Participou, entre outros, no I Encontro de Poetas de Macau (1994).
128 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Canto do Mar
Na ruína de espelhos restam só os teus olhos onde o meu reflexo é resistente e sólido. À janela, com insónia das noites nada a fazer senão aguardar o eco acordado nos lábios imaginar como uma brisa traz teus seios – pombos frescos da madrugada. Perdida a chave vermelha fiquei, há séculos, preso em tua cadeia minha alegria na solidão da lua.
in Nas asas do vento cego. Lisboa: Átrio, 1991
Antologia Poética
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Trazes Tanta Chuva
Trazes tanta chuva que vibra o moinho dormente na noite seca O rio interior transborda os lábios onde passam barcos tão leves como folhas Sentado no tempo indefinido faço das minhas mãos uma casa em que habitam as tuas in Confluências. Macau: IOM, 1997
130 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Portugal Maria Teresa Horta nasceu em Lisboa, onde frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Jornalista e crítica literária, estreou na poesia em 1960 com Espelho Inicial, tendo participado no ano seguinte no volume Poesia 61, com o poema Tatuagem. Ao longo dessa década edita vários livros de poemas, tendo sido Minha Senhora de Mim, aquele que é visto como sendo, dessa altura, a sua obra mais marcante, de ruptura da poesia portuguesa de então. No romance surge com Ambas As Mãos Sobre O Corpo em 1970, e no ano seguinte, conjuntamente com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, publica Novas Cartas Portuguesas, obra que valeu às autoras um processo judicial “por ofensa à moral pública”, movido pelo governo fascista. As suas obras mais recentes são o romance As Luzes de Leonor (2011) e a antologia de toda a sua poesia erótica As Palavras do corpo (2012). Na França publicou Ana, na Editions Des Femmes, Nouvelles Lettres Portugaises na Seuil, e Les Sorcières - Feiticeiras, na Actes Sud.
Antologia Poética
Arrebatada
Eu não quero a ternura quero o fogo a chama da loucura desatada quero a febre dos sentidos e o desejo o tumulto da paixão arrebatada Eu não quero só o olhar quero o corpo abismo de navalha que nos mata quero o cume da avidez e do delírio sequiosa faminta apaixonada Eu não quero o deleite do amor quero tudo o que é voraz Eu quero a lava
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132 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Segredo
Não contes do meu vestido que tiro pela cabeça Nem que corro os cortinados para uma sombra mais espessa Deixa que feche o anel em redor do teu pescoço Com as minhas longas pernas e a sombra do teu poço Não contes do meu novelo nem da roca de fiar Nem o que faço com eles a fim de te ouvir gritar in Minha senhora de mim
Antologia Poética
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Cabo Verde
Mario Lúcio Sousa, músico e escritor. É fundador e líder do grupo musical Simentera, que marcou a viragem da música de Cabo Verde para o acústico e reivindicou a cultura continental africana como elemento da identidade cultural cabo-verdiana. As suas concepções valeram-lhe o convite do Governo caboverdiano para ser Assessor do Comissariado para a Expo/92 e Autor do Projecto musical de Cabo Verde para a Expo Sevilha 92 e Lisboa 98.Multi-instrumentista e arranjista de vários álbuns de solistas cabo-verdianos. Compositor, membro da SACEM (Societé française des Droits d’auteur), com temas gravados por Cesária Évora, Lura, Mayra, e por artistas estrangeiros, designadamente da Italia. Estudioso das músicas tradicionais, entre elas a música vocal dos Rabelados. Em 2004 gravou o seu primeiro disco a solo intitulado “Mar e Luz”, que conta com a participação de Gilberto Gil, Leo Gandelman, Luís Represas e Mayra Andrade. Publicou os livros Nascimento de um mundo (poesia, 1990); Sob os signos da luz (poesia, 1992), Para nunca mais falarmos de amor (poesia, 1999), Os trinta dias do homem mais pobre do mundo (Ficção, 2000 – Prémio do Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa, 1ª edição), Adão e As Sete Pretas de Fuligem (teatro, 2001), Vidas Paralelas (romance, 2004) e O Novíssimo Testamento – e se Jesus ressuscitasse mulher (romance, 2010). É autor de diversas peças de teatro encenadas em Cabo Verde e no estrangeiro, é o actual Ministro da Cultura da República de Cabo Verde.
134 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Poemas da ausência desmedida
O Sol, ordem de todas as manhãs A Lua, que não nos viu ontem O dia, que não sabe de nós O Mundo, sem saber de nada marcam suas presenças na nossa mente mente que criou o Sol, a Lua, os dias e as manhãs No meu coração cheio de tudo, porque sabe tudo, tudo espera para ser tão cedo apareças. in Cabo Verde: antologia de poesia contemporânea
Antologia Poética
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Quando é que uma asa sozinha fará uma borboleta, quando? quando é que um lobo só pele fará o medo de toda selva, quando? quando é que o ímpar sozinho se dividirá redondamente por dois, quando? quando é que o beijo sozinho se dará em própria boca, quando? quando é que o pensar sozinho se fará acompanhado, quando? quando é que a roda sozinha andará os caminhos todos, quando? quando é que um peito sozinho se chamará seios meus, quando? quando é que o bravo sozinho brigará com a silhueta, quando? quando é que eu sozinho poderei escreverei versos, sem ti, quando? in Cabo Verde: antologia de poesia contemporânea
136 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Moçambique Calane da Silva, pseudónimo de Raul Alves Calane da Silva, nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, em 1945. Foi jornalista profissional durante mais de vinte anos, trabalhando em jornais diários, semanários, agências, noticiosas e televisão. Foi fundador e dirigente da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), da Associação Moçambicana da Língua Portuguesa (AMOLP) e director do Centro Cultural Brasil- Moçambique. É membro do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) órgão da CPLP. É Doutorado em Lexicologia, docente da Universidade Pedagógica de Maputo. Pela importância do seu engajamento artístico-cultural e pelo valor da sua obra na valorização do Património Cultural de Moçambique foi galardoado com o Prémio Carreira José Craveirinha 2011. Publicou, entre outros Dos Meninos da Malanga (poesia); Gotas de Sol ( poesia, vencedor do Prémio Literário 10 de Novembro); Xicandarinha na lenha do mundo (prosa); Gil Vicente – Folgazão racista? ( ensaio); O estiloso Craveirinha (obra de investigação linguístico-literária).
Antologia Poética
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Um Tempo À Fernanda Angius, um improviso para 16 de Outubro
No gesto cumpre-se um tempo palavra sôfrega de futuros. No amor aniversariza-se o sentimento rompendo Os nosso muros. in Lírica do imponderável e outros poemas de ser e do estar
138 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Liberdade – solidão
Abro-me E quando simplesmente me liberto há algo indefinido que fica em mim - a solidão da minha liberdade… in Lírica do imponderável e outros poemas de ser e do estar
Antologia Poética
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Portugal Miguel Almeida nasceu em Rãs, pequena aldeia do concelho de Sátão, distrito de Viseu, em 1970. Licenciado em Filosofia (Variante de Filosofia da Ciência) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde também fez o Mestrado em Filosofia da Natureza e do Ambiente, exerce actualmente funções de docente na Escola Secundária Cacilhas-Tejo, em Almada. Vive na Costa da Caparica, na proximidade poética da família e do mar. Publicou Um Planeta Ameaçado: A Ciência Perante o Colapso da Biosfera (Esfera do Caos, 2006), A Cirurgia do Prazer: Contos Morais e Sexuais (Esfera do Caos, 2010), O Templo da Glória Literária: Versão Poética (Esfera do Caos, 2010), Ser Como Tu (Esfera do Caos, 2011), Chireto: Uma Semana de Histórias para Contar ao Deitar (Lua de Marfim, 2011), O Lugar das Coisas (Esfera do Caos 2012). Coordenou ainda as obras colectivas Palavras Nossas: Colectânea de Novos Poetas Portugueses (Esfera do Caos, 2011) e Contos do Nosso Tempo (Esfera do Caos Editores, 2012).
140 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Labor limae
Horácio, o poeta Diz-nos, Lá de longe, Que o escritor, Se quer ser poeta, Deve escrever dez horas, Usando duas para a escrita, E mais oito, para gastar a podar Limando os excessos e demasias, Porque, para se ter um vintage Com bom sentido e sabor, Num poema, É preciso emendar E corrigir, Até atingir, ou conquistar A pura naturalidade, Se possível, A clara simplicidade, Que só os deuses concedem, Mas apenas a quem persiste, Insiste e resiste, Até chegar a hora, para colher E poder desfrutar, Um primor, num poema Amadurecido com o suor de um homem, Que trabalha para nós, vencendo o seu tempo.
Antologia Poética
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Palavra sem hora
“Viemos tarde e a poesia é velha.” Ruy Belo, O Problema da Habitação. Nas margens do silêncio, Uma torrente, Minha, tua E de todos nós, Lavrada de formas, Num caudal, Que flui, Naturalmente, Num tempo, Sem tempo, Sem ontem, Hoje ou depois, Mas com agora, Como se tudo, Fosse agora, E agora só, Sem hora, Sem dia, E sem dono, A pura palavra, Agora vem, agora diz Já é tarde e a poesia é velha, Mas a palavra, para além do dizer É inimiga em alerta, que corre o tempo E por nós se alimenta, apenas para ser e viver.
142 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Brasil Nina Rizzi (SP,1983), vive atualmente em Fortaleza/ CE. Formada em Artes Dramáticas (EAD/USP) e História (UNESP). Participa em diversas antologias, revistas e suplementos literários. É uma das escritoras suicidas [www.escritorassuicidas. com.br]. Lançou em 2012 tambores pra n’zinga, pelo selo Orpheu/ Ed. Multifoco. Edita a Revista Ellenismos – Diálogos com a Arte [http://ellenismos.com], e escreve seus textos literários no blog http://ninaarizzi.blogspot.com
Antologia Poética
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Outra variação pra atravessamento
quando sexta adoeci, era noite baixa, o largo distante e vago refém das ilusões perdidas, meti-me no coletivo e deixei sacolejar no último banco a cabeça em sincronia com as voçorocas, batendo forte na janela fechada e como não escorresse sangue, corri como se nas escadarias do chateau de nilda luxúria, pó, a agonia encarnada no homem que só me serve por ser bruto, arisco pronto a me matar em espada, ferro e convulsão pra rebentar os óculos, a insegura caverna levitar até arder o esquecimento encontro essa dor que me atravessa os idos e o invisível, me rasgando a carne até o furacão dos ossos com a terra, esvaziar-me, desser.
144 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Canção às proletárias de guerra
caem línguas e ouvidos mortos sob o céu vazio e cinzento devia dizer uma velha cantiga judaico-germânica marina c., aqui vai tudo na mesma nas esquinas, porões, grades dentro da concha, o mar na semente, uma floresta as asas dos insetos se debatem em palmas ao sem-fim nós, em meio aos escombros e afetos pegamos vassouras, vasilhas, tetos nos habitam lídices, drésdens do caos, imensas catedrais.
Antologia Poética
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Angola João Melo nasceu em 1955 em Luanda, onde vive. É escritor, jornalista, publicitário, professor universitário e deputado da Assembleia Nacional de Angola. Fez os estudos primários e secundários em Luanda. Estudou Direito em Coimbra e Luanda. É licenciado em jornalismo e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É poeta, contista, cronista e ensaísta editado em Angola, Portugal, Brasil e Itália. Recebeu vários prémios, entre eles o Prémio Nacional de Cultura e Artes 2009. É membro fundador da União dos Escritores Angolanos, da qual já foi Secretário-geral/presidente da Comissão Directiva e presidente do Conselho Fiscal.
Arte poética 72 A minha poesia é angolana ferozmente Escrevo com medo e com raiva e força e ritmo e alegria Escrevo com fogo e com terra Escrevo sempre como se comesse funje com as mãos mesmo quando utilizo garfo e faca in Cântico da Terra e dos Homens
146 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Repouso
(tuas asas silentes levemente pousam sobre meus olhos e encobrem os medos) lá fora é a rua: há um grito de cal estridente como uma buzina e cabeças passam esfaqueadas pelo sol aqui – tuas asas enormes e vaporosas apaziguam o clima... há uma guerra lá fora: o nosso amor contra a guerra? - sangue jovem de pé pelo nosso amor ah, tuas asas tranquilas me protegem: deixei de escutar as bombas... quando sair, amor estarei mais forte para a batalha
Antologia Poética
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Brasil Lau Siqueira, nasceu em Jaguarão (Rio Grande do Sul) e reside atualmente em João Pessoa (Paraíba). Publicou: O Comício das Veias (Ed. Idéia, Paraiba, 1993); O Guardador de Sorrisos (Trema Edições, Paraíba, 1998); Sem Meias Palavras (Editora Idéia, Paraíba, 2002); Texto Sentido (Edição do Autor, 2007). Participa de algumas coletâneas e antologias, como Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Editora Landy, São Paulo). Participa das coletâneas anuais do Livro da Tribo (Editora da Tribo,São Paulo). Mantém o blog http://www.poesia-simpoesia.blogspot.com/
Sem leme cada barco traduz o mar e suas tormentas transbordamentos do ar no conluio das velas olhar que perde as guias na sede do infinito flutuação que transgride o tempo cada barco...
148 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Porto de partida
o limite guarda o infinito onde o mar e o rochedo fundem o tempo e a coragem vence o medo onde habitam as verdades do arco-íris os beijos invisíveis do ar e os caules duvidosos do homem perfurando elos ecos ocos e um pampa imerso no olhar onde as memórias deflagram ruidosos silêncios sob nuvens apressadas o limite onde tudo começa
Antologia Poética
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Guiné-Bissau
Frederico Matos Alves Cabral é natural da Guiné-Bissau, Licenciado no curso de Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, Brasil). Além de dedicar tempo refletindo sobre os rumos da sociedade e transformálos em poema, é pesquisador/bolsista de iniciação científicavoluntário no Grupo de Estudos sobre Universidade, (GEU Sociologia) da mesma instituição de ensino. Possui experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Conhecimento. É ainda pesquisador/ colaborador na Universidade Católica de Salvador- UCSAL – Brasil. Participou do Projeto de Extensão Universitária, SAJU - Faculdade de Direito - UFRGS, no qual atuou como membro do Grupo de Assessoria a Imigrantes e Refugiados (GAIRE).
150 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Numa terra...
Numa terra em que o professor não ganha Mas faz das suas aulas uma aliança, Numa terra em que o médico tenta salvar E o estado procura matar, Numa terra em que o amigo é inimigo E o inimigo é amigo, Numa terra em que o sol é favor E o escrivão é lavrador, Numa terra em que os homens são amigos da guerra E as mulheres vão de lenços contra o vento. Nessa terra, A felicidade é milagre, E a paz (é) cheia de tempestade.
Antologia Poética
Conflito sem dono...
Um conflito sem dono Um Estado sem nome Um povo sem sossego Um Governo sem fôlego Um intérprete famoso Um juiz manhoso Isso tudo, Numa terra De beleza Traindo a abelha.
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152 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Moçambique Guita Júnior nasceu em Moçambique (Inhambane) em 1964. É poeta, professor de Português e membro fundador e coordenador do XIPHEFO, caderno literário que surgiu ano de 1987 em Inhambane, onde foram publicados os seus primeiros poemas. Publicou: O agora e o depois das coisas (1997), Da vontade e de partir (2000), Rescaldo,(2001) e Os aromas essenciais (2006).
Vinte iremos prestando contas ao destino ao rumo que traçamos seguindo o curso do rio que escavamos a foz que encontramos no rosto as rugas decalcarão os caminhos da vida do tempo neste basto percurso semearemos bocados de nós mesmos regaremos pequenas alegrias morreremos de uma paixão fatal ainda se oferecem flores? escrevem-se cartas de amor? leva-me contigo noite adentro isto não seja um sonho apenas só a desilusão será o pecado no segredo incólume partiremos in Rescaldo
Antologia Poética
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VI
figurante do meu próprio enredo a máscara do baile quedada à chuva o meu camaleão tem todas as cores umas vezes é camaleão outras não
in Da pele do rosto (no prelo)
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Brasil Cláudio Portella é escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Nasceu em Fortaleza no dia 24 de setembro de 1972. Autor, entre outros, de Bingo! (Porto – Portugal: Editora Palavra em Mutação, 2003), Crack (Fortaleza – CE: Meca Editora, 2009), fodaleza.com (Fortaleza – CE: Expressão Gráfica Editora, 2009), As vísceras (Fortaleza – CE: Expressão Gráfica Editora, 2010), O livro dos epigramas & outros poemas (Fortaleza – CE: Editora Corsário, 2011); Net (Fortaleza – CE: Edições Mula Sem Cabeça, 2011). Tem trabalhos publicados em vários periódicos, entre eles Folha de S. Paulo (SP), O Globo (RJ), Jornal do Brasil (RJ), Correio Braziliense (DF), Le monde diplomatique Brasil (SP). Na internet seus textos proliferam em publicações eletrônicas como Capitu (SP) (colunista), Etcetera (SP), Mnemozine (SP), Cronópios (SP), Cronopinhos (SP), Zunái (SP), Musa Rara (SP) (colunista), entre outros. Figura em inúmeras antologias literárias, entre nacionais e estrangeiras. Traduzido em vários idiomas. Ganhou o concurso de conto da UBENY (União Brasileira de Escritores em Nova York), 2012.
Antologia Poética
Papo-cabeça ou uma vez a cada quatro anos
O barulho da britadeira esfolando o asfalto, estardalhaça minha cabeça. Tão pesada com a consciência do mundo. Escrupulosamente vasculhada à caça de lucidez. E eu que vivo a pensar, andando na rua, tomando um ônibus, explorando meu corpo e dinamitando minha cabeça. Eu que vivo sonhando com noites de autógrafos, e um bom papo-cabeça num bar. Mas vem as trevas e carregam-me para longe, longe dos sonhos e perto da vidinha comum. Da mesma comida. Da mesma roupa. Do mesmo preconceito. Não! Não quero. Chega da palavra não pronunciada no ouvido, feito um tapa no pé-da-orelha.
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156 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
O que quero é a liberdade plena, a liberdade conquistada, roubada à força, arrancada de dentro das cabeças e repassada para a minha. Minha cabeça-chata. Que só reclama, porque necessita urgentemente encontrar um bom papo-cabeça para florir. inédito
Antologia Poética
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Bum!
não há alívio às vezes penso em externar minha opinião mas logo em seguida percebo que não vale a pena nenhuma opinião vale a pena o que vale é saber desmontar uma bomba-relógio antes que exploda (em minhas mãos) do lado mais fraco onde só vale a pena ser um perito em desarmar bombas inédito
158 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Cabo Verde Vera Duarte nasceu em Mindelo, S. Vicente. É Juíza Desembargadora, e exerceu até Março de 2010 as funções de Ministra da Educação e Ensino Superior. Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, tendo posteriormente feito formação em Magistratura Judicial no Centro de Estudos Judiciários de Lisboa, Portugal. Publicou, entre outros, Amanhã Amadrugada (1993), O Arquipélago da paixão (2001), A candidata (2004), Preces e súplicas ou os cânticos da desesperança (poesia, 2005). Com a sua obra de estreia em ficção, A candidata, recebeu em 2003 o Prémio Sonangol de Literatura (Angola). Em 2001 o conjunto da sua obra poética foi distinguido com o Prémio Tchicaya U Tam´si de Poesia Africana (Marrocos). Em 1981 conquistou o 1º Prémio no Concurso Nacional de Poesia (Cabo Verde). E em 1976 obteve Menção Honrosa no Concurso Nacional de Poesia em Comemoração da Independência Nacional. É conferencista sobre temas ligados aos Direitos Humanos, à Mulher e à Cultura.
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Rosa entre cadáveres Á Eugénio de Andrade Em África nasce uma rosa uma rosa entre cadáveres e dela brota um sol de sangue Em África cresce uma rosa rosa única de dor e revolta e dela queda um sol de sangue Não é rosa depois da neve nem rosa flor d`amor não é rosa multicolor nem tem perfume embriagador É rosa d`Eugénio flor de doer rosa de arder metamorfose de cadáveres Uma rosa para que serve flor única num continente imenso rosa na dor submersa dela queda um sol de sangue É rosa d`Eugénio rosa mirabilica em oferenda contra a morte num tempo -tanto tempode dor
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Em África cresce uma rosa é a rosa mirabilica flor da poesia uma rosa entre cadáveres Setembro, 2000
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Criança
Canto a luz de uma noite em fogo de mártires incendiada Canto a luta vitoriosa num Setembro nascida Canto a flor que sangra das entranhas sedentas da terra Canto a madrugada nos lábios roxos da batalha E canto-te a ti criança filha do povo nascida nas ilhas num tempo novo de homens redimidos Criança esperança trazendo em dádiva o sorriso confiança num mundo em construção
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162 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
México
Victor Sosa nasceu no Uruguai em 1956, é poeta, ensaísta, teórico de arte e literatura, pintor e traductor de língua portuguesa. Desde 1983 vive no México e no ano de 1998 adquiriu a nacionalidade mexicana. Publicou Sunyata (1992, Poesia ,editorial Praxis), Gerúndio (1996,Poesia), O Oriente na Poetica de Octávio Paz (2000,Ensaios), e outros. No Brasil tem obras publicadas pela chancela da Editora Lumme (A antologia Sunyata & Outros Poemas, 2006, edição bilingüe; O Princípio da Eternidade, teatro, 2009; Rostos e Rastos do Século XX, ensaios, 2011, e outros), esta incluída na antologia Jardim dos Camaleões, A poesia neobarroca da America Latina (2004, iluminuras) editada pelo poeta brasileiro Claudio Daniel. Colabora regularmente com a revista Vuelta en la década 90, Milenio y Reforma, entre outros periódicos do México. Recebeu o Prémio Nacional Luis Cardozo y Aragon para Critica de Arte (1998), o Prémio Nacional de Poesia Pancho Ncar (2000), Menção Honrosa do Ministério da Cultura de Uruguai, pelo seu livro Os Animais Furiosos. Actualmente é Professor de Literatura e Arte na Casa de Refugio Citlaltépetl.
Antologia Poética
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A octopoda da ânfora A extraíram da ânfora como se fosse um gênio. Etrusca ou grega, a ânfora, e arcaica. Gladis cerrou os esfíncteres com força para colossalmente propulsar-se, mas o calcário do crânio – somando-se ao anti natura do empuxo– impedia a passagem. Então expeliu tinta lubricando o conduto. Disse ser octopoda enquanto eclodiu sobre a areia, e a massa encefálica ilesa, lisa como amêijoa, laceada sob o cutâneo da ventosa. Os humanos a cheiravam. Um meninote lhe atravessou um tentáculo com um canudo. A asma –que cria curada havia décadas– de pronto sincopou (a asma ou a epilepsia). Quando lhe vieram as cãs a creram porco-espinho e chamaram aos anciões da aldeia que, montados em vicunhas, trouxeram lança-chamas. Gladis ofegava com oito braços fraturados ruindo-se na lama. O das lentes infravermelhas a tocou com a enrolada partitura e soprou para despertá-la. Ela mugiu sem ser ruminante, sem saber que estava bem, que estava mal. Relinchou entre os poros. Sacudiu o pelame para fazer-se passar por um pelicano. Retrátil como tigre estirou garras mostrando uns colmilhos irrisórios. Os tribais perderam o medo ante semelhantes incongruências. A cercaram com juta e incendiaram fogueiras. Gladis paria ovípara, adulterava a voz na dublagem, tarascas tirava das taguaras. Arrincoada contra os corais, sacaram navalhas, garrochas, hipodérmicas. Aí lhe cercearam o encéfalo. Teve tempo, gateando, de gritar: “Vivam os confederados!”, porém ninguém entendia, do molusco, sua língua. Essa noite a chamuscaramcom chicote depois de relaxála emmolcajete. Um tasajo que durou até a alba e que –por estafilococos– dizimou toda a aldeia. Transcendeu o feito graças a uns holandeses ayurvédicos que do menu não tocaram nem os buchos. Tradução Viktor Schuldtt e Paula Freitas
164 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Gladis come pelo Tricotilomania lhe disseram que chamava o mal. Mas não o fazia por maldade senão por mal-estar, por nervosismo, por não saber aonde com suas mãos. Começou desde menina, quando o cabelo lhe chegou à omoplata, aos ainda impúberes mamilos. Arrancar mechinha produzia um prazer parecido à dor que a retraía ao endométrio. E logo urdi-lo em plica leibneziana, em talharim piloso, em sebáceo pai que não teve –segundo os ortodoxos de divã. Comê-lo e empurrá-lo (se chama tricofagia) esôfago para abaixo –até o manto clorídrico, até esses solavancos peristálticos– lhe dava a Gladis alegrias que nunca, nem com amaranto, nem com sal. “Estranha forma de vida” –disse em Lisboa sua tia–, mas a mãe –educada em falanstériosberkelianos– mussitou: “Que coma o que queira, que mais dá”. Dadas tais liberdades parentais, a pequena ingeriu cabelo até calvície, até bolo em mondongo, até prematura menopausa. O ventre, crescente, se constatava desde Catedral. Crendo-se trigêmeos, lhe abriram essa geba com machete e a matrona afundou seus três braçotes para sacar –fervente, fedorenta, agitando-se inquieta em seus folículos– uma bola tão grande como orbe que parecia, ao tato, palpitar. Uma cabeleira amontoada havia décadas aí, como se fosse charque já em sua flor. Tiveram que chamar, para remover o vulto, a peonada. Não o mostraram à mãe; o despenharam penha abaixo e arrastou em sua queda até os arraigados arvoredos, porta-retratos íntimos e toda a imisericórdia familiar.
Tradução Viktor Schuldtt e Paula Freitas
Antologia Poética
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Portugal Luísa Demétrio Raposo nasceu no dia 10 de novembro de 1973 em Oeiras. Cresceu na vila de Cabeço de Vide, Alentejo. Vive na cidade de Portalegre. Poetisa, publicou: Respiração das Coisas (2010), Nu Âmbar da Minha Escrita (2011). Participação na II Antologia de Temas Originais (2010), III Antologia de Temas Originais (2012), Portalegre em Momentos de Poesia (2011), Antologia de Poesia Contemporânea “Entre o Sono e o Sonho III” (2012). Partilha com os cibernautas um espaço na internet, o seu blog, Vermelho Canalha, onde publica poemas, cartas e prosas poéticas e eróticas. Possui textos publicados em diversas revistas de literatura no Brasil.Fez parte do grupo de poetas convidados do Encontro Nacional de Poesia, Literatura e Arte: Portuguesia (2011).
166 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
“Os meus desejos são pássaros que nas tuas coxas gemem vermelhos e escarlates redondos e cheios que em cio chovem sobre a linha curva da vagina imensa. Bato nela a língua imensa e um forte delírio sobre o tudo e a terra atiçada porque eu amo esta fome e este teu campo afogado onde as ondas orgásticas rolam no entra e sai que envolve e dissolve o circuito ardente enterrando duros e belos fôlegos nevoeiros que contrastam impetuosos o açafrão a nua Índia e os pelos negros que se cosem por toda a parte formando uma cordilheira africana nas frases penso os dedos que pelo ânus martelam a visão entre as temperaturas e todo o sorvedouro de um lado para o outro tu és uma abertura onde meus pássaros voam e cruzam o sexo entre as faúlhas e a carne viva onde agora se encurvam os meus desejos unidos á pulsante riscada______________ o precipício é grande e a boca cheia de respiração unânime com a vagina fremente queima a boca que mergulha enquanto se abre o êxtase e sabe onde degustar o mosto e a difusa que desliza num supremo amadurecimento da vulva muito suco lenta” inédito
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“A vulva é um delírio animal. O nervo que entrelaça a carne num todo, um poema, margando o pénis essa potencia anárquica, madura, sobre um escrito, rudemente devorando (me. O tesão, a faca, golpe a golpe entre o instantâneo das linhas, balançando entre o dentro e o fora. As ressonâncias que oxidam-se marginais, dentro das bocas duras, e onde as línguas carnivoramente, navegam num misto incessante, eximiamente, lambendo em torno das ocupações, num cio superlativo. Trancando-se o fogo, o pénis levanta, e as mãos afundam, sequestram os sais num sistema decimal entre o clitóris e o maio gemer cru. As geometrias resplandecem, no coalhar dos linhos entre lanhos que o ar coberto de exaltação consome. Irrompendo paredes e queimando-me num avesso volteio, a boca cheia, minha aberta dentro da tua aberta. A bebedeira escuta; - Pelas janelas, a Breda abrindo e fechando, entre o negro que expira e ergue-se dentro da Cornualha felídea. Da ambiguidade, o erotismo contempla a seiva no átrio, avassalando esse orifício ofuscante a que chamam, inclinação vertiginosa, a fuga que alberga toda a tua sede” inédito
168 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Moçambique Sangare Okapi, pseudónimo de Cardoso Lindo Lhongo, membro efectivo e de direcção da Associação dos Escritores Moçambicanos. Publicou: Inventário de Angústias ou Apoteose do Nada ( 2005); Mesmos Barcos ou poemas de Revisitação do Corpo ( 2007); Mafonematográfico, Também Círculo Abstrato ( 2012).
Estátua Samora Machel Sobre a foto de Mauro Vombe
Ergues-te inteiro busto ou esfinge Sobre o mármore da memória. Para trás o edifício onde descansa a escória. Com o dedo em riste, obsidiante, desafias o mar. Os aromaS da história invertidos na sintaxe Do teu nome.
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Apanhadores de amêijoas Sobre a foto de Alexandre Marques
Serão apanhadores de amêijoas Ou recolectores de espuma? Enterram-se as mãos sobre o azul Lençol de água Simples remos de sobrevivência no rigor Vazio das bacias decalcando o ventre das crianças No bairro dos pescadores. Nenhum odor sabe a sal! De longe, um fio, costura o céu de nuvens E garças... Mas não diz o lugar. Serão mesmo apanhadores de amêijoas Ou recolectores de espuma?
170 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Angola Zetho Cunha Gonçalves nasceu na cidade do Huambo, em Angola, a 1 de Julho de 1960. Passou a infância e adolescência no Cutato (pequena povoação na Província do Kuando-Kubango, a que chama a sua “pátria inaugural da poesia”). Poeta, autor de literatura infanto-juvenil, antologista, tradutor de poesia e organizador de edições. É membro da Comissão Executiva da revista online Mulemba – Revista de Estudos de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, e tem colaboração dispersa por jornais e revistas de Angola, Brasil, Espanha, Itália, Moçambique e Portugal. Publicou, entre outros Exercício de escrita (1979), Coração limite/Sobre a sombra do corpo (1981), A construção do prazer/ Reportagem do silêncio (1981), O incêndio do fogo (1983), O outro mapa da Terra (ed. manuscrita, exemplar único, 1997). Traduziu O desejo é uma água, de Antonio Carvajal, com ilustrações de Antonio Jimenez, 1998.
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Os sonhos pedem cafuné Para Ninfa Parreiras, Lice, Ícaro e Dafne − Mãe, sonhei com o deserto, mas não vi passar a serpente. − Meu filho, se aquilo que sonhaste não chega para encheres a barriga ao teu desejo e ao teu sossego, canta, canta, com a voz voltada para nascente, enquanto lavras, e lavras a força e a dança do leopardo. − Mãe, sonhei com a floresta, mas a floresta não tinha céu, não crescia da Terra, não tinha árvores nem capim. − Meu filho, se aquilo que sonhaste não presta, joga tudo no fogo, pela manhã, e diz: «Bom dia, ó Dia acabado de nascer, bom dia!
172 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Faz com que os ancestrais devorem todos os meus medos, aceitem esta pequena labareda, e espantem dos nossos caminhos: o Kapapa, e os Canzumbis! Bom dia, ó Dia acabado de nascer, bom dia!» − Mãe, sonhei com o rio, mas não vi a água que ele levava, não sei se tinha peixe ou jacaré. − Meu filho, se aquilo que sonhaste te deixou confuso, lava-te na primeira água da chuva, antes de te sentares na pedra, com as mãos estendidas para o fogo, à espera da noite. − Mãe, sonhei tanto, tanto, esta noite!... − Meu filho, deita aqui a tua cabeça, porque meus são os prodígios e os teus dias,
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que crescem, crescem, a encantar os horizontes, iluminando a tua altura de menino. Deita, deita aqui a tua cabeça, meu filho.
Canzumbis: Almas do outro mundo. Duendes. Kapapa: Monstro mítico, sem cabeça, muito temido pelo povo Ngangue
174 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Maldições de morte
[Tradição oral Umbundu, Angola]
1.
Porque a sua beleza nos ofusca, escavemos a terra – lá, onde ninguém nos veja. − Que seja aberta uma cova, mais funda que o mais alto de nós. − Que se jogue para dentro uma agulha, um machado precioso. − Que alguém (ele, cuja beleza nos ofusca) os vá resgatar. Porque a sua beleza nos ofusca, escavemos a terra – lá, onde ninguém nos veja.
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Brasil Luis Avelima nasceu em Alagoa Nova, estado da Paraíba, em 1954. Tem diversos livros publicados e participação em antologias e suplementos literários no país e exterior. Cantor e compositor, é também tradutor de obras de Fiodor Dostoievski, Anton Tchekov , Mikhail Bulgakov, Marina Tsvietaieva e Daniil Kharms, entre outros. É vice-presidente da União Brasileira de Escritores.
A palavra sendo fibra autêntica teces teu canto em linho ou cânhamo. e porque autêntica te fixas em meus lábios e me induzes ao verso. feito cinzel, modelas o poema no papel em sulcos. como ninguém, sabes enfeitiçar carvões e tungstênios. e se te vais, não me detenho: meu punho em gesto aflito é nau escolhida a esperar teu regresso.
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Poemas de Moscou
não passa o homem como passa o que passa se rastro, displicência do tempo não passa a palavra como não passa o que passa se grito, negligência da fala passam homem e palavra se tempo e rastro se grito e fala por que passa o que passa?
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Macau Rolando Chagas Alves, nasceu em Macau, em 1923. Foi funcionário dos Serviços de Saúde e do Banco Nacional Ultramarino em Macau. É considerado um dos melhores poetas da sua geração (João Reis – Trovas Macaenses, p. 161) e encontrase representado em várias antologias, nomeadamente, Trovas Macaenses (1992) e Antologia de Poetas de Macau (1999).
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Realidade
Nos enleios subtis de fantasia, Florido é o jardim da vida bela! Quantos há que, sonhando, vivem nela De doces ilusões em prenhe orgia! Por longes terras, leda correria, Libando em cada flor, em cada estrela, Não temem o perigo de perdê-la. Que ditoso sonhar, doce magia! Mas não é de sensatos tal viver, Pois a vida não é flor, é amargura E a ilusão do prazer mui pouco dura. Na vida é mor fortuna mais sofrer; Ter espinhos, martírios suportar. Que prazeres e gozo é vão sonhar! in O Clarim, 1950
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Verdade Suma…
Ao amigo Abílio Rosa
Destina a cada vida o Deus Senhor De sorte vária, alegre ou triste, a cruz: De sofrimento atroz, a de Jesus; Leva a nossa, levada com amor! Se na vida há momentos d’alegria, Logo outros se misturam de amargura… Corre veloz, fugaz, nossa ventura Arando o sulco atroz da nostalgia. E… alfim, infalível, vem a morte: Para uns, será termo a dura sorte; Par’outros, de ilusões um fim sem par! Felicidade verá só no Além Onde habita o Senhor, supremo Bem. Verdade suma! Quem te vai negar? in O Clarim, 1949
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Moçambique Izidine Jaime, nasceu em 1993, na cidade de Nampula, onde frequentou os estudos primários na Escola Primária Completa 25 de Junho, e concluiu os estudos secundários na Escola Secundária de Nampula. Reside actualmente em Maputo. Frequenta o curso de licenciatura em Engenharia Informática no ISCTEM. É membro do Movimento Literário Kuphaluxa (Maputo) e do Grupo “Os pensadores” (Nampula). Foi publicado na AO revista 2 da Academia Onírica (Brasil, 2012), premiado na categoria de Mencionado Particular no XXVII Prémio Mundial de Poesia Nosside na Itália (2011) tendo participado da Antologia Multimedial do mesmo. Possui textos literários publicados em revistas nacionais e estrangeiras.
Antologia Poética
Ausência
E devagar me entrelaço Vencido em qualquer viagem da alma Rebolo escasso Vertigens da lua E a noite que cai É meu repúdio Meu consolo é senão amar Tua fotografia, a destra da cama Onde rebola tua ausência. Sobrolhos da janela Jazendo silêncios Não machucam a alma, Restos de luz Me renovam teu rosto Mas da próxima vez Vou arrancar a porta Para a saudade não bater
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No Horizonte
No horizonte há timbilas De sonhos rasgados na noite Como o rugir dos ventos Em viagem aprendida nos rituais da terra No horizonte há batuques Deitando na fogueira Segredos da alma Há palhotas guardadas No terno assombro De poeiras assustadas ao cantarolar dos grilos.
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Espanha (Galiza) Alberte Momán Noval nasceu em Ferrol, Galiza, em 1976. Publicou, entre outros O lobo da gente (Edicións Positivas. 2003) II Prémio Narrativas Quentes; O alento da musa. (Difusora de Letras Artes e Ideas. 2007), disponível em http:// oalentodamusa.wordpress.com; Ferrol e o que queda por chover (Lulu.com. 2008); Erótica (Lulu.com. 2008); Baile Átha Cliath (Caldeirón. 2008); A crise irredutivel. (Lulu.com 2009) disponível em http://acriseirredutible.wordpress.com; Por uma palavra tão só. Poema para @s máis nen@s (edição de autor. 2010); Os quilómetros que percorremos dende aquela. (Editorial Toxosoutos. 2011). Tem vários volumes publicados colectivamente como Juro que nunca voltarei a passar fome. Poesia Escarlata (Difusora de Letras Artes e Ideas. 2003) e Isto é um poema e há gente por trás (Espiral Maior. 2007) com a obra De ter un can chamaríalle Guenguis. Como editor publicou com o colectivo A Porta Verde do Sétimo Andar, Os Q de Vian Cadernos O, Figurante Edicións e Planh. 10 poemas de Anne-Marie Cazalis (O Figurante Edicións. 2012).
a sede menciona-me nos sonhos alimentando-me do teu suor sulcando as ribeiras dos oceanos do teu corpo com a embarcação nua deste esqueleto que me leva já os soluços me empurram para a costa
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oculto o rancor atrás de um orgasmo para converter-me ao nada não me ofereço sem o poder de amar
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Brasil Marcelo Ariel nasceu em Santos, São Paulo, em 1968 e vive em Cubatão,São Paulo. É dramaturgo, poeta e performer, autor dos livros: Me Enterrem com Minha AR-15 (Coletivo Dulcinéia Catadora, 2007), Tratado dos Anjos Afogados (Letraselvagem Edições, 2008), O Céu no Fundo do Mar (Coletivo Dulcinéia Catadora, 2009), Conversas com Emily Dickinson e Outros Poemas (Selo Orpheu, 2010), Samba Coltrane (Yi Yi Jambo Cartonera, 2010), A Morte de Herberto Helder (Sereia Cantadora, 2011), A Segunda Morte de Herberto Helder (21 Gramas EdiçõesCuritiba-2011) e Cosmogramas (Rubra Cartonera, 2012). É um dos coordenadores da Cia Instável de Repertório de Santos, membro do Conselho ediorial do Selo Rubra Cartonera, colunista do site literário Musa Rara (musarara.com.br), membro fundador com Nicodemos Sena da LetraSelvagem Edições e um dos editores da revista eletrônica Pausa (revistapausa.blogspot.com). Email: marcelo.ariel91@gmail.com
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Salmo para a Palestina
Uma rosa de Sal não afunda; Ama. Uma rosa de cristal não morre: Brilha. Uma rosa de luz não compreende: Vive. Você ouvirá todas as rosas cantando seu nome Palestina No jardim que antes estava fechado para ti. Palestina A folha secando na areia não será mais a morte, mas o êxtase da fusão com o céu que tu agora chamas de chão, Palestina Será como um oração este calor desenhando um arco
Antologia Poética
em volta do teu coração Uma auréola de alegria e paz ao redor de qualquer rosto Palestina Amar qualquer rosto será mais do que amar uma Nação, Erramos quando pensamos Que o amor estava Ali, o amor é este lugar É qualquer rosto vivo e está aqui, Não é o deslocamento do azul do céu, Palestina Não é o sangue derramado não é o dinheiro, esta onda que avança por dentro do sangue de inúteis desertos até o fundo do oceano,destino de todo o ouro e depois sobe.volta até a absurda praia dos ossos. Palestina Eis o triunfo do amor Secando o mar de sangue . Teus mortos Verão o Sol frio como a Lua Incipit parodia Do mais real do que o sonho. Palestina Cesse de cantar a canção do impossível para a aragem do campo das beatitudes, que se apague
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da mente dos poetas este canto, onde Querubins sem braço com a cabeça enfaixada brincam com Azrael, O Poeta do povo dirá ao pisar no teu Solo: ‘ Sentimos o nascimento Dos braços, A queda Das asas E a das folhas Da árvore do bem e do mal, Agora nos consola Saber Que a palavra Mais sublime Não ilumina o suficiente, Que uma língua tocando a outra Não ilumina o suficiente Somente o olhar dos animais pacíficos Pastando nos teus campos Palestina Como a morte E o amor Iluminam este silêncio Dos mortos Para sempre. inédito
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São Tomé e Príncipe Conceição Lima nasceu em Santana, ilha de São Tomé, São Tomé e Príncipe, em 8 de Dezembro de 1961, aí cresceu e fez os estudos primários e secundários. Estudou jornalismo em Portugal. Em São Tomé e Príncipe trabalhou e exerceu cargos de direcção na rádio, na televisão e na imprensa escrita. Depois da abertura multipartidária no seu país, fundou, em 1993, o já extinto semanário O País Hoje, do qual foi directora. É licenciada em Estudos Africanos, Portugueses e Brasileiros pelo King’s College de Londres e possui o grau de mestre em Estudos Africanos, com especialização em Governos e Políticas em África, pela School of Oriental and African Studies (SOAS) de Londres. Foi durante vários anos jornalista e produtora dos Serviços de Língua Portuguesa da BBC, em Londres. De regresso ao seu país, foi produtora e, mais tarde, directora da TVS, Televisão São-Tomense. Presentemente é jornalista freelancer e colaboradora de vários periódicos. Pela Editorial Caminho, de Lisboa, publicou em 2004, O Útero da Casa; em 2006, A Dolorosa Raiz do Micondó; e, em 2011, O País de Akendenguê.
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Maputo, Cidade Índica Á Ungulani Ba Ka Khossa
A geométrica harmonia que em ti se alonga projecta a atlântica viuvez da minha casa.
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Inegável
Por dote recebi-te à nascença E conheço em minha voz a tua fala. No teu âmago, como a semente na fruta o verso no poema, existo. Casa marinha, fonte não eleita! A ti pertenço e chamo-te minha como à mãe que não escolhi e contudo amo.
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Angola David Capelenguela, naturalizado no Namibe, onde passou infância e adolescência, nasceu na Província da Huíla, Angola. Finalista do curso de Direito na Universidade Agostinho Neto em Luanda, é jornalista de profissão. Actualmente é editor e apresentador do programa cultural na emissora Provincial do Cunene. Membro da União dos Escritores Angolanos e membro fundador da Brigada Jovem de Literatura de Angola da Província Namibe, exerceu de 1993 a 1998, a função de secretário provincial daquela organização juvenil literária, função que exerce actualmente na Província do Cunene. É membro de direcção e pesquisador do CEED - Centro de estudos da Educação e Desenvolvimento da Diocese de Ondjica-Cunene. Publicou, entre outros, Véu do Vento (União dos Escritores Angolanos, 2011), Gravuras D’outro Sentido (Edições Chá de Caxinde,2011), Tipo-Grafia Lavrada (Edições Chá de Caxinde, 2011), Acordanua (Editorial Nzila, 2009), Vozes Ambíguas (Editorial Nzila, 2004), Rugir do Crivo (BJLA do Namibe, 1999), O Enigma da Welwitschia (BJLA do Namibe, 1997).
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Canto idoso
Descobri a síntese mítica de gãlangi Trazida pelo dorso Do curso Do rio tembo Ko kukoya kwocimbo E veio da melodia Do canto idoso do rio Vedar-me de cortesia Sobre a cumplicidade do acto Da mente Dançou e Cantou: Coro: O dorso do curso Veio aposentar-se No circuito (in) orgânico Da minha circuncisão Onde o instante do fogo Afoga O fumo Da fama Vernacular Ko kukoya kwocimbo … in Verso vegetal, inédito
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Gemido do mar
Pelo gesto Descobri a fecundação da posse Que se repetia Em cada gemido do mar Mendigo os olhos da minha saturação Auguravam o mel celebrativo da estrada De vez enquanto A morte das horas Repetia-se ao gemido do eco Desbravando os signos da acção Ar Ar Ar Pedindo ar Uma andorinha doirada Pedia bis Bem ao fundo
Antologia PoĂŠtica
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No meio do som Do sul Era em tempo De festas do mar Quando ar Ar Ar Ar Pedindo ar Uma andorinha doirada Pedia bis in Verso Vegetal, inĂŠdito
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Moçambique Dinis Muhai, vive em Maputo, é autor do livro de poesia Rascunhos para uma comunicação improvável (Prémio T.D.M, 2008). Tem textos publicados nas revistas literárias Zunái (2011), Poesia Sempre, (Brasil 2006), na França, Latitudes (2005). Em Moçambique foi co-fundador do movimento literário Oásis (1997). Possui publicações dispersas na revista Tempo (1999), Jornal Notícias (1995/1996); autor da estória publicada em banda desenhada Nossos Direitos, colecção nº1 (1996).
Antologia Poética
Um “b” de bandolim à disposição
O barbeiro idoso dorme como um mufana burguês no seu rasgado banco de estar espantosamente embalado pelas subtís sonatas psicanalíticas e estrangeiras. Epá quem passa pela calçada junto a sua barbearia, com causa atesta um velhote speed, na maior, a exibir seu estatuto de proprietário com preguiça enraizada aos novelos em seus cabelos de luz. -Bang, bang bate com raiva a porta um cliente. Vai e abre com desprezo o velho a porta, e mais de mil golpes mentais formam um exército de nuvens em seu cérebro de cores. açoitam-no com rancor para se deliberar e epá! Um clarão de pérolas surge. –São horas de fechar. E o cliente furioso lá fora na calçada refila. O velho tranca-se e cochila.
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198 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Machimbombo nº5 via Mozal-Baixa II Amálgama de pensamentos Há o idoso que olha estarrecido para um adolescente que agarra-se ao assento como quem sonolento alcança a cama Há o chefe de familia que faz as contas da vida O jovem que ensaia a arte de engate O operário que namora a marmita antes do meio dia E o cobrador que associado aos estudantes pratica pequenos delitos Uma senhora banhada de lágrimas que clama pelo celular que não encontra na bolsa Há aquele vigia habilidoso que vive das distrações troca de rosto discretamente na próxima paragem para voltar a subir incómodo e descarrado como os impostos municipais.
Antologia Poética
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Portugal Lurdes Breda nasceu no concelho de Montemor-o-Velho. Frequenta o curso de Línguas e Literaturas Modernas – Variante Estudos Portugueses, da Universidade Aberta. Foi premiada em vários certames literários nacionais e internacionais. É autora de quinze obras e co-autora de outras sete (cinco das quais editadas no Brasil). Participa em atividades que visam a promoção do livro e da leitura. Colabora em revistas e em jornais de âmbito nacional e regional. Mantém o blog http:// lurdesbreda.wordpress.com/
200 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Voo
As raízes do limoeiro Sonham o musgo do chão. Sobre o velho vulcão, Agora, adormecido, As flores das estevas Bebem a luz da lua, Sem pressa do dia seguinte, Como um batel encalhado Num mar de algas brancas. A pele negra das árvores Contorce-se de prazer No beijo ardente do suão. Do fogo eterno, Que têm os corpos, Despojados de amor E de espiritualidade, Depois do sexo, Emergem bandos de aves Rumo ao Sul.
Antologia Poética
Nudez
Rasga, com a tua boca, O meu vestido de pétalas. O vento beija-me os seios, Desfolha-me o regaço Em páginas de poemas por nascer E pássaros com asas de abril.
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202 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Cabo Verde
Margarida Filipa de Andrade António Fontes, nasceu em São Filipe, na Ilha do Fogo. Fez os seus estudos primários e secundários na sua Ilha natal e parte dos estudos liceais na cidade da Praia. Licenciou-se em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia, no Brasil. Exerceu funções de Chefe do Departamento de Produção e Programas e de Directora da Televisão de Cabo Verde (TCV). Actualmente, é jornalista do Departamento de Informação da TCV, e dedicase também à produção de documentários de âmbito cultural. Ela produziu e apresentou as séries documentais: Monumentos e Sítios, e Claridade Incandescente, este último sobre a modernidade literária de Cabo Verde. São também da sua autoria as séries Cabo Verde Ambiente, e Grandes Temas Cabo- verdianos. Desde 2004 mantém o blog odiaquepassa.blogspot.com, onde escreve sobre cultura e jornalismo. Participou na Antologia de Poesia Inédita Cabo-verdiana Destino di Bai, 2008, e na colectânea Amar com Amor, ambas da ONG portuguesa Saúde em Português. Em 2010 participou com poemas inéditos no livro I Encontro de Poesia entre Mulheres, Espanha – Cabo Verde, organizado pela Embaixada de Espanha em Cabo Verde.
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Carnaval em Salvador
“Avant que les Destin jaloux ne te réduise en cendres» Negros são os tambores desse cortejo Negra esta parte de mim, aprisionada E calada em voz, que Olodum nenhum, Repõe ritmo à minha saudade ance stral… Negra esta poesia que desconstrói a tarde, A efusiva alegria que desfila, esta absurda Gana dos adjectivos de ver meus gemidos Diluídas áfricas de fantasia, folia e folião… A miséria largada nesse grande genocídio O noticiário em jeito de fome e de guerra E a alforria visceral habitada nas favelas… O morticínio da raça na bolsa de valores Esta castração crioula de ser negra a luz E parte de mim os tambores desse cortejo… in Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea
204 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Lusotopias mil
Nem tudo é território, quando percorro os dias, Longas estradas sem destino, este descaminho. Nem tudo área marcada e sinalética de viagem, Viragem para um norte qualquer e Úrsula Maior… Nem tudo é fronteira em seu limite, zodíaco quase, Ficando a monte, longe, no improvável do tempo. Nem tudo se plasma em continente ou se esboroa Em côdea de ilhas, aqui em mim, lusotopias mil… in Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea
Antologia Poética
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Portugal
João Rasteiro nasceu em Ameal, Coimbra, em 1965. É poeta e ensaísta. É Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra. É sócio da Associação Portuguesa de Escritores e membro dos Conselhos Editoriais das revistas Oficina de Poesia e Confraria do Vento (Brasil). Possui poemas publicados em várias revistas e antologias em Portugal, Brasil, Itália, Espanha, Finlândia, República Checa, Colômbia e Chile. Obteve vários prémios, nomeadamente a “Segnalazione di Merito” do Concurso Internacional Publio Virgilio Marone, Castiglione de Sicilia, Itália, 2003, e o Prémio Literário Manuel António Pina (Câmara da Guarda/Assírio & Alvim, 2010). Publicou os seguintes livros: A Respiração das Vértebras, 2001, No Centro do Arco, 2003, Os Cílios Maternos, 2005, O Búzio de Istambul, 2008, Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas, 2009, Diacrítico, 2010, A Divina Pestilência, 2011, Tríptico da Súplica (Brasil), 2011 e Elegias Bárbaras, 2011. Em 2009, organizou para a revista ARQUITRAVE da Colômbia, uma antologia de poesia portuguesa, intitulada A Poesia Portuguesa Hoje. Mantém o bloghttp://www.nocentrodoarco.blogspot.com/
206 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Algures os campos Farto de todos aqueles que com palavras fazem palavras, mas onde não há uma linguagem, dirigi-me para a ilha coberta de neve. António Gamoneda
A natureza do poeta é fingir a existência mais íntima da linguagem aquele lugar onde a morte resplandece em todos os sentidos dos pulmões pois desde sempre a chuva amansou os vestígios do sangue que jorra do estilhaço das palavras inócuas, na desesperada procura do silêncio amo a tempestade e repudio o relâmpago e contudo as tuas sílabas dissecam-me a peçonha do clarão da seara e da cesura em que me avivo júbilo de mim mesmo. Que precisão existirá no ângulo do poema? in A subtileza das sensações inúteis (inédito)
Antologia Poética
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A dança das mães À Estrela de Jesus Vilela
Na beleza irremediável das feridas alimentam-se mães sem trégua. Nos rios secos, batem e batem os corações alimentados em sangue frio e espesso. Que é lívido. Que procura a boca das raízes nos conjugados ascensos e âmagos. O coração é um bicho estranho, foragido, que vai caminhando gota a gota, ambicionando o amor do ser intacto. E as feridas incautas aproximam-se das mães, em seu viçoso centro, imprudentes ao pérvio fardo de cada sopro: o amor, eternamente feroz. E as mães são as mutiladas candeias que efabulam do interior dos angulares corações. E as feridas das mães são cada vez mais belas. O medo caminha violentamente mais perto, no corpo, na cara, nas vértebras e no ventre onde se abriga com seu volúvel volume, o silencioso amor de mãe. A difusa distância entre o ventre e o gume. Sob a folhagem da água, mães cansadas da aridez que as toca, incendeiam-se através dos filhos. E os filhos, esse cingido chumbo cravado
208 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
nas asas, esse projecto que sobre o mar se estende, esse embelezar o coração pelo grito das mãos, alimenta as feridas pelos tendões, como a garganta entre os dedos do útero. As mães debicam sobre a areia a sua rota clara, até ao fim do mundo, erectas: como pela última vez. Sobre a montanha, na subtileza das ínguas um filho incorpora-se na beleza incurável das feridas, enquanto mães em seu delírio tacteiam a pedra, até ser flor. Por vezes sangram e cantam, secam os olhos, arrancam a língua dos sexos e em permanente luta, corpo a corpo, o amor estende-se, mas os gestos são indiferentes, neste caminhar obsceno de criaturas sem frutos. A aprazível violência do filial e obsessivo bem-querer. Há-de caber numa clara sílaba, num vasto eco, numa lágrima, numa gota de mercúrio, todo o tempo, todo o amor, “todos os passos em volta”, toda a murcha flor e dor consumida de uma existência sem história: uma travessia nua. in O búzio de Istambul
Antologia Poética
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Moçambique Eduardo Quive nasceu no sábado, ao oitavo dia do sexto mês de 1991 em Maputo. Enquanto guarda a eterna saudade de ter sido ardina na infância, com passagem pelo teatro, é poeta, escritor, jornalista entre outros exercícios experimentados do corpo, memória e alma quando é fotógrafo de artistas/artes ou então de gente anónima pelas ruas. Assumido jornalista e agitador cultural, fundou e editou, por dois anos, a revista Literatas – Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona; fundou e chefiou a redacção do jornal matolense Arena Juvenil e foi repórter dos jornais Escorpião e @ Verdade. Actualmente dirige a revista de artes e cultura, Nós. É possível ler as suas publicações dispersas em vários periódicos moçambicanos. Colabora com o jornal Sol. Colabora no programa cultural Galeria da Televisão de Moçambique (TVM), com sugestões de leitura. A sua militância na literatura dista da fundação do Movimento Literário Kuphaluxa. O seu primeiro livro de poesia assinado por Xiguiana da Luz é Lágrimas da Vida Sorrisos da Morte (FUNDAC, 2012). Tem poesia publicada nas Antologias de 2011 e 2012 do Prémio Mundial de Poesia da Itália, Nosside. Correio electrónico: eduardoquive@gmail.com
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O inadiável manifesto Estou aqui estou ai, meu adeus meu silêncio, suas lembranças me comovem, meu adeus é feliz Otis (o meu adeus) À Cláudia Muguande Se for para provar o sabor das ervas daninhas, deixo que a saudade cresça na noite e, que os montes não protejam as valas que enchem de sangue frio, os pulmões até ao peito. A saudade que verte-se-me pelos olhos, olha o infinito como apêndice ou então, astuta, a justiça do silêncio, cobra a alegria devida de um desejo com o corpo oblíquo entre as tuas pernas que choram mares vermelhos. Se todo o amanhecer fosse apenas o despertar das almas sob o júbilo dos galos, dos pássaros, não haveria o incandescente na noite onde os mesmos mortos dormem com os vivos; nem os pássaros abandonariam os chilros a paisanas, assim como as minhas mãos não deixam este poema perdido no sabor deste cálice. Os passos de uma manhã acordam a esperança e renovam a humanidade que nos resta no peito. A solidão é um chão sem alento. Não há pão que alimente uma alma vazia. Além, as lembranças afrontam a mente que subverte-se num instante de angústia que de dia engana-me dizendo que é feliz este corpo que se reveste de homem. Mas o escroto vazio releva a distância daquele perfume vital para a alma faminta de ser aquecida. E o precipício norteia o meu âmago, longe do teu colo materno, mulher, entre mulheres. inédito
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Fotografia
Ao Ricardo Rangel e Marcos Vieira
A parede encostada à tua sombra. Os cabelos soltos aos ventos invisíveis. Tua mão estendida à cintura que salienta as tuas ancas. Uma ondulação acompanha-te até aos pés que se cruzam a tecer a finura, uma valsa. Teu rosto húmido. Teus olhos redondos, alguns pedaços de luz nesse azul esbranquiçado. Teu nariz ajoelhado na infinidade do horizonte. Teus lábios, a sinfonia perdida entre a luz de um vermelho incandescente. Tua pele, a tempestade que banhou os céus nesta madrugada. Todo o resto é este poema que faz o ambiente nas tuas costas de onde os meus lábios se incendeiam ao pôr do sol...
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Portugal Fernando Aguiar nasceu em Lisboa, em 1956. Licenciado em Design de Comunicação pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e Doutorando em Arte Multimédia pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Desde 1974 publicou livros de poesia, performance poética, infantis e antologias de poesia visual em Portugal, Espanha, Alemanha, Itália, Irlanda, Canadá, U.S.A., Inglaterra e no Brasil.Foi incluído em antologias literárias publicadas em 16 países. Realizou 41 exposições individuais de poesia visual e participou em numerosas exposições coletivas. Publicou, entre outros, Poemografias – Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa (ed. Ulmeiro, Lisboa, Portugal,1985, com Silvestre Pestana); Concreta. Experimental. Visual – Poesia Portuguesa 1959-1989 (Ed. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1989, com Gabriel Rui Silva); Visuelle poesie aus Portugal, (ed. experimentelle texte, Siegen, Alemanha, 1990); Minimal poemas (ed. experimentelle texte, Siegen, Alemanha, 1994); Os olhos que o nosso olhar não vê (ed. Associação Poesia Viva, Lisboa, 1999); A essência dos sentidos (ed. Associação Poesia Viva, Lisboa, 2001); Imaginários de ruptura / Poéticas experimentais (ed. Instituto Piaget, Lisboa, 2002, com Jorge Maximino e outros).
Antologia Poética
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Errata
(em forma de soneto com rabo) - Logo na primeira página, precisamente na primeira linha, onde se lê era uma vez..., leia-se finalmente... - Na página catorze, na linha quatro, onde se lê quadro, leia-se quarto. - Na página seguinte, na linha oito e meio, onde se lê por meio de, leia-se no meio que. - Quase na página trinta, na linha férrea, onde se lê tanto mar, leia-se pouca terra. - Na página rasgada, na linha de fogo, onde se lê forca, leia-se força. - Numa página inexistente, na linha do horizonte, onde se deveria ler, leia - se mesmo. - Na página do meio, na linha do equador, onde se lê em paralelo, leia-se em diagonal. - Na página obscura, nas entrelinhas, onde se lê fode-se, leia-se pode-se. - Na página solta, na linha terra, onde se lê chão, leia-se cãho. Numa página distante, na linha do pensamento, onde se lê não penso, leia-se mas existo. - Ao virar da página, na linha do infinito, onde se tem muito que ler, leia-se o muito que se tem. - Na página em branco, na linha do imaginário, onde não se lê, não se leia. - Numa página perdida, numa linha ao acaso, onde se lê mesmo assim, leia- se assim mesmo. - A páginas tantas, na linha com que cada um se cose, onde se lê entrevista- se, leia-se entredispa-se. - Na última página, mesmo na última linha, onde se lê finalmente leia-se era uma vez...
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Pensamento Pensamento vem de fora e pensa que vem de dentro Arnaldo Antunes pensamento ou pensaminto, penso no nada que sinto. penso tanto, penso pouco penso até ficar rouco. penso muito, penso apenas penso em iras serenas. penso que sim, logo penso que não; pressinto o que pensa o coração. sonho agora, penso depois vejo amor e somos dois. penso entretanto, penso pois é e sustento que assim é que é; penso que fico, penso que parto e fujo fechado no quarto. penso que levo, penso que trago repenso no tanto que estrago. reparto logo, reajo comigo se penso que já não consigo; olho por baixo, penso por cima e resolvo a razão da rima. penso assim, penso assado pensamento que vem de lado.
Antologia Poética
penso de longe, pouso aqui perto e refreio um pensamento incerto. penso que faço, penso que fiz pensamento que se contradiz. penso que fui, logo anoitece, pensamento que se merece. penso o reverso, fico deserto; e erro ao pensar sempre certo. penso a frio, penso a quente não penso muito raramente... penso, que raio! penso que rio, repouso no som do vazio. penso que caio, sorte madrasta; e penso que pensar não basta. penso que então, penso que tento pensamento a cem por cento. penso enfadado, penso que enfim; repenso naquilo que pensa em mim.
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216 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Brasil Ronaldo Cagiano, nasceu em Cataguases (Minas Gerais), viveu em Brasília, onde graduou-se em Direito e reside em São Paulo. Colabora em diversos jornais e revistas, publicando artigos e resenhas. Publicou: Palavra Engajada (Poesia, SP, 1989),Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia, SP, 1990), Exílio (poesia, SP, 1990), Palavracesa (poesia, Brasília, 1994), O Prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Brasília, 1997), Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Brasília, 1997). Canção dentro da noite (poesia, Brasília, 1999), Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, em parceria com Joilson Portocalvo, Brasília, 2000), Dezembro indigesto (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da Secretaria de Cultura do Distrito Federal 2001), Concerto para arranha-céus (contos, LGE Editora, DF, 2005), Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio, 2006), O sol nas feridas (Poesia, Dobra Ideias, SP, 2011) e Moenda de silêncios (novela, em parceria com Whisner Fraga, Dobra Ideias, SP, 2012). Organizou as coletâneas Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, DF, 2002), Antologia do conto brasiliense (2003, Projecto Editorial, DF) e Todas as gerações – conto brasiliense contemporâneo (LGE, Brasília, 2006)
Antologia Poética
Das coisas e seu ritmo
O sol aceso em meus olhos fere a estrangeira gestação dos vazios. Há tempo demais nos relógios da cidade: eternidade com seus cupins de aço varando nossas entranhas para o triunfo do imponderável. Estamos purgando a existência com esses ponteiros insolentes condenado-nos a um destino de fadigas ou a nenhum registro nos obituários. Pedra dentro do tempo, a morte, como a mó, impõe o ritmo das coisas: pacientemente nos esfarinha, grãos de nada num pomar de bactérias.
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Animal da noite
No desterro do instante um homem sem rosto sem pátria atravessa a avenida como um pássaro na noite glacial Balé débil na dança das horas O ritual se repete: em cada lixeira, garimpo das sobras Só a lua o abastece da claridade que lhe cabe nessa carnificina de sombras nesse latifúndio dolorido de silêncios e carência de estrelas. O sol que amanhã virá, inevitável para nós, será tão intempestivo para ele como as ruínas de um pão dormido. Sem limites para a solidão ele colhe a dura oferenda
Antologia Poética
do que se amigalha no caos do que surge das privações em meio à beatitude do nada que santifica seus desertos enquanto tenta (re)colher no pomar infértil da vida os frutos amargos da manhã estéril (ou sempre adiada).
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Moçambique Nelson Lineu, nasceu na cidade de Quelimane no dia 26 de Janeiro de 1988. É estudante de filosofia na Faculdade de Filosofia da Universidade Eduardo Mondlane. Membro fundador e Secretário-Geral do Movimento Literário Kuphaluxa, Director Geral da Revista Literatas. Tem poemas e contos publicados em diversas revistas literárias; Artigos de opinião no Jornal Notícias, Magazine Independente, O País, Canal de Moçambique, Savana e Diário de Moçambique.
A seguir só quero o que não espero antes só esperei o que quis inédito
Antologia PoĂŠtica
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A letra reescrevo-me em cada viver por vezes tenho-me no que nĂŁo vivi como cego tacteio-me antecipando-me aos instintos e assim dialogo com a natureza sem testemunho da certeza
inĂŠdito
222 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Portugal Maria João Cantinho é professora no Iade (Instituto de Artes e Design) e no secundário. Doutorada em Filosofia Contemporânea, é também escritora, crítica e ensaísta. Publicou: A Garça (ed. Diferença, 2001), O Anjo Melancólico (Ed. Angelus Novus, 2002), Sílabas de Água (ver-o-Verso, 2005), Caligrafia da Solidão (Ed. Escrituras, 2006), O Traço do Anjo (Edium, 2011). Colabora regularmente com várias revistas literárias e de Filosofia, como a “Colóquio-Letras”, a “Ler”, entre outras publicações. É membro da Direcção do Pen e da Associação portuguesa de Críticos.
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Ritos de passagem
I
Sigo o passo lento dos animais, o ritmo milenar, o canto do vento indicando o caminho dos nómadas. Ao dia sucede a noite, enquanto seguimos, lentamente, lendo uma outra escrita que se desenha nas estrelas, constelações, runas, vestígios minerais e pela madrugada dançamos em redor do fogo, embriagados de luz e de sonhos como se fôssemos deuses antigos. inédito
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Partes lentamente da vida num barco ébrio de sangue onde se inscreve a pele da noite nesse festim. Dobras o vento, esse uivo que chega do Norte, nas pegadas de um silêncio interdito e em que calas os nomes desenhados na lucidez das mãos. Ninguém lê as pedras, os sinais, Ninguém decifra o traço de sangue desse navio Que navega em direcção a uma ilha, Neste arquipélago de solidão. Os gestos são irremediáveis, no instante Em que tudo refulge para se afundar. Ninguém ouve Este naufrágio perdido no canto de um marinheiro Que sabe não voltar. A viagem é sem retorno. Tu sabes, vais a caminho. inédito
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Brasil Wilmar Silva nasceu em Rio Paranaíba, Minas Gerais, Brasil, em 1965. Poeta, performer, editor, curador, artista visual e sonoro. Mentor do projeto de pesquisa de poesia de línguas neolatinas Portuguesia Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética (Anome Livros/MG/Brasil, 2009), contraantologia em livrodvd com 101 poetas de Portugal, GuinéBissau, Cabo Verde, Brasil (Minas Gerais). Sua poesia é traduzida e publicada em espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, finlândes, húngaro. Tem ecoperformances de POESIA BIOSONORA apresentadas no Brasil e América, Europa e África. Publicou, entre outros Lágrimas & Orgasmos (Editora Arte Quintal/MG/Brasil, 1986); Moinho de Flechas (Editora Blocos/ RJ/Brasil, 1994); ANU (Editora Confraria do Vento/RJ/Brasil, 2008); Astillas en el lago de Púrpura/ Débris sur un Lac Pourpre/ Shatters in the Lake of Purple/ Estilhaços no Lago de Púrpura (Anome Livros/MG/Brasil e Embaixada do Brasil em São Domingos/ Centro Cultural Brasil-República Dominicana, República Dominicana, 2009); Yguarani (Cosmorama Edições/Portugal, 2009); Silvaredo (Anome Livros/MG/Brasil, 2010)
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Menino Jesus é rei
Alvez eu screva um oema epois do atal E alvez eu screva um oema epois da assagem E ode ser que o oema ale de uzes e ão de rzes E do eregrino que asceu na strebaria e ndou Luminado elo undo de elém e epois Orreu na ruz ara alvar os omens Alvez Eu screva um oema que ale de az Alvez A az eja um írculo de strelas adentes Aindo ozinhas ao éu huviscam a oite Que é iva e ediviva de aga-umes Leluia, enino esus é eiÉ ei, É ei, Ér Rei.
Antologia Poética
Sudário
çim jeuss csrito ivev edntro de mmi eel drome em mniha csaa em mniha cmaa eu eo ajno de lux msorto os ohlos de lúzifer e jeuss bieja mniha bcoa os libáos cehios de erestlas eu o ajno de luaz vvio de parzser vvio e fmoe fmoe e sdee de sxeo jeuss um jeuss de ohlos mohlados ohlando osm e usohlos mohlados eu o ajno de luz com a sdee do mnudo a sdee em mniha línuga o ajno de luz teprdao na curz o sbulime o ajno ridevvio de lu z abra
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Angola João Tala nasceu em Malanje, onde frequentou o ensino primário. Em 1974 veio à Luanda onde continuo os seus estudos. Tendo ingressado às Forças Armadas num contexto de guerra, foi enviado para o Huambo em 1980, onde entre várias coisas participaria na formação da Brigada Jovem de Literatura – Alda Lara e começaria estudos de medicina, os quais foram concluidos em Luanda. Actualmente é especialista em medicina interna. Ingressou na União de Escritores Angolanos (UEA) em 1987, ano em que lançou a sua primeira obra intitulada: A forma dos desejos (poesia, prémio primeiro livro da UEA). Publicou ainda O gasto da semente (poesia, menção honrosa do prémio literário Sagrada Esperança); A forma dos desejos II (2003); Lugar assim (2004); Os dias e os tumultos (contos, grande prémio de ficção, 2004, UEA); A vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos (grande prémio de poesia, 2005, UEA); Surreambulando (2007); Forno feminino (2010) e Rosa & Munhungo, (2011).
Antologia Poética
Malanjina
Vou de camuflado vou imune visitar a malanjina vou com a ciência dos amantes não posso esperar esperas criam cicatrizes e eu já estou ingurgitado ela engoliu-me a infância cabe ainda no cheiro procuro-a na sombra ou na pedra onde quer que haja um lugar de leite.
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No fim das tuas pupilas
parece um bosque de pétalas amarelas. o bosquímano tem um bosque verde o poeta amareleceu. caótico. diga. gemente. a luz. a gema. no fim das tuas pupilas amor vítreo. humor vítreo. água ensolarada água. pálida. humor. os teus olhos têm clara ideia do que eu peço para beber? ideário. amor. rio. só pode ser vulvar. um vulto. doce. partitura. na carne uma uva. ou aquário. meus triste olhos tristes não os peças que desmanchem teu último corpo. a ideia segue cega. isto é: trapos de poesia.
Antologia Poética
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Moçambique Mbate Pedro, poeta, nasceu em 1978, em Maputo, Moçambique. Publicou os livros de poesia: O mel amargo (2006) e Minarete de medos e outros poemas (2009).
novos demais para a poesia depois de certa idade há no amor a mesma urgência em ficar que um cadáver tem dentro da morte depois de certa idade como frutos apodrecidos nas árvores teimamos em não partir quando de nós há muito se apartou o amor depois de certa idade ficamos novos demais para a poesia in a reverberação do chão e uma pedra aquecida ao sol
232 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Negro como o obscuro esse jarro o teu (ou seja lá o que for)
dentro de um jarro na planta dos meus pés cresce o fruto de um enjoo ou seja lá o que for dentro de um voo nas asas do meu nariz abre-se o chão ao espanto ou seja lá o que for de repente cresceu-te alegre o mamilo (negro como o obscuro) para dentro do poema e eu nem pude ajudar-te
in a reverberação do chão e uma pedra aquecida ao sol
Antologia Poética
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Portugal Aurelino Costa, nasceu em Argivai, Póvoa de Varzim (1956). Poeta e diseur, licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Publicou Poesia Solar (1992); Na Raiz do Tempo (2000); Pitões das Júnias, com Anxo Pastor, (2002); Amónio (2003), 2ª edição (bilingue, castelhanoportuguês) tradução de Sílvia Zaias,(2006); Na Terra de Genoveva (2005); Domingo no Corpo (2013)/Deriva Ed.Antologias: A Poesia é Tudo (2004); Na Liberdade – 30 anos –25 de Abril (2004); Vento –Sombra de Vozes/Viento – Sombra de Vocês (2004); Son de Poesia (2005); Os Dias da Criação (2006); Canto de Mar (2005); hotel ver mar, (bilingue Português-Alemão) tradução de Michael Kegler (2009); Portuguesia ContraAntologia (2009); Pegadas (2011); Corté la naranja en dos, tradução de Fernando Reyes (2012); Amado Amato (2012).Entre outros.
234 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
É comovente, a tua poesia
é comovente, a tua poesia chego a ter pena de ti e às vezes medo ardes-me na mão como uma brasa ao rubro e eu sinto-a e apetece-me levá-la à boca, queimar-me. adorava que me visitasses mais vezes tens um quarto cá em casa, louceiro, agasalho e pão, ainda fresco, coberto com um pano, na masseira de pinho aguardarei todos os dias, enquanto pascerei vacas até que venhas e ordenharei úberes brancos, de leite branco e espumoso, meu poeta. não te esqueças, às vezes tenho fome, muita fome e o jejum mata-me. inédito
Antologia Poética
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Mar ingente os hipermercados
mar ingente os hipermercados bocas de fome as embalagens as luzes que tremem são teus olhos incapazes de (a)pagar a electricidade
o design do nada nas palmas o silêncio que fazem no verde código verde? oficiar avés na ladainha dos preços?
passam de carro as caras aquecidas não tens lugar para o choro, resta-te o frio
dos cartões ninguém se descarta: contaste 12 visas e masters na carteira que encontraste sem código
alguns vizinhos teus do sub murcham a óptica em direcção à esperança.
tu desligas as tuas luzes. talvez não acordes. inédito
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Angola Luís Kandjimbo, poeta, ensaísta e crítico literário é um dos mais importantes escritores da sua geração – a chamada Geração das Incertezas, dos anos 80 – revelando-se como estudioso e investigador da história literária angolana. Participou no movimento associativo dos jovens escritores de Angola, foi co-fundador da Brigada Jovem de Literatura da Huíla e redactor da sua principal revista, Hexágono. Foi membro, em 1982, da direcção da Brigada Jovem de Literatura de Luanda e do corpo redactorial da revista Aspiração. Integrou ainda o grupo literário Ohandanji, formado em 1984, com Lopito Feijóo, António Panguila, Cikakata Mbalundu (Aníbal Simões), Domingos Ginginha e Joca Paixão, de que foi um dos mais activos animadores. Tem colaboração dispersa em diversas publicações angolanas e estrangeiras (Brasil, Espanha, Estados Unidos da América, França, Nigéria e Portugal). É colaborador do Arquivo Histórico Nacional de Angola e membro da União dos Escritores Angolanos e da Association pour l´Étude dês Littératures Africaines (APELA), com sede em Paris. Foi Conselheiro Cultural da Embaixada de Angola em Portugal, Vice-Ministro da Cultura, e actualmente desempenha as funções de Director da Acção Cultural da CPLP.
Antologia Poética
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Na rota do poente
Em 1853 fui para o poente, a caminho de Moçambique. Com a minha comitiva, armei as últimas cipundas perto de Ngalangi.O comércio era o nosso horizonte. Em Kakonda procurei a casa do meu tetravô. Depois em Cikomba, passei na aldeia onde no lugar do meu pai, podia reinar em Kandingi, herdando algum poder de outro tetravô. Falei-lhes sobre a minha angústia de invenção, de uma nova maneira de ler na natureza a cartografia e os caminhos. Todos disseram para seguir os rios, compreender as àrvores, a vegetação e os animais. Mais importante, acatei: São as pessoas que aparecem no caminho, levar-te-ão sempre aos que mandam e vão te pedir a portagem para travessia. Se não pagares, terás sempre azar no caminho, os homens da tua comitiva poderão morrer de doenças estranhas. Mas, ouve, importante mesmo são os animais e os caminhos que indicam sempre o rumo de longe.Nas colinas, planuras, rios e savanas demandei terras. Já tinha atravessado rios como o Liambeje e o Kuvango. Depois encontrei o Rovuma. Quando cheguei no povo chamado Va-Lungwana, me disseram que era ali onde viviam também os Vi-Ndjungu.
in De Vagares a Vestígios
238 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Sob a Lua
A lua traz no halo meses e calendários Das mulheres amáveis na curta medida Das sementes magníficas Do nascer e da morte A lua desaparece na nebulosa malha Da noite resignada A lua perde o centro Na noite com meses e calendários Ficam estrelas para mulheres solitárias E saudosas aguardam sementes magníficas Do nascer e da noite in De vagares a vestígios
Antologia Poética
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Brasil Ademir Assunção, poeta e jornalista, nasceu em Araraquara (SP), em 1961. Publicou os livros de poesia: LSD Nô (1994), Zona Branca (2001), ) e A voz do ventríloquo (2012). Além de três livros de prosa experimental: A máquina peluda (1997), Cinemitologias (1999) e Adorável Criatura Frankenstein (2004).É um dos editores da revista de literatura e arte Coyote. Mantém o blog http://zonabranca.blog.uol.com.br, o site http:// zonabranca.sites.uol.com.br e o twitter https://twitter.com/#!/ ademirassuncao.
240 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
A vida em tecnicolor III
agora digo nada, a vida que se vive agora, o relógio marca as horas, clepsidra que evapora, silêncio nas bordas do tempo, escrita perdida no espaço, os peixes saltam nas vagas, poema que ao vento se apaga, ao lume de lua nenhuma, um nome escrito na água
Antologia Poética
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O grito sob impacto da pintura de Edvard Munch
céu sangue, azuis de gases, instável gravura — terror que se grafa na íris: uma alma em pânico: motivo algum — nenhum desastre asteroide em rota de colisão, explosão de bombas, escombro, crime ou espasmo: maconha demais — diriam os bolhas, nódoas de noia, bolores de centeio: mal sabem (o fiorde arde em lilás) — a bomba explode nas entranhas: e é isso que faz a paisagem trêmula
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Espanha Miguel Ángel Alonso Diz nasce em 1976, em Madrid. É licenciado em Economia e docente na rede de ensino privado. Faz parte do espaço “A porta verde do sétimo andar”. Participa em numerosas iniciativas culturais na Galiza e Portugal. É colaborador habitual da revista Atenea e um dos impulsionadores dos cadernos Q de Vian. Publicou: Poemas do dia e da noite (Na rede 2008), Memórias da cidade escura (Outrovigo.com 2009), Imagens e palavras (Blurb.es 2010) e O cullarapo Croque xunto a Luz Beloso (Nova Galicia Edicións 2012). Tem participação nas obras colectivas As vozes do pan (Entremos na Panificadora, 2009), Sétimo andar, poesía além (Nova Galicia Edicións, 2010), Ciência que conta (Universidade de Vigo, 2010), Pegadas (Nova Galicia Edicións, 2011), Coroa poética a Urbano Lugrís (A nave das ideas, 2011). Colaborou ainda em edições das revistas Galicia en Madrid e Búsola.
Antologia Poética
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Semeamos pedras ao nosso redor cada vez mais altas cada vez mais fortes” Semeamos pedras sobre pedras nos olhos, nas palavras, nas estrelas. Alimentamos lagoas nos espaços planificamos fronteiras; labregos do auto ódio não esqueço a nossa terra. E não a rego das ausências vejo o morto batendo num ventar de campas … ferindo esperanças baixo a árvore da indiferença. Medo medrando nas pedras ao som do ronco brotar da terra que doe, que geme, que BERRA! E não nego a presença da morte nos meus beijos, e não nego a solenidade no seu tempo. Tão só digo que: “Semeamos pedras ao nosso redor cada vez mais altas cada vez mais fortes” Tradução Amosse Mucavele
244 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Amor em te maior
Amo-te meu amor amo-te, e com esta afirmação atraco o teu coração entre os meus dentes. Quero alimentar-me de ti sentir-te meu amor, sugar a tua alma até a derradeira convulsão do mundo. Amo-te meu amor amo-te, entre os meus dentes, baixo as minhas unhas.
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Amo-te! e quero desterrar-te de toda matéria, e converter-te em ser luminescente, entre os meus dentes amar-te até a morte, ser ti... nesta dança cadenciosa de tarântula silenciosa. Alimentar-te de ti mesmo e finalmente … deixar-te exausto meu bailarino . Tradução Amosse Mucavele
246 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Angola Victor Burity da Silva nasceu na Cidade de Huambo, em 1961, reside em Lubango e trabalha em Luanda. Estudou jornalismo em Lisboa e trabalha na Universidade Independente de Angola, (UniA), desempenhando as funções de SecretárioGeral e Director de Biblioteca. Possui os cursos de Bibliotecnia, Documentação e Investigação Científica, e Gestão Académica, pela Universidade Mandume ya Ndemufayo, Lubango. Participou de várias colectâneas de prosa e poesia, com publicações literárias em vários jornais e revistas portuguesas, obtendo vários prémios e menções honrosas. Publicou, entre outros, Rua dos anjos (do qual se extraiu parte do texto para manuais escolares de Português, 12ª classe – Angola, Porto Editora, 2009), Este lago não existe (Porto Editora, 2009) e Novembro (Porto Editora, 2011).
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Foste silêncio de prata, hangar, noite ou defeito, neste corpo de pardal, foste o recreio fundido, foste tempo bem-vindo, a verdade mais profícua desta verdade inesquecível. Foste o meu riso contido, foste o meu peito calado, nessa noite de bordéis. Foste o abraço zangado, foste o jazigo quebrado de tantas noites à pele. Foste o meu futuro passado nesta mesa já cansada de tantos papeis por voar, inventando, escrevendo o fim afinal. Foste tudo de que sou feito, foste a zangada e eleita neste canto menor. Foste o meu beijo sacado, foste o meu abraço já seco dos tempos idos então. Foste pele de figurino, foste toda de papel neste sargaço de verdades. Foste fingida saudade, toda ela por verdade, ancorada neste meu sol de tantas noites. Foste recreio do tempo, foste gentil no meu tempo, inventada para me curar, foste raiz abstracta, foste verso calado, neste meu leito de ti, onde sem pudores, te beijei. Foste esculpida na tarde, vestida na ânsia, pintada sem telas ou pinceis, o martelo do sonho que se desliza batendo devagar nesse corpo que vou criar, foste uma arma aguçada onde o tiro beijado era apenas amor, foste esta casa meio tudo, este canto sortudo, foste o armário onde me guardo, o canto onde me sento, o lenço onde espirro, o beijo matinal.
248 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Andaria descalço
Andaria descalço pelas trevas do tempo, ouviria sonetos escondidos por detrás do arvoredo e o zunir do mar entrarme pelo meio das pernas. Uma escadaria que por ventura aparecesse, subiria ou desceria, conforme os casos, claro, ainda a sombra dos choupais despedidos neste outono de que ano nem me importa, imaginava serem umas vinte e três horas, sentia no brilho do luar que descia súbito contra os meus olhos ainda cansados. Sei porque sinto. Por isso sei. O ponto mais próximo do s onho está a achegar, isto se conseguir, preparo as objectivas, tento vislumbrar com as minhas ânsias este silêncio arrumado num pasto, a um canto qualquer da minha alma. Secar sob este sol as lágrimas desperdiçadas pelo hábito, “mais vale a pena chorar pelo que já perdemos”, enquanto penso, atravesso um Danúbio,um Zaire, um Amazonas, um Nilo, invento-me acompanhado por batuques, cavaquinhos, guitarras, ou então, a electrónica da actual moda das músicas sem sexo.Igual.
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Moçambique Amosse Mucavele nasceu em Maputo, aos 8 de julho de 1987 ,vive em Maputo. É membro fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, onde coordena o Departamento de projectos e a Redacção da Revista Literatas-Revista de Literatura Moçambicana e Lusofóna,membro da Academia de Letras de Teófilo Otoni. É rapper, líder do Colectivo 12 Apostólos, sóciogerente do Estudio Grafic Records, poeta, tradutor, ensaísta, antologiador e cronista. Colabora no Pavilhão Literário Singrando Horizontes – Academia de Letras de Paraná, Jornal Coruja, Revista Eutomia Literatura e Linguística da Universidade Federal de Pernambuco, Eisfluencias, entre outras, e organizou a antologia da Nova Poesia Moçambicana para a Revista Zunái (Brasil).
250 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Engenharia da Solidão Para Geraldo Lima
[ ... ]
A primavera soçobra nas sombras do mar uma noite deserta de silêncios lateja nos infinitos ouvidos do poço fora do núcleo terrestre as pedras voam em direcção ao fim da partida como um barco sem leme à procura do exílio nas portas do vento in A Posse do(s) Sonho(s) ou o Prefácio de uma Galáxia Interior
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uma maçã montanhosa de lágrimas sobe ela coloco os remos á combustão na prespectiva e na sintaxe de inscrever os pontos de fuga no interior do desejo descongelo a saudade e a olho nu assino (n)as paredes do horizonte com as cores do pecado. in A metamorfose da Sinfónia Amarga e Outras Viagens Incendiadas
252 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Cabo Verde Maria Helena Caldeira Marques de Morais Sato nasceu em São Vicente. Mestre em Comunicação, é bacharel em Letras, com pós-graduação em Comunicação Social, Literatura e Comunicação Empresarial Internacional. Fez especialização em Recursos Humanos e em Gestão do Conhecimento. É Master em gestão empresarial e tradutora pública e intérprete comercial (inglês, francês e espanhol). Atua profissionalmente nas áreas de comunicação empresarial e de responsabilidade social corporativa. Publicou: Bonsais e haicais (2000), Faíscas (2001), Recados de mulheres para os homens que as amam (2002), Farol (2002), Presente do mar (2003), Caminho orvalhado (2004), Camaleoa – Poesia da Cidade (450 anos de São Paulo, 2004), Cristais” (2005) e Areias e ramas. Em prosa escreveu António Januário Leite – O poeta Além-Vale (em parceria com Luís Romano).
Noite Foge a estrela do mar, refulge no céu outra estrela. Esquiva, cintila no mar, brilha onde não a posso alcançar. in Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea
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Espera
Eram labaredas da tarde, soavam as ave-marias. Súbito grito calou-se recolheu-se uma foice apaguei o fogão era noite fria. Uma oração me calou. Meu coração esperou. Esperou. Esperou. Mas a manhã seguinte era ainda fria. in Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea
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Angola J.A.S. Lopito Feijóo K., pseudónimo de João André da Silva Feijó, nasceu em Malanje, em 1963. Estudou Direito em Luanda, na Universidade Agostinho Neto (UAN). Deputado reformado da Assembleia Nacional da República de Angola. Poeta e crítico literário. Membro Fundador da Brigada Jovem de Literatura de Luanda ( BJLL), colectivo de trabalhos literários Ohandanji e da União dos Escritores Angolanos (UEA). É actualmente presidente da Sociedade Angolana do Direito do Autor (SADIA). Tem colaboração dispersa em publicações de Angola, Portugal, Espanha, Brasil, Estados Unidos da América, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Nigéria, entre outros. É membro da International Poetry dos EUA e da Maison Internationale de la Poesie, sediada em Bruxelas, Bélgica. Está repertoriado na 10ª. Edição do International directory of distnguished leadership (2004-2005), do American Biographical Institute. Publicou: Doutrina( 1987), Me ditando (1987), Rosa Cor-de-Rosa ( 1987), Marcas de Guerra ( 2011), Lex & Cal Doutrina ( 2011). Tem ensaios, trabalhos de crítica literária e antologias.
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De pedra e sal
Sonhando sóbrio subo ao alto da altivez sério sorvo o sumo que somei semeando o sentido nem tido nem perdido só licito sol dado sem sílaba tónica somente samaritano servente servindo só rindo volta e meia de soslaio. in Lex & Cal Doutrina
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Contra-curva
Fonte aglutinadora do por vir por acaso avistada sĂłbria e resistente curva contra-curva baixada de algum nevoeiro de turva visibilidade toda a hĂĄbil idade morre pela boca que o anzol vislumbra. in Lex & Cal Doutrina
Antologia Poética
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Macau Carlos Marreiros nasceu em Macau, em 1957. É arquitecto e pintor. Foi director artístico e sub-director da Revista de Cultura, presidente do Instituto Cultural de Macau (1989-1992), fundador do Círculo dos Amigos da Cultura de Macau e fez parte da comissão organizadora do I Encontro de Poetas de Macau (1994). É professor convidado, desde 1992, da Academia Nacional de Belas Artes da Universidade de Xangai. Encontrase representado em várias antologias, nomeadamente, Trovas Macaenses (1992) e Antologia de Poetas de Macau (1999).
Cântico de Espumas Cada gota de suor, uma pérola E no oceano do teu corpo Solto as velas da tua pele Navego a plenitude numa concha E vejo as ondas desfeitas Na cordilheira dos teus búzios. Macau, 1984 in Antologia de Poetas de Macau, 1999
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Mei Chit Lai
Era líchia toda ela. Branca translúcida trémula estranha cheirava a rosas passadas. Solvi-a num trago e arrependi-me. Faltou-me o sentido da eternidade e perdi-a, num só gesto, naquele instante. Xian, 1989 in Antologia de Poetas de Macau, 1999
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Brasil Affonso Romano de Sant’Anna nasceu em Belo Horizonte, em 1937. É poeta, ensaísta, cronista, professor, e um dos destacados intelectuais brasileiros da actualidade. Foi Presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (CERLALC), Secretário Geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas. Professor de Literatura Brasileira em diversas universidades como a Universidade de Colônia, na Alemanha e Universidade do Texas, nos Estados Unidos de América, entre outras. A sua obra encontra-se traduzida em varias línguas. Publicou, entre outros Drummond, o gauche no tempo (Prémio União Brasileira de Escritores), O Canibalismo Amoroso (Prémio Pen-Clube), Mistérios Gozosos (Prémio União Brasileira de Escritores). Foi agraciado com o Prémio APCA-Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo conjunto de obra.
260 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Que país é este?
(Fragmento 2) Há 500 anos caçamos índios e operários, Há 500 anos queimamos árvores e hereges, Há 500 anos estupramos livros e mulheres, Há 500 anos sugamos negras e aluguéis. Há 500 anos dizemos: que o futuro a Deus pertence, que Deus nasceu na Bahia, que São Jorge é guerreiro, que do amanhã ninguém sabe, que conosco ninguém pode, que quem não pode sacode. Há 500 anos somos pretos de alma branca, não somos nada violentos, quem espera sempre alcança e quem não chora não mama ou quem tem padrinho vivo não morre nunca pagão. Há 500 anos propalamos: este é o país do futuro, antes tarde do que nunca, mais vale quem Deus ajuda e a Europa ainda se curva.
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Há 500 anos somos raposas verdes colhendo uvas com os olhos, semeamos promessa e vento com tempestades na boca, sonhamos a paz na Suécia com suiças militares, vendemos siris na estrada e papagaios em Haia senzalamos casas-grandes e sobradamos mocambos, bebemos cachaça e brahma joaquim silvério e derrama, a polícia nos dispersa e o futebol nos conclama, cantamos salve-rainhas e salve-se quem puder, pois Jesus Cristo nos mata num carnaval de mulatas
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262 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Separação
Desmontar a casa e o amor. Despregar os sentimentos das paredes e lençóis. Recolher as cortinas após a tempestade das conversas. O amor não resistiu às balas, pragas, flores, e corpos de intermeio. Empilhar livros, quadros, discos e remorsos. Esperar o infernal juízo final do desamor. Vizinhos se assustam de manhã ante os destroços junto à porta: pareciam se amar tanto ! Houve um tempo: uma casa de campo, fotos de Veneza, um tempo em que sorridente o amor aglutinava festas e jantares. Amou-se um certo modo de despir-se,
Antologia Poética
de pentear-se, Amou-se um sorriso e um certo modo de botar a mesa. Amou-se um certo modo de amar. No entanto, o amor bate em retirada com suas roupas amassadas, tropas de insultos, malas desesperadas, soluços embargados. Faltou amor no amor? Gastou-se o amor no amor? Fartou-se o amor? No quarto dos filhos outra derrota à vista: bonecos e brinquedos pendem numa colagem de afetos natimortos. O amor ruiu e tem pressa de ir embora envergonhado. Erguerá outra casa, o amor? Escolherá objetos, morará na praia? Viajará na neve e na neblina? Tonto, perplexo, sem rumo um corpo sai porta afora com pedaços de passado na cabeça e um impreciso futuro. No peito o coração pesa mais que uma mala de chumbo.
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Moçambique Adelino Timóteo, nasceu em 1970, na Beira. Publicou: Os segredos da arte de amar (poesia, 1999, edição AEMO, 2002), Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique (poesia , edição da Ndjira, do Grupo Leya, Prémio Nacional Revelação AEMO), A fronteira do sublime (poesia, AEMO, 2005), Mulungu (romance, 2008, Texto Editores), A Virgem da Babilónia (romance, 2009, Texto Editores), Nação Pária (Romance, 2010, Alcance Editores), Dos frutos do amor e desamores até à partida (Poesia, 2011, Alcance Editores,Prémio BCI 2011).
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1.
O que será que espanta a um homem depois de abrir uma janela? Alguém me diz: uma Mulher que logo se lhe entra pela retina. Mas é um livro o que ela se torna, alojada no cérebro que mexe com a consciência dele. Pois uma janela, fisiologicamente, imita um livro. Um corpo. Uma mulher. E repito-o, no que parece paradigmático: Livro Mulher. Palavras mais doces e que me afluem aos lábios húmidos. Palavras que me queimam os lábios e a língua e o céu da boca pela doçura com que ela me chega, tão intensa e tão agradável. Livro Mulher. Ou livro-mulher. Livro na língua, na cultura com que se expressa o encanto, seja lá no que for, na tonalidade com que incide, na melodia que a colorifica, traz uma paisagem alta que a monumentaliza por dentro e por fora. Por isso, no simbolismo e à densidade com que te anunciam, és esbelta em todas as línguas com que te nomeiam. Em Estónio. Mandarim. Turco. Gurajati. Azerbaijano. Sueco. Búlgaro. Zulo. in Livro mulher
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1
A Ilha é mágica e misteriosa, tu sabes, e eu gosto dela assim pura. Ilha – caminho para o oriente. Ilha – Mitologia, magia vibrátil, contagiante, em sua esteira aérea e calorosa, desces-me. Como a luz atravessas-me. Tu que és os ritos, o entreposto e a rota para a Índia, a Arábia Saudita, teu folclore encandeia-me o horizonte. Teus seios geminados eu reparo e não sei mais que fazer, a casa do meio que tu me és espanto só de ouvir-te, e que milagre, que magia nasce das tuas mãos, dos teus poros. Palavra que como o fogo aqueces-me o corpo, irreconheço-te só de navegar-te, mulher, meu pulmão, minha respiração, motor que eu quero impulsionante pelo sangue adentra-me, que é de amar, meu ofício, meu vício, que existo, pátria, Pandora, paquete, palanque meu que podes ser a ideia do moinho ao centro da mó e na esfera à cabeça do Mediterrâneo. Agora entre as mãos e a língua levo-te como uma donzela à passagem iniciática do menstruo, como a doce cantiga embrulhada na fogueira levo-te os genes carregados de bateria e frutos de afecto, ainda aquela memória solar do voo.
in Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique
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Portugal Filipa Isabel, ou Ary dos Santos Vera Jardim, publicou sob vários pseudónimos no suplemento DN Jovem, do Diário de Notícias. Participou em colectâneas de poesia como Colectânea de Poesia (organização Luís Filipe Soares. Tem participado em eventos de poesia, tertúlias, encontros, com vários trabalhos em poesia e em prosa poética. Mantém um blog, onde escreve regularmente http://chezgeorgesand.blogspot.pt/
268 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
De costas, para o lugar da sua história
Recordava-se em absoluto que se tinha deitado de frente. Todos os dias se deitava de frente, para um luar. E todos os dias, acordava de frente, para o que dele restasse.Podia ser um sonho, podia ser uma imagem. Podia ser a necessidade de ausência, que só se encontra, plenamente, no ar leve da madrugada. Acordava de frente para a madrugada. Havia restos de noite, que se iam deitar, cheios de histórias. E luzes, que tremeluziam ainda, à espera do que acontecesse. Iriam acontecer muitas coisas. No tamanho e, na proporcionalidade das horas que voam, pelo dia fora. Ou que, simplesmente, se deixam escorregar. Susteve, por breves instantes a respiração e pensou que se tinha deitado de frente. Era absolutamente inequívoco. E, não obstante, acordara de costas. Pela primeira e única vez na sua vida: tudo o que tinha acontecido e mais ainda, o que iria suceder, estavam confinados ao lugar da ausência... Só se rodasse, em meia volta. Mas o tempo... O tempo não tem metades. Não estanca a meio de um bocado de vida, à espera do outro tanto. Pensou no pião, que tinha guardado na gaveta da memória e, lançou-o. Com toda a força, até ao lugar do coração. Agora rodopia, entre o que jamais aconteceu e o que, mesmo sucedendo, nunca lhe servirá de história.
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Existência, num murmúrio, do fundo do coração
Desenhou uma espiral na entrada da casa. A afunilar, directamente, à estrada do pensamento. Não se percebia muito bem da porta, quantos passos se teriam que dar, para ultrapassar toda a realidade, rodar a maçaneta aos sonhos e, desembocar numa passadeira, sem vivalma. Mandava então parar o tempo, aquietar o espaço e seguia. A viagem era sempre a da existência. Sem destino preciso e sem direcção definida. Guiava-o uma bússola, que herdara do seu avô. E um marcapassos, amarelado, de vitrina partida e ponteiros seguros por um elástico, que lhes permitia contar a vida, segundo, a segundo, por uma boa parte da eternidade. Todos os dias percorria sozinho, uma boa parte da eternidade. Não havia esperança nem contemplação, na viagem. As bermas permaneciam inertes e a paisagem, permanentemente indefinida. Depois de horas de repensar o que o levava. Passava outras tantas horas, a ensimesmar-se, sobre o que o traria. Ainda hesitou, por um dia, desviar-se. A causa, foi um pequeno murmúrio, que pareceu ouvir, do fundo do coração...
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Brasil Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor. Desgraduou-se em muitas coisas: Psicologia, Música e Letras. Foi fundador e editor do site de literatura Cronópios (até meados de 2009) e da revista literária Mnemozine. É professor no Curso de Criação Literária, da UnicSul/Terracota Editora, no módulo Poema. Lançou em 2007, Sortilégio (poesia), pelo selo Demônio Negro/ Annablume e, como organizador, O que é poesia?, pela Confraria do Vento/Calibán. Lançou, também, uma adaptação do épico indiano, Mahâbhârata, pela Paulinas Editora. Em 2011, lançou Sambaqui, livro contemplado pela Bolsa de Criação da Petrobras Cultural. Em janeiro de 2012, colocou no ar seu novo projeto: o site MUSA RARA. Escreve com frequência no blog http:// sambaquis.blogspot.com. E-mail: sonartes@gmail.com
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Sopro
assim como não há eu vejo assim como não dá ensejo assim e só assim desejo in Sortilégio
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Palimpsesto
toda poesia já escrita não se equipara a toda poesia inscrita a poesia jaz
in Sortilégio
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Angola João Maimona, nasceu a 8 de Outubro de 1955, em Qibocolo ( Maquela do Zombo). Estudou Humanidades Científicas em Léopoldville. Em 1978, fixou residência na província de Huambo onde se licenciou em Medicina Veterinária. é membro fundador da Brigada Jovem de Literatura de Huambo, membro da União dos Escritores Angolanos, quadro do Ministério da Agricultura, Deputado, Professor Universitário. Laureado duas vezes com um dos mais prestigiados prémios nacionais, o “Sagrada Esperança”, com os livros “Trajectória Obliterada e Idade das Palavras, em 1984 e 1996”.figura em numerosas antologias em Angola, Bélgica, França, Brasil, Espanha, Portugal, sua obra é objecto de estudos em diversas Universidades. Publicou: Les Roses Perdues de Cunene (1985-Lausanne), Trajectória Obliterada (Luanda-1985), Traço da União (1987), No Útero da Noite (Luanda-2001), o sentido do regresso e a alma do barco(Kilombelombe, 2007, Luanda), entre outras.
274 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Meus Braços de Gelo
Pelas colinas da rua disperso e ofereço feridas com os braços de gelo da pele que corre pelas ruas. e as ruas são campos de laranjeiras mumificadas nas bocas do porto que há-de mumificar-se. quando se ouvir o sino das sementes. in No Útero da Noite
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imenso exercício: o da interrogação sobre a insondável imagem, na realidade era o escolher entre transparências adormecidas a ternura da partida. o convite á alegria galopa na cidade que ainda ontem significava apenas conversas de árvores periféricas. e a nudez do rosto surge como conjunção do impenetrável. magnifica é a taça profunda. sua fecundidade que se aproxima do infinito. nela cresce outrora um pedinte enfezado: minhas mãos desejam apenas carícias preguiçosas. in o sentido do regresso e a alma do barco
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Portugal Gisela Maria Gracias Ramos Rosa (1964, Maputo) é mestre em Relações Interculturais tendo desenvolvido um trabalho em antropologia visual sobre as imagens e a diferença ligadas a grupos desfavorecidos em sociedade. Tem um diálogo de poesia publicado com António Ramos Rosa, Vasos Comunicantes (2006) e tem colaborado em várias Antologias e revistas do tema. O seu segundo livro será brevemente publicado. Participou na organização do caderno de poesia da Revista Cultura Entre Culturas nº 4, Outubro de 2011, dedicado a António Ramos Rosa, onde intermediou e colaborou com trabalhos fotográficos e escritos sobre o poeta. Desde 2012 que coordena a colecção de poesia Meia Lua, da editora Lua de Marfim.
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O chão dos poetas Cântico es existencia Rilke
O chão dos poetas não é sono lunar mas vigília aberta ao espaço o chão dos poetas é culto que se estende da terra à palavra num rasto de mãos pulsando o início o chão dos poetas canta a terra e os homens por lavrar canta o fogo e a espessura da noite infinita, canta a aurora o despertar o chão dos poetas é corpo que desarma e restitui o sono lúcido aos lábios a língua que se abre ao Sol o chão dos poetas é seiva que transforma e religa espírito e matéria cântico e mundo Abril, de 2012
inédito
278 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
Poema para um caracol
Sabes caracol vejo os caminhos e os muros que tens que atravessar para chegar ao leve e concreto deslocar da casa com essa húmida e fértil vontade de um lugar dentro da casa, fora da casa sabes caracol todos os homens são cabanas tecidas pelo tempo como tu uns descobrem arquétipos e revelam o mundo ligando-o outros fazem de si o próprio espelho dilaceram a sede projetam labirintos estilhaçam outros, ainda, sabem que tudo É por dentro e ateiam a chama, chamam Sabes caracol, a vida acontece nessa leve metamorfose da pele viscosa estendendo-se sobre o chão como os pés dos homens decifrando a terra ou como essas tuas antenas
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sensíveis aos feixes de luz de uma herança silenciosa em movimento assim seguem os homens edificando crenças e copiando a natureza elementar oferecendo condutas a outros, ainda noutro caminhar, dos quais se alimentam Sabes caracol a fronteira entre o real e teu o corpo é a mesma fronteira dos homens somos herança e caminhamos através do sono lento da Terra 15-12-2012
inédito
280 A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua
A arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua Antologia Poética Paulo Seben4 Caetano Veloso, o grande cancionista brasileiro, traz em seu nome toda a grandeza e toda a miséria do passado comum da lusofonia. No prenome, de Marcelo Caetano a nefanda lembrança do crepúsculo do salazarismo colonialista, liberticida e antiliterário; no sobrenome, do marinheiro Veloso toda a grandeza literária da formidável expansão portuguesa pelos cinco continentes, pelos sete mares, pelos dez imorredouros cantos d’Os Lusíadas. Tudo começa nas histórias narradas por Veloso aos companheiros durante a viagem de Vasco da Gama às índias, e recomeça com a queda de Caetano e o fim do império colonial... Língua de reis poetas, trovadores como Dom Sancho, Dom Dinis e Afonso, o Sábio, aquela que o poeta parnasiano brasileiro Olavo Bilac denominou de “última flor do Lácio” foi o presente régio, a — dentre tantos legados sanguinolentos — rica herança lusitana. Pois Caetano Veloso resumiu à perfeição a relação que todos os herdeiros europeus, brasileiros, africanos, asiáticos e oceânicos do amante de Dinamene temos com o idioma português que nos irmana: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”. Paulo Seben é o nome literário de Paulo Seben de Azevedo, doutor em Letras e professor adjunto de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escritor, publicou, entre outros, Tango da Independência (1995), Caderno Globo 33 (2002), Poemas Podres (2004) e Dicionário Gremista (2010). Ultimamente, tem adaptado, para neoleitores, clássicos da Literatura Brasileira e Universal.
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O projeto “Esculpindo a Palavra com a língua”, coordenado pelo jovem e talentoso Amosse Mucavele, trata exatamente disso, de pôr as nossas línguas em contato com A Língua de Camões, e roçando, modelando, modulando, erguer um monumento novo, agora coletivo (não que a obra de Camões não implicasse diálogo com os seus contemporâneos, com a tradição literária ocidental), uma literatura universal em língua portuguesa, construída, como bem anuncia o título desta antologia, por intermédio da arqueologia da palavra — a intertextualidade com a tradição literária comum e com os desdobramentos dela nas diversas circunstâncias que encontrou em terras e oceanos variegados — e da anatomia da Língua — o estudo da riqueza fonológica, morfológica, sintática, semântica, poética do Português contemporâneo. Ousado projeto, grandioso, como compete a quem empunha a pena do “Luís de Ouro” ( Carlos Drummond de Andrade), “Camões, grande Camões” (Manoel du Bocage) e quer dizer ao mundo as novas armas e os novos varões assinalados que da ocidental praia lusitana; da americana praia brasileira; das africanas praias guineenses; cabo-verdianas, são-tomé-eprincipenses, angolanas e moçambicanas; das indianas praias goenses; das chinesas praias macauenses; e das oceânicas praias timorenses; por mares, ares, sites navegados à exaustão, passaram ainda “além da mágoa” e “em esforços e guerras” — com a palavra — “conquistaram” novas formas de expressão. Aqui o leitor encontrará as vogais de Camões, preservadas pelas ex-colônias, e o silêncio átono das vogais dos herdeiros europeus do maior poeta épico da Era Moderna. Encontrará a intrincadíssima sintaxe dos poetas livrescos, a par da diretíssima linearidade da literatura oral. Encontrará, ainda, a casticíssima herança portuguesa, mas também a mescla da língua comum aos substratos locais, e mesmo a — antes tida como deletéria — influência das línguas da moda — em séculos anteriores o
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Francês, e ultimamente o Inglês. Porque esta antologia apanha a língua viva, ou seja, velha-nova, pura-mescla, pura mescla das vozes de milhões de falantes nativos ou não do Português. Presente régio, que segue cultivada pelos reis modernos — presidentes tão díspares como o saudoso revolucionário Agostinho Neto, de Angola, e o contra-revolucionário José Sarney, do Brasil —, aqui virá plasmada por Ministros de Estado e deputados, democraticamente igualados aos neófitos estudantes. Jovem de menos de mil anos, aqui virá esculpida por velhos e por jovens, por bibliografias-humanas com dezenas de livros publicados, e por bibliófilos inéditos. Sensual e prolífica, aqui virá tocada, roçada, fecundada por homens e por mulheres, sem fazer distinção de orientação sexual. Moldada pelo contato com outras línguas e culturas, aqui virá transmutada pela presença de tradutores de sua poesia para outras línguas, cujas produções poéticas nesses vernáculos comparecerá traduzida para o Português. Trata-se de uma antologia desigual porque desiguais são as experiências vividas pelos autores nela reunidos, assim como desiguais foram as circunstâncias históricas em que foram escritos os poemas e forjadas as literaturas nacionais. Por exemplo, se o autoritarismo político se constitui em um antepassado comum, as ditaduras salazarista, em Portugal, e militar, no Brasil, em que pese terem sido contemporâneas por uma década, nasceram em momentos diversos e tiveram causas diferentes; da mesma forma, o salazarismo não tinha o mesmo impacto na Metrópole e nas Colônias; e estas, uma vez conquistada a independência, nem todas passaram por golpes e por regimes de exceção, por guerras civis e por conflitos armados contra países limítrofes. A desigualdade na linguagem, inclusive, não vem só da geografia (que, por si só, já se manifesta pujantemente): as formas do autoritarismo e a duração e o alcance da democracia nas diversas nações de língua portuguesa determinaram que em Portugal
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e no Brasil, nos quais a cultura letrada se disseminou antes e mais universalmente, houvesse um predomínio paulatino da sintaxe escrita sobre a sintaxe oral, ocorrendo o contrário nas nações africanas, longamente submetidas a um estatuto colonial que vedava a alfabetização das populações autóctones. Empenhados na busca de ouvintes tanto quanto de leitores, muitos poetas africanos e timorenses exploram os limites da oralidade, enquanto que outros, seja por se terem transferido para países de capitalismo mais desenvolvido, seja por terem tido a sorte — ou o infortúnio — de pertencerem às elites locais com acesso à educação formal, se veem enfronhados no diálogo do cânone luso-brasileiro com o cânone ocidental, com as vanguardas estéticas europeias, americanas e orientais, diálogo este — aparentemente — tão natural aos poetas brasileiros e portugueses presentes na antologia. O vanguardismo e o experimentalismo estético, até mesmo a poesia visual, portanto, dividem espaço nesta antologia com expressões tradicionais e com um coloquialismo que, a um observador desavisado, poderia parecer influência do programático coloquialismo da literatura cubana oficialista (sem que se faça aqui qualquer juízo de valor, qualquer crítica política a uns ou a outros). A escritora Jane Tutikian, professora de Literatura Africana e atual diretora do Instituto de Letras da UFRGS explica, contudo, em suas aulas, tratar-se mesmo da influência da oralidade, da busca da expressão da fala do povo. Bem, o leitor tem diante de si uma oportunidade de conhecer algumas das inúmeras vozes desses povos falantes do Português. A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua oferece uma visão de conjunto da poesia em língua portuguesa produzida na Contemporaneidade. Encontrará aqui muitas certezas — autores e autoras de repercussão internacional, cujas obras já fazem parte das bibliografias das universidades e escolas —; também encontrará surpresas, causadas tanto pelo
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primeiro contato com autores de terras distantes (da casa do leitor), quanto pela novidade formal ou temática, pela súbita eclosão de uma profunda dor particular que ecoa nos corações de todo ser humano, ou de uma entusiástica alegria pelo gozo do corpo, do sexo, da liberdade, da vida, enfim. Os grandes temas da literatura em Português desde que Camões levou à maioridade a língua literária iniciada pelos reis trovadores — ou seja, o mar, a saudade, a pátria e o erotismo — são ainda os mais constantes temas de nossos poetas de todos os continentes, a julgar pela amostragem aqui contida. Os mais constantes, mas longe de serem os únicos. Como nas páginas de Literatas, a revista que dá origem a esta antologia, coube aqui quase tudo que a consciência humana precisa dizer poeticamente, assim como couberam dezenas de poetas, como vimos, das mais diversificadas experiências, tendências e afetos. Ampla e rica, A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua será decerto uma ferramenta útil para o ensino em todos os níveis — e em todos os ambientes. Das universidades às classes de alfabetização e de ensino de Português como segunda língua (uma realidade de vários de nossos países, nos quais a língua de Camões divide espaço com crioulos e com idiomas autóctones), os professores terão à sua disposição um corpus formidável para discutir a Literatura, a Língua, a História, a Sociologia... Quem sabe na audaciosa iniciativa da Literatas não começa a nascer um novo cânone, gerado a partir de uma inédita e ainda necessária (diria sempre urgente) discussão da poesia, da literatura em língua portuguesa não como um tronco lusitano do qual nascem brotos ultramarinos, mas, sim, como um tronco universal com raízes em cinco continentes, nascido, isto sim, de uma semente uma vez germinada em terra europeia?