DEBATE E PENSAMENTO, TEATRO março 2017
ARQUIPÉLAGO
D O S A F ET O S
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textos: Srećko Horvat, Chantal Mouffe e Fernando J. Ribeiro
curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
U T O P I AS
setembro ↣ outubro 2016
6 ARQUIPÉLAGO DA RESILIÊNCIA
olhou para o regresso da imaginação política nos movimentos sociais que têm irrompido um pouco por todo o mundo nos últimos anos. novembro ↣ dezembro 2016
6 ARQUIPÉLAGO DAS DIVERSIDADES
partiu da crise dos refugiados para revisitar os problemas e as oportunidades da sociedade diversa. janeiro ↣ fevereiro 2017
6 ARQUIPÉLAGO COMUM
revisitou os muitos projetos utópicos surgidos dos comunismos e anarquismos que nasceram no início do século XX. março 2017
> ARQUIPÉLAGO DOS AFETOS
dá a palavra aos muitos que estão a repensar a política como uma atividade também afetiva. março ↣ abril 2017
6 ARQUIPÉLAGO CAPITAL
centra‑se nas forças imaginativas e destrutivas do capitalismo. maio ↣ julho 2017
6 ARQUIPÉLAGO VERDE
foca‑se no imaginário utópico mais influente da atualidade, surgido da necessidade incontornável de manter o planeta viável.
O ciclo UTOPIAS oferece um programa alargado que atravessa toda a temporada 2016‑2017 do Teatro Maria Matos, com espetáculos, instalações, palestras, encontros e eventos no espaço público, trazendo convidados que fazem do agir crítico e da imaginação política uma tarefa diária. As UTOPIAS da temporada estão organizadas em seis arquipélagos, seis territórios para conhecer possibilidades que estão já em curso e de imaginar outras. Nesta brochura dedicada ao Arquipélago dos Afetos, publicamos três textos. De Srećko Horvat, um excerto de um capítulo do seu livro A Radicalidade do Amor, no qual aborda a gestão política dos afetos e o amor na Revolução de Outubro. Um particular destaque é dado à função pedagógica que então o teatro assumiu. Com “O repto populista”, Chantal Mouffe trata do modo como os afetos são motor do fazer político, referindo‑se ao surgimento do populismo como crítica ao atual declínio da democracia. Simultaneamente, Mouffe defende que este é um momento que pode, se disso tomarmos consciência e para tal caminharmos, levar ao aprofundamento de valores democráticos. Por fim, Fernando J. Ribeiro, dramaturgo do espetáculo de Ana Borralho & João Galante, Gatilho da Felicidade, escreve o “O Esplendor da Mentira”, um olhar sobre esta performance que reflete sobre a relação entre afetos, paixões e o viver social e político.
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ARQU I PÉ LAGO
As emoções e os afetos são aquilo pelo qual nos identificamos de forma mais intensa como seres humanos. Apesar disto, esta dimensão é normalmente relegada para um segundo plano de atenção, na forma de pensarmos a nossa vida política, arrastada pelo pragmatismo necessário à gestão da vida comum. Esta desatenção não faz com que os afetos sejam menos relevantes, afinal, falando de política estamos também a falar de nós e dos outros; da legitimidade que damos a mim, a ti e a eles. Os afetos estão sempre presentes em qualquer fazer político, seja pelas paixões viscerais que o encontro entre diferentes posições podem desencadear, seja pela aderência emocional a ideias e práticas que reconhecemos como válidas, ou que simplesmente nos reconfortam. São diversos os agentes no fazer político que reconhecem esta relevância dos afetos na política e usam-na, até mesmo de forma demagógica. No Arquipélago dos Afetos, decidimos dar atenção a esta dimensão da experiência humana no fazer político e na vida em comunidade. Com Chantal Mouffe olhamos para o que nos afeta e tentamos descobrir a validade das paixões intensas que marcam posições políticas e ideológicas diferentes na vivência democrática. Com Srećko Horvat, perguntamo‑nos, sem a desconfiança dos cínicos nos dias que correm, se o amor é uma utopia viável ou uma necessidade urgente. Gatilho da Felicidade, uma performance criada com jovens adultos por Ana Borralho & João Galante, é um jogo mortal em busca da felicidade. O que é a felicidade para uma geração que cresceu numa sociedade que glorifica o prazer do consumo? A ópera Have a good day! procura a mesma resposta junto dos operadores de caixa dos supermercados. curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
DOS AFETOS
* Excerto de “Libidinal Economy of the October Revolution”, em Horvat, Srećko (2015) The Radicality of Love, Polity Books, Cambridge, pp. 76‑107.
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SREĆKO HORVAT A economia libidinal na Revolução de Outubro * (…) No princípio, a Revolução de Outubro trouxe não só mudanças tremendas nos direitos de propriedade, religião, etc., mas também uma revolução sexual. Engels estava certíssimo quando disse que “é um facto curioso que, com cada grande momento revolucionário, a questão do ‘amor livre’ passa para primeiro plano.” 1 (…) Wilhelm Reich, que testemunhou as profundas mudanças na sexualidade durante a época soviética, afirma, na mesma linha, que “com a evolução da Revolução Russa devemos aprender que a revolução económica, a expropriação da propriedade privada, dos meios de produção e o estabelecimento político de uma social ‑democracia (ditadura do proletariado) vão automaticamente a par com uma revolução nas atitudes face à relação sexual do homem.” 2 Tendo isto em mente, não é de estranhar que o princípio da Revolução de Outubro tenha sido marcado por uma revolução sexual que, no que diz respeito à família e ao género, acarretou alguma da legislação mais progressista que o mundo já tinha visto. Dois dos éditos de Lenine, proclamados a 19 e 20 de outubro de 1917, (“Sobre a Dissolução do Casamento” e “Sobre o Casamento Civil, Filhos e Registo Civil”) abriram espaço para abolir a posição inferior das mulheres perante a lei, autorizaram o divórcio e o aborto, permitiram às mulheres manter o controlo total das suas propriedades e ganhos depois do casamento, etc. Mas como e porque é que esta enorme energia emancipatória se dissipou? Como é que se preparou o terreno para que a lei contra a homossexualidade pudesse ser reintroduzida na União Soviética logo em junho de 1934, juntamente com o aborto criminalizado e uma nova legislação do divórcio? 1 www.marxists.org/ archive/ marx/ works/ subj ect/ religion/ book ‑revelations.htm 2 Reich, Wilhelm (1963) The Sexual Revolution: Toward a Self‑Governing Character Structure, Farrar, Straus and Giroux, Nova Iorque, p. 185.
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Para responder a estas perguntas, temos de voltar ao início dos anos 1920, a um dos comentadores soviéticos mais influentes sobre sexo nessa época. Aaron Zalking — o psico ‑neurologista que tentou sintetizar a obra de Freud, Pavlov e Marx, e o líder da “psico‑higiene”, defendendo que o corpo tinha sido “desorganizado” pelo capitalismo — afirmava que a economia de mercado ocasionara condições que tinham “sexualizado o universo” e que o capitalismo usa o sexo como o novo ópio para as massas (…). Zalkind partiu de uma posição semelhante à de Wilhelm Reich: o capitalismo refreia os instintos sexuais primários e portanto uma revolução política precisa de se livrar dos constrangimentos da moral sexual burguesa. No entanto, Zalkind e Reich são o melhor exemplo de duas pessoas que têm o mesmo ponto de partida, mas chegam a conclusões diametralmente opostas. Para Zalkind, a única cura para o novo sujeito revolucionário (o “Novo Homem”) encontra‑se na abstinência sexual: precisamos é de ascetismo e não do alívio completo das tensões sexuais acumuladas do organismo (a “potência orgástica” de Reich). Será então surpreendente que, na segunda parte da sua Revolução Sexual, sob o título “Luta pela ‘Nova Vida’ na União Soviética”, Reich se queixe de que a União Soviética, depois do primeiro período revolucionário na era de Lenine, se tenha tornado reacionária em termos de política sexual e da “regulação económico‑sexual”? Wilhelm Reich visitou Moscovo em setembro de 1929, onde deu várias conferências e até visitou uma série de jardins‑de‑infância e creches, mas, em vez de encontrar uma política sexual progressista, ficou desiludido por muitos educadores terem as mesmas atitudes moralistas “burguesas” em relação à sexualidade infantil que os seus colegas nos países capitalistas. Impressionaram‑no certas medidas do início da era revolucionária — aborto legalizado, divórcio simples, “coletivos de crianças”, etc. — mas encontrou sinais que indicavam que em 1929 a União Soviética já começava a retroceder deste avanço revolucionário. (…) Para ter um cheirinho desta nova “economia libidinal”, devemos dar uma vista de olhos ao bizarro drama agitador Depravação Sexual em Julgamento, publicado em 1927 pelo
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Dr. E. B. Demidovich, o médico que tinha avisado dos efeitos maléficos da masturbação. O próprio Zalkind tinha apadrinhado o livro, escrevendo o seu prefácio e louvando o papel dos julgamentos ficcionais como ferramenta para dar destaque às questões sexuais e despertar a consciência da juventude. Mais tarde, estes julgamentos sexuais ficcionais e “pedagógicos” seriam, é claro, a principal ferramenta para eliminar inimigos políticos (as chamadas “farsas judiciais”). A questão central da peça diz respeito ao seguinte dilema: pode um homem ser acusado de abandonar a mulher, dada a política oficial de livre casamento e divórcio na URSS? O bon vivant Semyon Vasiliev abandonou a sua mulher Ana Vtorova, que estava grávida de três meses; o seu comportamento sexual levou a consequências sociais desastrosas, incluindo sífilis e aborto. O irmão de Ana aparece em tribunal como o principal acusador. Ele é membro do Partido há vários anos e o puro representante da juventude saudável e forte. Advogado de Defesa (D): Testemunha Vtorov, consta que tem 23 anos. Vtorov (V): Sim, 23. D: É casado? V: Não, não sou. D: Bom, e como é que se aproxima das mulheres? V: Como um camarada. D: E como é que se afasta delas? V: Também como um camarada. D: Já teve filhos? V: Eu?… Não, não tenho. D: Usa métodos contracetivos? V: Nunca. D: Então não é saudável? V: Sou totalmente saudável… Nunca tive vida sexual. D: Aos 23 anos de idade? V: Aos 23 anos de idade. D: Não tenho mais perguntas. Especialista (E): Posso colocar algumas perguntas à testemunha? Juiz: Faça favor. E: Já sentiu atração por uma mulher?
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V: E: V:
E: V: E: V:
E: V:
E: V: E: V: E: V:
Sim. O que o fez abster‑se da intimidade? Sou membro do Partido. Preciso de força para a construção de uma nova forma de vida e esforço‑me conscientemente para que a minha vida sexual não me tolha, ou a uma mulher, ou a um filho nosso. Sou jovem e não vou precisar de uma mulher tão cedo e estou à procura de uma que me atraia não durante um ano nem um mês, mas durante muitos anos. Estou à procura de uma mulher que seria tanto uma mulher como uma camarada no trabalho. E até agora não encontrou nenhuma? Algumas vezes, pareceu‑me que sim. Mas depois de verificar, tornou‑se claro que era um erro. E como é que verifica? Basta‑me esperar, permitir que a atração se fortaleça, observá‑la a ela e a mim, perguntando‑me se quero um filho com ela. E é só isso que o refreia? Não, não é só isso. Quero conscientemente só iniciar uma vida sexual quando um filho não for coisa que me assuste. A batalha é difícil? É mais fácil no inverno. No verão, é mais difícil, sobretudo no princípio. Sofre de insónia? Não, durmo muitíssimo bem. O que é que o ajuda nessa batalha? Pausas para exercício físico. Tento evitar estar sozinho quando tenho tempo livre. O trabalho social ajuda‑me muito. Quando a natureza se rebela, evito discretamente as raparigas. Quando estou de novo calmo, volto a passar tempo com elas. 3
3 Demidovich, Dr . E. B. Sud nad polovoi raspuschchennost’iu (Doloi negramotnost, Moscovo e Leningrado, 1927), citado em Naiman, Eric (1997) Sex in Public: The Incarnation of Early Soviet Ideology, Princeton University Press, Princeton, NJ, 1997, pp. 132‑3.
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Como podemos ver, este é o membro ideal do Komsomol: apesar de ter 23 anos, ainda é virgem; quando sente um impulso sexual, participa em desportos; para evitar a masturbação, até evita a solidão. Trata‑se apenas de uma outra versão do Rakhmetov de Que Fazer? de Tchernichevski, a personagem “rigorista” que evita as mulheres e todas as outras fontes potenciais de prazer, ginástica e desporto, e até dorme numa cama de pregos como derradeiro ato de autodisciplina. São estes os ideais da “nova moralidade”. (…) No seu livro Sex in Public: The Incarnation of Early Soviet Ideology, Eric Naiman fornece‑nos exemplos ainda mais bizarros da retórica na União Soviética durante os anos 1920. O Dr. M. Lemberg, que escreveu em 1925, recomendava cinco regras para evitar a estimulação sexual: Nunca beber álcool. Dormir numa cama dura. Pôr‑se imediatamente de pé ao acordar. Não comer demasiada carne. Comer três horas antes de dormir. Urinar antes de ir para a cama. Não ler literatura erótica. Não levar uma vida sedentária. 4 À primeira vista, poderiam parecer os mandamentos morais da Revolução Iraniana. Se o “herói” de Depravação Sexual em Julgamento lutava contra os impulsos sexuais através do exercício físico e evitando estar sozinho, o Dr. Lemberg era ainda mais específico, propondo até a nutrição correta antes de dormir. Porque é que a insónia é um problema? Porque no silêncio da noite, podem aparecer pensamentos sexuais. E se se ler literatura erótica antes de dormir, é ainda mais provável que se tenha uma ereção. Seria de estranhar que uma das figuras mais importantes desta “nova moralidade” não se tivesse dedicado a recomendações semelhantes. Aaron Zalkind foi um passo mais à frente e forneceu‑nos “doze mandamentos”, a maior parte dos quais também estão formulados na negativa: A vida sexual não deve começar cedo demais. A abstinência sexual é necessária até ao 4 Naiman, Sex in Public, pp. 135‑6.
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casamento e o casamento só deve ocorrer quando a maturidade social e biológica for plenamente alcançada (aos 23‑24 anos). A relação sexual deve ser apenas o culminar de um afeto profundo mútuo e de um vínculo ao objeto sexual. O ato sexual deve ser o elo final numa cadeia de experiências profundas e complexas que unem os amantes. O ato sexual não deve ser repetido muitas vezes. Os parceiros sexuais não se devem mudar com frequência. O amor deve ser monogâmico. Em cada ato sexual, a possibilidade de dele resultar progenitura deve ser sempre lembrada. A seleção sexual deve suceder em concordância com a classe e com a seleção proletária revolucionária. A sedução, a corte, a coqueteria e outros métodos de conquista especificamente sexual não devem ser chamados às relações sexuais. Não deve haver ciúme. Não deve haver perversão sexual. No interesse da conveniência revolucionária, uma classe tem o direito de interferir na vida sexual dos seus membros. A sexualidade deve subordinar‑se aos interesses de classe; nunca deve interferir com eles e tem de os servir em todos os aspetos. 5 Todos estes exemplos (…) demonstram um dos principais alicerces da nova economia libidinal: a poupança de energia. A principal queixa contra a sexualidade é que representa um gasto excessivo de energia, que impede o indivíduo de contribuir para a sociedade (…) A energia sexual é portanto concebida como um recurso da classe trabalhadora que deve ser preservado em prol da criatividade e produção proletárias (…). 5 Naiman, Sex in Public, p. 135–6.
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E é aqui que regressamos de novo a Lenine. A hipertrofia generalizada em questões sexuais era perigosa porque as pessoas poderiam dizer “coisas meigas” em vez de trabalharem para a revolução e é por isso que Lenine — na sua resposta a Clara Zetkin — insistiu que a juventude se devia dedicar ao desporto saudável, à natação, às caminhadas e ao exercício do corpo. (…) Segundo Reich, por um lado o germe desta regressão encontrava‑se no aparecimento de conceitos de sexologia conservadora, sobretudo a ideia de que a sexualidade é antitética à sociabilidade e de que a vida sexual é uma “distração em relação à luta de classes”. Por outro lado, havia um fator objetivo que impedia o desenvolvimento completo dos postulados sexuais iniciais de 1917: uma vez que a revolução não teve êxito em trazer a prosperidade económica (só fome, prostituição, etc.), era também difícil realizar os ideais de “liberdade sexual” nestas circunstâncias. O que aconteceu à revolução sexual presente nos éditos de Lenine de 1917 foi uma regressão lenta e contínua, apoiada e realizada pelos instrumentos oficiais do Partido. Mas seria errado pensar que o resultado desta luta era claro desde o princípio. As discussões sobre sexualidade eram realmente variegadas, até que duas correntes se desenvolveram e acabaram por se confrontar: por um lado, a “exigência do amor livre”, insistindo no argumento de que só uma maior emancipação poderia ajudar a revolução e criar uma sociedade sem classes, e, por outro, a corrente mais conservadora, reunida em torno de figuras como Zalkind, que promovia um puritanismo perverso e a sublimação dos impulsos sexuais. Se a revolução económica vai a par com a revolução sexual, então não é de espantar que economia libidinal tenha seguido na direção mais conservadora quando a economia verdadeira se confrontou com a armadilha dos seus próprios obstáculos e contradições. A ideologia da abstinência e sublimação sexuais tornou‑se rapidamente dominante e a ideologia oficial do Estado Soviético. Um dos principais instrumentos desde o início — logo quando os bolcheviques tomaram o poder em 1917 —
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era a disseminação de julgamentos didáticos, teatrais e ficcionais (até fantásticos), não só publicados, mas também representados em clubes de trabalhadores e soldados nos anos de 1919 a 1933. Não devemos subestimar o papel destes julgamentos didáticos. Como Lynn Mally mostra em Revolutionary Acts: Amateur Theater and the Soviet State, foi o teatro amador que ajudou a legitimar o Estado Soviético 6. E não é de admirar que já em 1919 o lema do ministério da cultura do novo Estado fosse “o teatro é o autoeducador do povo.” Os tópicos destas farsas judiciais iam desde os efeitos nocivos de fumar cigarros ou das doenças sexuais (os chamados “julgamentos de higiene”), ao hooliganismo ou às responsabilidades das mulheres em casa. Só de olhar para os títulos destes julgamentos didáticos, podemos ver que a virada conservadora começou bastante cedo. No final de 1922, alguns títulos típicos incluíam O Julgamento de uma Prostituta ou O Julgamento do Cidadão Kiselev, Acusado de Infectar a Mulher com Gonorreia, o que resultou no seu Suicídio. Em 1926, foi representada uma peça com o título Julgamento de um Marido que Bateu na Mulher enquanto Embriagado. A maior parte destes processos judiciais ficcionais eram dirigidos contra a promiscuidade sexual. Por exemplo, o famoso romance Komsomol de Nicolai Bogdanov Primeira Rapariga (1928), sobre uma rapariga chamada Sanya, gira em torno do mesmo tópico. Sanya é membro do Komsomol, sendo recompensada pelo seu heroísmo na guerra civil e enviada para Moscovo, onde não tarda a envolver‑se com vários homens, infetando cada um deles com sífilis. No final, Sanya é morta a tiro por um camarada que não foi infetado. Por outro lado, a heroína promíscua de Lua do Lado Direito (1926), de Sergei Malshkin, nem se consegue lembrar de quantas dúzias de amantes teve, porque dizer “não” a um tovarich poderia ser considerado burguês. Se o imaginário dos anos 1920 estava cheio de aventuras sexuais, promiscuidade, gravidezes indesejadas e doenças sexualmente transmitidas, acabou por conduzir à supressão 6 Ver Mally, Lynn, Revolutionary Acts: Amateur Theater and the Soviet State, 1917–1938, Cornell University Press, Ithaca, NY, 2000.
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do debate nos anos 1930, através da dura realidade do Estalinismo. Depois da breve revolução sexual na literatura soviética, chega agora o realismo socialista, com o novo herói comunista Pavel Korchagin de Assim foi Temperado o Aço (1934), de Ostrovski, proclamando o novo credo desta época: “Mamã, jurei a mim próprio não andar atrás de raparigas até derrubarmos a burguesia do mundo inteiro.” (…) É claro que isso não significou que o debate acalorado tenha desaparecido completamente. Basta ler a brilhante peça satírica de Mayakovski — uma ficção científica por excelência (mas, como toda a boa ficção científica, uma crítica‑ Verfremdungseffekt do regime existente) — O Percevejo, de 1929, que traça um retrato pouco lisonjeiro da sociedade socialista futura. Este futuro não só erradicava os vícios humanos como o alcoolismo, o praguejar e os pensamentos burgueses. Não, também proibia o Amor. A certa altura da peça, um repórter fala com uma pobre rapariga que começou a enlouquecer: Os pais dela estavam desolados e chamaram os médicos. Os professores dizem que é um ataque agudo de uma doença antiga a que chamavam “amor”. Este era um estado em que a energia sexual de uma pessoa, em vez de se distribuir racionalmente ao longo de toda a sua vida, era comprimida numa única semana e concentrada num processo frenético. Isto fazia‑a cometer os atos mais absurdos e impossíveis. 7 O amor tornou‑se uma doença. Outra rapariga tapa a cara com as mãos e diz: “Não devo olhar. Sinto esses micróbios do ‘amor’ a infetar o ar!” e o repórter responde: “Ela também está acabada. A epidemia está a tomar proporções oceânicas.” Esqueçam o Ébola, temam o Amor! (…) Como podemos ver, não só o sexo mas também o amor era um dos tópicos centrais da Revolução de Outubro. No seu Reminiscências de Lenine, publicado depois da morte de Lenine, Clara Zetkin revela que Lenine falava frequentemente sobre a questão feminina como parte essencial do movimento 7 Mayakovsky, Vladimir, The Bedbug and Selected Poetry, Indiana University Press, Bloomington, IN, p. 286.
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comunista. Mas, uma vez, quando discutiram a questão da prostituição e de como as prostitutas podiam ser organizadas em prol da luta revolucionária, Lenine começou a criticar Clara Zetkin e o movimento das mulheres dizendo: A tua lista de pecados, Clara, ainda é mais longa. Consta‑me que as questões do sexo e do casamento são os principais assuntos tratados nas noites de leitura e discussão das camaradas. São os principais assuntos de interesse, de instrução e educação política. Nem queria acreditar no que ouvia quando me disseram. O primeiro país de uma ditadura do proletariado, rodeado pelos contrarrevolucionários do mundo inteiro; só a situação na Alemanha requer a maior concentração possível de todas as forças proletárias e revolucionárias para derrotar a contrarrevolução que cresce sem parar. Mas as camaradas trabalhadoras discutem os problemas sexuais e a questão das formas de casamento no passado, presente e futuro.8 O que podemos ver aqui é que Lenine, apesar de se interessar pela questão feminina e ser até um seu apoiante feroz, quando se tratava de questões mais radicais como a prostituição ou o sexo, não era capaz de perceber porque tinham tanta importância. O maior problema que via aí era o seguinte: não era o momento certo para entreter as proletárias com discussões sobre o amor. Agora todos os pensamentos das camaradas tinham de ser direcionados para a revolução proletária. Lenine considerava‑se um “ascético sombrio” e via a chamada nova vida sexual da juventude como puramente burguesa, uma extensão dos bordéis burgueses: não tinha nada a ver com a “liberdade do amor”, tal como os comunistas a entendem. (…)
Citado em Zetkin, Clara (1924) Reminiscences of Lenin, disponível online em: www.marxists.org/ archive/ zetkin/ 1924/ reminiscences‑of‑lenin. htm#h07
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CHANTAL MOUFFE O repto populista Há já tempo que múltiplas vozes nos avisam contra o perigo do populismo, que é apresentado como uma “perversão da democracia”. Mas com a vitória do Brexit no Reino Unido e a popularidade inesperada de Trump nos Estados Unidos, a denúncia do populismo tornou‑se mais estridente. Os membros do establishment parecem ter começado a preocupar‑se com o potencial de descontentamento social que até agora tinham menosprezado. Assediam‑nos com declarações alarmistas que clamam que o populismo tem de ser eliminado porque significa uma ameaça mortal para a democracia. Acreditam que a demonização do populismo e o temor de um possível retorno do “fascismo” vão ser suficientes para conjurar o crescimento de partidos e movimentos que põem em questão o consenso neoliberal. É importante fazer frente a essa histeria antipopulista examinando o que esteve em jogo na emergência dos movimentos chamados “populistas” nos últimos anos na Europa. É imperioso fazer uma análise serena do estado atual das nossas democracias a fim de imaginar a maneira de fortalecer as instituições democráticas contra os perigos a que estão expostas. Esses perigos são reais, mas provêm do abandono por parte dos partidos — que se apresentam como “democráticos” — dos princípios de soberania popular e igualdade, que são constitutivos de uma política democrática. Com o auge do neoliberalismo, esses princípios foram relegados para categorias zombies, e as nossas sociedades entraram numa era “pós‑democrática”.
I.
O que se entende exatamente por “pós‑democracia”? Comecemos por clarificar o significado de “democracia”. Como é sabido, democracia provém etimologicamente do grego demos/cratos e significa poder do povo. Trata‑se de um princípio de legitimidade que não se exerce em abstrato, mas através de determinadas instituições. Quando falamos de “democracia” na Europa, referimo‑nos a um modelo específico:
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o modelo ocidental, que resulta da inscrição do ideal democrático num contexto histórico particular. Este modelo — que recebeu uma variedade de nomes: democracia moderna, democracia representativa, democracia parlamentar, democracia constitucional, democracia liberal, democracia pluralista — caracteriza‑se por uma articulação entre duas tradições diferentes. Por um lado, a tradição do liberalismo político: o estado de direito, a separação dos poderes e a defesa da liberdade individual; por outro lado, a tradição democrática, cujas ideias centrais são a igualdade, a identidade entre governantes e governados e a soberania popular. Ao contrário do que por vezes se diz, não existe uma relação necessária entre estas duas tradições, mas apenas uma articulação histórica contingente que — como mostrou C.B. MacPherson — se materializou no século XIX através das lutas conjuntas dos liberais e dos democratas contra os regimes absolutistas. Alguns autores, como Carl Schmitt, afirmam que essa articulação — que foi a origem da democracia parlamentar — produziu um regime inviável, já que o liberalismo nega a democracia e a democracia nega o liberalismo; outros, na esteira de Jürgen Habermas, sustentam a co‑originalidade entre os princípios da liberdade e da igualdade. Schmitt tem razão, sem dúvida, ao assinalar a presença de um conflito entre a “gramática” liberal da igualdade — que postula a universalidade e a referência à “humanidade” — e a “gramática” da igualdade democrática, que requer a construção de um povo e a fronteira entre um “nós” e um “eles”. Mas julgo que se engana ao apresentar esse conflito em termos de uma contradição que há de levar inelutavelmente a democracia liberal pluralista à autodestruição. Em The Democratic Paradox, propus que se concebesse a articulação destas tradições — irreconciliáveis em última análise, é certo — sob o modo de uma configuração paradoxal, como o locus de uma tensão que define a originalidade da democracia liberal e garante o seu carácter pluralista. A lógica democrática de construir um povo e de defender práticas igualitárias é necessária para definir um demos e subverter a tendência para o universalismo abstrato do discurso liberal; mas
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a articulação com a lógica liberal permite desafiar as formas de exclusão inerentes às práticas políticas para determinar o povo que há de governar. A política liberal democrática consiste num constante processo de negociação — por meio de diferentes articulações hegemónicas — dessa tensão constitutiva. Essa tensão, que se expressa em termos políticos pela fronteira entre direita e esquerda, só se pode estabilizar temporariamente mediante negociações pragmáticas entre forças políticas e essas negociações estabelecem sempre a hegemonia de uma delas. Revisitando a história da democracia liberal pluralista, constatamos que nalgumas ocasiões predominou a lógica liberal, noutras predominou a lógica democrática, mas as duas lógicas permaneceram ativas, e a possibilidade de uma negociação agonística entre direita e esquerda — própria do regime liberal‑democrático — sempre se manteve.
II.
Se se pode qualificar a situação atual como “pós‑democracia”, é porque nos últimos anos, com o enfraquecimento dos valores democráticos em consequência da implementação da hegemonia neoliberal, essa tensão constitutiva foi eliminada e desapareceram os espaços agonísticos onde se podiam confrontar diferentes projetos de sociedade. No terreno político, essa evolução manifestou‑se através daquilo que, em On the Political, propus chamar a “pós‑política”, para assinalar a diluição da fronteira política entre a direita e a esquerda. Com este termo refiro‑me ao consenso estabelecido entre os partidos de centro‑direita e de centro‑esquerda sobre a ideia de que não havia alternativa à globalização neoliberal. A pretexto da “modernização” imposta pela globalização, os partidos social‑democratas aceitaram os diktats do capitalismo financeiro e os limites que estes impunham às intervenções do Estado nas políticas redistributivas. O papel dos parlamentos e das instituições que permitem aos cidadãos influir nas decisões políticas foi dramaticamente limitado e os cidadãos foram despojados da possibilidade de exercer os seus direitos democráticos. As eleições já não oferecem qualquer oportunidade de decidir quanto a verdadeiras alternativas por
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meio dos partidos tradicionais de “governo”. A política passou a ser uma mera questão técnica de gestão da ordem estabelecida, um domínio reservado à competência dos especialistas. A única coisa que a pós‑política permite é a alternância bipartidária no poder entre os partidos de centro‑direita e de centro‑esquerda. Todos aqueles que se opõem a esse “consenso ao centro” são vistos como “extremistas” e qualificados como “populistas”. A soberania popular foi declarada obsoleta, e a democracia foi reduzida à sua componente liberal. Assim foi minado um dos pilares do ideal democrático: o poder do povo. É certo que se continua a falar de “democracia”, mas só para indicar a presença de eleições e a defesa dos direitos humanos. Estas mudanças ao nível político tiveram lugar no contexto de um novo modo de regulação do capitalismo, em que o capital financeiro ocupa um lugar central. Com a financeirização da economia produziu‑se uma grande expansão do sector financeiro à custa da economia produtiva. Sob a influência conjunta da desindustrialização, da promoção das mudanças tecnológicas e de processos de relocalização para países onde a força de trabalho é mais barata, reduziram‑se os postos de trabalho. As políticas de privatização e desregulação também contribuíram para criar uma situação de desemprego endémico, e os trabalhadores viram‑se em condições cada vez mais difíceis. Se acrescentarmos os efeitos das políticas de austeridade que foram impostas depois da crise de 2008, podem‑se entender as causas do aumento exponencial das desigualdades que presenciámos em vários países europeus, particularmente no Sul. Essa desigualdade já não afeta apenas as classes populares, mas também boa parte das classes médias, que entraram num processo de pauperização e precarização. Os partidos social‑democratas acompanharam esta evolução, e em muitos lugares desempenharam inclusive um papel importante na instauração das políticas neoliberais. Isto contribuiu para que o outro pilar do ideal democrático — a defesa da igualdade — também tenha sido eliminado do discurso liberal‑democrático. O que vigora hoje em dia é uma visão liberal individualista que celebra a sociedade de consumo e a liberdade que os mercados oferecem.
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III.
O resultado da hegemonia neoliberal foi a instauração, tanto ao nível socioeconómico como político, de um regime verdadeiramente “oligárquico”. É precisamente essa oligarquização das sociedades europeias que dá origem ao êxito dos partidos populistas de direita. De facto, são muitas vezes os únicos que denunciam esta situação e prometem voltar a dar ao povo o poder que lhe foi confiscado pelas elites e defendê‑lo contra a globalização. Traduzindo os problemas sociais numa chave étnica, em muitos países articularam num vocabulário xenófobo as exigências dos sectores populares, que foram ignoradas pelos partidos do centro por serem incompatíveis com o projeto neoliberal. Os partidos social ‑democratas, prisioneiros dos seus dogmas pós‑políticos e relutantes em admitir os seus erros, negam‑se a reconhecer que muitas dessas exigências são exigências democráticas legítimas, a que é preciso dar uma resposta progressista. Daí a sua incapacidade para apreender a natureza do repto populista. Para poder apreciar esse repto é preciso recusar a visão simplista difundida pelos media, que tacham o populismo de pura demagogia. A perspetiva analítica desenvolvida por Ernesto Laclau oferece‑nos instrumentos teóricos importantes para abordar esta questão. Ele define o populismo como uma forma de construir o político, que consiste em estabelecer uma fronteira política que divide a sociedade em dois campos, apelando a uma mobilização dos “de baixo” contra os “de cima”. Surge quando se procura construir um novo sujeito da ação coletiva — o povo — capaz de reconfigurar uma ordem social vivida como injusta. Não é uma ideologia e não se lhe pode atribuir um conteúdo programático específico. Também não é um regime político. É uma maneira de fazer política que pode tomar várias formas segundo as épocas e os lugares e é compatível com uma variedade de formas institucionais. O populismo refere‑se à dimensão de soberania popular e de construção de um demos que é constitutiva da democracia. Contudo, é justamente essa dimensão que foi descartada pela hegemonia neoliberal e é por isso que a luta contra a pós‑democracia requer uma intervenção política de tipo populista.
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IV.
O “momento populista” que estamos a presenciar oferece‑nos a oportunidade de restabelecer uma fronteira política que permita recriar a tensão agonística própria da democracia. De facto, vários partidos populistas de direita já o estão a fazer, e é isso que explica os seus avanços recentes. A força do populismo de direita explica‑se precisamente porque foi capaz, em muitos países, de traçar uma fronteira e de construir um povo para dar uma tradução política às diversas resistências ao fenómeno da oligarquização induzido pela hegemonia neoliberal. O seu atrativo é particularmente apreciável nas classes populares, mas também está a prosperar nas classes médias afetadas pelas novas estruturas de dominação ligadas à globalização neoliberal. Infelizmente, até agora, a resposta das forças progressistas não esteve à altura do repto. Deixaram‑se influenciar pelos discursos das forças do establishment, que desqualificam o populismo para poder manter a sua dominação. Continuam a preconizar estratégias políticas tradicionais, inadaptadas à profunda crise de legitimidade que afeta os regimes liberal‑democráticos. Esta crise é a expressão de exigências muito heterogéneas, que não podem ser formuladas de maneira adequada através da clivagem direita/esquerda, tal como está tradicionalmente configurada. Ao contrário das lutas características da época do capitalismo fordista, quando existia uma classe operária que defendia os seus interesses específicos, no capitalismo neoliberal pós‑fordista surgiram resistências em muitos pontos fora do processo produtivo. Essas exigências já não correspondem a sectores sociais definidos em termos sociológicos e pela sua posição na estrutura social. Muitas são reivindicações que tocam questões que têm que ver com a qualidade de vida e que possuem um carácter transversal. Também adquiriram uma centralidade crescente as exigências ligadas às lutas contra o sexismo, o racismo e outras formas de dominação. Para poder articular essa diversidade numa vontade coletiva, já não funciona a tradicional fronteira esquerda/direita. Federar essas diferentes lutas exige que se estabeleça uma sinergia entre o movimento social e as formas partidárias
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com o objetivo de construir um “povo”, e para isso é preciso uma fronteira construída de maneira populista. Isto não quer dizer que a oposição esquerda/direita deixe de ser pertinente, mas deve ser colocada de outra maneira, em função do tipo de populismo que está em jogo e das cadeias de equivalências através das quais se constrói “o povo”. Entendido como categoria política, o povo resulta sempre de uma construção discursiva, e o “nós” à volta do qual se cristaliza pode ser construído de diversas maneiras, dependendo dos elementos que o constituem e da maneira como se define o “eles” a que se opõe. É aí que radica a diferença entre um populismo de direita — como o de Marine Le Pen, que constrói um povo que se limita aos “verdadeiros nacionais”, excluindo os imigrantes, relegados para o “eles”, juntamente com as forças “antinação” das elites — e um populismo de esquerda de recorte progressista. Este último é representado em França pelo movimento de Jean‑Luc Mélenchon, que tem uma conceção mais ampla do “nós” que inclui os imigrantes, os movimentos ecologistas e os coletivos LGBT, definindo o “eles” como o conjunto de forças cujas políticas fomentam a desigualdade social. No primeiro caso, estamos perante um populismo autoritário cujo objetivo é uma restrição da democracia, enquanto no segundo caso, se trata de um populismo que aspira a ampliar e radicalizar a democracia.
V.
Além do modo como o povo se constrói, é preciso considerar outra questão importante para distinguir entre as várias formas de populismo: a maneira como se concebe a relação entre o povo e os “de cima”. As identidades coletivas exigem sempre a distinção nós/eles, mas no campo político a fronteira entre o nós e o eles indica a presença de um antagonismo, quer dizer, de um conflito que não pode ter uma solução racional. Mas esse antagonismo pode‑se manifestar de diferentes formas. Pode assumir a forma de um confronto amigo/inimigo cujo objetivo é erradicar o “eles” para estabelecer uma ordem radicalmente nova. A revolução francesa fornece‑nos um exemplo desse populismo “antagonista”. Mas esse confronto também se pode dar de uma forma “agonista”, em que o “eles” não é visto como
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um inimigo, mas sim como um adversário contra o qual se vai lutar através de meios democráticos. Para que um movimento populista seja compatível com a democracia pluralista, o confronto tem de ser do tipo agonista. Um populismo agonista não advoga a recusa total da moldura institucional existente. O seu objetivo não é a destruição das instituições liberal‑democráticas, mas sim a desarticulação dos elementos que configuram a ordem hegemónica e a rearticulação de uma nova hegemonia. Um populismo de esquerda idóneo para a situação europeia deve ser concebido como um “reformismo radical” que se esforça por recuperar e aprofundar a democracia. É uma luta que se leva a cabo por meio de uma “guerra de posição” no seio das instituições, com o fim de as transformar. Uma luta que vai decerto exigir mudanças institucionais significativas para permitir que se expresse a vontade popular, mas essas mudanças não significam um desafio radical às instituições chamadas “republicanas”. Não se trata de acabar com a democracia representativa, mas sim de fortalecer as instituições que dão voz ao povo. É uma forma de “republicanismo plebeu” que se inscreve na linha democrática da tradição republicana, cujo precursor foi Maquiavel. A crise atual deve‑se ao facto de as nossas instituições não serem suficientemente representativas, não à representação propriamente dita. A solução não pode ser a eliminação da representação e a instauração de uma democracia “presentista”, como alguns pretendem. Como sublinhei em Agonistics: Thinking The World Politically, numa sociedade democrática que reconhece a possibilidade sempre presente do antagonismo, e onde o pluralismo não é concebido de modo harmonioso e antipolítico, as instituições representativas — ao darem forma à divisão da sociedade — desempenham um papel crucial porque permitem a institucionalização dessa dimensão conflitual. Contudo, esse papel só pode ser cumprido mediante a existência de um confronto agonista. O problema central da pós‑democracia é a ausência desse confronto agonista e a incapacidade dos cidadãos de escolherem entre verdadeiras alternativas. É por isso que a questão das fronteiras é decisiva.
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Estou convencida de que nos próximos anos o eixo central do conflito político vai ocorrer entre o populismo de direita e o populismo de esquerda e é imprescindível que os sectores progressistas entendam a importância de se envolverem nessa luta. Conceber um populismo de esquerda exige que se imagine a política de maneira a reconhecer o seu carácter partisan. É preciso descartar a perspetiva racionalista dominante no pensamento político liberal ‑democrático e reconhecer a importância dos afetos comuns (aquilo a que chamo as “paixões”) na formação das identidades coletivas. É através da construção de outro povo, de uma vontade coletiva que resulte da mobilização das paixões em defesa da igualdade e da justiça social que se pode combater a política xenófoba promovida pelo populismo de direita. Ao recriar fronteiras políticas, o “momento populista” a que estamos a assistir na Europa assinala‑nos um “regresso do político”. Um regresso que pode abrir caminho a soluções de índole autoritária — através de regimes que debilitam as instituições liberais democráticas —, mas também pode conduzir a uma reafirmação e aprofundamento dos valores democráticos. Tudo vai depender do tipo de populismo que sair vitorioso da luta contra a pós‑política e a pós‑democracia.
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FERNANDO J. RIBEIRO O esplendor da mentira Com as luzes apagadas é menos perigoso Aqui estamos nós agora, diverte‑nos Sinto‑me estúpido e contagioso Aqui estamos nós agora, diverte‑nos Um mulato, um albino, um mosquito A minha libido Uma negação Uma negação Uma negação Uma negação Nirvana
A fase da adolescência corresponde ao despontar da colocação dos indivíduos no mundo, pela corporeidade efetiva dos impulsos eróticos e das afeições, assim como pela contemplação do funcionamento da esfera social e política. Findo este limbo ontológico, na fronteira com a idade adulta, dá‑se a inscrição numa terra‑de‑ninguém, onde a inocência e a consciência‑de‑si, a violência libidinal e o ímpeto de presença no universo exterior se cruzam e colidem. Tendo em conta esta condição, em Gatilho da Felicidade é colocado um grupo de jovens adultos num palco, figurado como habitat dessa faixa etária. A formação de uma microcomunidade inicia‑se com uma dança cuja única iluminação é constituída por telemóveis, autonomizando assim o grupo que submerge numa atmosfera cuja pneuma e vitalidade é assegurada pelo som do grunge. O transe e a desorientação propiciam a sua posterior inscrição num semicírculo que, em simultâneo, demonstra recetividade aos apelos da plateia e permite a manutenção do sentido de união e proteção do grupo. Dando curso a esta ambivalência, a roleta russa instiga tensões mobilizadas pela desvelação de energias potenciais e inexploradas. Tornando o corpo fisiologicamente mais vulnerável, a instabilidade orgânica possibilita a prossecução de uma cerimónia solene que conduz ao suicídio sucessivo de todo o coletivo.
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Após a sua morte, cada elemento do grupo passa a ter uma pontual presença individualizada e, como em qualquer desfecho de um ritual iniciático — demarcando a passagem da adolescência para a idade adulta —, a tomada da palavra acontece na boca‑de‑cena. Levados a responder a perguntas que desconhecem, será por via de um estremecimento ontológico irredutível que verbalizam fragmentos de episódios íntimos, em que a angústia e o júbilo, a culpa e o orgulho se entremeiam. Consoante as narrações se sucedem, vai eclodindo o que lhes é transversal: a sua universalidade, a sua pertença ao subsolo humano gerador de vitalidade e dos tumultos que a acompanham. Expor os anseios e desejos mais primordiais corresponde a uma entrega e dádiva totais, inconcebíveis fora de um sacrifício ritualístico, consumando as premissas de Gatilho da Felicidade. O sangue, que explode nos rostos e desmaterializa os corpos, ecoa em narrações cuja violência fazem do corpo e do espírito uma substância única e indivisível. Transgredindo os preceitos morais, a festividade — já inscrita no pó vermelho — por meio da morte sacrificial só pode acontecer no recinto fechado de um teatro. Por outro lado, o público, soberano porque invisível na sua plateia, tem sempre a opção de instaurar uma distância que vampiriza as paixões, ao tratá‑las como feridas abertas que vai neutralizando, por meio de uma dissecação que as resume a componentes abstratas, perfeitamente separadas e legíveis. Dado que o público só adquire o seu estatuto devido à segurança que mantém perante o naufrágio contemplado, torna‑se iminente a transfiguração de Gatilho da Felicidade num casting social. O teatro é, então, transformado numa arena cuja divisão entre palco e plateia é responsável pela vertigem do abismo. A entrega total dos jovens torna‑se assim propícia, não a um sacrifício ritualístico mas a um juízo final, no interior de um teatro instituído como local do crime. Cabe aos candidatos à entrada no mundo administrado a preservação, ou não, do seu tempo interior, volúvel e evanescente, aquando da imersão num tempo cronológico e maquinal, que reduz o mundo ao princípio da realidade. A chegada e sobrevivência nesta dimensão implica uma distinção clara e objetiva entre bem e mal, interior e exterior,
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público e privado. Face a esta ambivalência, o futuro é despojado do seu brilho para ser território de incertezas e frustrações, em que o “ainda não” utópico se propaga ad eternum. Caso incorporem esta distância infinita, os jovens são aceites como adultos que passarão a camuflar a esfera privada, para que o domínio público possa cumprir a objetividade da sua administração. Mas caso optem por manter obstinadamente as suas pulsões e idiossincrasias, permanecerão para sempre condenados a um limbo social; passando a negatividade que extingue as identidades a comparecer, não num ritual iniciático, mas sob a forma de “negação, negação, negação, negação.” Como o próprio título indica, Gatilho da Felicidade remete para uma fissura infinita entre o mutismo expectante dos jovens no núcleo do palco e a sua apresentação ao público na boca‑de ‑cena. Justapor dois termos irreconciliáveis, gatilho e felicidade, equivale a situar a violência numa teatralidade que não reconhece qualquer veredicto: no termo “gatilho” denota a iminência de passagem de um ser para o estatuto de um corpo — que, na roleta russa, é provocada, não por um cataclismo egocêntrico, mas antes por um dispositivo socialmente estabelecido. Por oposição extrema, a felicidade está vinculada a uma redenção implícita na expansão infindável em direção ao mundo. Dado que ambos os termos se anulam mutuamente, acabam por perder a sua veracidade e sentido, para se imiscuírem num universo onde tudo adquire o estatuto de ficções em constante mutação (daí que toda a violência do suicídio se dissipe quando a bala é transfigurada em mancha de pó colorido, introduzindo uma dimensão feérica ao ato trágico). A verdade do acontecimento dá lugar a jogos performativos, que abolem as fronteiras entre as ações do palco e a distância crítica da plateia. Quando os atos e rituais mais funestos revelam o seu estatuto falacioso, a teatralidade invade o juízo crítico, fazendo da distinção de real e ficção uma questão de crença. Acreditar, para não admitir que ambas contêm, tão simplesmente, um fundo arbitrário e libidinal, transversal a toda a atividade humana. Ao poder auferido pela total administração e controlo do corpo social, Gatilho da Felicidade contrapõe a extrema fragilidade de seres que contam apenas com sinergias e dispositivos cénicos, para manterem o seu locus.
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Se a penumbra protege o núcleo comunitário, aquando da dança extasiante, o esplendor de uma vida post‑mortem apenas revela a sua condição quando incluída no domínio da mentira, que, por inerência, obscurece toda a pretensão a uma divisão e taxonomia racional da existência, e da não‑existência. Após a explosão da bala de sangue, os jovens têm direito a uma vida espectral; mas, regressados à sua comunidade provisória no cerne do palco, transformam a vida que lhes foi emprestada num indelével jogo de ilusões. No vaivém incessante de mortes e presenças fantasmáticas, apenas perdura uma multiplicação de projeções e contraprojeções no confronto travado entre plateia e palco. Ainda que o sinistro dispositivo coreográfico constitua parte integrante de uma seleção social, serve igualmente os propósitos de quem se enquadra na utopia da autoabstração; transcendendo deste modo a sua existência particular, de modo a ser incluído no domínio público. Dada a impossibilidade de edificação de uma autoidentidade, os relatos biográficos apenas adquirem a sua verdadeira dimensão quando verbalizados no espaço teatral. A felicidade tem assim lugar pela ascensão dos jovens à categoria de estrelas que, no recinto do teatro, assumem a função de eixo existencial — enquanto comungam as suas paixões. Mas o momento do estrelato corresponde também à passagem ao anonimato, de personagens doravante entregues ao incorpóreo das imagens. Radicalmente isolados pela omnividência na esfera pública, os jovens adultos assistem ao seu próprio funeral quando tomam consciência da sua mesma objetualização. Ainda assim, enquanto performers, tornam pública a sua intimidade, mas revelando‑a somente através da sua persona, da sua máscara. Dissimular a mentira depositada nos relatos biográficos, fazendo acreditar na sua veracidade, resulta de uma estratégia homeopática de quem reclama visibilidade, mas mantendo sempre impercetível a sua localização no tecido social. Recorrendo a este procedimento, Gatilho da Felicidade demonstra o modo como a mentira se torna o instrumento mais eficaz na elaboração de um sentido do coletivo, que, para manter a sua perpétua reconstrução, tem em conta a violência de pulsões que transgridem as dualidades instauradas pela ordem legal. texto escrito no contexto da peça Gatilho da Felicidade, de Ana Borralho & João Galante w w w.fernandojribeiro.com
MARÇO 2017 ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ
SREĆKO HORVAT A Utopia do Amor: um regresso à política radical? ● debate e pensamento ter 07 ↣ 18h30 VAIVA GRAINYTĖ, LINA LAPELYTĖ, RUGILĖ BARZDŽIUKAITĖ Have a good day! — Opera for 10 cashiers, supermarket sounds and piano ● ópera sex 10 ↣ 21h30 ANA BORRALHO & JOÃO GALANTE Gatilho da Felicidade ● teatro qui 16 ↣ 15h30 (escolas) sex 17 ↣ 21h30 sáb 18 ↣ 21h30 dom 19 ↣ 18h30 HELENA INVERNO E VERÓNICA CASTRO Um Elefante na Sala ANA BORRALHO, JOÃO GALANTE E ROBERTO FRATINI SERAFIDE Arte e Participação ● debate e pensamento dom 19 ↣ 16h CHANTAL MOUFFE O papel dos afetos na política agonística ● debate e pensamento qua 22 ↣ 18h30
Uma apresentação no âmbito da rede Create to Connect com o apoio do Programa Cultura da União Europeia
Durante a temporada 2016/2017, o Teatro Maria Matos irá editar seis cadernos de textos do ciclo Utopias, dedicados a cada uma das partes: Arquipélago da Resiliência 1/6, Arquipélago das Diversidades 2/6, Arquipélago Comum 3/6, Arquipélago dos Afetos 4/6, Arquipélago Capital 5/6 e Arquipélago Verde 6/6.
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