DEBATE E PENSAMENTO marรงo e abril 2017
ARQUIPร LAGO
C A P I T A L
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textos: Paul Mason, Antรณnio Alvarenga e Felwine Sarr
curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
U TO PI AS
setembro ↣ outubro 2016
6 ARQUIPÉLAGO DA RESILIÊNCIA
olhou para o regresso da imaginação política nos movimentos sociais que têm irrompido um pouco por todo o mundo nos últimos anos. novembro ↣ dezembro 2016
6 ARQUIPÉLAGO DAS DIVERSIDADES
partiu da crise dos refugiados para revisitar os problemas e as oportunidades da sociedade diversa. janeiro ↣ fevereiro 2017
6 ARQUIPÉLAGO COMUM
revisitou os muitos projetos utópicos surgidos dos comunismos e anarquismos que nasceram no início do século XX. março 2017
6 ARQUIPÉLAGO DOS AFETOS
deu a palavra aos muitos que estão a repensar a política como uma atividade também afetiva. março ↣ abril 2017
> ARQUIPÉLAGO CAPITAL
centra‑se nas forças imaginativas e destrutivas do capitalismo. maio ↣ julho 2017
6 ARQUIPÉLAGO VERDE
foca‑se no imaginário utópico mais influente da atualidade, surgido da necessidade incontornável de manter o planeta viável.
O ciclo UTOPIAS oferece um programa alargado que atravessa toda a temporada 2016‑2017 do Teatro Maria Matos, com espetáculos, instalações, palestras, encontros e eventos no espaço publico, trazendo convidados que fazem do agir crítico e da imaginação política uma tarefa diária. As UTOPIAS da temporada estão organizadas em seis arquipélagos, seis territórios para conhecer possibilidades que estão já em curso e de imaginar outras. Nesta brochura dedicada ao Arquipélago Capital, Felwine Sarr, autor de Afrotopia, um livro que propõe a uma visão alternativa aos projetos capitalistas para África a partir das culturas económicas e sociais já presentes no terreno, está presente com um texto no qual se pensa a reciprocidade entre formas de cultura e de economia. António Alvarenga, em Notas sobre a mudança: o individual e o global, reflete sobre a sobreposição entre globalização económica e as nossas ações e posições pessoais. Paul Mason, cuja perspetiva e propostas para o pós‑capitalismo enformaram em parte a conceção deste arquipélago, desafia‑nos a pensar como, dentro do capitalismo ele mesmo, se podem encontrar as condições de transformação e ultrapassagem deste sistema.
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arquipĂŠlago
O neoliberalismo apresenta‑se com o estado natural das coisas. É o sistema que se instala quando o governo deixa de intervir e o mercado se organiza livremente. Os neoliberais são realistas; os sonhadores são os outros. Não têm ilusões e sabem que o homem é intrinsecamente egoísta. Acreditam que a sociedade encontra espontaneamente o seu equilíbrio quando cada um faz por si próprio. Mas não é bem assim, diz o filósofo holandês Hans Achterhuis no seu livro A Utopia do Mercado Livre: o neoliberalismo reinante é a utopia mais influente das últimas décadas. Tal como o Comunismo, é um sistema que se quer universal, baseado numa visão simplificada e altamente ideológica do mundo. Surgindo como a promessa de um mundo melhor, através da mão invisível que geriria a bondade de todas as iniciativas privadas para o bem comum, a economia e política do capitalismo neoliberal são forças imaginativas que se tornaram eficazes, se edificaram em sistema e se estenderam pelo mundo fora. No Arquipélago Capital, convidamos a olhar para até onde vai essa eficácia; o que provoca nalguns terrenos para os quais se tem estendido; que relação de parentesco mantém com o colonialismo; o que acontece quando deixamos nas mãos das bondades privadas um desígnio comum; se existe nesta forma de organizar o mundo e a economia, a possibilidade de reverter efetivamente para o bem comum as vantagens do crescimento que promove, desfazendo as desigualdades e os abusos de recursos que tem gerado. curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
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PAUL MASON Pós‑Capitalismo — Um guia para o nosso futuro Para chegarmos ao rio Dniestre, conduzimos através de florestas frias, edifícios antigos e instalações ferroviárias cuja cor dominante é a da ferrugem. A água gelada corre transparente. O silêncio é tal que conseguem ouvir‑se pequenos pedaços de cimento a caírem da ponte rodoviária mais acima, que se desfaz lentamente por falta de manutenção. O Dniestre serve de fronteira geográfica entre o capitalismo do mercado livre e aquilo que quiserem chamar ao sistema dirigido por Vladimir Putin. Separa a Moldávia, um país da Europa de Leste, de um Estado fantoche separatista russo chamado Transnístria, controlado pela máfia e pela polícia secreta. Do lado da Moldávia, pessoas de idade enchem os passeios para vender produtos que cultivaram ou produziram: queijo, bolos e alguns produtos hortícolas. Há poucos jovens; um em cada quatro adultos trabalha no estrangeiro. Metade da população ganha menos de 5 dólares por dia; uma em cada dez pessoas vive num tal estado de pobreza extrema que a escala utilizada para essa aferição é a mesma que usamos para África. O país surgiu no início da era do neoliberalismo, com o colapso da União Soviética no início da década de 1990 e a entrada das forças de mercado — mas muitos dos aldeões com quem falei afirmaram preferir viver sob o Estado policial de Putin do que sob a miserável penúria da Moldávia. Este mundo cinzento de estradas sujas e rostos austeros foi gerado pelo capitalismo, não pelo comunismo. E agora o melhor do capitalismo já passou à história. Como é evidente, a Moldávia não é um país europeu típico. No entanto, é nos locais mais remotos do mundo que podemos observar a maré vazante da economia — e traçar as ligações causais entre estagnação, crises sociais, conflitos armados e erosão da democracia. O falhanço da economia ocidental está a minar os valores e as instituições que outrora julgámos permanentes.
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Nos centros financeiros, do outro lado dos vidros, as coisas ainda parecem cor‑de‑rosa. Desde 2008 que biliões de dólares de diferentes proveniências têm circulado pelos bancos, fundos de investimentos, firmas de advogados e de consultoria para manterem o sistema mundial em funcionamento. No entanto, a longo prazo, as perspectivas do capitalismo são sombrias. De acordo com a OCDE, o crescimento no mundo desenvolvido será “fraco” nos próximos cinquenta anos. A desigualdade aumentará cerca de 40%. Mesmo nos países desenvolvidos, o dinamismo actual estará esgotado em 2060. Os economistas da OCDE foram demasiado educados para o afirmarem, por isso dígamo‑lo com todas as letras: para o mundo em desenvolvimento, o melhor do capitalismo já acabou e, para o restante, acabará enquanto ainda formos vivos. O que começou em 2008 como uma crise económica converteu‑se numa crise social que conduziu a uma agitação generalizada; e agora, à medida que as revoluções dão lugar a guerras civis e geram tensões entre as superpotências detentoras de armamento atómico, tornou‑se uma crise da ordem mundial. Perante isto, o fim só poderá assumir uma de duas formas. No primeiro cenário, a elite global mantém‑se e impõe o custo da crise aos trabalhadores, aos reformados e aos pobres durante os próximos dez ou vinte anos. A ordem global — imposta pelo FMI, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio — sobrevive, mas numa versão enfraquecida. O custo de salvar a globalização será pago pelos cidadãos comuns do mundo desenvolvido. No entanto, o crescimento estagnará. No segundo cenário, haverá uma quebra do consenso. Partidos da extrema‑direita ou da extrema‑esquerda ascenderão ao poder porque os cidadãos comuns se recusam a pagar o preço da austeridade. Perante isto, os Estados tentarão impor os custos da crise uns aos outros. A globalização entrará em ruptura, as instituições globais perderão poder e, neste processo, os conflitos que têm
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lavrado nos últimos vinte anos — guerras contra o tráfico de droga, nacionalismo pós‑soviético, jihadismo, migrações descontroladas e resistência a estas — provocarão um incêndio no centro do sistema. Neste cenário, o apoio ao direito internacional evapora‑se: a tortura, a censura, as prisões arbitrárias e a vigilância global tornar‑se‑ão as ferramentas habituais dos Estados. Trata‑se de uma variante daquilo que ocorreu na década de 1930 e nada nos garante que não possa voltar a acontecer. Em ambos os cenários, os graves impactos das alterações climáticas, o envelhecimento demográfico e o crescimento da população atingirão o ponto crítico por volta do ano 2050. Se não criarmos uma ordem global sustentável nem restauráramos o dinamismo económico, as décadas que se seguirem a 2050 serão caóticas. Por isso, quero propor uma alternativa: primeiro, salvamos a globalização enterrando o neoliberalismo; depois, salvamos o planeta — e salvamo‑nos da confusão e da desigualdade — ultrapassando o próprio capitalismo. Enterrar o neoliberalismo é a parte mais fácil. Percebe‑se um consenso crescente entre movimentos de protesto, economistas radicais e partidos políticos radicais na Europa quanto à maneira de o levar a cabo: eliminar a alta finança, inverter a austeridade, investir em energias verdes e promover o trabalho bem remunerado. Como a experiência grega demonstra, qualquer governo que desafie a austeridade choca de imediato com as instituições globais que protegem o 1%. Depois de o Syriza, o partido da esquerda radical, ter ganho as eleições em Janeiro de 2015, o Banco Central Europeu, cuja missão era promover a estabilidade dos bancos gregos, fechou a torneira a esses mesmos bancos, desencadeando uma fuga de mais de 20 mil milhões de euros de depósitos. Isto obrigou o governo de esquerda a optar entre a bancarrota ou a submissão. É impossível encontrar actas, registos de votação ou explicações para aquilo que o BCE fez. Os esclarecimentos ficaram a cargo da Stern, uma revista alemã conotada com a direita: eles “esmagaram” a Grécia. Foi um acto simbólico com o intuito de reforçar a mensagem
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central do neoliberalismo de que não existe alternativa; que todos os caminhos que se afastem do capitalismo acabam no mesmo tipo de desastre que vitimou a União Soviética; e que uma revolta contra o capitalismo é uma revolta contra uma ordem natural e eterna. A crise actual não só é um prenúncio do fim do modelo neoliberal, como também um sintoma da incompatibilidade, a longo prazo, entre os sistemas de mercado e uma economia assente na informação. O objectivo deste livro é explicar a razão por que a substituição do capitalismo deixou de ser um sonho utópico, como podem descobrir‑se as formas básicas de uma economia pós‑capitalista no interior do actual sistema e como estas podem expandir‑se rapidamente. O neoliberalismo é a doutrina dos mercados sem controlo: estabelece que o melhor caminho para a prosperidade é as pessoas perseguirem o seu interesse próprio, sendo o mercado a única forma de expressar este interesse. Afirma que o Estado deve ser pequeno (à excepção das forças antimotim e da polícia secreta); que a especulação financeira é benéfica; que a desigualdade é boa; que o estado natural da Humanidade é ser um grupo de indivíduos sem escrúpulos em competição entre si. O seu prestígio assenta em feitos materiais: nos últimos vinte e cinco anos, o neoliberalismo impulsionou a maior vaga de desenvolvimento a que o mundo alguma vez assistiu e desencadeou um aperfeiçoamento exponencial das principais tecnologias de informação. No entretanto, porém, fez com que a desigualdade recuasse para um estado próximo do de há cem anos e gera, agora, situações de sobrevivência. A guerra civil na Ucrânia, que levou as forças especiais russas às margens do Dniestre; o triunfo do ISIS na Síria e no Iraque; a ascensão de partidos fascistas na Europa; ou a paralisação da NATO face à recusa das populações em autorizarem uma intervenção militar — não existem problemas independentes da crise económica — são, todos eles, sinais de que a ordem neoliberal falhou. Ao longo das duas últimas décadas, milhões de pessoas resistiram ao neoliberalismo mas, de uma maneira geral,
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a resistência fracassou. Apesar de todos os erros tácticos e da repressão, a razão é simples: o capitalismo do mercado livre é uma ideia forte e clara, ao passo que as forças que se lhe opõem parecem defender algo velho, pior e incoerente. Para o 1%, o neoliberalismo tem a força de uma religião: quanto mais a praticam, melhor se sentem — e mais ricos ficam. Quando o sistema entrou em pleno funcionamento, mesmo entre os pobres passou a ser considerado irracional agir de uma maneira que não fosse aquela estabelecida pelos preceitos neoliberais: contraem‑se dívidas, improvisam‑se maneiras de contornar o sistema fiscal e cumprem‑se regras sem sentido impostas no trabalho. Durante décadas, os adversários do capitalismo chafurdaram na sua própria incoerência. Do movimento antiglobalização da década de 1990 ao Occupy e outros posteriores, o movimento pela justiça social rejeitou a ideia de um programa coerente em prol de “Um não, Muitos Sim”. A incoerência é lógica, se pensarmos que a única alternativa é aquilo a que a esquerda do século XX chamou “socialismo”. Para quê lutar por uma grande mudança se é apenas uma regressão — em direcção ao controlo estatal e ao nacionalismo económico, a economias que só funcionam se todos se comportarem da mesma maneira ou se submeterem a uma hierarquia brutal? Por outro lado, a ausência de uma alternativa clara explica porque é que a maior parte dos movimentos de protesto nunca triunfa: no fundo, não o querem. O movimento de protesto até tem uma expressão para isto: “a recusa de vencer”. Para substituirmos o neoliberalismo, precisamos de algo igualmente poderoso e eficaz; não apenas de uma ideia brilhante de como o mundo poderia funcionar, mas de um novo modelo, holístico, operante, e que produza resultados tangivelmente melhores. Deve assentar em micro ‑mecanismos e não em doutrinas ou políticas; tem de funcionar de modo espontâneo. Neste livro, defendo a existência de uma alternativa clara, que pode ser global e que pode contribuir para um futuro substancialmente melhor do que aquele que o capitalismo proporcionará em meados do século XXI. Chama‑se Pós‑Capitalismo.
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O capitalismo é mais do que uma simples estrutura económica ou um conjunto de leis e instituições. É todo o sistema — social, económico, demográfico, cultural e ideológico — necessário para que uma sociedade desenvolvida funcione através de mercados e da propriedade privada. Isto inclui empresas, mercados e Estados. Mas inclui ainda gangues criminosos, redes secretas de poder, pregadores de milagres num bairro de lata em Lagos (Nigéria), analistas desonestos na Wall Street. O capitalismo é a fábrica da Primark que desabou no Bangladesh e é o bando de raparigas descontroladas que aguardou pela inauguração da loja da marca, em Londres, excitadas com a perspectiva de adquirirem roupas a preços irrisórios. (…) O capitalismo é um organismo: tem um ciclo de vida com um princípio, um meio e um fim. É um sistema complexo que actua para lá do controlo dos indivíduos, dos governos e mesmo das superpotências. Produz resultados que são, muitas vezes, contrários às intenções das pessoas, mesmo quando estas agem racionalmente. O capitalismo é, também, um organismo que aprende: está em constante adaptação e não apenas em pequenas parcelas. Confrontado com importantes pontos de inflexão, metamorfoseia‑se e muda como resposta ao perigo, criando padrões e estruturas dificilmente reconhecíveis pela geração anterior. E o seu instinto de sobrevivência mais básico é comandar as alterações tecnológicas. Se considerarmos não só a tecnologia da informação, mas também a produção de alimentos, o controlo dos nascimentos ou a saúde global, é provável que, nos últimos vinte e cinco anos, tenhamos assistido ao maior aumento de sempre das capacidades humanas. No entanto, as tecnologias que criámos não são compatíveis com o capitalismo (…). Uma vez que o capitalismo já não consegue adaptar‑se às alterações tecnológicas, torna‑se necessário o pós‑capitalismo. Quando aparecem, de forma espontânea, comportamentos e organizações aptos a explorar a mudança tecnológica, o pós‑capitalismo torna‑se possível. É este, em resumo o argumento deste livro: o capitalismo
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é um sistema complexo e adaptativo que atingiu os limites da sua capacidade de adaptação. É evidente que isto está a quilómetros de distância das principais correntes do pensamento económico. Nos anos do boom, os economistas começaram a acreditar que o sistema que emergira após 1989 viera para ficar — a expressão perfeita da racionalidade humana, cujos problemas seriam solucionáveis pelos políticos e pelos banqueiros centrais, bastando, para tal, que carregassem nos botões de comando assinalados como “política fiscal e monetária”. Quando consideraram a possibilidade de a nova tecnologia e as velhas formas de sociedade serem incompatíveis, os economistas concluíram que a sociedade teria simplesmente de se remodelar em torno da tecnologia. Este optimismo justificava‑se porque, no passado, já tinham ocorrido adaptações deste género. No entanto, hoje em dia, este processo de adaptação já não funciona. A informação é diferente de qualquer outro tipo de tecnologia anterior. Como irei demonstrar, a sua tendência espontânea é para dissolver os mercados, destruir a propriedade privada e derrubar a relação entre trabalho e salário. E é este o cenário profundo da crise que estamos a atravessar. Se eu estiver certo, teremos de admitir que, ao longo da maior parte do século passado, a esquerda falhou em perceber que forma assumiria o fim do capitalismo. O velho objectivo da esquerda era a destruição forçada dos mecanismos de mercado. A força seria exercida pela classe trabalhadora, tanto nas urnas como nas barricadas. A alavanca seria o Estado. A oportunidade iria surgindo através de frequentes colapsos da economia. Em vez disto, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, foi o projecto da esquerda que colapsou. O mercado destruiu o plano; o individualismo substituiu o colectivismo e a solidariedade; a força de trabalho massivamente difundida pelo mundo assemelha‑se a um “proletariado”, mas já não pensa nem se comporta como tal. Se assistiram a tudo isto e odiavam o capitalismo, deve ter sido traumático. Contudo, no decorrer deste processo,
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a tecnologia criou uma nova via de escape que aquilo que resta da velha esquerda — e de todas as outras forças influenciada por esta — terão de aceitar ou morrer. Afinal de contas, o capitalismo não será abolido por técnicas de marcha forçada. Será abolido através da criação de algo mais dinâmico já existente no interior do velho sistema, de forma quase imperceptível, e que está a emergir para reestruturar a economia em torno de novos valores, comportamentos e normas. Tal como sucedeu com o feudalismo há quinhentos anos, o desaparecimento do capitalismo será acelerado por choques externos e modelado pelo aparecimento de um novo tipo de ser humano. E este processo já começou. O pós‑capitalismo é possível graças a três impactos da nova tecnologia nos últimos vinte e cinco anos. Primeiro, a tecnologia da informação reduziu a necessidade de trabalho, esbateu as fronteiras entre o trabalho e afrouxou a relação entre trabalho e salários. Segundo, os bens de informação estão a minar a capacidade do mercado de estabelecer os preços correctamente porque os mercados assentam na escassez, ao passo que a informação é abundante. O mecanismo de defesa do sistema baseia‑se na formação de monopólios a uma escala nunca vista nos últimos 200 anos — no entanto, estes não podem durar. Terceiro, estamos a assistir ao aparecimento espontâneo da produção colaborativa: surgem bens, serviços e organizações que já não obedecem às imposições do mercado nem da hierarquia empresarial. O maior produto de informação do mundo, a Wikipedia, é feito de forma gratuita por 27 000 voluntários, está a acabar com o negócio das enciclopédias e calcula‑se que esteja a privar a indústria da publicidade de 3 mil milhões de dólares de rendimentos por ano. De uma maneira quase imperceptível, nos nichos e espaços do sistema de mercado, todos os sectores da vida económica estão a começar a evoluir a um ritmo diferente. Têm proliferado moedas paralelas, bancos de tempo, cooperativas e espaços autogeridos — algo que parece
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passar despercebido aos economistas profissionais —, muitas vezes um resultado directo do desmoronamento das velhas estruturas após a crise de 2008. Novas formas de propriedade, novas formas de empréstimo, novos contratos legais: ao longo dos últimos dez anos tem emergido uma subcultura empresarial completa a que os meios de informação chamaram “economia de partilha”. Ouvem‑se e lêem‑se por toda a parte expressões na moda como “commons” e “peer‑production”, mas poucos se têm dado ao trabalho de perguntar o que significam para o próprio capitalismo. Penso que podem proporcionar uma via de escape, mas só se estes projectos de nível microscópico forem alimentados, promovidos e protegidos por uma alteração radical na acção dos governos. Por sua vez, isso deve ser motivado por uma mudança da nossa mentalidade em relação à tecnologia, à propriedade e ao próprio trabalho. Quando criarmos os elementos do novo sistema, ficaremos em condições de dizermos a nós mesmos e aos outros: isto já não é o meu mecanismo de sobrevivência, o meu esconderijo do mundo neoliberal, isto é um novo modo de vida no processo de formação. Segundo o velho projecto socialista, o Estado apropria‑se do mercado, dirige‑o em benefício das classes desfavorecidas e não dos ricos e, depois, transfere áreas fundamentais da produção do mercado para a economia planificada. A única vez que isto foi posto em prática, na Rússia após 1917, não funcionou. Poderia ter funcionado? É uma boa questão, mas irrelevante. Hoje, o terreno do capitalismo mudou: é global, fragmentado, orientado para escolhas a uma escala reduzida, para trabalho temporário e múltiplos conjuntos de capacidades. O consumo tornou‑se uma forma de auto‑expressão — e milhões de pessoas têm uma participação no sistema financeiro que não tinham no passado. Com o novo terreno, perdeu‑se o velho caminho. No entanto, abriu‑se um caminho diferente. A produção colaborativa, utilizando a tecnologia em rede para produzir
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bens e serviços que só funcionam quando são livres, ou partilhados, define a via para lá do sistema de mercado. Será necessário que o Estado crie a infraestrutura, e o sector pós‑capitalista poderá coexistir com o sector de mercado durante décadas, mas está a acontecer. (…) A transição terá de envolver o Estado, o mercado e a produção colaborativa para lá do mercado. No entanto, para que isto aconteça, será necessário reconfigurar todo o projecto da esquerda, dos grupos de protesto aos principais partidos sociais‑democratas e liberais. Com efeito, assim que as pessoas compreenderem a urgência deste projecto pós‑capitalista, o mesmo deixará de pertencer à esquerda para integrar um movimento muito mais vasto para o qual iremos, provavelmente, precisar de novos rótulos. Quem pode fazer com que isto aconteça? Excerto de Mason, Paul, “Introdução”, Pós‑Capitalismo — Um guia para o nosso futuro (2015), Lisboa, Editora Objetiva, 2016. Tradução: Paulo Ramos A tradução deste texto foi feita ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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ANTÓNIO ALVARENGA Notas sobre a mudança: o individual e o global O global Um amigo costumava repetir com insistência que a globalização podia ser muita coisa (novas tecnologias, mundialização das empresas, surgimento de novos atores e economias concorrentes, entre outras) mas, para ele, no limite, tratava‑se da criação de um enorme agregado de poupanças ao nível global. Sempre me pareceu uma boa definição para o fenómeno. Não acredito nem numa globalização simplesmente má, nem numa globalização simplesmente boa. Contudo, confesso‑me particularmente interessado na ideia da “má globalização”, aproximação a uma teoria da conspiração que parece acreditar que, algures do outro lado do Atlântico, está um conjunto de senhores vestidos de negro a jogar, a seu bel‑prazer, uma espécie de monopólio da globalização. Parece, às vezes, que vivemos todos inconscientes da exploração por um punhado de “espertalhões”, que mais não querem do que nadar, qual Tio Patinhas, num cofre cheio de dinheiro —obtido por vias travessas, claro está — e, obviamente, despedir pessoas (de preferência muitas, milhares, se possível). A globalização é, assim, uma “coisa” — um objeto de arremesso — acentuadamente má, que enriquece os ricos, aumenta a pobreza, origina guerras injustas, provoca desastres ambientais, mata crianças à fome, e, claro, leva ao despedimento de pessoas, trabalhadores (aos milhares). Pergunto se, eventualmente, não será o próprio Homem, com as suas limitações e ações concretas, o causador de alguns destes problemas. Porquê atribuí‑los, então, ao “bicho‑papão” de múltiplas faces a que se chama globalização? É também esta extrema simplificação da globalização capitalista, enquanto fonte dos males do mundo, uma das causas dos fenómenos populistas‑revolucionários atuais. De repente, o mundo fica surpreendido com a ideia de que
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globalização, capitalismo, liberdade e confiança andam muitas vezes lado a lado. Como, por esta altura, já devem ter calculado, não acredito numa simplesmente má nem, diga‑se de passagem, numa simplesmente boa globalização. Ela é constituída, na minha perspetiva, por um conjunto de fenómenos que marcam fortemente a sociedade contemporânea (em simultâneo com outros, como por exemplo, de regionalização e fragmentação geopolítica), comportando inúmeras potencialidades, positivas e negativas, a prazos variados. Assim, quando se tentam encaixar interpretações ideológicas numa realidade complexa, num ensaio de simplificação, interpretando‑a à luz de conceitos que transitam do passado e se projetam de forma linear no futuro, o resultado é, não raras vezes, de fraco alcance. É que, pasme‑se, a globalização (mesmo na definição mais “neoliberal” e redutora que se possa imaginar) tem também facetas muito positivas e, pasme‑se ainda mais, estabilizadoras do mundo em que vivemos. Dois apontamentos servirão de exemplos: o massivo Investimento Direto Estrangeiro na Índia (fundamentalmente nas indústrias de software e das tecnologias de informação) tornou este país fortemente dependente do mundo e o mundo dele. Alguém duvida do papel apaziguador que tal exerceu no conflito Indo‑Paquistanês (duas potências nucleares) em Caxemira? E o capital estrangeiro presente em Taiwan e a progressiva abertura da China à economia mundial (com, por exemplo, a respetiva entrada na Organização Mundial do Comércio) serão dissociáveis do controlo do estado de “tensão” em que se encontram, há vários anos, as complicadas relações entre estes dois atores? Estes e outros exemplos levam‑me atrevidamente a pensar que, se calhar, a globalização também tem algo de “bom”, pela interconectividade que comporta, pela estabilidade que (também) pode provocar. A globalização sofre do mal da hegemonia, da sua propensão universalizante. É a ela que frequentemente se aponta o dedo quando não se consegue explicar algo negativo. É como se a globalização fosse vítima da sua própria capacidade de mutação e de adaptação, qual camaleão que,
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por não o vermos, pensamos que está em todo o lado. Notamos mais os despedimentos provocados por deslocalizações do que os empregos criados pelo investimento estrangeiro; são‑nos mais evidentes os impactos dos hiper e supermercados no pequeno comércio e a crise dos agricultores que nos são próximos, que as vantagens da contenção dos preços, particularmente em contexto de envelhecimento populacional e de fragilidade do Estado Social. A partir de um pequeno conjunto de regras simples e eficientes (se não contabilizarmos os ativos ambientais), a globalização capitalista foi‑se expandindo pelo mundo, tendo como racional subjacente o mercado e a concorrência, e os preços como medida e critério. Proporcionou progresso material (e o bem‑estar a ele associado), sustentou as ambições da classe média, recompensou os capitalistas e resultou, com frequência, num aumento das desigualdades e da exclusão. Apesar das dificuldades, criou regras internacionais para o comércio. Permitiu, até agora, a gestão global da ascensão do gigante chinês. Promoveu uma evolução tecnológica sem precedentes na sua velocidade. A globalização capitalista, tendo por base uma tendência no sentido de uma maior integração e interdependência da economia mundial, permitiu a fusão num imenso mercado global de mercados historicamente separados. Acelerada politicamente pelo alinhamento “Thatcherismo” / Reaganomics dos anos 1980 do século XX, a globalização capitalista fez cair barreiras e atravessou fronteiras. As preferências dos consumidores, em diferentes países, convergiram e mercados de nicho passaram a ter escala global para se desenvolverem. A face mais visível desta convergência e normalização são, porventura, as empresas multinacionais: identificam e definem normas gerais de comportamento e de decisão; estandardizam e aproveitam a globalização da produção; fragmentam geograficamente as cadeias de valor com base no aproveitamento do acesso aos mercados e da ponderação entre custo e qualidade dos fatores de produção (trabalho / conhecimento, energia, terrenos/espaço e capital); criam e destroem emprego a uma grande velocidade.
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Estamos num mundo em que os cisnes se transformam em incertezas. Tento explicar melhor. Os cisnes negros, tal como proposto por Nicolas Nassim Taleb, são acontecimentos de muito baixa probabilidade percecionada, mas com fortíssimo impacto potencial, que podem mudar, radical e subitamente sistemas económicos, sociais, políticos, tecnológicos, etc. As incertezas cruciais são variáveis com alto impacto num determinado sistema e elevado nível de incerteza (i.e., no momento da análise, é possível identificar evoluções plausíveis e contrastantes para essa variável). Assim, e detalhando a frase inicial deste parágrafo, estamos num mundo em que os cisnes negros se transformam não apenas em realidade (i.e., acontecem), mas também em incertezas cruciais (i.e., a sua probabilidade de ocorrência aumenta muito, e muito rapidamente). Podemos apontar como cisnes negros que recentemente se transformaram em incertezas cruciais: a fragmentação rápida da União Europeia e a interrupção efetiva do esforço global de combate às alterações climáticas. É neste mundo que temos de navegar, conscientes da necessidade de decidir em contexto de transformação da natureza da incerteza, longe das condições laboratoriais do ceteris paribus económico. Como referido, um dos aspetos centrais da globalização é a tecnologia. A rapidez da mudança tecnológica é elevada, não sendo certo que o ser humano e as instituições estejam preparados para tal. Tecnologias como a robótica, a inteligência artificial e a realidade virtual, associadas à aceleração exponencial da velocidade de computação, estão a transformar de forma disruptiva as economias e a forma como vivemos. O Instagram substituiu a Kodak, tal como o Airbnb está a substituir a Hyatt ou a Uber está a inquietar milhares de operadores de táxis espalhados pelo mundo. O acesso à informação é cada vez mais imediato e as redes sociais, ao renovarem a forma como as pessoas se relacionam, transformam também tudo o resto. A sensação é que a “velha economia” e o establishment, apesar de continuarem a apresentar resultados financeiros e valorizações muito significativas, estão pressionados. E é sobre as redes sociais, associadas ao aumento exponencial da capacidade de
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processamento e interpretação de informação, que os novos revolucionários focam a sua atenção. E quando me refiro a “novos revolucionários”, estou a ser tão literal quanto possível. Os meandros do Twitter e do Facebook são, cada vez mais, a “Sierra Maestra” dos novos tempos. O capitalismo global parece estar num impasse. Multiplicam‑se, justificadamente, as posições de resistência a um mundo normativo, onde as nossas ações se medem pela eficácia, pela capacidade de amplificação de escala e pela procura de valor acrescentado. No entanto, escasseiam as alternativas otimistas, que nos permitam mudar, continuando juntos. Estando em causa o modelo de capitalismo que saiu vitorioso do século XX — uma economia “financeirizada”, corporativa, global, industrial e massificada —, urge apostar numa descoberta partilhada de “deslizamentos” conceptuais, programáticos e metodológicos deste sistema económico. Procurar lugares que, estando perto da norma, lhe confiram novos usos, recolocações. Possibilidades que apontem para outros mundos possíveis, para outras continuidades (e não, apenas, ruturas). Perceber a ligação entre indivíduo e construção social, entre capitalismo e uma espécie de homo capitalisticus e de homo anti‑capitalisticus. Explorar a possibilidade e o valor da capacidade de ação e de decisão individuais, sobretudo na “proximidade”, sem que se contraponha uma nova estrutura (seja ela socialista, nacionalista, pós‑capitalista ou outra qualquer). Aceitando, com conforto, que não sabemos que estrutura social se formará. E, também por isso, por sabermos que não sabemos, estando mais atentos a uma dupla emergência: ao que é novo e ao que é urgente.
O individual Vivemos num pequeno ponto da história do ser humano na Terra; a história do ser humano na Terra é um pequeno ponto da história da própria Terra; e a história desta última é um pequeno ponto da história do Universo.
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A nossa existência é infinitamente pequena, como todos sabemos, eventualmente sem pensarmos muito nisso. Essa pequenez parece‑me ser, no entanto, mais que uma óbvia limitação orgânica, um poderoso incentivo à procura de liberdade, acabando por ser indissociável dela, pois sem essa procura essencial a própria liberdade não existiria. Neste sentido, a nossa curta existência é a outra face da nossa liberdade individual, a liberdade de viver o momento breve que é a nossa vida e de o tornar significativo (para cada um de nós), a liberdade de fazer opções, de querer e não querer, de questionar ideias feitas e de fazer perguntas. Se vivêssemos para sempre, não necessitaríamos tanto, nem tão urgentemente, de ser livres. De experimentar, de testar, de escolher. Se fosse infinita, a vida perderia o seu valor infinito. Ou seja, se vivêssemos para sempre não necessitaríamos tanto de viver. É precisamente por o nosso tempo ser tão limitado que a liberdade é tão importante. A democracia e os direitos humanos, por exemplo, são sinais dessa luta essencial. Ideias e práticas que relativizaram (e relativizam) o presente e os seus valores (por exemplo, a liberdade individual) e que marcaram profundamente o século XX, e alguns dos seus maiores conflitos, prometendo um “futuro radioso”, um “Homem diferente”, renascido, usaram esse instrumento tão poderoso que é o futuro, não como veículo de liberdade e de possibilidades no presente, mas como forma de escravizar esse mesmo presente, de limitar o ser humano nas suas opções, na sua curiosidade, na sua ironia e, claro, na sua liberdade. Tenho noção de que a liberdade exige consciência e capacidade. Consciência da possibilidade de ser livre e capacidade (real) para o ser. Assumo, neste texto, que somos conscientes e capazes. Nesse sentido, a função central do Estado seria lutar sempre pela possibilidade (material, por exemplo) da liberdade e contribuir para a consciência individual da mesma por parte dos cidadãos. Nesse sentido, também, a possibilidade de evolução (e, já agora, de revolução) parece‑me ser sobretudo individual,
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vinda “de dentro”, mas consciente do mundo, pragmática no que toca à possibilidade de uma breve utopia pessoal. Aceitou‑se esta distinção entre passado, presente e futuro… Sobre o passado costuma‑se dizer que não devemos ficar agarrados a ele. Mas isso é obviamente impossível. Felizmente estamos “agarrados ao passado”. É do passado que retiramos as experiências, os ensaios de ação, os nossos ecossistemas (naturais, mas também sociais e culturais). É do passado que vimos. Somos passado, nesse sentido. Sem passado, não somos. Mas não temos de nos preocupar: a morte libertar‑nos‑á dessas amarras. E, olhando o tempo de longe, isso ocorrerá já amanhã. Sobre o futuro diz‑se que “a Deus pertence”. E parece‑me fazer sentido já que, possivelmente, só Deus pode lidar com a abertura, pluralidade e complexidade do futuro. Mas há um pequeno problema: as expectativas. Os nossos cérebros absolutamente pequenos (embora grandes em termos relativos) são autênticas máquinas de criação de expectativas. Desde as mais prosaicas e “automáticas” (por exemplo, de que o carro da frente que faz pisca para a esquerda vire, de facto, para a esquerda) até às mais “estratégicas” (por exemplo, de que um determinado investimento seja “rentável”). Nesta lógica, arrisco, o amor é “só” a expectativa da eternidade. Também o amor é tempo, assim. Como o tempo das minhas duas filhas pequenas, que me iluminam os dias. Crescem rápido e a sua capacidade de aprendizagem parece infinita. Ao vê‑las, sinto por vezes que alguém acelerou a imagem, como naquelas partes de filmes em que é usado o efeito de avanço rápido (fast forward) que permite que o movimento invisível (de uma árvore ou de uma paisagem, frequentemente associado ao passar das estações do ano) se torne visível. Muitas vezes temos de desacelerar para ver, para reparar. Este exemplo mostra que, em algumas ocasiões, também temos de acelerar para ver. Nesta perspetiva, o tempo individual é, acima de tudo, ritmo. A cadência ganha significado pela alternância entre aceleração e desaceleração, por aquilo em que reparamos, “vendo” e “agindo” em cada momento. Trata‑se de adequar o ritmo e a ação/decisão aos acontecimentos, com consciência destas
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diferenças. Cada acontecimento‑encontro tem um ritmo e um tempo próprios. Uma aceleração‑precipitação desapropriada (fruto, por exemplo, da ansiedade, da necessidade de preencher um vazio percecionado) e “o mal está feito”. Uma desaceleração‑espera apática e a oportunidade esfuma‑se. É por estas, e por outras, que a maneira como tomamos decisões é uma forma apaixonante de “artesanato”. Todos os dias somos confrontados com narrativas (histórias) tanto para os grandes desígnios da sociedade e da economia como para pormenores técnicorregulamentares. Estas narrativas são treinadas, “eficientes”, repetidas, repetidas, repetidas. Com a repetição, as “impurezas” vão desaparecendo e as histórias vão‑se tornando ainda “melhores”. Todas apelam a uma escolha, a um posicionamento. E muitas pessoas informam‑se, escolhem e posicionam‑se. Mas, lá no fundo, sabem que essas escolhas são fundamentalmente “primárias”, “orgânicas” (é o nosso corpo que decide antes?), ideológicas (seja). Podemos ter a nossa própria narrativa sobre a sociedade ou a economia. Podemos pensar nela (uma metaconsciência), torná‑la mais resiliente, sabendo, porém, que permanece frágil, perene, curta e indefinida. Tomando as nossas convicções como ponto de partida, estaremos sempre em permanente construção dessa história individual, que é frágil, e, por isso, resiste. Podemos procurá‑la da mesma forma que uma imagem surge no seu negativo. Isto é, construir a nossa narrativa explorando incessantemente o que dela não faz parte, conhecendo ao pormenor o que negamos. Podemos usar mediadores com quem, ao longo do tempo, criamos uma relação de confiança. Podemos, finalmente, usar o futuro para gerar opções de decisão no presente. Mas não para deixar de estar aqui, neste momento, sentado a escrever um texto, rodeado de notas sobre as muitas coisas que tenho para fazer. O potencial de existir (e de decidir) “estando” é muito grande. Este “estar” sintetiza, em tempo real, o passado longo e o futuro longo. Nesse gesto, tudo se decide e, logo a seguir, desse gesto enquanto decisão, já nada restará. “Apenas” a sua interação com o contexto e com a nossa narrativa em construção.
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FELWINE SARR A questão da economia Geografia, agricultura e demografia
(…) África é um continente que tem uma superfície de 30 milhões de quilómetros quadrados, composto por 54 Estados. Cabem nela os Estados Unidos, a China, a Índia e uma parte da Europa Ocidental. Com uma população de cerca de mil milhões de indivíduos, com uma taxa de crescimento demográfico de 2,6%, daqui a meio século será o continente mais povoado, com 2,2 mil milhões de habitantes, representando um quarto da população mundial. O continente dispõe de um quarto das terras emergidas do globo terrestre, de 60% das terras aráveis não utilizadas e de um terço dos recursos naturais mundiais. Está repleto de numerosos recursos minerais e energéticos, entre os quais nove décimos ainda não foram explorados. A sua urbanização está em crescimento: cerca de 45% da população vive hoje em cidades, quando, no início do século XX, 95% da população era rural. Desde do ano 2000, o seu crescimento económico é superior a 5%. Entre as mais altas taxas de crescimento do mundo de 2008 a 2013, os países africanos estão bem representados (Serra Leoa 9,4%, Ruanda 8,4%, Etiópia 8,4%, Gana 8,11%, Moçambique 7,25%). Os africanos tiveram de se confrontar com uma geografia complexa: um continente velho, constituído no centro por vastos planaltos rochosos desnivelados, onde a altitude é muitas vezes superior a 2000 metros, e composto essencialmente por um embasamento da era primária com falhas vulcânicas (Vale do Rift). As extremidades norte e sul são caracterizadas por climas mediterrânicos; a partir do equador, a floresta tropical transforma‑se em savana e deserto. Os camponeses africanos souberam adaptar‑se a condições climáticas diversas e adotar técnicas de cultura adequadas: policultura alimentar nos altos planaltos, adoção conforme os casos de cereais, tubérculos, leguminosas adaptadas ao meio ambiente; prática do alqueive e da
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queimada para regenerar e enriquecer os solos; migrações periódicas das aldeias para conquistar novas terras. Souberam criar sistemas agrícolas flexíveis e adotar inovações técnicas adequadas às suas condições ambientais.
Um pouco de história… Em 146 a.C., após a Terceira Guerra Púnica que opunha Roma a Cartago, os Romanos colonizaram o Norte de África. A África romana é composta por Cartago (Tunísia), pela Numídia oriental, pela Tripolitânia e pela Bizacena que correspondem à parte ocidental da Líbia atual. Fizeram dessa região fértil da costa mediterrânica o seu celeiro para alimentar a população em crescimento do Império romano. Chamaram a essas províncias costeiras “Africa”, segundo o nome de uma tribo berbere, os Afri, que habitavam a região. Os árabes, que invadiram a África do Norte no século VII, arabizaram o nome em “Ifriqiya”, que passou a designar essa região costeira do Norte de África. Foram os navegadores europeus no século XV, que exploravam a costa atlântica do continente para encontrar uma via marítima para os campos auríferos da África ocidental, que estenderam o nome “África” a todo o continente. O continente africano sempre foi associado a um imaginário de riqueza. A Bíblia evoca o país de Ofir, donde vêm ouro, pedras preciosas e madeira de sândalo. O mítico episódio da Rainha de Saba — cujo reino se situava provavelmente na região da Somália —, oferecendo a Salomão presentes suntuosos por ocasião da sua viagem a Jerusalém no século X a.C., marcou a tal ponto os imaginários, que, milhares de anos depois (3000 anos), aventureiros europeus se lançaram no continente à procura dessa terra do ouro. O interesse dos portugueses por África e pelos seus campos auríferos foi estimulado pela viagem a Meca de Mansa Musa, Mansa (imperador) do Mali, que, fazendo uma paragem no Cairo em 1324, ofereceu tanto ouro que a cotação desse metal caiu durante dez anos em toda
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a região até Constantinopla. Mansa Musa é considerado até à data como o homem mais rico que o mundo conheceu. África foi um lugar de trocas comerciais e culturais desde a Alta Antiguidade. Os africanos comerciavam entre eles e com outros povos. Pistas, pirogas e vias de comunicação pelo Saara e toda África permitiram trocas de sal, ferro, escravos e ouro, inclusive com o oceano Índico, a Mesopotâmia e o Oriente. Construíram‑se no continente africano cidades ricas e suntuosas, no Vale do Nilo, no Zimbabué, na África Ocidental. Domina‑se a técnica do cobre desde 3000 a.C. no Egito, a do ferro em Nok, Ifé e outros lugares desde o século VII a.C. Edificam‑se civilizações, nascem e morrem reinos. Grandes cidades avizinham aldeias de pastores e nómadas; as transformações sociais, políticas e culturais evoluem segundo dinâmicas próprias. As sociedades são julgadas pelas suas capacidades guerreiras e integrativas. Os sistemas económicos têm por objetivo assegurar o sustento dos indivíduos e organizam a produção e a circulação de bens principalmente com base nas relações sociais. A economia está embutida na sociedade. Nessa época, não se fala de crescimento económico, nem de balança comercial. A história é vista como cíclica ou trágica, com apogeus e declínios. Passa‑se aliás a mesma coisa um pouco por todo o mundo: nem a civilização chinesa, nem a Idade Média europeia contabilizavam as riquezas produzidas por ano e a respetiva evolução. O crescimento económico enquanto noção guiando e refletindo a evolução das sociedades é recente na história da humanidade. Data da revolução industrial europeia. A possibilidade de um progresso contínuo das sociedades (conhecimentos e riquezas) surge no século XVII depois da querela dos Antigos e dos Modernos. O crescimento económico será uma das suas expressões. Seria errado ler a vida económica e social do continente africano sob o prisma de noções surgidas nos séculos XVII e XVIII europeus. O motor da aventura social nas sociedades africanas da época é o desejo de construir sociedades duradouras, colonizando as terras, dominando a produção alimentar e vencendo os perigos da natureza.
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Demografia e comércio transatlântico de escravos A luta para fazer crescer o número de homens e de mulheres foi, portanto, um dos traços principais da história africana. No século XVI, os africanos dispunham de uma vantagem demográfica. A população africana era estimada em 100 milhões, ou seja, 20% da população mundial. No final do século XIX, já só representava 9% da população mundial. O comércio negreiro interrompeu o crescimento da população da África ocidental durante dois séculos. As estimativas mais baixas indicam que 11 061 800 pessoas foram deportadas do continente africano pelo Atlântico. As mais altas referem 24 milhões de indivíduos transportados e 200 milhões de mortos ligados à captura, ao transporte e às várias guerras e razias causadas pelo comércio negreiro. A interrupção do crescimento demográfico africano ocorreu no século XVIII, período do apogeu da apreensão dos escravos. Para avaliar mais precisamente o custo da punção demográfica causada pelo tráfico humano transatlântico, não basta subtrair o número de deportados da população africana da época. O crescimento demográfico do século XVIII africano tem de ser comparado ao que teria sido na ausência do comércio transatlântico. Patrick Manning, baseando‑se num determinado modelo dos processos demográficos, estimou que, na ausência do comércio de escravos, a população da África subsaariana em 1850 teria sido de 100 milhões de pessoas. Era apenas de 50 milhões, enquanto a população da China duplicava no século XVIII e o crescimento demográfico da Europa retomava o seu curso depois de uma interrupção no século XVII — um crescimento que se tornou decisivo durante a revolução industrial. A fatia representada por África na população mundial (Europa, África, Médio Oriente e Novo Mundo) caiu de 30% para 10% entre 1600 e 1900. A deportação transatlântica também expôs África a novas doenças: a tuberculose, a pneumonia bacteriana, a varíola e a sífilis venérea foram introduzidas pelos europeus. (…) Qual teria sido o destino do continente
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africano sem o comércio transatlântico de escravos? Nunca haveremos de ter acesso a esta história contrafactual.
As raízes do presente O comércio (deportação) transatlântico e o colonialismo foram sinónimos de extração de riquezas e de ser humanos, de desestruturação das sociedades, de distorções institucionais, de violação cultural, de alienação e de inscrição das sociedades dominadas em trajetórias pouco virtuosas. A conquista europeia do Congo belga entre 1876 e 1920, segundo Jan Vansina, levou à destruição de cerca de metade da população total da região. Depois de durante muito tempo ter negado ou diminuído o impacto do colonialismo na trajetória económica das nações africanas independentes, nos anos 2000 surgiu uma literatura fértil na área da economia (Acemoglu, Robinson et al.) que evidenciava o facto de o colonialismo ter influenciado negativamente o desenvolvimento e o crescimento das nações outrora dominadas. A herança colonial, medida em termos de grau de penetração económica da antiga metrópole, de dependência em relação a esta e de identidade institucional com a antiga potência colonial, constitui um elemento explicativo dos fracos desempenhos económicos dos países africanos. A economia institucional documentou profusamente o facto de que as instituições têm um impacto sobre o progresso económico e social das nações. Más instituições podem fechá‑las num equilíbrio subprodutivo e induzir um baixo nível de produção de riqueza. Os poderes coloniais criaram nas suas colónias instituições políticas inspiradas nos poderes metropolitanos. Espanha transplantou para a América Latina instituições feudais que protegiam a nobreza; a Inglaterra, instituições políticas descentralizadas e direitos de propriedade favorecendo a concorrência; a França favoreceu instituições de monopólio menos protetoras, nomeadamente das inovações financeiras. A colonização, ao alterar o processo
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de acumulação dos fatores de produção, teve um impacto negativo no desenvolvimento dos países colonizados (distorções económicas e institucionais). Os efeitos mais nefastos foram gerados pelos modelos portugueses, belgas e franceses, observa Abdallah Zouache. Os fatores determinantes dos desempenhos económicos das nações são diversos. Para além das dotações fatoriais, da geografia, do trabalho dos homens, da tecnologia, a história também conta. Esta tem de avaliar os canais de transmissão dos impactos históricos. Por isso, os desempenhos económicos das nações africanas são, em parte, ligados às condições iniciais herdadas das antigas metrópoles depois das independências: para a história económica recente do continente, essas condições são principalmente a desestruturação das economias (nomeadamente dos modos de produção anteriores) e a sua submissão, o estabelecimento de economias baseadas no comércio negreiro, nas extrações, com um enfraquecimento do tecido industrial de economias extrovertidas, pouco diversificadas, exportadoras de matérias‑primas, logo vulneráveis à instabilidade da sua cotação. A segunda razão para os fracos desempenhos prende‑se à má gestão económica pelos líderes das jovens nações africanas independentes, que, na maioria, fizeram más escolhas económicas; às relações de dominação que foram e permanecem desfavoráveis tanto na competição económica internacional (…) como nas escolhas das opções estratégicas no campo das políticas económicas (…). (…)
Pensar as economias africanas no seu substrato cultural Uma das principais características dos modelos económicos em funcionamento há meio século no continente africano é a sua origem extrovertida. Não são o resultado nem de práticas nem de uma produção interna dos fenómenos económicos. Assim se explica a dualidade dos sistemas,
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caracterizados pela coexistência de uma economia dita “formal” e de uma economia popular fundada numa sociocultura e dita “informal”, que, porém, assegura o sustento à maioria das populações africanas e contribui de um modo essencial para o PIB (54,2% na África subsariana). Para analisar as economias africanas, uma questão fundamental — que não é suficientemente levada em conta — é a da articulação com as respetivas socioculturas. Não se pode continuar a ignorar, do ponto de vista teórico, o essencial das práticas económicas que permitem aos africanos assegurar o seu sustento, com única justificação de que estas pertenceriam a uma economia qualificada de “informal”, que, na verdade, procede de uma relação com o fenómeno económico estruturada pela cultura da população. Nas sociedades africanas tradicionais, o fenómeno económico incluía‑se num sistema social mais vasto. Estava sujeito às suas funções clássicas (sustento, distribuição dos recursos, etc.), mas era sobretudo subordinado a finalidades sociais, culturais e civilizacionais. Já não é o caso nas sociedades contemporâneas, onde a ordem económica tende a tornar‑se hegemónica, sai do seu espaço natural e tenta impor os seus valores e as suas lógicas a todas as dimensões da existência humana. A cultura tem um impacto nas perceções, nas atitudes, nos hábitos de consumo, de investimento e de poupança, nas escolhas individuais e coletivas: mantém‑se um dos principais fatores determinantes do ato económico. Nos grupos humanos, os imaginários são constitutivos das relações sociais, inclusive das mais materiais. O ato económico é, antes de tudo, uma relação social. O imaginário e o simbólico determinam a sua produção. Logo, os fatores culturais influenciam os desempenhos económicos. A primeira ideia que defendemos aqui é que a eficiência de um sistema económico é fortemente ligada ao grau de adequação com o seu contexto cultural. As economias africanas descolariam se funcionassem com os seus verdadeiros motores. A segunda ideia é que não se trata apenas de pensar a eficiência dos sistemas económicos africanos através de uma melhor imbricação destes sistemas
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nas culturas africanas. Trata‑se sobretudo de interrogar a articulação das duas ordens que são a cultura e a economia no contexto africano, com uma intenção qualificada de “civilizacional”: ou seja, uma intenção que permitiria alcançar as finalidades julgadas melhores pelo indivíduo e pelo grupo. Para tal, é preciso pensar o projeto social na sua globalidade: analisar as múltiplas interações das suas dimensões ambientais, ou seja, as que tendem a garantir as condições da existência (a economia, a ecologia), com as dimensões que têm como objetivo trabalhar nos significados da própria existência (a cultura, as filosofias, as ordens das finalidades). Trata‑se, portanto, de pensar o lugar a dar à ordem económica na dinâmica social. Por isso, a nossa hipótese é que uma articulação das ordens económicas e culturais, que evitasse a confusão das suas finalidades respetivas, tornaria os projetos de sociedade mais coerentes. Excerto de Sarr, Felwine, “A questão da economia” Afrotopia, Paris, Ed. Philippe Rey, 2016. Tradução: Joana Cabral
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MARÇO ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╙Æ
ABRIL 2017
KALEIDER The Money ● performance ★ Paços do Concelho qui 23 ↣ 21h30 sex 24 ↣ 21h30 sáb 25 ↣ 17h30 e 21h30 dom 26 ↣ 15h e 18h30
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ANTÓNIO ALVARENGA Como colocar as coisas no seu devido lugar errado? ● debate e pensamento qua 05 ↣ 18h30 FELWINE SARR, MONIKA GINTERSDORFER, ROCH BODO, HAUKE HEUMANN E ERIC PARFAIT FRANCIS TAREGUE Afrotopias — economias e desenvolvimento humano no plural ● debate e pensamento qua 19 ↣ 18h30 GINTERSDORFER/KLASSEN Diálogo Direto Kinshasa Lisboa ● performance qui 20 ↣ 21h30 sex 21 ↣ 21h30 sáb 22 ↣ 21h30
Apresentado no âmbito da rede House on Fire com o apoio do Programa Cultura da União Europeia
Durante a temporada 2016/2017, o Teatro Maria Matos irá editar seis cadernos de textos do ciclo Utopias, dedicados a cada uma das partes: Arquipélago da Resiliência 1/6, Arquipélago das Diversidades 2/6, Arquipélago Comum 3/6, Arquipélago dos Afetos 4/6, Arquipélago Capital 5/6 e Arquipélago Verde 6/6.
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