DEBATE E PENSAMENTO, TEATRO, PERFORMANCE janeiro ↣ fevereiro 2017
ARQUIPÉLAGO
COMUM textos: André Guedes, Alexei Yurchak, Stavros Stavrides, Michael Löwy e Bojan Djordjev
curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
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setembro ↣ outubro 2016
6 ARQUIPÉLAGO DA RESILIÊNCIA
olhou para o regresso da imaginação política nos movimentos sociais que têm irrompido um pouco por todo o mundo nos últimos anos. novembro ↣ dezembro 2016
6 ARQUIPÉLAGO DAS DIVERSIDADES
partiu da crise dos refugiados para revisitar os problemas e as oportunidades da sociedade diversa. janeiro ↣ fevereiro 2017
> ARQUIPÉLAGO COMUM
revisita os muitos projetos utópicos surgidos dos comunismos e anarquismos que nasceram no início do século XX. março 2017
6 ARQUIPÉLAGO DOS AFETOS
dá a palavra aos muitos que estão a repensar a política como uma atividade também afetiva. março ↣ abril 2017
6 ARQUIPÉLAGO CAPITAL
centra‑se nas forças imaginativas e destrutivas do capitalismo. maio ↣ julho 2017
6 ARQUIPÉLAGO VERDE
foca‑se no imaginário utópico mais influente da atualidade, surgido da necessidade incontornável de manter o planeta viável.
O ciclo UTOPIAS oferece um programa alargado que atravessa toda a temporada 2016‑2017 do Teatro Maria Matos, com espetáculos, instalações, palestras, encontros e eventos no espaço publico, trazendo convidados que fazem do agir crítico e da imaginação política uma tarefa diária. As UTOPIAS da temporada estão organizadas em seis arquipélagos, seis territórios para conhecer possibilidades que estão já em curso e de imaginar outras. Os textos aqui disponíveis, que acompanham as atividades do Arquipélago Comum, a decorrer nos meses de janeiro e fevereiro de 2017, são da autoria de artistas e teóricos que fazem parte deste programa. Nova Árgea é um texto ficcionado da performance homónima de André Guedes, construído a partir de artigos de jornais relativos à cooperativa A Comunal; a contribuição do antropólogo Alexei Yurchak mostra como a apropriação humorística de slogans e rituais políticos que faziam parte do dia‑a‑dia da União Soviética subvertiam o significado dos mesmos; Stavros Stavrides reflete sobre a apropriação do espaço urbano como local de vivência em comum; Michael Löwy trata de romantismo e revolução, a partir de uma abordagem política do pensamento de Walter Benjamin, na qual as condições técnicas e sociais para o surgimento do fascismo surgem como uma preocupação central; com Bojan Djordjev, anuncia‑se o espaço do teatro como lugar para pensar em conjunto sobre o tempo em que vivemos.
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Abrimos o ano de 2017 com uma programação relativa a uma das efemérides que está na base do ciclo UTOPIAS: o centenário da Revolução Russa de 1917. Ao longo da sua história, o comunismo tem suscitado ideários utópicos e motivado projetos de sociedade. Se os comunismos são muitos, têm como elo de união a construção consciente de uma sociedade na qual a propriedade dos meios de produção não é privada mas comum, para que a riqueza produzida seja benéfica para a sociedade como um todo. Esta ideia deu origem a projetos de sociedade que vão da centralidade do Estado como proprietário e garante do bem comum, até às formas de comunismo anárquico, sem estado, promotoras da autogestão democrática. Da sua realização emergiram distopias e totalitarismos, mas também um variado leque de experiências e modelos bem‑sucedidos. Quaisquer que sejam as leituras das heranças do comunismo, muitas das questões que estiveram na base da Revolução Russa mantêm a sua pertinência. No Arquipélago Comum, fazemos incursões na história do comunismo, olhamos para projetos “comunitários” em curso nas nossas cidades, e revisitamos a velha oposição entre público e privado, entre indivíduo e comunidade. Com Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation, Alexei Yurchak analisa a forma como o comportamento quotidiano pode provocar o colapso de grandes sistemas ideológicos. Arde Brillante en los bosques de la noche, do dramaturgo argentino Mariano Pensotti, revisita a figura de Alexandra Kollontai, revolucionária soviética e feminista, olhando para as ressonâncias da Revolução Russa na América Latina de hoje. Esta é uma geografia que voltaremos a visitar na peça do dramaturgo chileno Guillermo Calderón por ocasião da Capital Ibero ‑Americana da Cultura em Lisboa 2017. Num arco histórico que une a resistência à ditadura de Pinochet aos tempos presentes, Mateluna trata da ética da violência política, dos conceitos da verdade e de inspiração artística. Romantismo e Revolução é o tema que levará o ensaísta e crítico literário António Guerreiro à conversa com Michael Löwy, reconhecido pelo seu trabalho sobre o marxismo na América Latina.
ARQUIPÉLAGO
Em Espaços Urbanos Comuns: prefigurando experiências de emancipação social, a partir de exemplos recentes de comunas urbanas, o arquiteto Stavros Stravides mostrará como a apropriação dos espaços urbanos pode configurar projetos políticos. Nova Árgea, de André Guedes, coloca os membros de uma comunidade ficcional envolvidos num jogo e numa narrativa visual e textual inspirada em A Comunal, uma cooperativa agrícola criada no pós‑25 de Abril, que juntou o trabalho e os saberes de pessoas da cidade e do campo em prol do bem comum. Poderá hoje uma comunidade estar disposta a responsabilizar‑se pelo que são os problemas das pessoas que a compõem, assumindo uma causa comum? Assembleia, de Rui Catalão, coloca esta questão e convoca o público a lidar com ela. Uma convocação que se prolonga com The Discreet Charm of Marxism — six course dinner piece, na qual Bojan Djordjev encena textos marxistas sobre a luta de classes e a revolução, servindos‑o como pratos de uma refeição, criando um espaço de reflexão e imaginação conjunta. curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
COMUM
* Excerto do texto da narração, elaborado a partir de artigos sobre a cooperativa A Comunal publicados entre 1975 e 1976 na revista Século Ilustrado e no jornal A Gazeta da Semana. André Guedes escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
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ANDRÉ GUEDES Nova Árgea * I MULHER 1: Esta é uma aldeia com uma população de 600 pessoas. Aqui vivemos há dois anos em comunhão do bom e do mau, trabalhando a terra que nos foi cedida ou alugada por algumas pessoas da aldeia. Aqui formámos uma cooperativa de produção, principalmente agrícola e pecuária, à qual demos o nome Nova Árgea. MULHER 2: Nova Árgea, centro da nossa luta, não faz parte do projecto de Reforma Agrária nacional — o que nos tem causado um bloqueio económico e um isolamento, reforçado pelo apartidarismo que sempre nos caracterizou. MULHER 1: Isto levou‑nos a ter que contar unicamente com os nossos recursos e o apoio de pessoas verdadeiramente interessadas na transformação da sociedade. MULHER 1: Quando em todo o país se apela para o trabalho e para as tarefas revolucionárias, entendemos que a nossa adesão à revolução não se devia fazer pela via da contemplação, dos aplausos e das manifestações. MULHER 2: Não foi a fuga da cidade que nos levou a vir para aqui. MULHER 1: Nem foi tão‑pouco uma predilecção especial por estas terras, ainda que este lugar possua condições excepcionais para empreender aquilo a que outros chamariam a “dinâmica revolucionária”. Mas é verdade que havia nesta zona uma grande quantidade de solos empobrecidos e de culturas envelhecidas. Terras mal cultivadas. MULHER 2: Contactos anteriores e posteriores com esta população, e a oferta que nos fizeram
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de terrenos, levou‑nos a vir para este lugar, e aqui construir esta Comuna agrária. Quando aqui chegámos no início do Inverno um barracão abandonado serviu‑nos de dormitório. Depois de muitas reuniões, os longos e discutidos planos que concebemos antes de vir, e que aqui clarificámos e refizemos em diálogo com a população, constituímos finalmente a cooperativa. A primeira Assembleia Geral aconteceu um mês depois de aqui estarmos a viver. Com a ajuda dos amigos de outra cooperativa fizemos os Estatutos. Em todos os artigos e parágrafos conseguimos fazer reviver a nossa prática diária em comum que é o trabalho no campo. Estas bases, lançadas por nós, tiveram a adesão da população. Começámos com dois hectares de terreno postos à disposição por uma pessoa amiga para formarmos a Cooperativa. Seguidamente falámos com outro proprietário que possuía aproximadamente 50 hectares de terreno. Depois, colocámos a mesma questão a mais donos de terrenos, se queriam ou não entrar com terrenos. E quiseram. Pusemos mãos à obra, revolvemos a terra e cultivámos o solo. Actualmente esta experiência tem como palco 150 hectares em germinação. Partindo do nada, ou seja, única e exclusivamente da força e do entusiasmo dos primeiros membros da cooperativa e de algumas pessoas da terra, conseguimos unir pequenos terrenos — a maior parte deles, inferior a um hectare. Juntámos forças para juntar as terras. Mas o mais importante é unir as pessoas. Isso é mais importante que unir as terras. O trabalho em equipa e a sua prática é que nos permite corrigir os erros e fortalecer a nossa
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unidade. Para lá das actividades produtivas e para lá dos projectos em embrião, o mais significativo para nós na cooperativa, é a capacidade de decisão colectiva. É evidente que ao melhorar os terrenos, abrindo poços, unindo pequenas parcelas de terra conseguimos tirar delas um valor muito maior do que aquele que os proprietários antes tiravam. Também montámos uma oficina de carpintaria e outra de serralharia, uma queijaria onde o leite do rebanho que possuímos — perto de 400 ovelhas — é também transformado em queijo, e um mini‑mercado onde os produtos são vendidos. Vivendo na mesma casa, comendo à mesma mesa, às vezes dez, quinze, vinte pessoas, surgem conflitos entre nós, os que trabalhamos na cooperativa. Onde existem pessoas, existem problemas... Onde se pretende construir qualquer coisa nova, e especialmente se essa coisa é marginal à ordem social, surgem sempre problemas. Isto é normal. Mas para venceremos os problemas, para os ultrapassarmos, é necessário que os encaremos de frente, que os tratemos pelo nome. Assim para nós o problema real não é o de produzirmos mais dez ou vinte, para nós, o importante é conseguirmos unir as pessoas, transformando as relações entre elas. O difícil é conseguir viver em comum quando há toda uma sociedade hierárquica e autoritária a cercar‑nos. Quando mesmo inconscientemente, os nossos gestos, as nossas palavras, não mais fazem de que reproduzir a sociedade, a sua mentalidade, as suas frustrações, a sua impotência. Aqui na cooperativa há pessoas com diferentes formações culturais. Mas todos trabalhamos no campo: membros da direcção e elementos de grupo de trabalho.
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MULHER 2: Não podemos alimentar excepções no seu seio. Não há excepções ou quadros privilegiados. A igualdade será o motor que transformará as relações de exploração que sempre existiram entre trabalhadores e patrões. Na Nova Árgea novas relações serão criadas. As tarefas são distribuídas em reunião semanal a cada um dos elementos da Cooperativa consoante as suas capacidades e prioridades. A cooperativa caracteriza‑se por um grande esforço colectivo, e a crítica interna assume particular relevo na criação da unidade e hábitos colectivos. A cooperativa é de facto uma coisa nova nas nossas vidas. Assim, tem poder na cooperativa quem nela trabalha. Aqui as relações económicas são baseadas na igualdade de remuneração — igualdade conforme tempo de trabalho e não consoante a qualidade de trabalho a desempenhar. Daqui surgem todas as implicações de uma vida em comum. As novas formas de vida e valores criados pela vida comunal não permitem uma sociedade de explorados e de exploradores. A Nova Árgea está bem inserida na população e os seus sócios não perdem de vista o País onde estão e o papel que lhes cabe na transformação política, económica, social e cultural da sociedade portuguesa. O grupo de acção social e cultural é um dos cinco que aqui existem, além dos de recolha, produção, comercialização e contabilidade. Nesta altura o essencial é o trabalho agrícola, pois é ele que nos garante a sobrevivência e a prossecução dessas mesmas actividades culturais que queremos desenvolver entre
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as populações e posteriormente por todo o concelho. As comunas agrárias que estão a desabrochar serão escolas de transformações económicas, sociais e culturais na medida em que os seus sócios e as populações locais conseguirem, pela vida que levam e pelos frutos que colhem, evidenciar a força revolucionária da vida colectiva. Uma cooperativa em si não faz a revolução. Cooperativas como as entendemos e experimentamos aqui, revolucionarão a agricultura e transformarão os agricultores. A nossa cooperativa não morrerá. Contamos com a solidariedade revolucionária não só de trabalhadores deste país, mas também das muitas centenas de trabalhadores de todo o mundo que nos têm visitado. Contamos com os laços fraternais que nos ligam às outras cooperativas quer da zona, quer de outras zonas. Daqueles que nos têm visitado, connosco trabalhado e vivido durante alguns dias, e que afirmam que a cooperativa não morrerá. Todos eles dão‑nos a certeza, prática, de que aquilo que aqui fazemos não é em vão. E isso dá‑nos a força necessária para continuar e, continuando, avançar para aquilo que chamamos... ... a que chamamos... Ao que chamamos socialismo. A luta dos trabalhadores nas cidades é igual à nossa luta. O campo e a cidade só têm uma saída: ligarem‑se / unirem‑se. Nova Árgea, cinco trabalhadores da cooperativa, Agosto de 2016.
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ALEXEI YURCHAK A razão cínica do socialismo tardio: poder, fingimento e anekdot Qual é a diferença entre um pessimista soviético e um otimista soviético? Um pessimista soviético pensa que as coisas já não podem piorar mais, mas um otimista soviético acha que vão piorar. Os analistas políticos, jornalistas e historiadores ocidentais e soviéticos têm muitas vezes sublinhado a estabilidade social da União Soviética nos anos 1970 e início dos anos 1980. Na própria ex‑União Soviética, referem‑se hoje a esse período como “o período de estagnação” (period zastoia). Torna‑se agora claro que a razão para a perceção de estabilidade e de uma impossibilidade de mudança vinda de baixo era mais complicada do que davam a entender os vários modelos de “totalitarismo soviético”, que postulavam que o poder totalitário se baseava na opressão e/ou na crença (Breslauer, Hill, Medding, Burton). Consequentemente, estes modelos faziam muitas vezes equivaler a consciência da falsidade da ideologia dominante com uma resistência a essa ideologia. Nos últimos anos, um grande número de obras de teoria social têm complexificado a visão da relação entre poder e resistência e têm‑se concentrado na diversidade da experiência do poder pelos “sem poder” (Scott, Comaroff e Comaroff, Mbembe). Neste ensaio, vou interpretar o modo como poder e ideologia estatal operaram no “socialismo tardio” (entre o fim dos anos 1960 e meados dos anos 1980) 1 e propor uma leitura do papel que o escárnio político por parte dos “sem poder” desempenhou na expressão da sua relação com o poder e visão sobre ele. Defendo que o indivíduo no socialismo tardio vivia a representação ideológica oficial da realidade social como em grande medida falsa e, ao mesmo tempo, como imutável e omnipresente. Nestas condições, 1 Uso aqui a expressão “socialismo tardio” em analogia com a expressão agora popular “capitalismo tardio” para sublinhar que a ordem social soviética nesse período se distinguia em certos aspetos importantes do socialismo de épocas históricas anteriores.
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tornou‑se irrelevante para os indivíduos se acreditavam ou não nas mensagens ideológicas oficiais. Em vez disso, a relação com a representação oficial passou a ser baseada em estratégias intrincadas de apoio simulado e em práticas “não oficiais” nos bastidores das práticas oficiais. Esta relação entre sujeito e poder conduziu gradualmente a uma grave crise do sistema e proporcionou a lógica interna da mudança de meados dos anos 1980.
O domínio do escárnio e a esfera paralela É sabido que o humor político desempenhou um papel proeminente nas práticas quotidianas da União Soviética e de outros países socialistas. Começo por comparar as condições sociais do escárnio político num tipo de pós‑colónia (Mbembe) e no socialismo tardio. Os regimes de poder nestes dois sistemas podem parecer comparáveis — ambos se baseiam no poder “autoritário” de um partido único, e, no entanto, existe em ambos “potencial para jogo, improvisação e divertimento dentro dos próprios limites do oficialismo”. 2 Apesar disso, a relação dos “sem poder” com o poder estatal nestes regimes é diferente, bem como o papel do escárnio político. Na pós‑colónia, o escárnio político neutraliza a experiência do poder opressivo ao “domesticá‑lo”, ao criar o seu “fetiche” discursivo localizado no domínio do escárnio, no qual pode ser domado e tornado ineficaz. Este escárnio acontece precisamente quando os significantes oficiais (homens de poder, slogans e rituais) levam a cabo o seu trabalho ideológico de convocar o apoio unânime das pessoas (em comícios de massas e reuniões). Ao deitar a língua de fora nas costas da autoridade, o sujeito pós‑colonial mostra a si próprio e aos outros que o poder estatal nunca é, em última análise, vitorioso na tentativa de o/a controlar. No socialismo tardio, como na pós‑colónia, as pessoas não tomavam a maioria dos símbolos oficiais à letra. E, tal 2 A. Mbembe, “The Banality of Power and the Aesthetics of Vulgarity in the Postcolony”, Public Culture n.º 4, 1992, p. 11.
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como na pós‑colónia, simulavam fazê‑lo. No entanto, ao contrário da pós‑colónia, o escárnio destes símbolos durante exibições de apoio popular orquestradas pelo Estado não ocorria. A maneira mais fácil de minimizar a “opressão dos símbolos” e de levar uma vida “normal” nas suas costas não era simular adesão ao símbolo rindo dele ao mesmo tempo, mas antes simular adesão e ao mesmo tempo suprimir o reconhecimento do próprio ato da simulação. Esta simulação estava carregada não de escárnio do poder mas de falta de interesse nele — implicava indiferença quanto àquilo que era “apoiado”. Não era incomum alguém segurar letreiros ou bandeiras oficiais com slogans durante desfiles sem os ler e transportar um retrato de um membro do Politburo sem saber exatamente quem era. O domínio do escárnio no caso do socialismo tardio localizava‑se não imediatamente atrás das costas oficiais, mas alhures, e defendo que este humor era semelhante àquilo a que Sloterdijk chamou “humor que deixou de lutar”. 3 No socialismo tardio, os eventos públicos controlados pelo Estado passaram a estruturar‑se como dois eventos simultâneos: um evento oficial, em que gritar os slogans oficiais e votar em favor de uma resolução oficial era inevitável e unânime, e um evento paralelo, em que muitas pessoas se dedicavam a práticas paralelas e aderiam a significados paralelos sem precisar nem de apoiar nem de escarnecer dos oficiais. Uso as expressões “evento paralelo”, “significado paralelo” e “cultura paralela” para sublinhar que se fundam num não‑envolvimento pessoal na esfera oficial. A este respeito, é mais exato falar de cultura paralela do que de contracultura ou clandestinidade, que pressupõem ambas resistência ou subversão da ideologia e cultura oficiais, e portanto um envolvimento na sua lógica oficial. O evento paralelo era forjado no interior do oficial e as pessoas estavam simultaneamente envolvidas nos dois. Para esclarecer esta lógica vou contrastar os comícios públicos de massa no socialismo tardio com os analisados 3 P. Sloterdijk, Critique of Cynical Reason, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987, p. 305.
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por Mbembe: “[Q]uando os togoleses eram chamados a gritar os slogans do partido, muitos travestiam as metáforas que supostamente glorificariam o poder estatal. Com uma simples mudança de entoação, a mesma metáfora podia tomar diferentes sentidos. Assim, sob a proteção dos slogans oficiais, as pessoas cantavam acerca da ereção súbita do ‘enorme’ e ‘rígido’ falo presidencial, de como permanece nesta posição, e dos seus contatos com ‘fluídos vaginais’”. 4 Compare‑se este comportamento público com o dos desfiles (demonstratsiia) de massa a 1 de maio (Dia do Trabalhador) ou 7 de novembro (Dia da Revolução) no socialismo tardio. 5 A apoteose destes desfiles em Leninegrado era atravessar a Praça do Palácio perante os dirigentes do partido da cidade, que ficavam de pé num palanque e acenavam às massas que marchavam. As pessoas gritavam hurras ao mesmo tempo que slogans oficiais retumbavam nos altifalantes e o ruído estrondoso de milhares de vivas parecia impressionante e unânime. De acordo com o discurso oficial, “o desfile dos trabalhadores (…) demonstrava de forma convincente a inquebrantável unidade do Partido e do povo”. 6 Mas olhando com mais atenção, a exibição de um “apoio unânime” no desfile decompunha‑se numa multiplicidade de eventos paralelos. O próprio desfile, sendo considerado um evento oficial inevitável, tornou‑se também uma comemoração descontraída, empolgante e feliz, durante a qual se suspendiam muitas normas de comportamento público: podia‑se gritar em altos berros, estar bêbado em público e trocar comentários brincalhões com perfeitos desconhecidos, desde que se transportassem e bradassem slogans oficiais. Antigos estudantes (agora pelos 35 anos), que participavam frequentemente nos desfiles do início dos anos 1980, relembram: “Havia sempre alguém que trazia vinho, e bebíamo‑lo logo ali, à cabeça da coluna onde estávamos com as nossas bandeiras. (…) De cada vez que uma coluna 4 A. Mbembe, op. cit., p. 7. 5 Enquanto evento à escala da cidade, estes desfiles eram difíceis de evitar, mesmo que não se comparecesse. 6 Pravda, 8 de novembro de 1981, p. 2.
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começava a avançar, ouvia‑se o tilintar de garrafas a cair, porque estavam pousadas no chão entre as pessoas.” “Aproximávamo‑nos da Praça do Palácio já um bocadinho tocados. Toda a gente se divertia nos seus grupos. Os dos palanques [os líderes do Partido] tinham ‘o seu próprio casamento’ enquanto nós tínhamos o nosso [u nix byla svoia svad’ba a u nas svoia, uma expressão idiomática — eles tratavam da sua vida e nós da nossa].” Até para muitos organizadores do desfile, os símbolos oficiais transformaram‑se em meros significantes da inevitabilidade e imutabilidade do evento oficial. Um ex‑Secretário Komsomol de um instituto de investigação explicou: “Nunca ninguém lia os slogans. Isso não era importante. (…) Para a maior parte das pessoas, o desfile era só diversão, mas para mim era um dia de trabalho árduo. Tinha de me certificar de que toda a gente chegava a tempo e organizar quem é que levava o quê.” Como defendi, a relação de um indivíduo “normal” 7 com os símbolos do poder baseava‑se tão pouco no escárnio como no apoio ou contestação genuínos. A “domesticação” do poder por este indivíduo não acarretava a sua subversão humorística, mas antes a sua transformação num pano de fundo trivial de um evento paralelo aparentemente mais relevante. As mensagens ideológicas do discurso oficial tinham começado a mediar apenas uma experiência — de que o atual sistema de representação era o único possível, inevitável e imutável na esfera oficial do sistema. Distingo entre a esfera oficial e a não‑oficial (paralela) através do tipo de práticas que podem ter lugar em cada uma: as práticas na esfera oficial são observadas e controladas pelo Estado, enquanto as práticas na esfera não‑oficial não o são normalmente. Ambos os tipos de práticas podem ocorrer no mesmo espaço, quer público quer privado, e ao mesmo tempo — é essa a razão pela qual, nesta discussão, é mais útil falar de esfera oficial e não‑oficial 7 Por indivíduo “normal” entendo uma pessoa que tivesse aprendido por experiência própria que podia levar uma vida bastante “normal” — segura, autogerida, agradável — longe da esfera oficial, desde que não se interessasse ativamente por ela, i.e., que não se envolvesse demasiado nela, quer como apoiante, quer como crítico/a.
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do que de espaço público e privado. Distingo entre estas esferas pelo tipo de práticas e estratégias de comportamento de um indivíduo e não pelo tipo de localização espacial. Por exemplo, votar numa reunião é uma prática da esfera oficial (evento oficial), enquanto ler cuidadosamente um livro no colo durante a mesma reunião é uma prática da esfera não‑oficial (evento paralelo). A esfera não‑oficial incluía várias culturas paralelas desenvolvidas (tal como o omnipresente mercado negro de roupas, livros, cassetes e discos de bandas de rock ocidentais e soviéticas não‑oficiais; pontos de encontro não controlados da juventude, como um café em Leninegrado conhecido em calão como Saigão; o movimento hippie conhecido como sistema, etc.), que constantemente coincidiam e se cruzavam com a esfera oficial. A consequência mais importante da transformação da ideologia soviética num mero sistema de representação imutável e omnipresente na esfera oficial foi que perdeu a sua função de fornecer uma representação “credível” da realidade 8 e se transformou naquilo que eu chamarei uma hegemonia de representação. In Public Culture, 9: 161‑188, The University of Chicago: 1997
Este foi, talvez, um desvio da ideologia em tempos pré‑Brejnev.
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STAVROS STAVRIDES O espaço comum como espaço‑limiar: comunização urbana em lutas para uma reapropriação do espaço público Este artigo inclui partes retrabalhadas dos seguintes textos em castelhano: Stavros Stavrides, “Criando um espaço comum: o parque ocupado Navarinou em Atenas como uma experiência de autonomia”, in De la comuna a las Autonomías. Historias de libertad y autodeterminación (Mexico City: Bajo Tierra Ediciones, no prelo) e Stavros Stavrides, “Normalização e exceção na metrópole contemporânea”, in Enclaves de riesgo. Gobierno neoliberal, desigualdad y control social (Madrid: Observatorio Metropolitano e Traficantes de Sueños, 2015).
Espaços comuns e a ordem urbana da “cidade de enclaves”
De modo a permanecer um meio crucial para a reprodução da sociedade, a cidade tem de ser controlada e determinada por relações de poder dominantes. Mas a cidade não é apenas o resultado de um ordenamento espácio‑temporal, da mesma maneira que a sociedade não é apenas o resultado de um ordenamento social. A ordem, social ou urbana, é um projeto mais do que um estado concretizado. É por isso importante localizarmos os mecanismos pelos quais o projeto de ordenamento urbano está a ser criado e implementado, se queremos descobrir as forças que resistem a este ordenamento, ou que o anulam. Os mecanismos de ordenamento não se limitam a executar certas funções programadas, antes constituem sistemas complicados e autorregulados que interagem com a realidade urbana e “aprendem” com os próprios erros. O ordenamento urbano, a própria metrópole, é um processo, uma aposta, da mesma maneira que as relações sociais dominantes precisam de ser reproduzidas todos os dias. A ordem urbana é o limite impossível para o qual tendem as práticas de classificação e hierarquização espacial, de maneira a garantir que a cidade produza as relações espaciais
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necessárias à reprodução do capitalismo. Não é apenas suposto que os mecanismos de ordenamento domestiquem uma forma complicada e altamente diferenciada de habitat humano (talvez a mais complicada na história humana até agora), eles também são, para usarmos a expressão poderosa de Foucault, “mecanismos de normalização social”. Foucault mantém que a normalização não é apenas o resultado do sistema legal: “as técnicas de normalização desenvolvem‑se a partir de e sob um sistema de lei, nas suas margens, e até contra ele”. 9 Em termos de ordenamento urbano, a normalização inclui tentativas de estabelecer relações espaciais que encorajem relações e formas de comportamento sociais, que é suposto serem repetíveis, previsíveis e compatíveis com a taxonomia dos papéis sociais necessários. A normalização molda o comportamento humano e pode usar o espaço (bem como outros meios) para o fazer. A normalização é um projeto e também uma aposta. Não é simplesmente imposta às populações; tem de se infiltrar em cada capilar da sociedade para ser eficaz. Tem de estar ligada a mundos e atos que moldam o quotidiano, mas também a atos do poder dominante que enquadram essas práticas moleculares quotidianas. A normalização é sem dúvida um projeto de dominação, um projeto que procura moldar os cidadãos de uma sociedade, e portanto tem de ser o resultado de uma certa organização de relações de poder. Antes da atual crise económica, as elites governantes pensavam que tinham chegado ao céu capitalista, onde o dinheiro magicamente gera dinheiro. 10 Imaginavam que poderiam finalmente eliminar os obstáculos ao lucro que os trabalhadores criam. Quando as “bolhas” económicas rebentam, a importância dos mecanismos que vinculam as pessoas a políticas dominantes torna‑se de novo evidente. São estas políticas que atualmente dão forma ao projeto de 9 Michel Foucault, Security, Territory, Population: Lectures at the College de France, 1977‑1978 (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009), p. 56. 10 Midnight Notes Collective, “Promissory Notes: From Crisis to Commons”, 2009, http://www.midnight‑notes.org/Promissory%20 Notes.pdf [consultado a 10 de junho de 2014].
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normalização, ao concentrarem‑se em dois objetivos importantes. O primeiro é garantir que os laços sociais continuam a tratar os indivíduos como sujeitos económicos, como cidadãos cujo comportamento e motivos podem ser analisados, canalisados, previstos e, em última análise, controlados pelo mero uso de parâmetros e medidas económicas. O segundo é garantir que as pessoas continuam a agir e sonhar sem participar em qualquer forma de conexão ou coordenação com outros que não contribua para a criação de lucro. Ambos os objetivos estão fortemente ligados ao modo hegemónico como a metrópole contemporânea ganha forma. É o controlo deste ambiente urbano que visa preservar o equilíbrio precário da nossa sociedade, ao garantir que as pessoas continuam a agir como indivíduos egoístas e obedientes. Os poderosos vivem e trabalham em cidadelas fortificadas. Aos restantes apresenta‑se a segurança duvidosa de espaços fechados de consumo e residência, ou então são forçados a trabalhar e passar as suas vidas em áreas circunscritas por zonas urbanas higienizadas. O ordenamento urbano orienta‑se portanto no sentido da urbanidade expansiva de uma “cidade de enclaves”. Os enclaves urbanos tendem a ser mundos autocontidos em que prevalecem formas específicas de ordenamento espacial. 11 O ordenamento é garantido por regras que se aplicam apenas no interior de cada enclave. Estabelece‑se portanto nos enclaves urbanos um poder soberano, peculiar e específico a cada local, sob a forma de um aparelho administrativo que impõe obrigações e padrões de comportamento, e assim define as características dos habitantes do enclave. (…) Imersas nas suas vidas quotidianas e definidas pelo enclave, as pessoas tendem a aceitar as regras de uso de cada 11 Peter Marcuse e Ronald van Kempen, eds., Of States and Cities. The Partitioning of Urban Space (Oxford: Oxford University Press, 2002); Rowland Atkinson e Sarah Blandy, “Introduction: International Perspectives on the New Enclavism and the Rise of Gated Communities”, in Housing Studies 20, 2 (2007), pp.177‑86; ou Stephen Graham e Simon Marvin, Splintering Urbanism (Londres: Routledge, 2001).
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enclave como uma normalidade indiscutível. Até entendem estas regras de uso como decretos funcionais de autoridades bem‑intencionadas. Abandonam‑se às promessas destas regras, que garantem aquilo que é suposto a lei garantir: proteção. As pessoas aprendem a abandonar os seus direitos em troca desta proteção. E, é claro, a proteção (contra o que quer que as autoridades apresentem às pessoas como ameaça) é o álibi mais profundo e mais consistente para fazer com que as regras pareçam “naturais.” 12 No entanto, o ordenamento urbano e as políticas de normalização correspondentes não deixam de encontrar oposição. Na verdade, uma perda de fé generalizada — apesar de latente — nas promessas desta sociedade tem desencadeado várias formas de desobediência e resistência. A normalização continua a ser um projeto contestado e precário num período de crise sem saída à vista. Novas formas emergentes de resistência estão crucialmente ligadas a atos que dão forma ao espaço urbano, de modo a criar novos laços sociais e a construir formas de luta e sobrevivência coletivas. (…) Os espaços comuns são aqueles espaços produzidos pelas pessoas no seu esforço por estabelecer um mundo comum que abrigue, apoie e expresse a comunidade em que participam. Por isso, os espaços comuns devem distinguir‑se tanto dos espaços públicos como dos privados. Os espaços públicos são criados principalmente por uma autoridade específica (local, regional ou estatal) que os controla e estabelece as regras segundo as quais as pessoas os podem usar. Os espaços privados pertencem e são controlados por indivíduos ou entidades económicas específicas que têm o direito de estabelecer as condições segundo as quais os outros podem usá‑los. David Harvey oferece uma síntese densa da discussão relativa à natureza dos bens comuns em geral e do espaço comum em particular. Defende que o comum não é “um tipo particular de coisa” mas “uma relação social instável 12 Maurice Godelier, The Mental and the Material (Londres: Verso, 2011), pp. 160‑1.
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e maleável entre um grupo social particular e autodefinido e aqueles aspetos do seu ambiente social e/ou físico, sejam eles existentes ou por criar, que sejam considerados cruciais para a sua vida e subsistência”. 13 O espaço comum pode portanto ser considerado uma relação entre um grupo social e o seu esforço para definir um mundo que seja partilhado pelos seus membros. Em virtude da sua própria conceção, este mundo pode ser estável e bem definido, completamente isolado daquilo que é mantido no exterior e de “forasteiros”. Este é de facto o tipo de mundo que pode ficar contido num enclave urbano: os enclaves podem ser mundos comuns isolados, como no caso da favela, ou de um condomínio fechado. No entanto, o espaço comum também pode ser um mundo poroso, sempre em construção, se considerarmos a relação que o define como dinâmica, tanto em termos da formação do seu grupo ou comunidade correspondentes como das características do próprio mundo comum. É revelador que Jacques Rancière re‑teorize a comunidade a partir da noção de “mundo comum”. Este mundo, segundo Rancière, é mais do que um “ethos partilhado” e uma “casa de adobe partilhada”. É “sempre uma distribuição polémica dos modos de ser e das ‘ocupações’ num espaço de possibilidades”. 14 Consequentemente, o espaço comum pode ganhar forma através das práticas de uma comunidade emergente e não necessariamente homogénea que não tenta apenas assegurar a sua reprodução, mas procura também enriquecer as suas trocas com outras comunidades, bem como entre os seus membros. O espaço comum pode assumir a forma de um terreno de encontro, uma área em que se intersetam os “circuitos expansivos do encontro”. 15 Através do ato de estabelecer espaços comuns, 13 David Harvey, Rebel Cities: From the Right to the City to The Urban Revolution (Londres: Verso, 2012), p. 73. 14 Jacques Rancière, The Politics of Aesthetics (Londres: Continuum, 2006), p. 42. 15 Michael Hardt e Antonio Negri, Commonwealth (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2009), p.254.
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a discriminação e as barreiras que caracterizam a urbanidade do enclave podem ser contrariadas. (…) As experiências prevalecentes de recintos urbanos e a visão dominante de enclaves reconhecíveis que impõem uma identidade colonizam o pensamento e as ações daqueles que tentam reconquistar a política. Precisamos de abandonar uma perspetiva que fantasia com enclaves não‑contaminados de emancipação. 16 A experiência do limiar e a metáfora do limiar oferecem um contraexemplo à cidade de enclaves dominante. 17 Em vez de perpetuarmos a imagem de uma tal cidade como um arquipélago de ilhas‑enclave, precisamos de criar espaços que ameacem inventivamente esta peculiar ordem urbana, derrubando as taxonomias dominantes de tipos de espaços e de vidas. Os espaços‑enquanto‑limiares adquirem uma existência dúbia, talvez precária, mas também viral: tornam‑se catalisadores ativos em processos de reapropriação da cidade enquanto bem comum. Os limiares podem parecer meras fronteiras que separam um interior de um exterior, como no limiar de uma porta, mas este ato de separação é sempre e simultaneamente um ato de ligação. Os limiares criam as condições de entrada e saída; os limiares prolongam, manipulam e dão sentido a um ato de passagem. É por isso que os limiares têm sido marcados em muitas sociedades por rituais que procuram controlar as potencialidades inerentes ao atravessamento. Deuses ou espíritos guardiões habitam nos limiares porque o ato de passagem é já um ato que cria uma ligação potencial entre um interior e um exterior. Entrar pode ser tomado como uma intrusão, e sair pode transmitir o estigma do ostracismo. Os limiares adquirem significado simbólico e desenvolvem‑ -se muitas vezes de maneiras que expressam e corroboram 16 Stavros Stavrides, “Espacialidades de Emancipación y ‘la Ciudad de Umbrales’”, in Pensar a Contrapelo. Movimientos Sociales y Reflexión Crítica, ed. John Holloway, F. Matamoros e S. Tischler (Buenos Aires: Herramienta, 2013), p. 53; e Antonio Negri, “On Rem Koolhaas”, in Radical Philosophy 154 (2009), p. 50. 17 Stavros Stavrides, Towards the City of Thresholds (Trento: Professionaldreamers, 2010).
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este sentido. As sociedades constroem limiares como artifícios espaciais que regulam, simbolicamente e na prática, práticas de atravessamento, práticas de aproximação de diferentes mundos. E estas práticas podem ser socialmente benéficas ou prejudiciais. As sociedades também usam a imagem e a experiência emblemática dos limiares para atribuir metaforicamente sentido às mudanças no estatuto social que periódica e necessariamente acontecem aos seus membros. Passar da infância à adolescência, da vida de solteiro à vida de casado, da vida à morte, da aprendizagem ao estatuto de profissional, de novato a guerreiro, e por aí adiante, são casos de transformações sociais supervisionadas que moldam os indivíduos. As sociedades entendem muitas vezes estas mudanças como o atravessar de um limiar: os procedimentos de iniciação garantem uma travessia socialmente “segura” ao encaminhar os neófitos para o “outro” lado. 18 (…) Os espaços limiares de iniciação são definidos pelas práticas rituais que lhes dão existência. Esses espaços limiares estão sob a vigilância da sociedade, e qualquer forma de “communitas” é cuidadosamente limitada a uma existência iniciadora efémera. No entanto, em limiares que dão espaço e forma a instituições de uma comunização em expansão, a “communitas” é vivida como uma comunidade sempre em construção de cidadãos participantes. Em vez de viverem as potencialidades da igualdade como qualquer coisa que as reduz ritualmente a um grau zero de humanidade (como acontece aos iniciados em ritos de passagem), as pessoas envolvidas, através dos seus atos, constroem uma comunidade de iguais porque escolhem definir pelo menos parte da sua vida autonomamente e em comum. Comunidades emergentes de criadores e utilizadores do espaço da cidade: não será esta uma perspetiva que transformaria o espaço da cidade num espaço comum, num espaço‑enquanto‑bem‑comum? In FOOTPRINT — Delft Architecture Theory Journal, 16 — Commoning as Differentiated Publicness/Spring 2015, p. 9–19.
18 Arnold Van Gennep, The Rites of Passage (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1960), pp. 15‑25.
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MICHAEL LÖWY A filosofia da história de Walter Benjamin Estamos habituados a classificar as diferentes filosofias da história em consonância com o seu caráter progressista ou conservador, revolucionário ou nostálgico, em relação ao passado. Walter Benjamin escapa a tais classificações. Trata‑se de um crítico revolucionário da filosofia do progresso, um adversário marxista do “progressismo”, um nostálgico do passado que sonha com o futuro. A receção de Benjamin, sobretudo em França, interessou‑ -se prioritariamente pela vertente estética da sua obra, com certa propensão a considerá‑lo, sobretudo, como historiador da cultura ou crítico literário. Ora, sem negligenciar esse aspeto, torna‑se necessário evidenciar o alcance muito mais vasto do seu pensamento, o qual visa nada menos do que uma nova compreensão da história humana. Os escritos sobre arte ou literatura só podem ser compreendidos em relação a essa visão de conjunto, que os ilumina por dentro. (…) Contrariamente ao marxismo evolucionista vulgar, Benjamin não concebe a revolução como o resultado “natural” ou “inevitável” do progresso económico e técnico (ou da “contradição entre forças e relações de produção”), mas como a interrupção de uma evolução histórica que conduz à catástrofe. É porque percebe esse perigo catastrófico que Benjamin invoca o pessimismo no seu artigo de 1929 sobre o surrealismo, um pessimismo revolucionário que não tem nada que ver com a resignação fatalista e ainda menos com o Kultur‑Pessimismus alemão, conservador, reacionário e pré‑fascista (Carl Schmitt, Oswald Spengler, Moeller van der Bruck): o pessimismo aqui está ao serviço da emancipação das classes oprimidas. A sua preocupação não é o “declínio” das elites ou da nação, mas as ameaças que o progresso técnico e económico promovido pelo capitalismo fazem pesar sobre a humanidade. Nada parece mais ridículo aos olhos de Benjamin do que o otimismo do partidos burgueses e da social‑democracia, cujo programa político não é outra coisa que não “um mau
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poema de primavera”. Contra esse “otimismo sem consciência”, esse “otimismo de diletantes”, inspirado pela ideologia do progresso linear, ele descobre no pessimismo o ponto de convergência efetiva entre surrealismo e comunismo 19. É evidente que não se trata de um sentimento contemplativo, mas de um pessimismo ativo, “organizado”, prático, inteiramente dedicado ao objetivo de impedir, por todos os meios possíveis, a chegada do pior. Perguntamo‑nos a que pode referir‑se o conceito de pessimismo aplicado aos comunistas: a sua doutrina em 1928, celebrando os triunfos da construção do socialismo na URSS e a queda iminente do capitalismo, não é precisamente um belo exemplo de ilusão otimista? De facto, Benjamin tomou por empréstimo o conceito de “organização do pessimismo” de uma obra qualificada por si como “excelente”, La révolution et les intellectuels (1926), do comunista dissidente Pierre Naville. Próximo dos surrealistas (tinha sido um dos redatores da revista La Révolution surréaliste), Naville fizera naquele momento a opção do engajamento político no Partido Comunista Francês e queria partilhá‑la com os seus amigos. Ora, para Pierre Naville, o pessimismo, que constitui “a fonte do método revolucionário de Marx”, é o único meio de “escapar às nulidades e às desventuras de uma época de compromisso”. Recusando o “grosseiro otimismo” de um Herbert Spencer — a quem gratifica com o amável qualificativo de “cérebro monstruosamente diminuído” — ou de um Anatole France, cujas “infames brincadeiras” não suporta, conclui: “é preciso organizar o pessimismo”, “a organização do pessimismo” é a única palavra de ordem que nos impede de enfraquecer 20. Torna‑se inútil precisar que tal apologia apaixonada do pessimismo era muito pouco representativa da cultura política do comunismo francês na época. De facto, Pierre Naville seria logo excluído (1928) do partido: a lógica do seu 19 Walter Benjamin. “Le Surréalisme. Le dernier instantané de l’intelligence européenne”. Mythe et violence, p. 312. 20 Pierre Naville. La Révolution et les intellectuels. Paris, Gallimard, 1965, pp. 76‑77, 110‑117.
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antiotimismo conduziu‑o às fileiras da oposição comunista de esquerda (“trotsquista”), da qual se tornará um dos principais dirigentes. A filosofia pessimista da história de Benjamin manifesta‑se de maneira particularmente aguda na sua visão do futuro europeu: “Pessimismo em toda a linha. Sim, na verdade, e totalmente. Desconfiança quanto ao destino da literatura, desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do homem europeu, mas sobretudo desconfiança tripla diante de qualquer acomodação: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. E confiança ilimitada apenas na I. G. Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Lutfwaffe” 21. Essa visão crítica permite a Benjamin perceber — intuitivamente, mas com uma estranha acuidade — as catástrofes que esperavam a Europa, perfeitamente resumidas na frase irónica sobre a “confiança ilimitada”. Evidentemente, mesmo ele, o mais pessimista de todos, não podia prever as destruições que a Lutfwaffe iria infligir às cidades e populações civis europeias; e ainda menos imaginar que a I. G. Farben, passados apenas 12 anos, se destacaria pelo fabrico do gás Ziklon B utilizado para “racionalizar” o genocídio, e que as suas fábricas empregariam, na casa dos centenas de milhares, a mão‑de‑obra de prisioneiros de campos de concentração. Entretanto, único entre os pensadores e dirigentes marxistas daqueles anos, Benjamin teve a premonição dos monstruosos desastres que podia engendrar a civilização industrial/burguesa em crise. É sobretudo no Livro das Passagens e nos diferentes textos dos anos 1936‑40 que Benjamin vai desenvolver a sua visão da história, dissociando‑se, de modo mais ou menos radical, das “ilusões de progresso” hegemónicas no seio do pensamento de esquerda alemão e europeu. Num artigo publicado em 1937 na célebre Zeitschrift für Sozialforschung, a revista da Escola de Frankfurt (já exilada nos Estados Unidos), dedicado ao historiador e colecionador Eduard Fuchs, ele ataca o marxismo social‑democrata, mistura de positivismo, 21 Walter Benjamin. Le Surréalisme, p. 312.
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evolucionismo darwinista e culto do progresso: “Ele não podia ver na evolução da técnica outra coisa a não ser o progresso das ciências naturais e não a regressão social (…). As energias que a técnica desenvolve para além desse limite são destrutivas. Colocam em primeira linha a técnica da guerra e a sua preparação pela imprensa” 22. O objetivo de Benjamin é aprofundar e radicalizar a oposição entre o marxismo e as filosofias burguesas da história, aguçar o seu potencial revolucionário e elevar‑lhe o conteúdo crítico. É nesse espírito que define, de maneira decisiva, a ambição do projeto do Livro das Passagens: “Podemos considerar também como finalidade seguida metodologicamente neste trabalho a possibilidade de um materialismo histórico que tenha aniquilado (annihiliert) em si mesmo a ideia de progresso. É justamente opondo‑se aos hábitos do pensamento burguês que o materialismo histórico encontra as suas fontes” 23. Tal programa não implicava qualquer “revisionismo”, mas, pelo contrário, como Karl Korsch tentara fazer no seu próprio livro — uma das principais referências de Benjamin —, um retorno ao próprio Marx. Benjamin estava consciente de que essa leitura do marxismo mergulhava as suas raízes na crítica romântica da civilização industrial, mas estava convencido de que Marx também se tinha inspirado nessa fonte. Encontra um apoio para tal interpretação heterodoxa das origens do marxismo de Karl Marx (1938), em Korsch: “De modo muito acertado e não sem nos fazer pensar em Maistre e Bonald, Korsch diz o seguinte: ‘Assim, na teoria do movimento operário moderno, também há uma parte da “desilusão” que, depois da grande Revolução Francesa, foi proclamada pelos primeiros teóricos da contrarrevolução e, em seguida, pelos românticos alemães e que, graças a Hegel, teve forte influência sobre Marx’” 24. A formulação mais espantosa e radical da nova filosofia da história — marxista e messiânica — de Walter Benjamin encontra‑se, indubitavelmente, nas Teses sobre o Conceito 22 Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, III, p. 474. 23 Walter Benjamin, “Passagenwerk”, Gesammelte Schriften, V, p. 574. 24 Walter Benjamin, Ibid., p. 820.
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de História, de 1940, um dos documentos mais importantes do pensamento revolucionário desde as Teses sobre Feuerbach, de 1845. A exigência fundamental de Benjamin é escrever a história a contrapelo, ou seja, do ponto de vista dos vencidos —, contra a tradição conformista do historicismo alemão cujos partidários entram sempre “em empatia com o vencedor” — Tese VII 25. É evidente que a palavra “vencedor” não faz referência a batalhas ou guerras habituais, mas à “guerra de classes”, na qual um dos campos, a classe dirigente, “não cessou de vencer” (Tese VII) os oprimidos — desde Spartacus, o gladiador rebelde, até ao grupo Spartacus de Rosa Luxemburgo, e desde o Imperium romano até o Tertium Imperium nazi. O historicismo identifica‑se enfaticamente (Einfühlung) com as classes dominantes. Ele vê a história como uma sucessão gloriosa de altos factos políticos e militares. Fazendo o elogio dos dirigentes e prestando‑lhes homenagem, confere‑lhes o estatuto de “herdeiros” da história passada. Noutros termos, participa — como essas pessoas que levantam a coroa de louros acima da cabeça do vencedor — de um “cortejo triunfal em que os senhores de hoje caminham sobre o corpo dos vencidos” (Tese VII). A crítica que Benjamin formula contra o historicismo inspira‑se na filosofia marxista da história, mas tem também origem nietzschiana. Numa obra de juventude, Da utilidade e da inconveniência da história (citada na Tese XII), Nietzsche ridiculariza a “admiração nua pelo sucesso” dos historicistas, a sua “idolatria do factual” (Götzerdienste des Tatsächlichen) e a tendência para se inclinarem diante da “pujança da história”. Já que o Diabo é o senhor do sucesso e do progresso, a verdadeira virtude consiste em insurgir‑se contra a tirania da realidade e nadar contra a corrente histórica. Existe uma ligação evidente entre esse panfleto de Nietzsche e a exortação de Benjamin para escrever a história gegen den Strich [Contra a Corrente]. No entanto, as diferenças 25 As citações das Thèses sur la Philosophie de l’Histoire foram, na maioria das vezes, retiradas da tradução de Maurice de Gandillac em Poésie et révolution. Paris. Lettres Nouvelles, 1971.
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não são menos importantes: enquanto a crítica nietzschiana ao historicismo se faz em nome da “Vida” ou do “Indivíduo heroico”, a de Benjamin fala em nome dos vencidos. Na sua condição de marxista, ele situa‑se no lado oposto do elitismo aristocrático de Nietzsche e escolhe identificar‑se com os “danados da Terra”, os que jazem sob as rodas desses carros majestosos e magníficos chamados Civilização ou Progresso. Rejeitando o culto moderno da deusa Progresso, Benjamin coloca no centro da sua filosofia da história o conceito de catástrofe. Numa das notas preparatórias das Teses de 1940, observa: “A catástrofe é o progresso, o progresso é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história” 26. A assimilação de progresso e catástrofe tem, antes de mais nada, uma significação histórica: do ponto de vista dos vencidos, o passado não é senão uma série interminável de derrotas catastróficas. A revolta dos escravos, a guerra dos camponeses, junho de 1848, a Comuna de Paris e o levantamento berlinense de janeiro de 1919 são exemplos que aparecem frequentemente nos escritos de Benjamin, para quem “esse inimigo não parou de vencer” (Tese VI). Essa equação, no entanto, tem também uma significação eminentemente atual, porque, “nesta hora, o inimigo ainda não parou de triunfar” (Tese VI): a derrota da Espanha republicana, o pacto Molotov‑Ribbentrop, a vitoriosa invasão nazi na Europa. O fascismo ocupa, evidentemente, um lugar central na reflexão histórica de Benjamin nas Teses. Para ele, não é um acidente da história, um “estado de exceção”, qualquer coisa impossível no século XX, um absurdo do ponto de vista do progresso: rejeitando tal tipo de ilusão, Benjamin reclama “uma teoria da história a partir da qual o fascismo possa ser percebido” 27, ou seja, uma teoria que compreenda que as irracionalidades do fascismo são apenas o avesso da racionalidade instrumental moderna. O fascismo leva 26 Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, I, 3, p. 1244 (notas preparatórias para as Teses). 27 Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, I, 3, p. 1244 (notas preparatórias).
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às últimas consequências a combinação tipicamente moderna de progresso técnico e regressão social. Enquanto Marx e Engels tinham tido, segundo Benjamin, “a intuição fulgurante” da barbárie por vir, no seu prognóstico sobre a evolução do capitalismo 28; os seus epígonos do século XX foram incapazes de compreender uma barbárie moderna e, portanto, de resistir eficazmente a ela — barbárie industrial, dinâmica, instalada no coração mesmo do progresso técnico e científico. (…) Excerto do ensaio “A filosofia da história de Walter Benjamin” (2002), in Löwy, Michael (org. José Neves), Utopias, Ensaios sobre Política, História e Religião, Lisboa: Unipop e Ler Devagar, 2016, p. 44‑51.
28 Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, II, 2, p. 488.
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BOJAN DJORDJEV O Charme Discreto do Marxismo — uma peça em jantar de seis pratos “(…) O Marxismo representa uma sombra crítica constante do capitalismo, crescendo em importância de cada vez que o capitalismo mostra os dentes e de cada vez que é atingido pela crise. A resiliência que o marxismo demonstra face aos modos intelectuais em mudança vem da resiliência, excecional elasticidade e adaptabilidade do capitalismo, que requer a constante invenção de novas formas de crítica teórica e luta política anticapitalistas. Neste sentido, o marxismo é hoje em dia mais do que um corpus de textos poeirentos do século XIX ou um arquivo ou socialismo‑real; representa um termo geral para uma teoria que enfrenta o neoliberalismo moderno da mesma maneira que Marx enfrentava o liberalismo clássico — e que leva a luta anticapitalista a sério.” 29 O Charme Discreto do Marxismo encena textos marxistas sobre luta de classes e revolução como uma refeição de seis pratos. O público é convidado a consumir/ler/discutir a comida, comunalmente. A “comida” e toda a iconografia do jantar são apresentadas através de papel e layout gráfico, ao mesmo tempo que comida e bebidas verdadeiras são servidas como “livros” na biblioteca, para que ninguém passe fome. A peça propõe o marxismo como plataforma específica para nos afastarmos temporariamente dos acontecimentos atuais e olharmos para eles de uma perspetiva aparentemente diferente. No entanto, assinala respostas e ferramentas de análise em algo que foi escrito há mais de 150 anos, mas ainda descreve inequivocamente as causas e efeitos das dinâmicas sociopolíticas atuais. O anfitrião/intérprete guia os(as) convidados(as)/público pelo menu. O texto do espetáculo, tendo o menu como “guião”, é improvisado coletivamente in loco e determinado pelas 29 In Primož Krašovec, “Lidar com o marxismo hoje não é uma questão de lealdade, mas uma tarefa histórica” em https://bojandjordjev. wordpress.com/marxism‑today/ (“Bavljenje marksizmom danas nije pitanje vjernosti već povjesna zadaća”, publicado pelo primeira vez em Novosti, nezavisni srpski tjednik n.º 571, 2010, Zagrebe)
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ligações, associações e atitudes que as pessoas estabelecem com os pratos/textos consumidos. É uma conversation piece, em que o papel principal cabe ao público, mas cada um decide a medida da sua participação. Parte da comida é consumida solitariamente, parte em grupos de dois ou três; o assado é consumido comunalmente, assemelhando‑se a uma miniconferência autogerida, com uma leitura dirigida e comentários. (…) As folhas de salada/poemas são montadas como um puzzle; o sorvete, uma pausa, é uma canção cripto‑marxista brasileira — como costumava acontecer durante a ditadura da junta militar — interpretada por músicos; os queijos são citações pungentes sobre o dilema do ativismo atual, e o assado é composto por sequências tour de force do Manifesto Comunista, enquanto a sobremesa e o digestivo oferecem uma conclusão e alívio, concretos e condensados. A comida e bebidas verdadeiras são servidas numa biblioteca como livros — uma homenagem a O Fantasma da Liberdade de Buñuel, com a sua troca entre mesa de jantar/ casa de banho — que visa oferecer um espaço relaxado para os convidados se retirarem e descansarem dos pratos às vezes “pesados”. Os dois alimentos — para o corpo e para o pensamento — misturam‑se lentamente e estimulam igualmente o espetáculo. Explorando as convenções de um jantar e do teatro enquanto acontecimentos sociais, os dois refletem‑se um no outro ao longo do espetáculo. As interações que constituem o espetáculo são triplas: entre o público e os textos (quando as pessoas começam a colaborar na explicação de ideias e textos teóricos complexos umas às outras e, através deste processo, aprofundam a discussão), entre o anfitrião e o público (no qual o anfitrião é uma figura central “a solo”, coordenando o evento mas não o controlando) e entre os “intérpretes” e os “espectadores” no público (quando esta divisão desaparece lentamente). O teatro torna‑se literalmente um espaço para pensar em conjunto sobre o momento da sociedade em que vivemos.
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Durante a temporada 2016/2017, o Teatro Maria Matos irá editar seis cadernos de textos do ciclo Utopias, dedicados a cada uma das partes: Arquipélago da Resiliência 1/6, Arquipélago das Diversidades 2/6, Arquipélago Comum 3/6, Arquipélago dos Afetos 4/6, Arquipélago Capital 5/6 e Arquipélago Verde 6/6.
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ALEXEI YURCHAK Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation ● debate e pensamento qui 12 ↣ 18h30 MARIANO PENSOTTI Arde Brillante en los bosques de la noche ● teatro — Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura sáb 21 ↣ 21h30 dom 22 ↣ 18h30 STAVROS STAVRIDES Espaços Urbanos Comuns: prefigurando experiências de emancipação social ● debate e pensamento ter 24 ↣ 18h30
FEVEREIRO 2017 ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ
ANDRÉ GUEDES Nova Árgea ● performance qui 02 ↣ 21h30 sex 03 ↣ 21h30 sáb 04 ↣ 18h30 e 21h30 ANDRÉ GUEDES, CARLOS CLARA, MANUELA FAZENDA E PEDRO FAZENDA Conversa sobre Nova Árgea ● debate e pensamento sáb 04 ↣ 19h30 MICHAEL LÖWY e ANTÓNIO GUERREIRO Romantismo e Revolução ● debate e pensamento qui 09 ↣ 17h30 GUILLERMO CALDERÓN Mateluna — Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura ● teatro qua 15 ↣ 21h30 qui 16 ↣ 21h30 sex 17 ↣ 21h30 RUI CATALÃO Assembleia ● teatro sex 24 ↣ 21h30 sáb 25 ↣ 21h30 dom 26 ↣ 18h30 BOJAN DJORDJEV The Discreet Charm of Marxism — six course dinner piece ● performance ter 28 ↣ 19h30
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