DEBATE E PENSAMENTO, WORKSHOPS, PERFORMANCE, DANÇA E TEATRO setembro ↣ outubro 2016
ARQUIPÉLAGO 1/6
DA R E S I L I Ê NC I A textos: Merijn Oudenampsen, Roberto Fratini Serafide, Amador Fernández‑ Savater e Dilar Dirik
curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
utopia s
setembro ↣ outubro 2016
> ARQUIPÉLAGO DA RESILIÊNCIA
olha para o regresso da imaginação política nos movimentos sociais que têm irrompido um pouco por todo o mundo nos últimos anos novembro ↣ dezembro 2016
6 ARQUIPÉLAGO DAS DIVERSIDADES
parte da crise dos refugiados para revisitar os problemas e as oportunidades da sociedade diversa janeiro ↣ fevereiro 2017
6 ARQUIPÉLAGO COMUM
revisita os muitos projetos utópicos surgidos dos comunismos e anarquismos que nasceram no início do século xx março 2017
6 ARQUIPÉLAGO DOS AFETOS
dá a palavra aos muitos que estão a repensar a política como uma atividade também afetiva março ↣ abril 2017
6 ARQUIPÉLAGO CAPITAL
centra‑se nas forças imaginativas e destrutivas do capitalismo maio ↣ julho 2017
6 ARQUIPÉLAGO VERDE
foca o imaginário utópico mais influente da atualidade, surgido da necessidade incontornável de manter o planeta viável
O ciclo UTOPIAS oferece um programa alargado que atravessa toda a temporada 2016‑2017 do Teatro Maria Matos, com espetáculos, instalações, palestras, encontros e eventos no espaço público, com convidados que fazem do agir crítico e da imaginação política uma tarefa diária. As UTOPIAS da temporada estão organizadas em seis arquipélagos, seis territórios para conhecer possibilidades que estão já em curso, e de imaginar outras. Em setembro e outubro, visitamos o Arquipélago da Resiliência. Cada Arquipélago será acompanhado de um caderno de textos, uma aproximação às ideias, práticas e debates que atravessam as atividades que o constituem. Os quatro textos deste caderno dedicado ao ARQUIPÉLAGO DA RESILIÊNCIA têm autoria de alguns dos nossos convidados ou de pessoas que connosco colaboraram durante a sua preparação. Com o filósofo holandês MERIJN OUDENAMPSEN, propomos que se pense a Utopia, não como a representação de um mundo ideal, mas como uma ferramenta crítica para olhar o presente; ROBERTO FRATINI SERAFIDE, fomenta um olhar crítico, associado a uma forte consciência política, sobre as práticas artísticas participativas; AMADOR FERNÁNDEZ‑SAVATER convida‑nos a sair do teatro da democracia representativa para conceber novas formas de participação política; a académica e ativista do movimento das mulheres curdas, DILAR DIRIK, desvela‑nos um pouco dos processos democráticos que estão agora a acontecer num lugar tão improvável como o norte da Síria.
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Alice: “Would you tell me, please, which way I ought to go from here?” The cat: “That depends a good deal on where you want to get to.” Lewis Carroll, Alice in Wonderland
Em 1516, Thomas More publicou Utopia, uma crítica à sociedade em que vivia e um manifesto para um mundo melhor. Em 1917, a Revolução Russa derrubou o regime czarista, rumo a um futuro mais feliz. Como se sabe, as promessas não se realizaram e a história do século XX demonstrou que a humanidade é capaz de monstruosidades em nome de um suposto mundo ideal. Tornou‑se hábito olhar para qualquer aspiração utópica com uma mistura de descrença e desconfiança. Depois da queda do muro de Berlim, pensar a sociedade em termos ideológicos tornou‑se tabu e a política transformou‑se num exercício de gestão. A ambição de construir um mundo melhor foi trocada pela convicção de que estamos a viver no melhor dos mundos possíveis e de que é suficiente confiar na “mão invisível” do mercado e limar as imperfeições. No entanto, o conceito da “gestão eficiente” do mundo globalizado em moldes neoliberais está a falhar. Confrontadas com a degradação alarmante do ecossistema, o aumento das desigualdades, a privatização selvagem do que deveria ser comum, a migração massiva, o desaparecimento da solidariedade, cada vez mais pessoas reclamam o regresso da política: uma política que reocupe o seu lugar central, que ouse imaginar novos modos de atuar, procure caminhos diferentes e inclua os cidadãos nos processos de decisão. Quais são as ideias que estão a emergir capazes de nos inspirar? Onde estão os projetos que experimentam diferentes formas de conviver? Quais são as utopias de que a humanidade precisa para agir criticamente e recriar o presente? Será que a arte tem aqui um papel a desempenhar? Business as usual deixou de ser opção: é preciso voltar a imaginar o mundo em que queremos viver. É preciso juntarmo‑nos enquanto cidadãos para o construir.
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ARQUIPÉLAGO Este arquipélago olha para o regresso da imaginação política nos inúmeros movimentos sociais que têm irrompido um pouco por todo o mundo nos últimos anos. À crescente precariedade e aos discursos do medo contrapõe mais colaboração e mais solidariedade. Ao status quo contrapõe um ativismo a todos os níveis da sociedade. A utopia não é um ideal a atingir, mas um horizonte que se reinventa enquanto se vai caminhando. Abrimos a temporada com o inesquecível Germinal de Halory Goerger e Antoine Defoort, que se propõe reinventar o mundo a partir do zero. Kate McIntosh convida‑nos a um exercício imaginativo e divertido, numa instalação onde se pode desmanchar objetos quotidianos para de seguida os reconstruir numa outra realidade. O filósofo holandês Merijn Oudenampsen propõem‑nos um olhar sobre Utopia como um instrumento crítico para pensar o presente, numa conferência onde fará a ponte entre o texto de Thomas More e os movimentos sociais atuais. Iremos depois conhecer exemplos de processos de democracia participativa instigados pelos próprios cidadãos, em contextos tão diferentes como o lisboeta Bairro da Ajuda, o país vizinho Espanha, ou a região de Rojava, na Síria. Com o dramaturgo Roberto Fratini Serafide, partir do filme Um Elefante na Sala, a propósito da performance Atlas, de Ana Borralho e João Galante, que estreámos em 2011, abordaremos a potência da arte enquanto gesto de convocação política. Em À Volta da Mesa: para um imaginário do gesto, estarão à volta de várias mesas de discussão pessoas com as mais variadas profissões, para conversar sobre a forma como o nosso corpo participa, quotidianamente, na construção do espaço social onde vivemos. Com a peça Web of Trust, a artista húngara Edit Kaldor aborda o papel das redes na internet na transformação de habitantes passivos em cidadãos ativos. Porque a utopia na qual propomos pensar não aspira a ser nem um modelo consensual nem um jardim encantado, terminaremos com A Hundred Wars to World Peace: Verein zur Aufhebung des Notwendigen, um jantar sobre as divergências da qual a democracia é feita e que nos permite, no final, partilhar uma refeição feita verdadeiramente em comum. curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
DAS DIVERSIDADES
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MERIJN OUDENAMPSEN O Significado de Ser Realista “Acreditamos na utopia porque a realidade nos parece incrível.” Cartaz de uma manifestação contra a política de crise em Madrid, dia 1 de maio de 2012
O grito pelo realismo ecoa alto. Consiste numa mistura de capacidade de ação implacável e fatalismo cego, fenómeno bastante usual em tempos de crise. Uma combinação que se manifesta na ideia recentemente popularizada que diz que, em tempos de crise, a política se resume a uma forma muito particular de atletismo. A política como pequena competição de saltar sobre a própria sombra, na qual político após político salta, com crescente entusiasmo, sobre a sua própria sombra — entenda‑se, as suas convicções — dando um grande salto para dentro do vácuo. Agora livres de convicções, estes políticos revelam‑se de seguida como adeptos fiéis dos decretos de austeridade, impostos pela ortodoxia económica vigente. Todo aquele que se recusa a participar neste jogo de sombras de equiparação ideológica, todo aquele que acredita que uma crise não pode ser combatida com os meios neoliberais que a criaram, todo aquele que se negar a seguir o novo centralismo democrático, é descartado como sonhador irresponsável. Entretanto, exige‑se da parte da população que se demonstre adulta, abdique dos seus padrões de vida e de expectativas em vigor na sociedade e abrace medidas dolorosas. Afinal, são medidas extraordinárias para tempos extraordinários. É uma e a mesma forma de realismo compulsivo que funciona como repelente contra os movimentos de protesto contemporâneos tanto da esquerda como da direita. É assim que os opositores ao populismo da direita nos Países Baixos apelam com frequência a um melhor entendimento com a realidade. Considera‑se que o opositor talvez até possa ter à sua disposição a imaginação, os chavões e as metáforas apetecíveis, mas que do nosso lado estão os factos e a realidade. Na maioria das vezes, este raciocínio
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equivale a um apelo a mais subtilezas na política, ou a queixas sobre a falta de interesse dos media pela complexidade da realidade social. É o repertório conhecido do empirismo que parte do princípio de que a melhor forma de combater o populismo da direita é queixar‑se das políticas sem fundamentos factuais, alertando para a existência da estatística. A preponderância desta ideologia empírica na política holandesa fica em parte evidente pelo estatuto irrazoável que é atribuído aos “mestres dos números” do CPB [gabinete homólogo holandês do Gabinete Português de Estratégia e Planeamento], apesar dos seus prognósticos se terem revelado quase sempre incorretos. Verdade seja dita, não há nada de errado com o realismo. Principalmente quando se trata de espalhar as mentiras com as quais nos cruzamos no dia‑a‑dia, acerca da migração, islamização, etc. O empirismo entra, porém, rapidamente no terreno e cria por sua vez uma imagem distorcida da realidade quando fingimos que é possível uma política baseada puramente em factos. Torna‑se uma proposição que considera que o futuro é uma sequência contínua do presente e por isso conhecível. Desta forma, pode acontecer que o realismo coincida com uma interpretação conservadora de política, já que é através dele que qualquer tipo de alternativa à ordem existente, qualquer imagem de um futuro que não corresponde ao leque de possibilidades do presente, é afastada como sendo irrealista. Por outras palavras, o problema do empirismo é que parte do princípio que entre a imaginação (de alternativas políticas, de um futuro diferente) e o realismo, existe uma contradição fundamental. No entanto, mudar o status quo é impossível sem uma realidade alternativa que tem de ser alcançada. Consequentemente, o empirismo parece impossibilitar qualquer política que implique mudança. É também isto que sentem os movimentos de protesto esquerdistas sobre a forma como a política atual lida com a crise, sejam eles oriundos de Espanha, da Grécia ou dos Estados Unidos. Os manifestantes são acusados de não serem suficientemente realistas ou de não terem planos suficientemente concretos apenas por não avançarem com uma lista de exigências. Chega a parecer que o protesto
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democrático apenas é aceitável caso seja acompanhado de estudos de viabilidade, análises de custo‑benefício e tópicos organizados por pontos. Existe uma outra forma de realismo, que é defendida por uma longa tradição da política de esquerda. Uma forma de realismo que parte precisamente de uma junção crítica de realismo e imaginação, tal como expressada no lema “sê realista, exige o impossível” de 68 e da máxima para a globalização alternativa, “um mundo diferente é possível” ou, na sua variante parlamentar, “a deriva utópica” de Den Uyl [político holandês, primeiro ministo de 1973 a 1977]. Esta tradição encontra‑se, da mesma forma, na filosofia política, onde há muito é destacado o papel central da imaginação em qualquer tipo de atividade humana. Como exemplo, vejamos o excerto famoso de O Capital, de Marx, onde ele argumenta que a qualidade diferenciadora entre o ser o humano e o animal se encontra na transformação da natureza através da imaginação: “Uma aranha desempenha atividades parecidas com um tecelão e uma abelha deixa muitos arquitetos humanos vermelhos de vergonha. Mas o que distingue de forma essencial o pior arquiteto da melhor abelha é o facto que este construiu primeiro o alvéolo na sua cabeça antes de a construir em cera.” (Karl Marx, Das Kapital, MEW, volume 23, p.193). O mesmo pode ser dito da política: a sua atividade fundamental é a transformação da realidade existente e esta é impossível de se realizar sem uma imagem mental do futuro ainda não existente — mesmo se, de forma paradoxal, essa imagem seja oriunda do passado. Por outras palavras, a política existe pela graça da imaginação de outras realidades e pela refutação da realidade que é imaginada pelos opositores. Isto não significa que a política trate simplesmente de fabricação. Significa apenas que a veracidade das realidades propostas somente poderá ser apreciada plenamente no futuro ou no passado. Neste aspeto existe uma diferença importante entre a imaginação da esquerda e a da direita. Admitindo algum grau de simplificação, podemos argumentar que os movimentos esquerdistas usam a imaginação para ultrapassar o presente em prol de uma imagem de um futuro mais justo. O populismo
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da direita, por sua vez, tenta mudar a sociedade através da imaginação de um passado idealizado, seja este o regresso aos anos cinquenta ou ao florim, como propostos por Geert Wilders, à utilização de mitologia medieval no Norte da Itália pela Liga Norte, ou o apelo ao movimento patriótico americano dos ativistas do Tea Party. É uma imagem do passado que não deixa de ter que ser atingida no futuro e, desta forma, funciona como uma espécie de utopia de substituição, um horizonte político invertido. O caráter contraditório desta forma de política, favorável à mudança mas conservador em essência, foi resumido de forma clássica no filme Il Gattopardo, de Visconti, no qual um aristocrata italiano é posto em cena a murmurar sobre a conservação de posições e classes antigas, numa nova situação, por cima dos vestígios de um sistema feudal em desintegração. “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”, indica‑lhe o sobrinho. A força do populismo da direita está na contradição em usar a nostalgia pelo passado para ambicionar uma mudança no futuro. Tal como, por exemplo, Fortuyn, que completava a sua crítica radical à “polderpolitiek” [modelo político holandês baseado na procura de consensos] com um apelo ao regresso à autoridade paterna que tinha sido criticada de forma tão eficaz nos anos setenta. Autores como Thomas Frank alertam que é por essa razão que o populismo da direita é o único movimento político que tenta imaginar uma alternativa social radicalmente diferente. Visto através desta perspetiva, a resposta política predominante ao populismo da direita tem sido ineficaz, exatamente porque é de ordem demasiado apolítica e empírica. Parte do princípio que o nosso papel se limita a verificar os factos dos nossos adversários, a desfazer a sua imaginação nostálgica em vez de formular uma alternativa própria, um horizonte próprio, uma resposta à necessidade da imaginação política que vive entre a população. Em On the Shores of Politics, Jacques Rancière escreve sobre o fim da política como desfecho de um uso particular do tempo: o da promessa. A promessa funcionava como horizonte político; era uma comunhão iminente, um destino, uma ilha utópica. Por outras palavras: a política tratava de um futuro melhor. Este apelo ao tempo desfaz‑se quando nos anos
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oitenta se anuncia o fim da história. É isto que leva ao declínio da política como programa da libertação, como promessa de felicidade. A promessa é substituída por uma política que — na opinião de Rancière — é executada inteiramente no presente, com um futuro que não pode ser nem mais nem menos do que a continuação do presente, pago, como é óbvio, pelos cortes e reformas necessárias. O fim da política é‑nos desta forma imposto como um processo de secularização: o fim na política como crença num futuro melhor. Tal significa passar ao lado de qualquer ideologia e entrar num terreno onde qualquer promessa é imediatamente atacada com base na sua falta de realismo. Como reação inesperada a esta mudança de paradigma, sempre na opinião de Rancière, aparece um terceiro tipo de política sob a forma de anti‑promessa, digamos “não o horizonte de uma viagem, mas sim a beira de um abismo”. A anti‑promessa é, na sua essência, um apelo à união, como reação a uma promessa do pior: a queda da sociedade. Ou sob a forma de aparências mais contemporâneas: islamização, terrorismo, o pensamento apocalítico do Tea Party que promete aos seus seguidores a implementação de um socialismo americano. Deste modo ficamos com três tipos distintos de uso político do tempo. A política da promessa, o fim da política e a política do abismo. O primeiro é o do realismo radical que encontramos em figuras como Martin Luther King com o seu sonho de uma sociedade igualitária ou em muitos movimentos de protesto esquerdistas. Exemplos da segunda variante são a posição de partidos pós‑ideológicos do centro radical, como o New Labour no Reino Unido ou o CDA e PvdA nos Países Baixos. O populismo da direita é um exemplo do terceiro. É claro que não existe uma estratificação ideológica uniforme do uso político do conceito tempo. O movimento ecologista, por exemplo, está mais orientado, no seu programa, para a existência de um abismo e nem tanto para uma promessa. É essencial perceber porém, que a resposta ao populismo da direita, proposta pelo empirismo, no fundo corresponde, tal como é visto por muitos (ver por exemplo Mouffe 2005), à causa do sucesso do populismo. Nomeadamente, uma política baseada numa ideia de realismo
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que se limita àquilo que é alcançável no presente ou com as condições existentes. Uma boa ilustração desta situação, é o que o Gramsci chama, referindo‑se a Machiavelli, de realidade “efetiva” ou realtà effettuale: “Demasiado realismo político (e, por consequência, superficial e mecânico) realismo político conduz muitas vezes à constatação que um governante deve trabalhar apenas dentro das fronteiras da “realidade efetiva”; que ele não se deve ocupar com o que “devia ser”, mas somente com aquilo que “é”. Isto significaria que ele não deveria tentar ver mais longe que a ponta do seu nariz…..” No raciocínio apresentado a seguir, Gramsci argumenta que a única forma de realmente conhecer a realidade passa por ter uma visão que vise a sua transformação. Considerando que a realidade é a utilização da vontade humana sobre a sociedade e pelo facto de esta não poder ser conhecida na sua totalidade através das leis criadas pelas ciências sociais, não existe previsão objetiva possível do futuro sem uma visão do mundo que lhe preceda, uma visão do mundo que simplifique a complexidade do dia‑a‑dia, que a ordene e a torne compreensível. Porque o presente não é estático, antes pelo contrário, tem um fluxo contínuo, só conseguimos modificar os seus padrões, de maneira a tornar possível mudar alguma coisa, através da paixão, através de um investimento do desejo: “apenas o homem que deseja algo com convicção, será capaz de identificar os elementos que são necessários para a realização dessa vontade”. Por consequência, não existe necessariamente uma diferença entre a imaginação de uma realidade futura e a consciência do presente: “O político ativo é um criador, alguém que inicia algo. No entanto, ele não cria a partir do nada nem se movimenta apenas nas águas turvas dos seus próprios sonhos e desejos. Ele baseia‑se na realidade efetiva, mas essa realidade consiste em quê? É estática e imóvel, ou não será antes um equilíbrio entre forças que se movimentam e alteram constantemente?”. O verdadeiro político, na opinião de Gramsci, tem como objetivo criar um novo equilíbrio de forças, partindo de uma
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tendência progressiva no equilíbrio atual. A política verdadeira mantém um pé no presente e um no futuro e vive da tensão entre os dois; nos momentos de estratégia a curto prazo (ganhar a batalha) e de estratégia a longo prazo (o planeamento da guerra). A política verdadeira desenrola‑se no terreno da chamada “realidade efetiva”, mas sempre com o objetivo de ultrapassar essa realidade: “Aquilo que ‘devia ser’ não é por isso menos concreto; é até a única visão realista e integrada na história sobre a realidade, trata‑se de escrever história e criar novas ideologias, apenas isto conta na política.” Temos de conseguir ressuscitar de uma forma ou de outra este aspeto da política da promessa: o objetivo de mudar o equilíbrio das forças de tal maneira que permita a realização de uma realidade que, vista sob as circunstâncias atuais, é considerada irrealista. Não foi isso que o movimento Occupy começou? Com a sua exigência de, primeiro, mudar as instituições existentes antes de serem colocadas exigências novas?
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Tradução neerlandês/português: David Bracke Texto original publicado em Eutopia #30, outubro 2012 merijnoudenampsen.org
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ROBERTO FRATINI SERAFIDE Liturgias da impaciência A mobilização performante do espetador avisado (o único que faz o género de consumo cultural de que a indústria da Participação precisa para se perpetuar) é bastante consensual. Não vamos discutir o efeito de unanimidade forçada e fanática que se produz quando o sentido e o desenrolar do espetáculo dependem de os espectadores individuais aceitarem alistar‑se na maioria benevolente encarregada de pôr o dispositivo a funcionar. A Participação não é senão consenso ativo. Na maior parte dos casos, é até o a priori ideológico do espetáculo (que só sabe fazer uso da participação para falar da participação como valor adquirido). Vista com perversão, a oferenda que se faz ao espectador (“faça o favor de ser aquilo que veio ver”), de assumir a autoridade, o “autorat”, a “agência” (no sentido do termo que designa a parte ativa, o fazer, o “quem faz o quê”) poética, a responsabilidade prática da experiência participativa, é da ordem de uma oferta mafiosa: o convite, o presente que não se pode recusar. Não há dispositivo de poder mais sorrateiramente eficaz do que aquele em que a prescrição se torna êxtase performante, aparente tomada de poder. Sempre me espantou ver quantas experiências participativas que supostamente despertariam a consciência cívica ou política do público só recebiam dele uma resposta emotiva: um entusiasmo genérico para com os benefícios catárticos da participação e não para com o seu objeto, a saber, a aprendizagem da realidade que se deveria ter produzido. Ser manipulado é sempre mais agradável do que aprender em que consiste a manipulação. A manipulação não é só bastante consensual. É bastante sensual. Quando praticada sem verdadeira malícia, a sua aposta arrisca‑se a ser idêntica ao número de magia próprio dos formatos interativos da indústria do entretenimento de massas: reciclar como retórica da emancipação o sex appeal da manipulação; o efeito sobre‑excitante, não de ver ou de participar, mas de “se ver participar”. Daí a necessidade de nos perguntarmos quais são, na mobilização do público, os fatores de recrutamento; de nos
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perguntarmos se não existe, por trás da Participação como dispositivo conceptual, a sublime receita das religiões: disfarçar de ato de libertação e gozo partilhado a escravatura confessional. Duvido até que possamos falar com lucidez das poéticas da participação e das suas potenciais derivas autoritárias enquanto não tivermos repensado a própria ideia de Cultura, tal como a recebemos, isto é, como macro ‑dispositivo participativo e performativo em si, no quadro conceptual mais correto da crítica da Religião. Bastaria ver a confusão que se faz entre a esfera ritual e a esfera política: como é possível que os argumentos que defendem o teatro de participação com bases neo‑ritualistas (onde nunca deixam de reluzir palavras‑chave como Comunidade, Sacrifício, Partilha, Fusão & companhia) coexistam pacificamente com os argumentos que o defendem com bases políticas (onde reluzem gloriosamente a Consciência, o Debate, a Emancipação)? É de facto preciso que a religião tradicional seja usada apenas e só enquanto religião e que a política esteja definitivamente fora de uso enquanto política para afirmarmos que arte se ocupa de estufar tão bem os restos de uma e de outra para o festim, a festa da Cultura. Há qualquer coisa de profundamente ideológico na comovente obstinação dos públicos e dos artistas em declarar a utilidade radical destes “teatros da partilha” (os debates, os encontros, as aftertalks) onde é suposto os primeiros enriquecerem a aventura poética dos segundos ao exprimirem as suas sensações sobre o trabalho “aberto” do qual acabam de aceitar um aperitivo; e onde é suposto os segundos enriquecerem a experiência cultural dos primeiros ao serem sinceros, humildes e comunicativos enquanto artistas (porque a obra de arte é da ordem da culpa, do pecado do orgulho, quando não toma a forma litúrgica da partilha religiosa). Não só estas cerimónias culturais são em geral bastante inúteis, como também ninguém, nem os artistas nem os públicos, acredita verdadeiramente nelas. E, no entanto, participam nelas com toda a boa vontade do mundo. Mas porquê? E para quem? Žižek diria: “Para o sujeito que supostamente acredita nisso”: a saber, o verdadeiro coração da ideologia e da mística da Cultura, o artista‑cidadão ou o cidadão‑artista que,
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precisamente graças à sua inexistência factual (em que só podemos acreditar), impede a ekklesia, a igreja da Cultura, como controlo ativo do coletivo, de se desintegrar. O perigo estético, poético e teórico, torna-se para o espetáculo participativo uma solução, quando deveria assumir‑se como um problema; e acreditar ser incondicionalmente progressista, quando seria historicamente mais correto enunciar os seus aspetos regressivos; aspetos esses que estiveram presentes de cada vez que, na história recente, as utopias da Participação foram proclamadas como a panaceia holística que supostamente curaria toda a infelicidade política e estética: da festa Revolucionária (em pleno Terror) ao Festspiel wagneriano, ao Thing Theater nazi. É difícil não associar a derivas autoritárias o misticismo comunitário com que a praxis da participação performativa foi regulamente besuntada. Não tenho nada contra o Ritual, nem contra a Manifestação política, nem contra a Festa, e não é o carácter performativo ou participativo de todas estas coisas que seria, na minha opinião, estruturalmente perigoso. A alucinação das vanguardas é acreditar, muito simplesmente, que, como o teatro vem do ritual, então só pode existir teatro absoluto quando o teatro voltar a ser um ritual (o resultado será um teatro mais absolutista que absoluto). Não há nada potencialmente mais manipulador do que esta simulação da inocência de que a Cultura precisa para fingir a sua regressão às origens; não há nada teoricamente menos sustentável do que acreditar que, uma vez que uma manifestação política tem aspetos performativos, então a manif é uma performance e a performance é uma manif. Redefinamos então o povo como a coletividade que não pertence de maneira estável a nada, num espaço que não pertence de maneira estável a ninguém. Não é por acaso que o nome dado desde a antiguidade romana ao lugar onde a comunidade representa a sua falta de especificidade seja fórum: um buraco, um lugar vazio mesmo no coração da cidade. Quando esta coletividade “ocupa” o espaço público, só o faz para o salvaguardar de qualquer apropriação indevida, de qualquer domesticação não desejável: saímos à rua para de
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lá evacuar os poderes que a sequestram quando nos distraímos. Reafirmamos a sua negatividade estrutural. Não tem nada a ver com este delírio de “reapropriação” ou “reconquista” dos espaços comuns que habita o discurso atual. Estamos fartos de ouvir os artistas queixarem‑se da cidade e das suas leis não estarem sempre a abrir espaços para as efusões de uma arte contemporânea que é tanto mais efusiva quanto parece determinada, numa inflação constante, a colonizar todos os interstícios do real (quem ousaria recusar este copioso festim de criação?). É compreensível: como o objetivo é positivar em todos os sentidos a criação (fazer dela, por assim dizer, um ato de presença regulada, excluindo à partida a possibilidade de ela ser qualquer coisa mais útil, a saber, um ato de ausência desregulada), é evidente que o entusiasmo artistificante reclama a conivência do entusiasmo legiferante, cuja performance específica tem sido, ao longo dos últimos vinte anos, regular completamente cada zona cinzenta, cada sector ainda indefinido do espaço da vida comum: que as pessoas não se vejam obrigadas a exercer o que lhes resta do instinto ético, se houver uma lei para cada dilema. Neste universo de vitimização potencial (onde a infância é a vítima potencial número um e a pedra de toque de todo o sistema est‑ético), será preciso regular também, moldar juridicamente o charme indiscreto da dissidência artística, para que os artistas (essas crianças problemáticas, cujo incontível potencial de criação nunca pode ser reprimido pelo universo adulto e pelas suas corrupções; cagam por todo o lado, cagam sem se controlarem, vivem criativamente a sua relação com a merda) não sejam em caso algum as vítimas do sistema e do seu jugo: que sejam à partida postos sob tutela pela mesma revolução que é suposto desencadearem. O perigo estético, poético e teórico é, para o espetáculo participativo, tomar‑se por um conteúdo quando deveria ser apenas um formato; acreditar, enfim, que sendo precisamente um formato, possa despachar de uma só vez o problema da forma. Eis, na minha opinião, a fonte de todas as desorientações: uma confusão substancial entre “agência” poética e “agência” cultural. Um mal‑entendido por assim dizer bastante semelhante àquele que já se impôs ao discurso como equação
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totalmente inaceitável de Arte e de Cultura. Que Cultura é esta, de que nos falam sem parar como o direito‑dever mais incontornável de todos? Por agora, não é mais do que o consumo pelo discurso, tornado experiência e socialização, de tudo aquilo que, na arte e nos artistas, poderia ainda subtrair‑se a este sistema de verdades adquiridas e princípios partilhados, de mantras incansáveis, que constitui a religião festiva dos nossos dias; é a bênção coletivizada de toda esta parte maldita de que a arte foi durante séculos a única expressão sobrevivente; é a positivação de toda a negatividade de que a arte foi um último refúgio humano, antes de o artista ter sido institucionalmente encarregado de salvar o mundo; é a depuração última do artista, a sua reeducação como operador cultural, como porta‑voz da comunidade e justo entre os justos de um sistema que nunca cultivou com tanta arrogância a sua convicção de ter açambarcado todas as verdades éticas; é justamente a abolição de todos os intervalos, vazios e buracos de compreensão através do discurso delirante como experiência de pleno direito e da experiência delirante como discurso de pleno direito; é o resultado do mesmo horror vacui de que a positividade do “pensamento positivo” constitui a expressão mais fiel: preenche todos os buracos, impede que existam todos os interstícios onde se correria o risco de acontecer, no encontro entre a arte e o sujeito, qualquer coisa que fosse da ordem do imprevisível ou do negativo, inclusive a simples recusa, esse fracasso que a Cultura maiúscula se apressa a evitar, reeducando os espectadores com todas as amabilidades grotescas da Pedagogia dos últimos quarenta anos: pela experiência, o jogo, a partilha, a festa: sobretudo, que ele não se aborreça, que nunca se lhe apresentem desafios; que ele nunca mais se veja na posição de rejeitar por ignorância e falta de meios os milagres da criação contemporânea e o benefício social que implica o facto de ser um membro ativo das suas liturgias. Que tenha a bondade de preencher essa inconsistência ameaçadora com a sua plenitude viva de participante. O teatro contemporâneo nunca esteve tão próximo deste entertainment que teoricamente só o horrorizou a partir do
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momento em que assumiu o projeto de “entreter” o público, em nome do fetiche da experiência, no perpetuum mobile, no carrossel das Atividades Culturais.
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Tradução francês/português: Joana Frazão Excertos do texto Liturgies de l’impatience, de Roberto Fratini Serafide, publicado na revista online Klaxon nº 4, 2015, versão integral aqui: cifas.be (em francês e inglês)
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AMADOR FERNÁNDEZ‑SAVATER A política dos despolitizados Desde o princípio da crise económica, vivemos em Espanha uma situação realmente excecional, uma aceleração histórica e uma abertura do possível sem precedentes no passado imediato. Desde 2008, este país é um intensíssimo “laboratório de experiências”, onde se ensaiam novas formas de sujeição e também de emancipação. Falemos agora das primeiras. No seu célebre livro A Doutrina do Choque, Naomi Klein elaborou esta inquietante hipótese: o neoliberalismo não “sofre” as crises, antes se aproveita delas para catalisar um “grande salto para a frente” na transformação das sociedades. Funciona por causa das suas “disfuncionalidades” e através delas. O livro baseia‑se no estudo exaustivo de vários exemplos históricos: o Chile de Pinochet, a Polónia pós‑soviética, a Nova Orleães devastada pelo furacão Katrina, etc. Em todos os casos, uma séries de “choques” deitaram abaixo as populações, quebraram a solidariedade social, propagaram a paralisia, a resignação e o medo, fomentando a dependência em relação ao Estado como pai protetor e prepararam o caminho a todo o tipo de reformas. As atmosferas de pânico e depressão social (sejam provocadas por uma catástrofe de origem natural ou humana) são ocasiões ideais para aprofundar e generalizar a lógica da maximização do lucro. Naomi Klein chama‑lhe “capitalismo do desastre”. Seria possível pensar a partir desta ótica o carácter da gestão da crise económica na Europa desde 2008? Creio que sim, pelo menos em dois sentidos: Em primeiro lugar, a crise está efetivamente a ser o momento propício a uma “destruição criativa” de tudo aquilo que, nas instituições, no vínculo social e nas subjetividades, estorva, resiste, elude ou simplesmente desafia a extensão da lógica neoliberal a toda a vida social: por exemplo, os restos mais ou menos consistentes do Estado‑providência, os mecanismos de solidariedade formais e informais, os valores não competitivos, etc. Em segundo lugar, a crise constitui‑se como “técnica de governabilidade”: a necessidade de “sair” dela seja como for
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justifica qualquer medida, silencia o dissenso e reforça o autoritarismo dos poderes, que até passam por cima das garantias liberal‑democráticas básicas sem grande escândalo (pensemos por exemplo no caso dos “governos técnicos” impostos durante algum tempo na Grécia e em Itália). Já nos anos 50, Maurice Blanchot falou, num sentido parecido, de um “poder de salvação” que promete dar‑nos segurança e resgatar‑nos da catástrofe, mas sempre em troca da nossa “morte política”: todas as nossas capacidades de expressão, pensamento ou ação. Na situação espanhola recente, encontramos muitíssimo material que confirma a análise de Klein (...).
Política de qualquer um Mas talvez o mais interessante e específico da situação espanhola seja a resposta à “estratégia do choque”: uma ativação social sem precedentes na história recente do país que arrancou com o 15M, um movimento que se situa deliberadamente fora do espectro político conhecido. Em que sentido? Desde 2008, quando “estalou” a crise, até maio de 2011, quando “estalou” a rua, a resposta social à gestão neoliberal da crise — já desastrosa para as classes baixas — primou pela ausência. Porquê, de que nos fala este silêncio? Eu interpreto‑o assim: intui‑se massivamente que a política clássica — incluindo a esquerda oficial e a extrema‑esquerda, “movimentos sociais” incluídos — não é capaz de fazer frente à situação, e muito menos de a reverter. A perceção alargada é que tudo aquilo que existe no campo político ou é incapaz de alterar a situação, ou colabora diretamente com ela. O desafio virá do lugar menos pensado, apanhando desprevenidos todos os “profissionais” da política. Uma convocatória para uma manifestação a nível nacional, lançada por uma estrutura criada para a ocasião, chamada “Democracia real já!”, espalha‑se com êxito nas redes e no imaginário social. O segredo deste êxito? O seu carácter radical, aberto e inclusivo: com slogans amplamente
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partilhados e muito pouco ideológicos (“não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros, democracia real já”), a iniciativa magnetiza uma porção significativa do mal‑estar social. Essa manifestação, que decorre num ambiente alegre e nada agressivo em 60 cidades espanholas, liberta tanta energia que há quem não consiga voltar logo para casa, assim sem mais, e um grupo de 40 pessoas decide espontaneamente plantar‑se nessa mesma noite na Puerta del Sol, em Madrid. O que é interessante aqui é que a decisão não surge (e, seguramente, nunca poderia ter surgido) do cálculo político de um grupo pré‑constituído, mas de uma assembleia de desconhecidos que improvisa. Depois do desalojo sofrido por este grupo durante a segunda noite, milhares de pessoas indignadas com o abuso policial autoconvocam‑se através das redes sociais para retomar a praça, e nessa mesma tarde‑noite arranca o acampamento. No meio de uma alegria coletiva como há anos não se recordava em Madrid, nasce o movimento 15M. O 15M é um movimento ao mesmo tempo político e antipolítico. Antipolítico no sentido em que expressa uma recusa geral da política dos políticos, aquela que se considera, com muita razão, completamente subordinada às necessidades da economia global. As palavras de ordem mais conhecidas do movimento são “não nos representam”, “chamam‑lhe democracia mas não é” e “não pagamos a vossa crise”. Mas o movimento não se esgota no protesto ou na indignação, nem na exigência ou na reivindicação, antes constrói e pratica uma redefinição positiva da política como possibilidade ao alcance de qualquer um, como pergunta sobre a vida em comum ao alcance de qualquer um. Podemos encontrar os traços principais do 15M encarnados na própria materialidade das praças. Três apontamentos sobre isso, a partir da minha experiência na Puerta del Sol, em Madrid: — nas mil assembleias e grupos de trabalho, experimentam‑se modos de pensar e decidir em comum. Sem líderes nem representantes em quem delegar, desenvolve‑se um grande esforço de todos e cada um para falar em nome próprio, ouvir o outro, elaborar um pensamento coletivo,
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dando atenção ao que se está a construir em comum, confiando generosamente na inteligência e na capacidade de desconhecidos, rejeitando os blocos maioria/minoria, procurando com infinita paciência verdades inclusivas, privilegiando muitas vezes o debate e o processo em detrimento da eficácia dos resultados. — em muito poucos dias, cresce uma pequena cidade dentro da cidade, com creche para crianças, painéis solares, uma biblioteca, uma enfermaria, equipas de limpeza, comida em abundância, etc. Desenvolve‑se um grande esforço coletivo para cuidar e criar um espaço habitável onde caiba toda a gente. Questões básicas, mas que costumam ficar à porta da política tradicional (o cuidado, a reprodução, os corpos, etc.), são aqui objeto da máxima atenção. Coisa que, para algumas pensadoras como Silvia Federici, implica de certa maneira uma “feminização da política”. — a “auto‑simbolização” do movimento procura constantemente produzir um “nós” aberto, inclusivo, não‑identitário. Tudo o que separa e divide (siglas, bandeiras, violência) fica fora da praça. Para se autorrepresentar, usam‑se etiquetas abertas e marcas coletivas: “nomes de qualquer um” que não reenviam a nenhuma identidade prévia — sociológica, ideológica ou política —, mas antes dependem de uma decisão subjetiva, potencialmente acessível a qualquer um. É essa a potência da etiqueta “indignados”, por exemplo. Evita‑se cuidadosamente um posicionamento no tabuleiro de xadrez político (esquerda/direita), quebrando assim a falsa polarização que organiza desde há décadas o mapa do possível em Espanha (PP/PSOE). Em suma, se tivéssemos de resumir o 15M numa única frase, poderíamos dizer que consiste no desejo e na prática de uma política de qualquer um, que não se deixa fragmentar ou instrumentalizar por partidos políticos ou ideologias, e procura encarregar‑se de modo comum dos assuntos comuns. O filósofo Jacques Rancière escreveu que “a política não opõe um grupo a outro, mas um mundo a outro”. Ou seja, a política não são lutas entre grupos pelo poder (intrigas palacianas, estratégias maquiavélicas, etc.), mas a afirmação de outra experiência do mundo. No caso do 15M, tratava‑se de
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uma experiência feita com estes materiais: a capacitação de pessoas quaisquer, a construção de espaços abertos e habitáveis, a autonomia, no sentido de autodeterminar tempos, conjunturas e problemas para lá das “agendas” mediáticas e políticas, etc. Essa experiência é o conteúdo substantivo da “democracia real” que se reivindicava nas praças. Ou seja, não podemos separar os fins dos meios do 15M: aquilo que se quer e se reivindica (“democracia real já”) já se assemelha ao mundo que se constrói nas praças (ativo, igualitário, acolhedor, à altura das pessoas). O quê e como aparecem juntos.
O clima 15M Nas praças fizemos essa experiência de forma “concentrada”, no mesmo espaço‑tempo. Mas em breve a energia transborda das praças e espalha‑se por toda a superfície social, transformando‑a. Surgem as assembleias de bairro, que descentralizam o impulso do 15M, enraizando‑o nos lugares da vida. Surgem as “marés”, movimentos em defesa dos sectores públicos ameaçados pelos cortes (maré verde da educação, maré branca da saúde, maré azul da água, maré laranja dos funcionários, etc.). A Plataforma de Afetados pelas Hipotecas, um grupo até aí pequeno que trabalha problemas relativos aos despejos e à habitação, cresce e multiplica‑se por todo o lado. Proliferam cooperativas, bancos de tempo, hortas urbanas, redes de economia solidária, mercados sociais, novos centros sociais, livrarias associativas, etc. Não são movimentos sociais, e sim a sociedade em movimento. Trata‑se de um efeito impressionante de “extensão” de um espírito de politização a toda a sociedade: funcionários, bombeiros, pessoal sanitário, juízes, professores, até corpos da polícia! Cada iniciativa, cada maré, replica e recria à sua maneira o espírito do 15M: a auto‑organização a partir da base, à distância dos partidos e sindicatos ou simplesmente prescindindo deles; a vontade de inclusão, graças à qual se agrupam pessoas muito distintas (ideológica ou politicamente) em torno de objetivos comuns; a tomada da rua, sempre num
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clima de alegria e não‑violência, sem pedir autorização às autoridades (como é obrigatório em Espanha), etc. Um “novo clima social”, como lhe chamamos para o distinguir de um movimento ou de uma organização, liberta por todo o lado possibilidades de ação, atravessando a sociedade inteira como uma corrente descontínua no tempo e no espaço. Às vezes mais visível, expressando‑se em enxames e marés que tomam massivamente a rua. Às vezes subterrânea, encarnada em mil iniciativas formais e informais (famílias, redes de amizade, relações de vizinhança) arreigadas na vida quotidiana. Este “clima 15M” contraria ou atenua os efeitos da “estratégia do choque” analisada por Naomi Klein. Em vez da guerra de todos contra todos e do “salve‑se quem puder”, intensifica‑se a dimensão “comum” da existência: a solidariedade, o apoio mútuo, o vínculo social, a empatia. Em vez da docilidade, da resignação e das narrativas culpabilizantes, ativa‑se a vontade de fazer, de protestar, de se organizar. Podemos observar melhor esta última a partir de três “realizações concretas” do 15M: Em primeiro lugar, põe‑se em crise a legitimidade da arquitetura política e cultural que imperou em Espanha desde a transição pós‑franquista (monarquia, Constituição, Parlamento, sistema de partidos, imprensa, banca...). Ou seja, percebe‑se que o sistema político não funciona como proteção contra os perigos contemporâneos, mas antes os encobre ou está até na sua origem. Em segundo lugar, transforma‑se a perceção e a sensibilidade a nível social. O caso que mais se destaca é o drama dos despejos: dezenas de milhares de pessoas que não conseguem assumir a tempo o pagamento dos empréstimos que contraíram e são expulsas das suas casas. Antes de 2011, os despejos não eram vistos, não eram sentidos, não eram recusados, mas depois do 15M tornam‑se visíveis, são percebidos como intoleráveis e age‑se contra eles (e não só ativistas e militantes, mas também juízes, jornalistas, e também bombeiros, serralheiros ou polícias que se negam a participar neles).
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Por último, o clima 15M neutraliza a emergência de fascismos e micro‑fascismos. (...) A narrativa dos 99% contra o 1% faz com que o inimigo seja procurado não nos imigrantes ou nos mais pobres (“improdutivos”, “preguiçosos”, etc.), mas sim nas oligarquias políticas e económicas. Como se conseguiu tudo isto? O 15M não tem qualquer “poder” (físico, quantitativo, institucional ou económico), mas sim “força”. Uma força sensível, capaz de alterar as correntes subterrâneas do desejo social e redefinir a realidade: o possível e o impossível, o digno e o indigno, o importante e o supérfluo.
Impasse Em finais de 2013, começa a sentir‑se muito claramente um “esfriar” do clima 15M. A energia estagna. Os espaços organizados tornam‑se inabitáveis a não ser para os ativistas full time. As ações perdem eco, as palavras ressonância. Repetem‑se linguagens e gestos, que se tornam identidades. O imprevisível torna‑se previsível. O movimento afrouxa, passa a ser reivindicativo e nostálgico. O que se passa? Trata‑se de um momento complexo e ainda por pensar, embora a agudeza das perguntas que nos coloca nos deixe sem alento: que obstáculos encontramos, dentro e fora de nós próprios, que não soubemos trabalhar? Uma pluralidade de fatores explicam o impasse, mas por agora vamos assinalar apenas dois: No exterior, o “teto de vidro”: as marés chocam contra um muro (o fechamento do sistema de partidos a qualquer mudança), mas esse muro não cede. Não há mudança tangível na orientação geral das políticas macro: continuam os despejos, os cortes, as privatizações, os ajustes... No interior, nos movimentos das praças, há elementos de uma nova politização, mas na prática faltam‑lhes linguagens, mapas ou bússolas próprias e adequadas, e são tolhidos pelo peso de heranças ideológicas do passado (formas de organização, esquemas mentais de referência, etc.).
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Ganhámos mas perdemos Na crise de imaginação dos movimentos pós‑15M, a via eleitoral parece colocar‑se como o único caminho possível para sair do impasse e quebrar o “teto de vidro”. Aproveitando o deslocamento geral do sentido comum gerado pelo clima 15M, trata‑se de conquistar os votos do descontentamento e alcançar o poder político. O Podemos primeiro, e depois as candidaturas municipais, catalisam nesta direção (de formas e estilos diferentes) a insatisfação e o desejo de mudança. (...) O êxito fulgurante dos novos dispositivos eleitorais teve um grande impacto: enquanto o Podemos ameaça romper definitivamente com o bipartidismo instalado em Espanha durante três décadas, as candidaturas municipais já alcançaram o poder político em importantes cidades espanholas como Madrid, Barcelona, Santiago, Corunha ou Saragoça. Isto demonstra que a fresta aberta pelo 15M é muito mais profunda do que se pensava à primeira vista. Como ler este processo, esta passagem? A minha leitura e perceção é ambivalente: ganhámos mas perdemos. Ganhámos porque se baralhou um mapa eleitoral que parecia imutável, ampliando assim o possível. (…) Perdemos, no sentido em que reinstalaram no imaginário social as lógicas da centralização, delegação e representação que foram questionadas pelo impulso 15M. O acontecimento 15M estendeu a toda a sociedade, como se explicou atrás, uma espécie de “segunda pele”: uma superfície muito sensível, afirmativa, sempre em movimento e metamorfose; um espaço altamente condutor, de onde as iniciativas proliferavam e ressoavam sem remeter a nenhum centro unificador; um novo clima social, por onde circulavam correntes imprevisíveis de afeto e energia. Pois bem, a força centrípeta eleitoral dobrou essa “segunda pele” num “volume teatral”, organizado em torno das divisões dentro/fora, plateia/palco, atores e espectadores. Dito muito esquematicamente: um tipo de política muito retórica, centrada em líderes, intelectuais e especialistas, polarizada em torno de espaços e tempos privilegiados (os partidos, as eleições) e muito focada na conquista da opinião
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pública no plano mediático substituiu um tipo de política muito mais baseado na ação, ao alcance de qualquer um, desenvolvida em espaços e tempos muito heterogéneos (autodeterminados e colados à materialidade da vida) e que se dirige ao outro, não como um votante‑espectador, mas como um cúmplice, um igual. Em nome da “eficácia”, da “janela de oportunidade” da “urgência histórica”, da “tomada do poder”, etc., passámos de atores da política quotidiana (nas praças ou nas marés) a espectadores, mais uma vez, do teatro da representação. Um teatro com novas peças e atores, novos cenários e guiões, sem dúvida muito melhor do que o velho, mas ao fim e ao cabo teatro. Aquilo que fica fora do teatro torna‑se invisível ou desvalorizado: os movimentos são, no melhor dos casos, interpretados como simples “portadores de exigências” a serem ouvidas, articuladas ou sintetizadas por alguma instância superior (partido ou Estado), perdendo‑se assim de vista a sua capacidade de criação de mundo aqui e agora. Se se prolongarem, os efeitos desta reposição do verticalismo político serão seguramente desoladores: passivização e delegação geral, desertificação e esvaziamento da multiplicidade, desvitalização da política, etc. Mas o facto de o 15M estar agora eclipsado não significa que esteja desaparecido. (...)
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© Amador Fernández‑Savater. Este texto pode ser copiado e distribuído livremente, com ou sem fins comerciais, com ou sem obras derivadas, sempre que se mantenha esta nota. tradução espanhol/português: Joana Frazão Excerto do texto La Política de los Despolitizados, de Amador Fernández‑Savater, versão integral aqui: anarquiacoronada.blogspot.pt/2016/05/la‑politica‑de‑ los‑despolitizados.html (em espanhol)
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DILAR DIRIK Revolução de Rojava “Quando vieram pela primeira vez a nossa casa, há uns anos, perguntar se a nossa família gostaria de participar nas comunas, atirei‑lhes pedras para os manter à distância”, ri‑se Bushra, uma jovem de Tirbespiye, Rojava. Mãe de dois filhos, pertence a uma seita religiosa ultraconservadora. Antes, não era autorizada a sair de casa e costumava cobrir o corpo todo, à exceção dos olhos. “Agora construo ativamente a minha própria comunidade”, diz ela com um sorriso orgulhoso e radiante. “As pessoas vêm ter comigo à procura de ajuda para resolver questões sociais. Mas se na altura me tivessem perguntado, eu nem saberia o que queria dizer ‘conselho’, ou o que se faz nas assembleias.” Hoje em dia, por todo o mundo, as pessoas recorrem a formas alternativas de organização autónoma para voltar a dar sentido à sua existência, para refletir o desejo da criatividade humana de se exprimir enquanto liberdade. Estes coletivos, comunas, cooperativas e movimentos de base podem ser caracterizados como mecanismos populares de autodefesa contra a ingerência do capitalismo, do patriarcado e do Estado. Ao mesmo tempo, muitos povos, culturas e comunidades indígenas que enfrentavam a exclusão e a marginalização têm protegido até hoje os seus modos de vida comunitários. É impressionante que as comunidades que têm protegido a sua existência contra a ordem mundial que evolui à sua volta sejam muitas vezes descritas em termos negativos, como se lhes “faltasse” qualquer coisa — nomeadamente, um Estado. As tendências positivistas e deterministas que dominam a historiografia atual tornam essas comunidades inusitadas, incivilizadas, atrasadas. Parte‑se do princípio que o Estado é uma consequência inevitável da civilização e da modernidade; um passo natural no progresso linear da história. Há, sem dúvida, algumas diferenças genealógicas e ontológicas entre as comunas revolucionárias “modernas” — à falta de palavra melhor — e as comunidades naturais e orgânicas. As primeiras desenvolveram‑se principalmente nos círculos radicais de sociedades capitalistas como revolta
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contra o sistema dominante, enquanto as segundas constituem uma ameaça aos poderes hegemónicos em virtude da sua mera sobrevivência. Ainda assim, não podemos dizer que estas comunas orgânicas sejam não‑políticas, por oposição às comunas metropolitanas com as suas políticas intencionais e orientadas para objetivos. Séculos, talvez milénios de resistência contra a ordem mundial capitalista são, de facto, atos muito radicais de desafio. Para estas comunidades, relativamente intocadas pelas correntes globais devido aos seus traços característicos, geografia natural ou resistência ativa, a política comunitária é simplesmente uma parte natural do mundo. É por isso que muitas pessoas em Rojava, por exemplo, onde está em curso uma transformação social radical, se referem à sua revolução como “um regresso à nossa natureza” ou “a reconquista da nossa ética social”. Ao longo da história, os curdos sofreram todo o tipo de negação, opressão, destruição, genocídio e assimilação. Foram excluídos da ordem estatal em duas frentes: não só lhes foi negado um Estado próprio, como foram simultaneamente excluídos dos mecanismos das estruturas estatais à sua volta. No entanto, essa experiência também ajudou a proteger muitos valores e éticas societais, bem como um sentido de comunidade — especialmente nas aldeias rurais e montanhosas, longe das cidades. Até hoje, as aldeias curdas‑alevitas, em particular, caracterizam‑se por processos de procura comum de soluções e por rituais de reconciliação para disputas sociais que se baseiam na ética e no perdão para benefício da comunidade. Mas se esta forma de vida é bastante frequente no Curdistão, há também um novo esforço consciente para estabelecer um sistema político centrado em valores comunitários — o sistema do Confederalismo Democrático, construído através da autonomia democrática com a comuna no seu cerne.
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Confederalismo Democrático em Rojava O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), como muitos movimentos de libertação nacional, pensou inicialmente que a criação de um Estado independente seria a solução para a violência e a opressão. No entanto, com o mundo em mudança depois do colapso da União Soviética, o movimento começou a desenvolver uma autocrítica fundamental, bem como uma crítica da política socialista dominante dessa época, que ainda estava muito concentrada em tomar o poder estatal. No final dos anos 90, o PKK, sob a liderança de Abdullah Öcalan, começou a articular uma alternativa ao Estado‑nação e ao socialismo de Estado. Ao estudar a história do Curdistão e do Médio Oriente, bem como a natureza do poder, o atual sistema económico e as questões ecológicas, Öcalan chegou à conclusão de que a razão para o “problema de liberdade” da humanidade não era a ausência de Estado, mas sim a sua emergência. Numa tentativa de subverter a dominação do sistema que se institucionalizou por todo o planeta ao longo de um período de 5000 anos enquanto síntese de patriarcado, capitalismo e Estado‑nação, este paradigma alternativo baseia‑se exatamente no contrário — emancipação das mulheres, ecologia e democracia de base. O Confederalismo Democrático é um modelo social, político e económico de autoadministração de diferentes povos, liderado por mulheres e jovens. Procura expressar na prática a vontade do povo, vendo a democracia como um método e não como um objetivo por si só. É a democracia sem o Estado. Apesar de propor novas estruturas normativas para estabelecer um sistema político consciente, o Confederalismo Democrático também se inspira em formas milenares de organização social que ainda existem entre as comunidades no Curdistão e fora dele. Este modelo pode parecer rebuscado à nossa imaginação contemporânea, mas na verdade vai ao encontro do forte desejo de emancipação entre os diferentes povos da região. Apesar de o sistema ter sido implementado em Bakur (Norte do Curdistão) há anos, dentro dos limites da repressão de Estado turco, foi em Rojava (Oeste do Curdistão)
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que emergiu uma oportunidade histórica para pôr em prática o Confederalismo Democrático. O sistema coloca a “autonomia democrática” no seu cerne: as pessoas organizam‑se diretamente sob a forma de comunas e criam conselhos. Em Rojava, este processo é facilitado pelo Tev‑Dem, o Movimento para uma Sociedade Democrática. As comunas são compostas por bairros conscientemente auto‑organizados e constituem o aspeto mais essencial e radical da prática democrática. Têm comités a trabalhar em diferentes questões como paz e justiça, economia, segurança, educação, mulheres, juventude e serviços sociais. As comunas enviam delegados eleitos aos conselhos. Os conselhos de aldeia enviam delegados às vilas, os conselhos de vila enviam delegados às cidades e assim sucessivamente. Cada uma das comunas é autónoma, mas estão ligadas entre si por uma estrutura confederada para efeitos de coordenação e salvaguarda de princípios comuns. Só quando os problemas não conseguem ser resolvidos na base, ou quando transcendem as preocupações dos conselhos de nível inferior, é que são delegados para o nível seguinte. As instâncias “superiores” têm de responder perante as “inferiores” e prestar contas das suas ações e decisões. Se as comunas são o lugar onde se resolvem problemas e se organiza a vida quotidiana, os conselhos criam planos de ação e políticas de coesão e coordenação. No início da revolução, e nas áreas recentemente libertadas, as assembleias tiveram primeiro de erigir conselhos populares, e só depois começaram a desenvolver as estruturas organizacionais de base mais descentralizadas, sob a forma de comunas. As comunas trabalham no sentido de uma sociedade “político‑moral” constituída por indivíduos conscientes que compreendem o modo de revolver questões sociais e que se ocupam do autogoverno quotidiano como uma responsabilidade comum, em vez de se submeterem a elites burocráticas. Tudo isto depende da participação voluntária e livre das pessoas, por oposição à coerção e ao Estado de direito. Como é evidente, é difícil ampliar a tomada de consciência da sociedade num curto período de tempo, especialmente em
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lugares onde as condições de guerra, embargos, mentalidades arraigadas e antigas estruturas despóticas foram profundamente institucionalizadas, e podem levar a abusos de poder e a um modo de pensar apolítico. Um sistema educativo alternativo, organizado em academias, procura promover uma mentalidade social saudável, ao mesmo tempo que a auto‑organização reproduz na prática uma sociedade consciente, mobilizando‑a em todas as esferas da vida. (…) Hoje, o movimento de liberdade curdo reparte o poder igualitariamente entre uma mulher e um homem, de Qandil a Qamishlo a Paris. A ideia por trás do princípio da copresidência é ao mesmo tempo simbólica e prática — descentraliza o poder e promove a busca de consensos, ao mesmo tempo que simboliza a harmonia entre mulheres e homens. Só as mulheres têm o direito de eleger a copresidente, enquanto o copresidente é eleito por toda a gente. As mulheres organizam as suas próprias estruturas, mais forte e mais ideologicamente conscientes, caminhando no sentido de uma confederação de mulheres, começando com comunas autónomas de mulheres.
O princípio da nação democrática Outro princípio importante articulado por Öcalan é o da “nação democrática”. Ao contrário da doutrina monista do Estado‑nação, que se justifica através de um mito machista, este conceito concebe uma sociedade baseada num contrato social comum e em princípios éticos fundamentais como a igualdade de género. Assim, todos os indivíduos e grupos, todas as identidades e tendências étnicas, religiosas, linguísticas, de género e intelectuais, podem expressar‑se livremente e acrescentar diversidade a esta nação inclusiva e baseada na ética, de modo a assegurar a sua democratização. Quanto mais diversa a nação, mas forte a sua democracia. Os diferentes grupos e secções também estão encarregados de se democratizarem a partir de dentro.
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Em Rojava, curdos, árabes, cristãos sírios, arménios, turcomanos e tchetchenos tentam criar uma nova vida juntos. A mesma lógica está subjacente ao projeto do Partido Democrático dos Povos, ou HDP, do outro lado da fronteira, na Turquia. O HDP agregou todas as comunidades da Mesopotâmia e Anatólia sob a égide da “união livre” na nação democrática. Entre os seus deputados contam‑se curdos, turcos, arménios, árabes, assírios, muçulmanos, alevitas, cristãos e iazidis — uma maior diversidade do que qualquer outro partido no Parlamento turco. Em contraste com o monopolismo da ideologia do Estado‑nação, o conceito da nação democrática serve como mecanismo ideológico de autodefesa de povos diversos. (...)
Uma visão económica e política alternativa O eficaz sistema de auto‑organização, combinado nalguma medida com o embargo, que exigiu autossuficiência e portanto alimentou a criatividade, pouparam Rojava à corrupção económica através de uma mentalidade capitalista interna ou de uma exploração externa. Contudo, de modo a defender valores revolucionários para lá da guerra, é necessária uma visão económica calibrada para uma economia socialmente justa, ecológica e feminista, que possa sustentar uma população empobrecida, traumatizada e brutalizada. Como envolver os ricos, que não se interessam por cooperativas, e evitar ser acusado de autoritarismo? Como organizar os princípios de emancipação e libertação na urgência da guerra e de uma economia de sobrevivência? Como descentralizar a economia sem deixar de assegurar a justiça e a coesão revolucionária? Para as pessoas de Rojava, a resposta está na educação. “O que significa para ti ecologia?”, pergunta às suas companheiras uma mulher na academia de mulheres de Ishtar, em Rimelan, numa sala decorada com fotografias de mulheres como Sakine Cansiz e Rosa Luxemburgo. Uma mulher mais
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velha, com tatuagens tradicionais nas mãos e no rosto, responde: “Para mim, ser mãe significa ser ecológica. Viver em harmonia com a comunidade e a natureza. As mães sabem melhor que ninguém como manter e organizar esta harmonia.” Talvez a questão ecológica seja a que ilustra mais claramente o dilema de Rojava, o de possuir grandes princípios e intenções, bem como a vontade de sacrifício, mas faltarem‑lhe as condições para implementar estes ideais. Por razões óbvias, a sobrevivência tem muitas vezes prioridade sobre o ambientalismo. Pelo menos por agora, é possível falar de um sistema dual de transição, em que a autoadministração democrática de Rojava estabelece princípios revolucionários e ecológicos, conduzindo‑os cuidadosamente no meio da guerra e da realpolitik, enquanto o movimento de bases organiza a população a partir de baixo. A nível cantonal, especialmente no que diz respeito a questões de política externa, as práticas centralistas ou pelo menos não‑revolucionárias são em certa medida inevitáveis, especialmente porque, política e economicamente, Rojava está entre a espada e a parede. Quando falam da “revolução de Rojava”, as pessoas referem‑se em geral ao sistema de autonomia democrática que surge da base. A dinâmica descentralizadora da organização de bases, sobretudo nas comunas, serve até de oposição interna aos cantões e facilita a democratização destes últimos, que, devido à sua complicada geografia política — limitada ainda mais por partidos e grupos não‑revolucionários no seu interior — podem tender para a concentração do poder (apesar de os cantões, tal como existem atualmente, serem ainda bastante mais descentralizados e democráticos do que os Estados habituais). Muito mais importante do que os mecanismos exatos através dos quais se expressa a vontade popular é o significado e impacto da autonomia democrática nas próprias pessoas. Se eu tivesse de descrever “democracia radical”, pensaria especialmente nas pessoas de classe trabalhadora, nas mulheres às vezes iletradas em bairros que decidiram organizar‑se em comunas e que agora fazem a política ganhar vida (…)
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Em Rojava, a autodeterminação está a ser vivida no aqui e agora, na prática de todos os dias. Milhares de mulheres como Qadifa, mulheres que antes eram completamente marginalizadas, invisíveis e sem voz, agora assumem posições de liderança e moldam a sociedade. Hoje em dia, podem de manhã colher pela primeira vez os seus próprios tomates da terra que, durante décadas, foi colonizada pelo Estado, e à tarde ser juízas no tribunal do povo. Muitas famílias dedicam‑se agora completamente à revolução; em especial aquelas que perderam entes queridos. Muitas casas de família começam lentamente a funcionar como casas do povo (mala gel) que coordenam as necessidades da população: as pessoas entram nas casas umas das outras com os filhos para criticar ou discutir ou sugerir ideias quanto ao modo de melhorar as suas novas vidas. Os temas discutidos ao jantar mudaram. As questões sociais tornaram‑se literalmente sociais, ao tornarem‑se responsabilidade de todos. Cada membro da comunidade se torna um líder. (...)
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tradução inglês/português: Joana Frazão Excerto do texto Rojava Revolution: Building Democracy without the State; versão integral aqui: roarmag.org (em inglês)
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Durante a temporada 2016/2017, o Teatro Maria Matos irá editar seis cadernos de textos do ciclo Utopias, dedicados a cada uma das partes: Arquipélago da Resiliência 1/6, Arquipélago das Diversidades 2/6, Arquipélago Comum 3/6, Arquipélago dos Afetos 4/6, Arquipélago Capital 5/6 e Arquipélago Verde 6/6.
w w w.teatromariamatos.pt 218 438 801
SETEMBRO ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╟Æ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╟Æ ║ ╙Æ
HALORY GOERGER E ANTOINE DEFOORT Germinal ● teatro qui 08 e sex 09 ↣ 21h30 MERIJN OUDENAMPSEN Em Defesa da Utopia ● debate e pensamento qui 15 ↣ 18h30 KATE MCINTOSH Mesa de Trabalho ★ Palácio Pombal ● crianças e jovens sáb 17 ↣ 15h às 19h dom 18 ↣ 11h às 13h e 14h às 19h KATE MCINTOSH Worktable ★ Palácio Pombal ● instalação ter 20 a sex 23 ↣ 17h às 20h sáb 24 ↣ 15h às 20h
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OUTUBRO
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PROJETO COLETIVO A PARTIR DE UMA PROPOSTA DE LOÏC TOUZÉ E ANNE KERZERHO À Volta da Mesa: para um imaginário do gesto ★ Palácio Pombal ● performance sáb 01 e dom 02 ↣ 17h30 ╓─── NURSEL KILIÇ E EDA DÜZGÜN ║ ║ Democracia num Lugar ║ ║ Improvável ║ ║ ● debate e pensamento ║ ╙ Æ ter 04 ↣ 18h30 ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ
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EDIT KALDOR Web of Trust ● performance qui 06 e sex 07 ↣ 21h30 PROJETO D’AJUDA ★ Largo do Cantinho, Bairro 2 de Maio ● debate e pensamento dom 16 ↣ 10h30 às 15h HELENA INVERNO E VERÓNICA CASTRO Um Elefante na Sala ANA BORRALHO, JOÃO GALANTE E ROBERTO FRATINI SERAFIDE Arte e Participação ● debate e pensamento dom 16 ↣ 17h30 VASCO MENDONÇA, KRIS VERDONCK, DIMITRI VERHULST, LOD MUZIEKTHEATER E ORQUESTRA GULBENKIAN Bosch Beach ● ópera qui 20 e sex 21 ↣ 21h30 JAVIER TORET E AMADOR FERNÁNDEZ‑SAVATER Democracias de Base — O Caso Espanhol ● debate e pensamento dom 23 ↣ 17h30 Encontro com Javier Toret ★ Palácio Pombal ● debate e pensamento seg 24 ↣ 18h30 CHRISTOPHE MEIERHANS A Hundred Wars to World Peace ● performance sáb 29 e dom 30 ↣ 19h30