Ciclo UTOPIAS - reader Arquipélago Verde

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DEBATE E PENSAMENTO, FILMES, WORKSHOPS, TEATRO E DANÇA maio a julho 2017

ARQUIPÉLAGO

VERDE

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textos: Ailton Krenak, Urândia Aragão, António Pinto Ribeiro, Pedro de Niemeyer Cesarino e Eduardo Viveiros de Castro

curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter

U TO P I A S


Imagem de satĂŠlite de onda de incĂŞndios nas Pampas, Argentina Fonte: Earth Observatory, NASA



setembro ↣ outubro 2016

6 ARQUIPÉLAGO DA RESILIÊNCIA

olhou para o regresso da imaginação política nos movimentos sociais que têm irrompido um pouco por todo o mundo nos últimos anos. novembro ↣ dezembro 2016

6 ARQUIPÉLAGO DAS DIVERSIDADES

partiu da crise dos refugiados para revisitar os problemas e as oportunidades da sociedade diversa. janeiro ↣ fevereiro 2017

6 ARQUIPÉLAGO COMUM

revisitou os muitos projetos utópicos surgidos dos comunismos e anarquismos que nasceram no início do século XX. março 2017

6 ARQUIPÉLAGO DOS AFETOS

deu a palavra aos muitos que estão a repensar a política como uma atividade também afetiva. março ↣ abril 2017

6 ARQUIPÉLAGO CAPITAL

centrou­‑se nas forças imaginativas e destrutivas do capitalismo. maio ↣ julho 2017

> ARQUIPÉLAGO VERDE

foca­‑se no imaginário utópico mais influente da atualidade, surgido da necessidade incontornável de manter o planeta viável.


Durante a temporada 2016­‑2017, dedicámo­‑nos a pensar várias práticas, discursos e ideias capazes de inspirar novas utopias. Agora que se aproxima do fim, o ciclo UTOPIAS foca­‑se naquela que será provavelmente a motivação mais forte dos nossos dias para re­‑imaginar um pensamento utópico: a necessidade urgente de encontrar um equilíbrio duradouro entre a atividade humana e os limites ecológicos do planeta. No Arquipélago Verde, focamo­‑nos no legado, no conhecimento e nas práticas dos povos indígenas da América Latina, cuja luta contra a opressão, a exploração e a destruição do meio ambiente se tornou numa influência para pensadores e ativistas por todo o mundo. Recuperar o paradigma ameríndio é perspetivar o humano como apenas uma das partes que compõem um complexo ecossistema de plantas, animais e ambientes. Esta visão, que oferece uma alternativa à tradição ocidental em que o humano é colocado acima da natureza, é tida por cada vez mais pessoas como vital para um futuro ecologicamente inclusivo para a humanidade e o planeta. Neste caderno de textos, Ailton Krenak, carismático líder indígena, começa por interrogar a nossa relação de predação com a Terra, mostrando como tem provocado a destruição não apenas do mundo mas também das pessoas, impelindo­‑nos a entrar numa dança que faça mudar este rumo. Em entrevista, a coreógrafa portuguesa Urândia Aragão discorre sobre o que deu origem à sua peça Artigo 19, que, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, se refere à liberdade de expressão e opinião, independentemente de qualquer tipo de fronteiras — sejam elas mentais ou traçadas sobre um mapa. Uma reflexão que nos convida a pensar sobre o lugar que temos dado à existência de outras formas de sociabilização, que se posicionam de forma radical em relação à nossa forma ocidentalizada de conceber o mundo e, nele, o lugar e a ação dos seres humanos. António Pinto Ribeiro, em A queda do pájaro, a partir da peça Pájaro da dramaturga chilena Trinidad Gonzalez, olha para um pássaro­ ‑homem que interrompe o convívio de um grupo de artistas e intelectuais. Traça assim uma ponte entre as pequenas segregações com que facilmente pontuamos o nosso

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quotidiano e a exigência do encontro com as culturas indígenas — culturas que até agora nos têm sido estranhas, apesar dos séculos de contacto provocados pelos processos de colonização. Pedro de Niemeyer Cesarino, antropólogo, no ensaio O “meio ambiente” e o problema do desenvolvimento para as populações indígenas, começa por nos exortar a reconhecer outras formas de conhecimento, diferentes das que foram forjadas pela civilização ocidental, abordando a importância da escuta dos saberes indígenas no que diz respeito à proteção da floresta e à compreensão da relação recíproca entre as atividades e a qualidade da vivência humana e o estado da Terra. Por fim, com o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, em Os involuntários da pátria, convidamos o leitor a entrar numa reflexão que esteve na base da preparação deste programa: que a palavra Indígena se refere, não a um Outro, longínquo e exótico, mas à possibilidade de tomada de uma posição política que nos pode aproximar, mostrando, simultaneamente, o quanto nós, Ocidentais, com as nossas práticas colonizadoras, estamos, para o bem e para o mal, implicados nas questões indígenas.

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No Arquipélago Verde, voltamos ao debate sobre a ecologia, um assunto que convoca todos os imaginários, saberes e intuições em prol da necessidade de mantermos o planeta Terra viável — para que não tenhamos somente nas mãos um mundo que se “desfaz em ruínas”, citando a apresentação de Blessed, da coreógrafa Meg Stuart. Abrimos espaço a vozes e perspetivas que estiveram abafadas nos últimos séculos, no conjunto de encontros intitulado Questões indígenas: ecologia, terra e saberes ameríndios, realizado no âmbito de Passado e Presente, Lisboa — Capital Ibero­‑Americana da Cultura 2017. Escutaremos formas milenares de conviver que surgem de uma visão do mundo na qual o homem não detém a primazia sobre os outros seres vivos ou não­‑vivos, em que não existe uma separação rígida entre natureza e cultura, nem entre animal e humano, como evoca a peça Pájaro, da dramaturga chilena Trinidad González. Nas vivências indígenas, o mundo real e o mundo onírico formam uma unidade e a língua não é apenas expressão humana, como também expressão de uma ligação particular com a Terra. Esta experiência interligada e criativa das coisas e dos seres do mundo traz­‑nos saberes sobre a conservação do planeta e dos seus recursos dos quais temos estado afastados porque, nos últimos séculos, outro foi o nosso projeto político e económico. As questões indígenas, tanto as suas propostas éticas e políticas, como as suas lutas pela existência e autodeterminação, não nos são alheias, embora pouco ou nada a sociedade forjada no ocidente lhes tenha reconhecido o direito à expressão — um direito lembrado na performance Artigo 19, de Urândia Aragão. curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter

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Imagem de satĂŠlite das ĂĄguas contaminadas do Rio Doce, Brasil Fonte: Earth Observatory, NASA


AILTON KRENAK Em busca de uma Terra sem tantos males! Nhanderuvuçu veio à terra e falou a Guayraypoty “Procurem dançar, a terra vai ficar mal...” (citação da narrativa de Criação e Destruição do Mundo, dos índios Apopokuva­‑Nhandeva)

Nossa Terra, como a conhecemos hoje, já foi destruída várias vezes, em algumas destas, sem a nossa ajuda. É o que dizem dezenas ou até centenas de narrativas, histórias sagradas de nossos ancestrais. Olhando bem de perto, notamos que alguma pequena ajuda sempre foi dada por alguns de nossos antepassados. Contrariando uma lei ou norma de conduta que dava segurança ao frágil equilíbrio de nossa instável relação com todos os seres da criação que fazem a teia da Vida neste planeta que chamamos Terra. O sábio Davi Kopenawa Yanomami, no livro recém­ ‑publicado A Queda do Céu, nos reporta algumas destas ruturas. Quando o mundo que Omami criou pela primeira vez para seu povo desabou de seus esteios, foi grande a destruição daquele mundo primevo. Outro Céu e Terra foram criados… novos mandamentos foram passados para seu povo, que deve respeitar as regras de bem viver com todos, todos os seres da criação. Não somente aqueles que reconhecemos como nossa espécie, mas todos. Os seres visíveis a nossos olhos e sentidos, mas também os que não tocamos ou nem atinamos as suas existências. Devem estar nesta indescritível lista aqueles que os cientistas citam como elementos da biodiversidade dos ecossistemas, biomas das mais diversas latitudes do Planeta Terra. Nossos rios, lagos, igarapés, paraná, oceanos, todas as nossas bacias hidrográficas, águas subterrâneas. Nossas montanhas, cordilheiras e serras, nossos vales. Um vale do Rio Doce, ou Watú, para os burum. O Povo Krenak que teve seu território devastado pela fúria dos colonos e desbravadores das florestas deste vale que foi nomeado de Rio Doce, e citado como Vale do Aço, numa

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franca declaração de desprezo pela presença deste caudaloso rio, cheio de vida e abundância que poderia suprir toda a necessidade de alimento para seus ribeirinhos. Mas o aço — ou vil metal — encontrado nas suas entranhas brilhou mais do que suas águas cristalinas aos olhos dos seus novos habitantes. Com este apelido de duvidoso gosto, passou a abrigar todos os empreendimentos mais avançados em tecnologias pesadas e agressivas ao seu entorno, com grande demanda de água, madeira e outras fontes de energia. Gerando muita riqueza para os mercados externos e exportando pobreza para países desenvolvidos. Com nossos governantes sempre a reboque de seus projetos tecnológicos, estes mesmos empreendedores decidiram qual a regulação que suas atividades deveriam sofrer ou se obrigar a cumprir como medida de proteção ao meio ambiente. Já foi exaustivamente repetido que “minério só dá uma vez”. Mas nem por isso deixamos de ser uma economia extrativista de minério, assim como nada foi feito para proteger as florestas nativas. Como lembra Sebastião Salgado, restam somente 5% da cobertura florestal desta grande região. Desde a década de 1990, nosso estado de Minas Gerais tem sido informado sobre a agonia do Rio Doce, chegou mesmo a esboçar alguma ação, mas não passou de anúncios os convênios entre Minas e Espírito Santo para a promoção da malfadada Recuperação da Bacia do Rio Doce. O Watu, este rio índio ou indígena que chamamos de Doce, segue seu destino de rio ofendido e maltratado por gerações de viventes que tiraram de suas águas o que precisaram para viver, leva no corpo as marcas da violência e degradação que os empreendimentos, indústrias, comércio das grandes e pequenas cidades lhe dão em troco de ar puro, saúde e vida. Porque choram então, aqueles que nada fizeram enquanto o Watu agonizava? Lembrando a citação que abre este texto, em que uma das narrativas de um povo indígena assolado pela ganância dos fazendeiros da soja e da cana no Mato Grosso do Sul lembra a todos nós, que esta terra que vivemos é mesmo imperfeita e por isso segue também o seu curso, em busca

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de sua Terra Sem Males ou Yvi Marãey. Viva todos os rios da Terra, todos os viventes! Ailton Krenak é Professor Honoris causa, Universidade Federal de Juiz de Fora e Grãn Cruz da Ordem do Mérito Cultural do Brasil 2015. Publicou O Lugar onde a Terra descansa (2000) na editora ECO­‑Rio e Encontros — Ailton Krenak (2015) na editora Azougue.

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URÂNDIA ARAGÃO Artigo 19.º Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. O nome desta performance, Artigo 19, refere­‑se ao artigo que salvaguarda o direito à liberdade de expressão e opinião na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Como te surgiu este nome e a vontade de trabalhar sobre esta questão? Lembro­‑me de um episódio que aconteceu em outubro de 2015, no aeroporto de Tel Aviv. No checkpoint, perguntaram­‑me de onde vinha e por que motivo estava em Israel? Tinha várias respostas possíveis: turismo religioso, conhecer a cena gay, visitar um amigo bailarino… Dizer a verdade significaria horas de interrogatório, comprometer o projeto e não chegar ao destino, Palestina. Este foi um dos momentos em que esta questão se tornou muito óbvia, no entanto, nessa altura, ainda não sabia que viria a ser matéria de trabalho. No desenrolar do processo de criação, fui recolhendo histórias e testemunhos que revelaram as diversas fronteiras entre os lugares e as pessoas. Ao longo de múltiplos encontros, esta questão tornou­‑se cada vez mais presente e pertinente para mim, os materiais começaram a falar por si, e foi na relação de tensão entre a liberdade de expressão e a liberdade de omissão que a peça começou a surgir. Normalmente, começo os meus projetos a partir de um enunciado, uma intuição, um estímulo, que pode vir de uma dor ou de um enamoramento. Somos feitos de histórias que nos contam e que escolhemos contar. Aparentamos ser fortes, felizes, amados, inteligentes, bem­‑sucedidos, informados, seguros, super­‑humanos, um conjunto de idealizações acerca de nós no mundo, de nós na relação

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com o outro, de nós connosco próprios, camuflando quase sempre medos, inseguranças, frustrações, ansiedades, desejos, fantasias e tristezas. Ao desconhecer a matéria de que somos feitos, agimos muitas vezes de forma mecânica, repetindo padrões sociais, por vezes sem plena consciência de que o fazemos. E como são estas múltiplas camadas de informação que entram em relação com as múltiplas camadas de informação do outro, é quase inevitável o conflito e/ou a não compreensão imediata aquando o encontro. É nesta relação de tensão entre os estereótipos que criamos de nós e dos outros, as máscaras a que queremos corresponder e as máscaras que desejamos que não nos correspondam, que surge o convite à reflexão, rutura e transformação. Tudo isto passa pela capacidade de nos aceitarmos a nós próprios conscientes da condição do que somos num determinado tempo e espaço. Muitas vezes, criticamos o outro, apontamos o dedo ao sistema, ao mesmo tempo que nos servimos dele, não pensando na relação recíproca entre a causa e o efeito. Acredito que, ao aceitarmos quem somos sem julgamento, adquirimos uma maior capacidade de aceitação do outro, tornamo­‑ -nos mais humanos, conscientes, eficazes, assertivos e verdadeiramente ativistas. Nos últimos anos, participaste no projeto 1Space, uma série de residências artísticas que decorreram em Portugal, Palestina, República Democrática do Congo e África do Sul. O que foram estas residências, como influíram no teu trabalho e, em particular, em Artigo 19? De cada vez que penso no ser humano que “sou”, antes e depois desta experiência, digo muitas vezes para mim mesma: “‘granda’ menina, onde é que tu andavas com a cabeça”. Quando te confrontas com realidades sociais, económicas e políticas tão distantes da tua, o questionamento torna­‑se inevitável. Surgem muitas questões acerca de identidade, modos de fazer, sentir e pensar o mundo. Os teus problemas parecem desaparecer. É óbvio que quando regressas a casa eles continuam a existir, mas a forma como te relacionas com eles, muda.

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A oportunidade de integrar o projeto 1Space, permitiu­‑me o contacto com realidades fora do contexto europeu, nas quais as intenções da Declaração Universal dos Direitos Humanos continuam longe de se concretizar, contribuindo fortemente para o aprofundamento da minha pesquisa. A possibilidade de conhecer e dialogar com artistas vindos da Palestina, Croácia, Eslovénia, África do Sul, Burkina­‑Faso, Congo, Síria e Senegal, sobre a forma como o contexto social e político influi nos modos de produção artística, na relação entre a arte e a vida, potenciou o meu crescimento pessoal e profissional. Desta experiência resultou também a colaboração com os artistas Borut Bucinel, Chuma Sopotela e Momar Ndiaye. No teu dossier de trabalho citas Henry David Thoreau, conhecido naturalista, defensor de uma vida próxima da natureza e das florestas e crítico atento às injustiças de estado: I wish to speak a word for nature, for absolute Freedom and Wildness, as contrasted with a freedom and Culture merely civil, — to regard man as an inhabitant, or a part and parcel of Nature, rather than a member of society. [Eu quero dizer uma palavra em prol da Natureza, em prol da absoluta Liberdade e Selvageria, em contraste com a liberdade e a Cultura meramente civil — considerar o homem como habitante, ou uma parte integrante da Natureza, em vez de um membro da sociedade.] Como articulas Artigo 19 com esta relação de pertença à Natureza? Todos sabemos o bem que sabe contemplar e mergulhar no mar, caminhar no campo, na floresta, descansar num jardim: sentimos o desacelerar no corpo, respiramos melhor, ficamos mais calmos, os problemas parecem desaparecer, o resto do mundo parece desaparecer. Experienciamos um estado de amor, contemplação e absoluta liberdade. Como seremos quando estes espaços já não existirem?

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É necessário tempo para renovar e continuar com a cabeça no lugar, para que possas saber quem és, o que te provoca insatisfação e o que te dá prazer. Com isto não quero dizer que não estejamos conectados com a natureza, só que é com uma natureza mais próxima da das hienas e dos abutres. Venham mais pandas e preguiças, por favor! Ela disse: “Sempre sonhei ser cigarra, mas nasci formiga”. Vivemos escravizados pelo trabalho, o tempo disponível para o encontro com amigos, família, amores, para parar e estar sozinho é cada vez menor. Tudo o que consumimos vem da natureza, no entanto, continuamos incessantemente a esgotar os seus recursos. Quando penso na expressão “parte integrante da Natureza” lembro­‑me do mycelium, a mais antiga de todas as redes de comunicação subterrânea, uma inspiração para aquilo a que hoje chamamos de Internet. O mycelium é um corpo vegetativo, uma massa de filamentos ramificados da família dos fungos, tem a característica de conectar todas as árvores entre si, transportando os minerais das mais fortes para as mais fracas, equilibrando assim o ecossistema. Que utopia é esta a do mycelium quando aplicada à espécie humana? O processo de criação desta peça comportou também uma residência no Peru. Ali, vivi sem eletricidade, água corrente, telefone e Internet. Senti o desacelerar, aprendi a interpretar o canto dos pássaros. No meio da selva, é essencial saber escutar todos os animais. Eles avisam­‑te acerca do que está para acontecer, sejam más ou boas novas. É incrível. Reencontras a capacidade de escuta e a tua intuição torna­‑se mais audaz. Aprendi também acerca das plantas e das inúmeras qualidades terapêuticas das mesmas, fiz práticas xamânicas que me ensinaram a operar com diferentes inteligências: racional, emocional e espiritual. Parti de um questionamento acerca dos meus direitos enquanto ser humano, da necessidade de encontrar um outro ritmo de vida, um ritmo em sintonia com o ritmo da Natureza. Ritmo este que contrasta, como Thoreau assinala, com o da cultura meramente civil. Não posso deixar de pensar na desconexão do homem com a natureza, como

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um reflexo da não­‑conexão com ele próprio, com a sua selvageria. Logo, como nos podemos relacionar com a selvageria do outro? Creio que esta é uma questão fundamental quando falamos em direitos e liberdades. Se o teu corpo está contaminado pelo entorno em que vives, em modo bomba­‑relógio, sem tempo para a reflexão, lazer, sem acesso ao conhecimento acerca de ti e do outro, como podemos nos relacionar de uma forma sã entre todos? Urândia Aragão é artista e autora do espetáculo Artigo 19. Entrevista realizada por Liliana Coutinho (Teatro Maria Matos) em março 2017.

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ANTÓNIO PINTO RIBEIRO A queda do pájaro Diz­‑nos a autora e encenadora Trinidad González, que começou a escrita de Pájaro a partir das últimas falas de La reunion 1, a peça imediatamente anterior, quando o rapaz índio fala: “Tenho sorte… poderia ser um pássaro… mas quando estiver voando um de vós vai atirar­‑me uma pedra, porque sim! … E eu vou morrer, porque sim! Rebentado em algum caminho” 2. E continua a encenadora: “O meu nome é pássaro… não sei de onde me veio isto, se sonhei…, não sei; veio­‑me a imagem de um homem com a cabeça a sangrar no meio de pessoas que olham para ele e lhe perguntam: porque te atiraram uma pedra? Porque sim, responde o menino, tinha sido atacado, porque sim!” 3 A queda como figuração tem uma dimensão ontológica, antropológica e política de relevada importância e, por isso, é estruturante nas narrativas míticas que abordam as relações do homem com as suas criações cosmogónicas, com o ambiente, no sentido em que este é pensado como inclusivo dos humanos, dos animais e de todas as vidas orgânicas e é um modo explicativo para a própria humanização. Contudo, está também naquilo que diferencia a diversidade das próprias narrativas conforme a sua origem. Se na mitologia cristã a queda de Lúcifer, o preferido de Deus e o mais belo dos anjos, resulta da sua rebeldia e é causa da sua condenação eterna ao lugar mais inferior de todos os mundos imaginados, no que produz antagonias como o alto e o baixo o bem e o mal, no calendário azteca, o Tonalpohuallo ilustra a regeneração da vida através da queda noturna e ascensão matinal da serpente de duas cabeças que devora e expele o homem. E, naquilo que é o relato de Davi Kopenawa feito ao antropólogo Bruce Albert, 1 Obra de 2010 que foi possível ser vista em Lisboa no Teatro do Bairro em setembro de 2014 inserida na programação do Próximo Futuro 2 Em conversa com o jornalista Marco Antonio de la Parra, in Festival Santiago a Mil, 20 março 2017 3 ibidem

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em A queda do céu — livro sobre o seu encontro com o xamã yanomami —, esta queda é a descrição do descalabro que foi para os índios o aparecimento dos brancos que surgiram como anjos da morte, para utilizar uma metáfora muito eficaz da civilização europeia. Há, no entanto, que notar que apesar de, nesta queda, a punição começar por recair nos índios — as doenças, as mortes, a aniquilação, a perda dos direitos de cidadania universal —, segundo o pensamento ameríndio, a queda estender­‑se­‑á os próprios brancos, à natureza e aos animais, porque neste pensamento a afetação de um qualquer ser vivente é a afetação de toda a humanidade em que se incluem todos os seres naturais. A punição não se dá, pois, como consequência de uma ousadia, como foi a de Ícaro — querendo voar em direção ao sol, desafio aos deuses que lhe valeu ser arrastado e morrer no mar —, mas como resultado da invasão dos estrangeiros conquistadores. A punição age sobre toda a humanidade de seres vivos, o que inclui as árvores e os rios. E, contudo, depois da queda existe a possibilidade de que uma certa humanidade nos seja devolvida. É para isso que aponta a leitura política da obra Pájaro. Trinidad González é uma autora, atriz e encenadora chilena fortemente implicada num teatro político de matriz reflexiva sobre a deceção e a alienação (palavra dela) que surgiu na ressaca de um tempo mais justo, num mundo, diríamos, em que todos, despojados pela ausência de crença, embriagados e sem ritos regeneradores, se encaminham para, tal como os índios empobrecidos e adoentados depois de terem sido desapossados das suas terras e dos seus ritos vivificadores, serem sujeitos a estratégias de alienação. “Somos todos índios” poderíamos afirmar ao ver a peça Fiesta (da mesma autora de 2012) uma reunião de “Gente de esquerda com passado de peso, militante, humanista e que por quaisquer razões deixou de acreditar que vive no vazio” 4, uma reunião em que o formato é de festa mas uma festa para a qual os seus participantes não encontram sentido enquanto a mesma decorre. 4 ibidem

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Em Pájaro, é também um grupo de intelectuais, artistas, num ambiente de excesso de bebida, que se reúne para conversar sobre a arte, mas a conversa é disruptiva, com muita rigidez e dogmatismo e nela está ausente qualquer otimismo. Não será por acaso que é neste ambiente artístico e intelectual desesperado e conflituoso que um ser estranho e que recusa ter nome vai cair. Num primeiro momento, a sua queda potencializa a conflitualidade, já que este se recusa a aceitar a lógica de um discurso que exalta a produtividade em desfavor de um uso mais vivido do tempo, porque ele próprio privilegia o nomadismo em desfavor da segurança e da vigilância e é percecionado como um espírito demasiado leve que incomoda pelo que diz. Aos olhos dos seus anfitriões, o pájaro, único nome de que se reclama, é um despojado, mas, como nos livros de Gabriela Llansol, é um pobre que no seu despojamento virá a ser rico. E este despojamento é uma das razões do desacordo com os seus interlocutores, pese embora a presença do pássaro e a sua estranheza lhes provoque uma inquietação tão temível quanto esperançosa. Restará saber o que fazer e como fazer com ela. António Pinto Ribeiro é professor, ensaísta e coordenador da programação de Passado e Presente — Lisboa, Capital Ibero­‑americana da Cultura 2017

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PEDRO DE NIEMEYER CESARINO O “meio ambiente” e o problema do desenvolvimento para as populações indígenas Questões referentes às demarcações de terras indígenas — paralisadas pelo atual governo — ocupam com frequência as páginas do noticiário brasileiro. Nas últimas semanas, por exemplo, o presente titular do Ministério da Justiça disse expressamente que “terra não enche barriga de ninguém”, dando a entender assim que o processo de demarcação não é uma de suas prioridades. Situações como essa acontecem periodicamente no Brasil e são particularmente importantes para verificar a persistência de uma constante nos pressupostos dos brancos sobre índios. Tais pressupostos baseiam­‑se na ideia que os “índios”, essa categoria genérica, são justamente desprovidos de pressupostos intelectuais devem ser considerados como uma obsolescência em meio à modernidade industrial. Por supostamente não possuírem pressupostos intelectuais e formas próprias de vida, os “índios” podem então ser julgados a torto e a direito. As afirmações descabidas provenientes do senso comum, que atravessam setores diversos da intelligentsia e da política nacional, sejam estes de esquerda ou de direita, governistas ou não, ainda repousam sobre uma infeliz base positivista e evolucionista. Ao discorrerem sobre os conhecimentos da floresta, os antropólogos Mauro Almeida e Manuela Carneiro da Cunha refutam esses argumentos antigos e criminosos, ainda hoje usados para escamotear os reais interesses exploratórios: Dizer que a observação é posta a serviço de práticas não significa que se reduza a elas. Tão pouco discutido quanto os que vigoram em outras sociedades é, na nossa, o pressuposto da racionalidade econômica. Credita­‑se assim o saber tradicional ao simples apetite de comida. Mas as populações pesquisam e especulam sobre a natureza muito além do que seria necessário ou racional do ponto de vista econômico. Há um

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“excesso” de conhecimentos somente justificado pelo mero prazer de saber, pelo gosto do detalhe e pela tentativa de ordenar o mundo de forma intelectualmente satisfatória. Dentre os apetites, o apetite do saber é dos mais poderosos (2002: 13). Pretendo aqui, de modo bastante breve, mostrar como julgamentos apressados e equivocados (para não dizer perniciosos) sobre sociedades indígenas não apenas as distorcem e jogam cortinas de fumaça sobre as reais questões em jogo, como arriscam minar as pontes para uma interlocução entre os pontos de vista indígenas e não­‑indígenas sobre os processos de mudança, alteração e, como dizemos nós, de desenvolvimento. Ora, o frequentemente pretendido desenvolvimento da região amazônica não pode ser realizado de modo unilateral, sem considerar os pontos de vista dos povos que não ocupam propriamente a floresta, mas que constituem uma relação complexa com o ambiente. Ainda assim, essa violação explícita e trágica segue ocorrendo com frequência, como se pode constatar pela construção da usina de Belo Monte, no rio Xingu, que não apenas viola os direitos e os modos indígenas de existência, como representa um projeto altamente controvertido do ponto de vista econômico. Mas em que consistiria essa relação complexa com isso que os ocidentais chamam de natureza, uma relação que marca os pensamentos e práticas indígenas de maneira decisiva? É que eles não concebem a natureza como uma esfera exterior à agência humana e passível, portanto, de ser submetida aos seus caprichos e necessidades produtivas, tal como ocorre ao longo da história da modernidade ocidental. Para os pensamentos da floresta, humano não é algo restrito ao que consideramos como “humano” (o Homo sapiens sapiens), mas sim uma qualidade subjetiva distribuída por toda a paisagem. É essa distribuição de subjetividades pela “paisagem” (na falta de um termo melhor) que constitui aquilo que os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro (2002) e Tânia Stolze Lima (1996) chamaram de “perspectivismo”, e que o antropólogo francês Philippe Descola (2005)

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considera como “animismo”. Tal distribuição torna o que tratamos por “paisagem” ou “natureza” um horizonte permeado de equilíbrios, tensões e limites próprios, e não uma tabula rasa inerte e passiva, incondicionalmente submetida à ação da cultura ou da civilização. Isso faz com que os povos da floresta possam colocar o problema do “desenvolvimento” em seus próprios termos, lembrando que, aqui, “humano” não é uma prerrogativa exclusiva à espécie humana detentora da cultura e da civilização, mas uma qualidade subjetiva distribuída por inúmeras posições. É importante ressaltar que, se os termos ameríndios soam “ambientalistas”, não se pode dizer que com isto se pareçam por razões ideológicas ou pós­‑ideológicas, pois pertencem a configurações de mundo anteriores e independentes desta que produziu a própria noção de ideologia, a saber, a ocidental moderna. O antropólogo Bruce Albert (2000: 250) nota com precisão como as reflexões dos Yanomami sobre o ouro e outros metais não são um sintoma de “mudança cultural”, mas sim expressão de uma reflexão tradicional característica das sociedades da Amazônia. Em suas reflexões, o xamã Davi Kopenawa Yanomami dizia o seguinte: O ouro e outros minérios que não conheço, Omama [o demiurgo] encontrou e depois escondeu debaixo da terra para que ninguém mexesse com eles. São coisas que não se comem. Só deixou de fora aquilo que comemos… Esses minérios ninguém os come, são coisas perigosas. Só provocam doenças que se alastram e matam todo mundo, não somente os Yanomami, mas os brancos também (Kopenawa, apud Albert 2000: 249­‑250). Há, portanto, um “metal perigoso” enterrado no fundo da terra pelo demiurgo Yanomami. E sobre a terra já há o suficiente, “as coisas que se comem”. Tal metal é “o ‘pai do minério’, a ‘ossatura da terra’, ‘os pés/raízes do céu’, um tipo de axis mundi [eixo do mundo] metálico”, como nota Albert (2000: 250). Os Yanomami, assim como os Marubo

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e outros povos indígenas, temem o que chamam de uma “epidemia­‑fumaça” tais como as que parecem emitir o ouro e outros metais. É o que escreve Albert: “Enquanto a fumaça do ouro manipulado in situ provoca uma contaminação local, a fumaça das outras matérias­‑primas espalha suas exalações patogênicas (…) até queimar o peito do céu, o qual, sendo atingido em sua essência sobrenatural, morre de epidemia, [tal] como os Yanomami, [tal] como a floresta’” (ibidem: 251­‑252). Davi Yanomami não fala de um mal que atinge apenas o espaço cosmográfico de seu povo, mas que se alastra à urihi pata, “grande floresta, universo”, isto é, ao “mundo inteiro” (idem): Esta fumaça­‑epidemia atinge o “mundo inteiro”… O vento leva­‑a até o céu. Quando chega lá, seu calor queima­‑o pouco a pouco e ele fura. O “mundo inteiro” é então ferido como se estivesse queimado, como um saco de plástico derretendo no calor (Kopenawa, apud Albert 2000: 252). Albert observa como uma metáfora tradicional utilizada para designar a feitiçaria guerreira feita outrora através de fumaça venenosa passa, de um modo bastante eloquente, a servir como “uma tradução xamânica do efeito estufa” (ibidem: 252). Observei a mesma operação entre os Marubo (do Vale do Javari/AM), para os quais a gasolina emite uma “fumaça­ ‑morte” (vei koĩ) similar à utilizada em outros tempos nos ataques de feitiçaria perpetrados pelos antigos. O cenário apocalíptico traçado por Davi Kopenawa é também partilhado por Armando Cherõpapa, um falecido xamã marubo com o qual trabalhei, que coloca o problema em termos similares em suas especulações sobre a gasolina: Se isso acabar, isso que carrega a terra, isso aí que estão pegando e acabando, se acabar o que carrega a terra, é verdade, a terra despenca mesmo. (…) Chama­‑se “gordura da terra”, e o nome de vocês é “gasolina”. (…) A gasolina é forte, fica lá no fundo da terra junto com um osso gigantesco, e assim carrega a terra. Carrega

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a terra ventando muito forte. Mas se acabar — e é do tamanho inteiro da terra —, ela cai, cai mesmo. (…) Existe um rio, um rio mesmo. E embaixo tem um lago gigante do tamanho desta terra onde tudo vai se desmoronando, e as pessoas acabam, tudo acaba, as árvores acabam, todos estes rios acabam, as sucuris todas acabam, os bichos da terra todos acabam, os espíritos desta terra acabam, é porque fazem assim que as pessoas acabam. É verdade, não se deve mesmo mexer nisso, mas eles [os brancos] encontram a gordura e ela acaba, do tamanho inteiro desta terra é esta gordura com a qual estamos acabando e que faz a terra cair, cai mesmo (Marubo 2008: 152­‑153). Se o cataclismo marubo é decorrente da queda da terra, o yanomami ocorre a partir de uma queda do céu. Em ambos os casos, entretanto, acaba­‑se a dimensão inteira de subjetividades (espíritos, pessoas­‑animais, viventes ou humanos, brancos ou não­‑indígenas), e não apenas o que chamamos de “humano”, uma vez que é todo o equilíbrio relacional que se rompe com a extração desmesurada de determinados elementos (gasolina ou “gordura da terra”, ouro, minérios). “Os brancos”, diz Davi Kopenawa, “são apenas engenhosos, eles ignoram o xamanismo, não são eles que poderão segurar o céu…” (apud Albert 2000: 255). E em que consiste esse “xamanismo” que os brancos ignoram? Os xamanismos amazônicos estão baseados em vastas mitologias, nas quais são narradas, entre outros feitos, antigos cataclismos e destruições de mundos e humanidades, mais os sucessivos contatos e relações entretidos pelos antepassados até que o mundo adquirisse sua atual configuração. Mas o xamanismo consiste propriamente em uma operação ou uma atividade sobre o campo ampliado de “humano”. Ou seja, sobre o campo de subjetividades tais como as dos espíritos que, na cosmologia marubo, guardam os pilares que sustentam o tal lago subterrâneo onde repousa a “gasolina” ou “gordura da terra”. Nesta referência,

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a própria natureza que nós consideramos com inerte, objetificada ou desumanizada pode se converter em sujeito e em locutor, capaz de avisar os xamãs sobre perigos iminentes. É assim que explica/traduz mais uma vez Davi Kopenawa: Assim fala Omama [o demiurgo­‑natureza]: “não destruam o lugar onde moram os meus genros [os Yanomami] e meus espíritos!” É assim que a “natureza” fala aos brancos, mas eles não entendem. São surdos e ignorantes. Seu pensamento é perturbado por vertigens. Olham para suas peles/cascas de imagem e aí veem outras coisas: o desenho da escrita das coisas que estão debaixo da terra e que eles desejam, o metal e o ouro. E assim se vangloriam de serem inteligentes (apud Albert 2000: 258). A diferença entre xamãs e não­‑índios é, pois, uma diferença de olhar: brancos que se julgam sabidos têm a rigor “olhar de morto” ou “olhar­‑morte” (vei vero), como dizem os Marubo. “Sabem escrever, mas não sabem pensar”, acrescentam os xamãs do mesmo povo, que possuem desenhos invisíveis gravados em seus peitos, através dos quais podem traduzir o que dizem os espíritos ou subjetividades disso que chamamos de “natureza”. “‘Meio ambiente’”, explicava Kopenawa a Bruce Albert, “é a palavra de outra gente, é uma palavra dos brancos. O que vocês chamam de ‘meio ambiente’ é o que resta do que vocês destruíram’” (ibidem: 259). Kopenawa retraduz para seus próprios termos o que chamamos de “discurso ecológico ou ambientalista”: ao assim fazer, cabe insistir, não está lançando mão de um discurso que aprendeu em sua relação com os brancos, mas sim de estruturas de fundo dos pensamentos ameríndios. São essas estruturas que podem ecoar, por exemplo, nas reflexões de um xamã marubo colega seu, cujo contato com os brancos era bastante intermitente. É a partir destes termos que, ainda de modo pontual, os discursos xamânicos

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tendem a se constituir como discursos políticos diante das intervenções do Estado e de outros setores da sociedade civil organizada, como observa mais uma vez Albert para o caso yanomami (Albert, 2000). Vemos então como os conhecimentos xamânicos são bastante distintos do imaginário moderno, que cola à imagem da natureza inerte a figura de um índio genérico e simplório, a ser confinado em retalhos de floresta ou então absorvido como subalterno nos processos de produção. As “ecologias xamânicas”, tais como as expressadas por Davi Kopenawa e por Armando Cherõpapa, ocorrem em um contexto no qual as transformações, produtos e mercadorias dos brancos são cada vez mais presentes na vida dos povos da floresta. Como compreender tal processo sem lançar mão da falaciosa noção de aculturação ou dos evolucionismos tacanhos, que sustentam o insustentável, isto é, a violação dos direitos originários dos povos indígenas e de seus conhecimentos tradicionais? A ecologia xamânica tem também os seus desafios internos: como se não bastasse a imposição das lógicas de produção pela sociedade não­‑indígena, é também necessário dar conta dos conflitos vividos pela juventude, pelos trânsitos para as cidades, pela miséria e doença, em alguns casos, ou pelo excesso de mercadorias, em outros. A sociedade xikrin mebêngôkre tem vivido grandes e impactantes modificações causadas pela entrada de indenizações oferecidas pela Companhia Vale do Rio Doce, em virtude de suas operações da Floresta Nacional de Carajás. A introdução de grandes e sistemáticas quantidades de dinheiro — o que, veja bem, é coisa rara na maioria das sociedades indígenas do Brasil — seria argumento suficiente para considerar os Xikrin como aculturados ou oportunistas que se valem de sua posição como “indígenas” para adquirir benesses dos brancos e introduzir a “divisão de classes” em sua sociedade? Esse seria o pensamento de má­‑fé ou então uma transposição apressada de processos capitalistas a sociedades radicalmente distintas das nossas. Em seu livro dedicado ao assunto, o antropólogo Cesar Gordon conclui que os Xikrin descobriram que o dinheiro é o

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grande poder transformativo do atual momento histórico. O dinheiro é a grande capacidade de ação e de estabelecer­‑se na posição de sujeito. (…) Sua potência transformativa é imensa, mas precisa ser conduzida e canalizada de maneira que os Xikrin continuem comportando­‑se e reconhecendo­‑se como parentes (2006: 410). A passagem possui termos que, mais uma vez, nos mostram como até mesmo o dinheiro é apreendido a partir de critérios próprios, que passam despercebidos aos olhares desavisados. O dinheiro faz com que os Xikrin assumam posição de sujeito, mas possui uma imensa e arriscada potência transformativa. Pode, no limite, fazer com que os Xikrin deixem de se reconhecer como parentes. O que tudo isso quer dizer? “O dinheiro”, segue Gordon, “pode fazer com que todos virem branco rapidamente, que todos sejam pequenos xamãs” (ibidem). Sim, pois o xamanismo implica um processo de alteração, de assunção de um outro ponto de vista ou subjetividade (cf. Viveiros de Castro, 2002) — a dos brancos, no caso. O dinheiro, continua, “permite que os Xikrin transitem em vários mundos e vejam com a pele de branco e de Mebên­‑gôkre” (idem). Ao assim fazerem, também os Xikrin alterizam­‑se ou transformam­‑se em brancos (e transformação não é o mesmo que aculturação). No limite, é mesmo o seu corpo que se altera pelo contato excessivo com as coisas trazidas pelo dinheiro, entre as quais os alimentos industrializados e suas doenças, tais como obesidade, diabetes e hipertensão. Há limites extremos, tais como os dos jovens que passam a viver exclusivamente em cidades não indígenas (bem como outros, tais como os de cidades que se tornam indígenas e que são reconfiguradas pelas lógicas ameríndias). No primeiro caso, familiar aos Xikrin, nota Gordon, “os parentes começam a se estranhar. Começam a não se reconhecer” (ibidem: 413). A tendência é temida pelos próprios Xikrin, uma vez que os brancos “são outro tipo de gente”; são aquele tipo de gente “que não reconhece os parentes” (ibidem: 414).

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E o processo precisa então ser mediado e controlado através de rituais e elaborações internas, a fim de que essa característica essencial às relações ameríndias, o parentesco, não se perca. A noção (ameríndia) de transformação engloba portanto as mudanças trazidas pelo processo de “desenvolvimento”. É por isso que ela pode também ser usada para traduzir o termo “civilização” em tukano (língua indígena do alto rio Negro), como observa Andrello: A definição de civilização com base no mesmo mecanismo semântico que designa as transformações rituais experimentadas por uma pessoa ao longo da vida sugere também que esta diz respeito a uma transformação que incide sobre a pessoa. (…) Assim como as capacidades manipuladas nesses eventos ditos “tradicionais”, a civilização dos brancos viria a ser alocada sobre o corpo e suas maneiras, pelo domínio da nova língua, pelo uso das roupas e pela incorporação de novos hábitos e comportamentos (2006: 60). Andrello nota bem como os corpos dos indígenas atuais, que atravessaram a catequização sistemática dos salesianos e outras formas de imposição da cultura única, “diferem em alguns aspetos dos de seus antepassados, uma consequência ligada principalmente ao crescente uso da comida dos brancos” (Andrello, 2006: 60). Por conta disso, “a capacidade de memória e a inteligência, atributos igualmente associados ao corpo, também vêm diminuindo com o passar dos anos, e isso é atribuído especificamente ao abandono do uso do alucinogénio caapi (Banisteriopsis caapi)” (idem). Como consequência, os jovens de hoje em dia são mais “tristes e desanimados” do que os de outrora, uma vez que “os nomes pessoais não são atribuídos com o mesmo zelo” (idem). O nome­‑alma, uma vez bem colocado, garante certas capacidades à pessoa tais como robustez e alegria, coisa que parece faltar atualmente aos jovens. A situação é bastante análoga ao caso marubo — seus jovens permanecem muitas vezes em um limbo entre o modus

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vivendi dos antigos e dos brancos das cidades, tornando­‑se melancólicos e, muito frequentemente, doentes. A situação se generaliza para diversos povos indígenas e, em alguns deles, têm como limite o suicídio, tal como entre os Guarani. Vale citar uma última passagem de Davi Kopenawa sobre o problema entre os yanomami: Por isso, quando meu pensamento está triste, às vezes me pergunto se, no futuro, ainda haverá xamãs. Talvez não. Nesse caso, nossos filhos estarão tão confusos que deixarão de ver os espíritos e de escutar seus cantos. Sem xamãs, viverão desprotegidos e perderão o juízo. Passarão seu tempo a vagar entre os brancos. (…) Por isso, nos esforçamos sem trégua para convencer nossos filhos e genros a inalar yãkoana e fazer dançar os espíritos como faziam os nossos antigos. Assim as palavras dos xapiripë [espíritos] jamais se perderão (Kopenawa 2006: 21). A potência transformativa dos xamanismos amazônicos, sua capacidade de retraduzir o novo a partir de premissas próprias, conseguirá dar conta do avanço avassalador desta “civilização”? A atual conjuntura política mostra que, mais uma vez, o desenvolvimento tem sido feito às custas dos outros, à revelia de seus pontos de vista e da capacidade de sustentação da própria floresta. Excerto atualizado do texto CESARINO, Pedro de Niemeyer, “Culturas Múltiplas versus Monocultura”. Lugar Comum (UFRJ), v. 25­ ‑26: 271­ ‑283, 2008. Pedro de Niemeyer Cesarino é Professor de Antropologia da Universidade de São Paulo e autor de estudos sobre xamanismo, cosmologia, tradições orais, tradução e antropologia da arte.

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Albert, Bruce. 2000. “O ouro canibal e a queda do céu. Uma crítica xamânica da econonia política da natureza (Yanomami)”. In B. Albert & A.Ramos (orgs). Pacificando o Branco (Cosmologias do contato no norte­‑amazônico). São Paulo, Editora Unesp/ Imprensa Oficial/ IRD: 239­‑277. Almeida, Mauro & Carneiro da Cunha, Manuela (orgs). 2002. Enciclopédia da Floresta. São Paulo, Companhia das Letras. Andrello, Geraldo. 2006. Cidade do Índio (Transformação e cotidiano em Iauaretê). São Paulo, Editora da UNESP/ NuTI/ ISA. Cesarino, Pedro. 2011. Oniska — poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo, Perspectiva/FAPESP. _________. 2008. “Babel da floresta, cidades dos brancos? Os Marubo no trânsito entre dois mundos”. Novos estudos, 82. Descola, Philippe. 2005. Par­‑delà Nature et Culture. Paris, Gallimard. Gordon, Cesar. 2006. Economia Selvagem (Ritual e mercadoria entre os índios Xikrin­‑Mebengokrê). São Paulo, Editora da UNESP/ ISA/ NuTI. Kopenawa, Davi Yanomami. 2006. “Pensamentos noturnos”. (trad. de Bruce Albert). In B.Ricardo & F.Ricardo (orgs). Povos Indígenas no Brasil. São Paulo, Instituto Socioambiental: 21­‑23. Lima, Tania Stolze. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana 2/2. Marubo, Armando Cherõpapa Txano. 2008. “Depoimento”. Azougue (Edição Especial): 152­‑156. (trad. de Pedro Cesarino). Viveiros de Castro, Eduardo. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo, Cosac & Naify.

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EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO Os involuntários da pátria Hoje os que se acham donos do Brasil — e que o são, em ultimíssima análise, porque os deixamos se acharem, e daí ao serem foi um pulo (uma carta régia, um tiro, um libambo, uma PEC) — preparam sua ofensiva final contra os índios. Há uma guerra em curso contra os povos índios do Brasil, apoiada abertamente por um Estado que teria (que tem) por obrigação constitucional proteger os índios e outras populações tradicionais, e que seria (que é) sua garantia jurídica última contra a ofensiva movida pelos tais donos do Brasil, a saber, os “produtores rurais” (eufemismo para “ruralistas”, eufemismo por sua vez para “burguesia do agronegócio”), o grande capital internacional, sem esquecermos a congenitamente otária fração fascista das classes médias urbanas. Estado que, como vamos vendo, é o aliado principal dessas forças malignas, com seu triplo braço “legitimamente constituído”, a saber, o executivo, o legislativo e o judiciário. Mas a ofensiva não é só contra os índios, e sim contra muito outros povos indígenas. Devemos começar então por distinguir as palavras “índio” e “indígena”, que muitos talvez pensem ser sinônimos, ou que “índio” seja só uma forma abreviada de “indígena”. Mas não é. Todos os índios no Brasil são indígenas, mas nem todos os indígenas que vivem no Brasil são índios. Índios são os membros de povos e comunidades que têm consciência — seja porque nunca a perderam, seja porque a recobraram — de sua relação histórica com os indígenas que viviam nesta terra antes da chegada dos europeus. Foram chamados de “índios” por conta do famoso equívoco dos invasores que, ao aportarem na América, pensavam ter chegado na Índia. “Indígena”, por outro lado, é uma palavra muito antiga, sem nada de “indiana” nela; significa “gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive 1”. 1 “A palavra “indígena” vem do «lat[im] indigĕna,ae “natural do lugar em que vive, gerado dentro da terra que lhe é própria”, derivação do latim indu arcaico (como endo) > latim] clássico in­‑ “movimento para

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Há povos indígenas no Brasil, na África, na Ásia, na Oceania, e até mesmo na Europa. O antônimo de “indígena” é “alienígena”, ao passo que o antônimo de índio, no Brasil, é “branco”, ou melhor, as muitas palavras das mais de 250 línguas índias faladas dentro do território brasileiro que se costumam traduzir em português por “branco”, mas que se refere a todas aquelas pessoas e instituições que não são índias. Essas palavras indígenas têm vários significados descritivos, mas um dos mais comuns é “inimigo”, como no caso do yanomami “napë” , do kayapó “kuben” ou do araweté “awin” . Ainda que os conceitos índios sobre a inimizade, ou condição de inimigo, sejam bastante diferentes dos nossos, não custa registrar que a palavra mais próxima que temos para traduzir diretamente essas palavras indígenas seja “inimigo”. Durmamos com essa. Mas isso quer dizer então que todas as pessoas nascidas aqui nesta terra são indígenas do Brasil? Sim e não. Sim no sentido etimológico informal abonado pelos dicionários: “originário do país etc. em que se encontra, nativo” (ver nota 1, supra). Um colono de “origem” (e língua) alemã de Pomerode é “indígena” do Brasil porque nasceu em uma região do território político epónimo, assim como são indígenas um sertanejo do semiárido nordestino, um agroboy de Barretos ou um corretor da Bolsa de São Paulo. Mas não, nem o colono, nem o agroboy, nem o corretor de valores são indígenas — perguntem a eles… Eles são “brasileiros”, algo muito diferente de ser “indígena”. Ser brasileiro é pensar e agir e se considerar (e talvez ser considerado) como “cidadão”, isto é, como uma pessoa definida, registrada, vigiada, controlada, assistida — em suma, pesada, contada e medida por um Estado­‑nação territorial, o “Brasil”. Ser brasileiro é ser (ou dever ser) cidadão, em outras palavras, “súdito” de um Estado “soberano” , isto é, transcendente. Essa condição de súdito dentro, de dentro” + ­‑gena derivação do rad[ical do verbo latino gigno, is, genŭi, genĭtum, gignĕre “gerar”; Significa “relativo a ou população autóctone de um país ou que neste se estabeleceu anteriormente a um processo colonizador” …; por extensão de sentido (uso informal), [significa] “que ou o que é originário do país, região ou localidade em que se encontra; nativo”. (Dicionário Eletrônico Houaiss)

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(um dos eufemismos de súdito é “sujeito [de direitos]”) não tem absolutamente nada a ver com a relação indígena vital, originária, com a terra, com o lugar em que se vive e de onde se tira seu sustento, onde se “faz a vida” junto com seus parentes e amigos. Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma comunidade de beira­‑rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um “povo”. Ser cidadão, ao contrário, é ser parte de uma “população” controlada (ao mesmo tempo “defendida” e atacada) por um Estado. O indígena olha para baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado transcendente; ele recebe seus direitos do alto. “Povo” só “(r)existe” no plural — povoS. Um povo é uma multiplicidade singular, que supõe outros povos, que habita uma terra pluralmente povoada de povos. Quando perguntaram ao escritor Daniel Munduruku se ele “enquanto índio etc.”, ele cortou no ato: “não sou índio, sou Munduruku”. Mas ser Munduruku significa saber que existem Kayabi, Kayapó, Matis, Guarani, Tupinambá, e que esses não são Munduruku, mas tampouco são Brancos. Quem inventou os “índios” como categoria genérica foram os grandes especialistas na generalidade, os Brancos, ou por outra, o Estado branco, colonial, imperial, republicano. O Estado, ao contrário dos povos, só consiste no singular da própria universalidade. O Estado é sempre único, total, um universo em si mesmo. Ainda que existam muitos Estados­‑nação, cada um é uma encarnação do Estado Universal, é uma hipóstase do Um. O povo tem a forma do Múltiplo. Forçados a se descobrirem “índios”, os índios brasileiros descobriram que haviam sido “unificados” na generalidade por um poder transcendente, unificados para melhor serem desmultiplicados, homogeneizados, abrasileirados. O pobre é antes de mais nada alguém de quem se tirou alguma coisa.

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Para transformar o índio em pobre, o primeiro passo é transformar o Munduruku em índio, depois em índio administrado, depois em índio assistido, depois em índio sem terra. E não obstante, os povos indígenas originários, em sua multiplicidade irredutível, que foram indianizados pela generalidade do conceito para serem melhor desindianizados pelas armas do poder, sabem­‑se hoje alvo geral dessas armas, e se unem contra o Um, revidam dialeticamente contra o Estado aceitando essa generalidade e cobrando deste os direitos que tal generalidade lhes confere, pela letra e o espírito da Constituição Federal de 1988. E invadem o Congresso. Nada mais justo que os invadidos invadam o quartel­‑general dos invasores. Operação de guerrilha simbólica, sem dúvida, incomensurável à guerra massiva real (mas também simbólica) que lhes movem os invasores. Mas os donos do poder vêm acusando o golpe e correm para viabilizar seu contragolpe. Para usarmos a palavra do dia, golpe é o que se prepara nos corredores atapetados de Brasília contra os índios, sob a forma, entre outras, da PEC 215. Os índios são os primeiros indígenas do Brasil. As terras que ocupam não são sua propriedade — não só porque os territórios indígenas são “terras da União”, mas porque são eles que pertencem à terra e não o contrário. Pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela, é o que define o indígena. E nesse sentido, muitos povos e comunidades no Brasil, além dos índios, podem se dizer, porque se sentem, indígenas muito mais que cidadãos. Não se reconhecem no Estado, não se sentem representados por um Estado dominado por uma casta de poderosos e de seus mamulengos e jagunços aboletados no Congresso Nacional e demais instâncias dos Três Poderes. Os índios são os primeiros indígenas a não se reconhecerem no Estado brasileiro, por quem foram perseguidos durante cinco séculos: seja diretamente, pelas “guerras justas” do tempo da colônia, pelas leis do Império, pelas administrações indigenistas republicanas

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que os exploraram, maltrataram, e, muito timidamente, às vezes os defenderam (quando iam longe demais, o Estado lhes cortava as asinhas); seja indiretamente, pelo apoio solícito que o Estado sempre deu a todas as tentativas de desindianizar o Brasil, varrer a terra de seus ocupantes originários para implantar um modelo de civilização que nunca serviu a ninguém senão aos poderosos. Um modelo que continua “essencialmente” o mesmo há quinhentos anos. O Estado brasileiro e seus ideólogos sempre apostaram que os índios iriam desaparecer, e quanto mais rapidamente melhor; fizeram o possível e o impossível, o inominável e o abominável para tanto. Não que fosse preciso sempre exterminá­‑los fisicamente para isso — como sabemos, porém, o recurso ao genocídio continua amplamente em vigor no Brasil —, mas era sim preciso de qualquer jeito desindianizá­‑los, transformá­‑los em “trabalhadores nacionais” 2. Cristianizá­‑los, “vesti­‑los” (como se alguém jamais tenha visto índios “nus”, esses mestres do adorno, da plumária, da pintura corporal), proibir­‑lhes as línguas que falam ou falavam, os costumes que os definiam para si mesmos, submetê­‑los a um regime de trabalho, polícia e administração. Mas, acima de tudo, cortar a relação deles com a terra. Separar os índios (e todos os demais indígenas) de sua relação orgânica, política, social, vital com a terra e com suas comunidades que vivem da terra — essa separação sempre foi vista como “condição necessária” para transformar o índio em cidadão. Em cidadão pobre, naturalmente. Porque sem pobres não há capitalismo, o capitalismo precisa de pobres, como precisou (e ainda precisa) de escravos. Transformar o índio em pobre. Para isso, foi e é preciso antes de mais nada separá­‑lo de sua terra, da terra que o “constitui” como indígena. 2 O primeiro nome do SPI republicano (Serviço de Proteção aos Índios) era SPILTN: Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. Foi SPITLN de 1910 a 1918, depois só SPI, até virar FUNAI em 1967, ao cabo de uma CPI que revelou uma infinidade de abusos, desmandos, violências variadas, explorações e outras benesses protetoras conferidas pelo Estado.

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Nós, os brancos que aqui estamos sentados na escadaria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 20 de abril de 2016, nós nos sentimos indígenas. Não nos sentimos cidadãos, não nos vemos como parte de uma população súdita de um Estado que nunca nos representou, e que sempre tirou com uma mão o que fingia dar com a outra. Nós os “brancos” que aqui estamos, bem como diversos outros povos indígenas que vivem no Brasil: camponeses, ribeirinhos, pescadores, caiçaras, quilombolas, sertanejos, caboclos, curibocas, negros e “pardos” moradores das favelas que cobrem este país. Todos esses são “indígenas”, porque se sentem ligados a um lugar, a um pedaço de terra — por menor ou pior que seja essa terra, do tamanho do chão de um barraco ou de uma horta de fundo de quintal — e a uma comunidade, muito mais que cidadãos de um Brasil Grande que só engrandece o tamanho das contas bancárias dos donos do poder. A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo da Terra. A relação entre terra e corpo é crucial. A separação entre a comunidade e a terra tem como sua face paralela, sua sombra, a separação entre as pessoas e seus corpos, outra operação indispensável executada pelo Estado para criar populações administradas. Pense­‑se nos LGBT, separados de sua sexualidade; nos negros, separados da cor de sua pele e de seu passado de escravidão, isto é, de despossessão corporal radical; pense­‑se nas mulheres, separadas de sua autonomia reprodutiva. Pense­‑se, por fim mas não por menos abominável, no sinistro elogio público da tortura feito pelo canalha Jair Bolsonaro 3 — a tortura, modo último e mais absoluto de separar uma pessoa de seu corpo. Tortura que continua — que sempre foi — o método favorito de separação dos pobres de seus corpos, nas delegacias e presídios deste país tão “cordial”. Por isso tudo a luta dos índios é também a nossa luta, a luta indígena. Os índios são nosso exemplo. Um exemplo de “rexistência” secular a uma guerra feroz contra eles para desexistí­‑los, fazê­‑los desaparecer, seja matando­‑os pura 3 Deputado federal do Partido Social Cristão no Brasil

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e simplesmente, seja desindianizando­‑os e tornando­‑os “cidadãos civilizados”, isto é, brasileiros pobres, sem terra, sem meios de subsistência próprios, forçados a vender seus braços — seus corpos — para enriquecer os pretensos novos donos da terra. Os índios precisam da ajuda dos brancos que se solidarizam com sua luta e que reconhecem neles o “exemplo” maior da luta perpétua entre os povos indígenas (todos os “povos” indígenas a que me referi mais acima: o povo LGBT, o povo negro, o povo das mulheres) e o Estado nacional. Mas nós, os “outros índios”, aqueles que não são índios mas se sentem muito mais “representados” pelos povos índios que pelos políticos que nos governam e pelo aparelho policial que nos persegue de perto, pelas políticas de destruição da natureza levadas a ferro e a fogo por todos os governos que se sucedem neste país desde sempre — nós outros também precisamos da ajuda, e do exemplo, dos índios, de suas táticas de guerrilha simbólica, jurídica, mediática, contra o Aparelho de Captura do Estado­‑nação. Um Estado que vai levando até às últimas consequências seu projeto de destruição do território que reivindica como seu. Mas a terra é dos povos. Concluo com uma alusão ao nome de uma rua não muito distante desta Cinelândia onde estamos agora. Em Botafogo, existe, como vocês todos sabem, a Rua Voluntários da Pátria. Seu nome provém de uma iniciativa empreendida pelo Império em sua guerra genocida (e etnocida) contra o Paraguai — o Brasil sempre foi bom nisso de matar índios, do lado de cá ou de lá de suas fronteiras. Carente de tropas para enfrentar o exército guarani, o Governo imperial criou corpos militares de voluntários, “apelando para os sentimentos do povo brasileiro”, como escreve o verbete da Wikipedia sobre a iniciativa. Pedro II apresentou­‑se em Uruguaiana como o “primeiro voluntário da pátria”. Não demorou muito e o patriotismo dos voluntários da pátria arrefeceu; logo o Governo central passou a exigir dos presidentes das províncias que recrutasse cotas de “voluntários”. A solução para esta lamentável “falta de patriotismo” dos brancos brasileiros foi, como se sabe,

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mandar milhares de escravos negros como voluntários. Foram eles que mataram e morreram na Guerra do Paraguai. Obrigados, escusado dizer. Voluntários involuntários. Pois bem. Os índios foram e são os primeiros Involuntários da Pátria. Os povos indígenas originários viram cair­‑lhes sobre a cabeça uma “Pátria” que não pediram e que só lhes trouxe morte, doença, humilhação, escravidão e despossessão. Nós aqui nos sentimos como os índios, como todos os indígenas do Brasil: como formando o enorme contingente de Involuntários da Pátria. Os involuntários de uma pátria que não queremos, de um governo (ou desgoverno) que não nos representa e nunca nos representou. Nunca ninguém os representou, àqueles que se sentem indígenas. Só nós mesmos podemos nos representar, ou talvez, só nós podemos dizer que representamos a terra — esta terra. Não a “nossa terra”, mas a terra de onde somos, de quem somos. Somos os Involuntários da Pátria. Porque “outra” é a nossa vontade. de Castro, Eduardo Viveiros “Os involuntários da pátria”, aula pública durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, Rio de Janeiro (20 abril 2016), texto disponível em http:// acasadevidro.com/author/acasadevidro/, em 27 de março 2017 Eduardo Viveiros de Castro é um etnólogo americanista e professor­‑titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Imagem gerada com informação do Shuttle Radar Topography Mission (SRTM) Fonte: Earth Observatory, NASA


MAIO ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╟Æ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ

JUNHO 2017

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO Os involuntários da pátria ● debate e pensamento sex 05 ↣ 18h30 RODRIGO LACERDA Vídeo nas aldeias ● filme sex 05 ↣ 21h30 ALEJANDRO REIG, ELISA LOCON ANTILEO E LUISA ELVIRA BELAUNDE Da relação com a Terra ● debate e pensamento sáb 06 ↣ 15h30 AILTON KRENAK Do sonho e da terra ● debate e pensamento sáb 06 ↣ 18h30 AILTON KRENAK E MARCO ALTENBERG: O sonho da pedra ● filme sáb 06 ↣ 21h30 LUISA ELVIRA BELAUNDE Workshop Ética do Bem Viver ● debate e pensamento dom 07 ↣ 10h às 17h TRINIDAD GONZÁLEZ Pájaro ● teatro qui 25 ↣ 21h30 sex 26 ↣ 21h30 APARECIDA VILAÇA A humanidade e a animalidade do universo indígena amazónico ● debate e pensamento sex 26 ↣ 18h30 JOSÉ BENGOA, FELIPE MILANEZ E RAUL LLASAG FERNANDEZ Resistência Política Ameríndia ● debate e pensamento sáb 27 ↣ 17h

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URÂNDIA ARAGÃO: Artigo 19 ● performance qua 07 ↣ 21h30 qui 08 ↣ 21h30 sex 09 ↣ 21h30 MEG STUART/DAMAGED GOODS & EIRA: Blessed ● dança qui 22 ↣ 21h30 sex 23 ↣ 21h30 sáb 24 ↣ 21h30

JULHO TEATRO NIÑO PROLETARIO E ALUNOS DA ESTC: Sul ● teatro qua 05 ↣ 21h30 qui 06 ↣ 21h30 sex 07 ↣ 21h30 sáb 08 ↣ 21h30 dom 09 ↣ 18h30 ╓─── AOARLIVRE ║ ║ ● crianças e jovens ║ ╙ Æ sáb 15 ↣ 15h às 22h ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╟Æ ║ ╙Æ

Apresentação no âmbito da rede Imagine 2020 com o apoio do Programa Cultura da União Europeia

Durante a temporada 2016/2017, o Teatro Maria Matos editou seis cadernos de textos do ciclo Utopias, dedicados a cada uma das partes: Arquipélago da Resiliência 1/6, Arquipélago das Diversidades 2/6, Arquipélago Comum 3/6, Arquipélago dos Afetos 4/6, Arquipélago Capital 5/6 e Arquipélago Verde 6/6.

w w w.teatromariamatos.pt • 218 438 801


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