PERFORMANCE, PERFORMATIVIDADE E POLÍTICA DE GÉNERO 5 maio a 24 junho 2015
Conferências curadoria: Salomé Coelho e Mark Deputter com Andreia Cunha, Laura Lopes e Sezen Tonguz
sala principal ter巽as 18h30 transmiss達o em direto em streaming: live.fccn.pt/tmm/conferenciasgendertrouble Tel達o Trouble in Paradise (2015) de Jo達o Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira a partir de uma foto de Anze Persin
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GENDER TROUBLE. PERFORMANCE, PERFORMATIVIDADE E POLÍTICA DE GÉNERO Salomé Coelho Vinte e cinco anos após a sua publicação, em 1990, o livro Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity da filósofa Judith Butler continua a marcar não só a investigação académica, e os movimentos feministas e LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trangénero, Queer e Intersexo), como também a criação artística. Gender Trouble reconfigura o pensamento e as formas de ação em torno do género e das sexualidades, revolucionando os Estudos de Género, os feminismos contemporâneos, os Estudos de Performance e o desenvolvimento da teoria queer, pelo reposicionamento conceptual do género como performatividade. Butler afirma que o género não é uma categoria ontológica, mas que “se faz”, que “se constrói”, que é, em última análise, performance. Significa isto que o género não exprime uma “verdade” interior, sendo antes o resultado de um conjunto de atos e gestos reiterados, cuja cristalização confere uma aparência de um núcleo interno, de substância. Butler parte da análise de performances drag, e da imitação de género aí em jogo, para pensar as performances de género, sugerindo que qualquer processo de assunção de uma identidade de género implica uma imitação de gestos em que não há original que possa ser imitado. Daí que a autora acrescente que, além de performática, existe uma dimensão paródica nos processos de aquisição de expressões de género. Ao definir o género como performatividade, Butler mina a distinção entre género e sexo, afirmando que o próprio corpo é já uma construção cultural, na medida em que os discursos sobre o corpo, a sexualidade e o género definem o que é considerado corpo, os seus limites e o seu significado. Com este conceito, Butler questiona as normas institucionais, legais e culturais que estabelecem uma coerência discursiva entre sexo, género e desejo. Por outras palavras, Butler desafia o pressuposto de que existe uma correspondência entre um sexo específico, uma determinada identidade de
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género e um desejo pelo “sexo oposto”. Segundo a filósofa, essa coerência não é mais do que uma ficção, disfarçada de lei natural, criada no quadro de uma heterossexualidade hegemónica que legitima e aprova a heterossexualidade através da desaprovação da homossexualidade. A forma de resistir às normas de género faz-se por via de performances subversivas de género, que desestabilizam esta equação sexo/género/desejo; por exemplo, performances em que o sexo e o género não correspondam ou em que a hegemonia da heterossexualidade é contestada. Através das performances podemos observar como os géneros são produzidos e reconhecidos como corpos e, em simultâneo, perceber o modo como artistas criticam a criação de corpos dóceis e a ficção do binarismo hegemónico de género. Assim, o Teatro surge como um espaço privilegiado para observar e debater a performatividade de género mas também para experimentar performances subversivas de género, algo que esperemos que seja proporcionado pelo leque diversificado de debates, espetáculos, intervenções artísticas e workshops incluídos neste ciclo dedicado aos 25 anos de Gender Trouble.
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CUCU, SURPRESA! Performatividade, Política e Democracia Andreia Cunha mestre em Ciência Política e diretora executiva do Maria Matos Teatro Municipal
“Those who are deemed ‘unreal’ nevertheless lay hold of the real, a laying hold that happens in concert, and a vital instability is produced by that performative surprise.” Prefácio à edição de 1999 de Gender Trouble
O papel seminal de Gender Trouble para os estudos de género, teoria queer, estudos de performance e ativismos feministas e LGBTQI é do domínio da dedução lógica: o campo de articulação de uma teoria da performatividade de género decorre no espaço da sua génese. Mas a teoria da performatividade nos processos de subjetivação — o mo(vi)mento da surpresa performativa — presta-se a articulações e transições sem dedução imediata no campo da política e da democracia, na medida em que contribui de forma fundamental para o entendimento dos próprios processos de constituição de um sujeito político qualquer (sendo que qualquer ou nenhum em concreto decorre aqui da assunção da impossibilidade de descrever o sujeito ex nihilo ou fora das suas múltiplas condições de possibilidade e da própria ação performativa da sua constituição). Centremo-nos, então, nas linhas gerais que permitem fazer uma leitura de transição. A performance cria a aparência de uma continuidade ou coerência, uma aparência que perdura apenas através da sua contínua repetição. A repetição, no entanto, reproduz (produz de novo) dentro dos limites de algo (as práticas sociais num sentido lato) cuja naturalidade/facticidade não existe1, pelo 1 “Because there is neither an ‘essence’ that gender expresses or
externalizes nor an objective ideal to which gender aspires; because gender is not a fact, the various acts of gender creates the idea of gender, and without those acts, there would be no gender at all.” BUTLER, J., Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity. Nova Iorque e Londres: Routledge, 2007, pág. 190.
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que é sempre uma representação com verosimilhança mas deixando um rasto de não-idêntico, o espaço do irrepresentável, do falhanço. Eis a dimensão paródica da performatividade (algo que copia uma cópia sem “verdade” original de referência, aquilo que Butler designa como “efeito-pastiche”2), que consubstancia um grande contributo para o pensamento político contemporâneo: se a ação social se obriga a performativamente repetir-se e citar-se, por forma a reiterar sentidos e simular uma ideia de naturalidade e de perdurabilidade que contraria a base contingente e politicamente articulada dos sistemas político-sociais, essa repetição é constitutivamente poder hegemónico, mas é também, simultaneamente, uma oportunidade de subversão3. Na contínua coleção de repetições, as normas regulatórias estão sujeitas a dois movimentos potenciais: a exposição de brechas de sentido no seu seio, denunciando a sua historicidade e contingência, através dos seus falhanços e efeitos-pastiche, ou continuamente nomeando um sujeito-outro — interpelando, num sentido althusseriano, o outro como primeiro passo da sua reconhecibilidade que permitirá o seu reconhecimento4 — objetivando-o — ou não o nomeando reiteradamente, demonstrando, no entanto, uma falta na reconhecibilidade e um vácuo no sistema de representação – abjetivando-o5. 2 Idem, Ibidem: “Hence, there is a subversive laughter in the pastiche-
effect of parodic practices in which the original, the authentic, and the real are themselves constituted as effects.”, pág. 200.
3 “[…] [T]he parodic or imitative effect of gay identities works neither to
copy nor emulate heterosexuality, but rather, to expose heterosexuality as an incessant and panicked imitation of its own naturalized idealization. That heterosexuality is always in the act of elaborating itself is evidence that it is perpetually at risk […]”. BUTLER, J., “Imitation and Gender Insubordination”, in ABELOVE, H. et al., The Lesbian and Gay Studies Reader. Nova Iorque e Londres: Routledge, 1993, pág. 314.
4 “If to be addressed is to be interpellated, then the offensive call runs the
risk of inaugurating a subject in speech who comes to use language to counter the offensive call.” BUTLER, J., Excitable Speech: A Politics of the Performative. Nova Iorque e Londres: Routledge, 1997, pág. 2.
5 “[O]ppression works not merely through acts of overt prohibition, but
covertly, through the constitution of viable subjects and through the corollary constitution of a domain of unviable (un)subjects – abjects, we might call them – who are neither named nor prohibited within the economy of law”. In Idem, “Imitation and Gender Insubordination”, pág. 312.
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Ernesto Laclau virá dizer: “Butler aplicou a sua noção apenas a exemplos muito precisos […], mas a minha leitura otimista dos seus textos é que […] [a] generalização, se completamente aprofundada, pode dizer-nos algo realmente importante acerca da estruturação da vida social. O meu argumento é o seguinte: se uma performance paródica significa a criação de uma distância entre a ação que está a ser efetivamente performada e a regra que está a ser interpretada, e se a instância de aplicação da regra é interna à própria regra, a paródia é constitutiva de qualquer ação social.”6 Por outras palavras, a análise de Butler em relação ao género pode servir de matriz a outros fenómenos sociais, podendo ser resumida em três ideias-chave: nas relações sociais, não existe performer prévio ao performado; a performance é performativa (a repetição funda retrativamente o que é repetido) e, por fim, a performance torna visível o sujeito como “efeito” (inverte os termos de causalidade). Significa isto que um queered queer7 — um sujeito “estranho” que reivindica um espaço sem subsunção no sistema de significação política mas abdica da ação normativa sobre o futuro da sua significação e disponível para se envolver, por isso, em práticas/estratégias pós-identitárias — pode constituir-se como agência antagonista e contra-hegemónica ao sistema de significação política (inaugurando ações que performam de forma diferente), um sujeito que se coloque como legitimidade e responsabilidade8 em representação da comunidade política. Numa estratégia política pós-identitária, outros nomes (a nomeação, como processo que assume a performatividade como constituinte ao pretender nomear para lá de conceptualizar, é o exercício performativo e ato 6 LACLAU, E., “Identity and Hegemony: The Role of Universality in the
Constitution of Political Logics”, in BUTLER, J., LACLAU, E. & ŽIŽEK, S., Contingency, Hegemony, Universality. Nova Iorque e Londres: Verso, 2000, pág. 78. Tradução da autora.
7 Veja-se, a propósito da ideia de queered queer, BUTLER, J., “Critically Queer”, in GLQ: A Jornal of Lesbian and Gay Studies, vol. 1, n.º 1, 1993, pp. 17-32.
8 Sobre as noções de legitimidade e responsabilidade em Masao
Mauyama e Hannah Arendt veja-se BUTLER, J., “Performative Agency”, in Journal of Cultural Economy, vol. 3, n.º 2, pp. 147-161.
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discursivo exemplar) podem aplicar-se, assim, a este sujeito de legitimidade e responsabilidade que disrupta o sistema de significação política: “povo” (Laclau), “multidão” (Hardt e Negri, e “multidão queer” em Preciado), “plebe” (Martin Breaugh), “proletariado” (Badiou), etc. Que consequências resultam para a vida destas ideias-chave? Poderíamos dizer que as consequências são a democracia: a negação de um sujeito prévio e a performatividade como ato político de poder-visibilidade-reconhecimento inscreve a contingência no processo político e isso desmascara o mundo das “impossibilidades”. Todas as possibilidades são contingentes, historicizadas e politicamente articuladas e ao “there is no alternative” contrapõe-se um inevitável “there is no no-alternative”. Em cada performance paródica, ou ato discursivo, há um excesso que não pode ser contido na representação/performance, sendo que esse excesso é o lugar potencial (a surpresa) para que os que até aí não eram visíveis se tornem visíveis9. O não-idêntico extravasa, ele lateja sem nunca assumir uma visibilidade total mas que constitui, pela nomeação (ou silêncio) da exclusão, o espaço de qualquer emergência do sujeito e como espaço de agenciamento político: aquele movimento tropológico em que nada no repertório disponível nos define — enquanto sujeitos com identidades mas, sobretudo, como sujeitos políticos [o(s) “nós”] — e, porém, há que encontrar um espaço de representação que apenas a metáfora ou a catacrese permitem, não para exigir uma inclusão no sistema mas para impedir eticamente qualquer lugar de exclusão política. Esta metáfora ou catacrese 9 Uma ideia que podemos encontrar em Rancière: “[t]he essence of police lies in a partition of the sensible that is characterized by the absence of void and supplement: society here is made up of groups tied to specific modes of doing, to places in which these occupations are exercised, and to modes of being corresponding to these occupations and these places” – que, no caso do regime de género, poderíamos entender como a ficção normativa de continuidade entre sexo (masculino e feminino e construção de corpos de acordo com princípios historicizados de diferença sexual), género sob sistema binário e oposicional e desejo heterossexual – a que se contrapõe “[t]he essence of politics consists in disturbing this arrengement by supplementing it with a part of those without part, identified with the whole of the community”, in RANCIÈRE, J., Dissensus: on Politics and Aesthetics. Londres e Nova Iorque: Continuum, 2010, pág. 36.
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performativa, como cancelamento da repetição da mesmidade e enquanto poder constitutivo, é o espaço do político por excelência, a raridade democrática, a surpresa da mobilidade de legitimação10 e a disrupção da “normalidade” (a)política presumida como ausência de dissensão, conflito ou vácuo, “normalidade” essa que é fundamental para a estatística11 institucional-administrativa-disciplinar e terrível para a vida como ação democrática do sujeito político.
10 “The established discourse remains established only by being perpetually re-established, so it risks itself in the very repetition it requires. […] This form of political performativity does not retroactively absolutize its own claim, but recites and restages a set of cultural norms that displace legitimacy from a presumed authority to the mechanism of its renewal. Such a shift render more ambiguous – and more open to reformulation – the mobility of legitimation in discourse.” In BUTLER, J., “Staging Universalities”, BUTLER, J., LACLAU, E. & ŽIŽEK, S., Contingency, Hegemony, Universality. Nova Iorque e Londres: Verso, 2000, pág. 41.
11 “The justification of statistics is that deeds and events are rare
occurrences in everyday life and in history. Yet the meaningfullness of everyday relationships is disclosed not in everyday life but in rare deeds, just as the significance of a historical period shows itself only in the few events that illuminate it. […] [I]t is a hopeless enterprise to search for meaning in politics or significance in history when everything that is not everyday behaviour or automatic trends has been ruled out as immaterial.” ARENDT, H., The Human Condition. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1958, pp. 42-43.
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TUMULTOS DE GÉNERO: GENDER TROUBLE EM PORTUGAL João Manuel de Oliveira investigador auxiliar ISCTE-IUL
Como diz no prefácio à edição de 1999, de Gender Trouble (GT) “a vida deste texto excedeu as minhas intenções” (Butler, 1999, pág. vii). Os livros fazem isso, ganham outras vidas, vidas próprias, sem se saber como. E, de facto, poucas obras nesta área deram origem a tanto debate conceptual, ativista e científico (Pérez Navarro, 2012). Este prefácio clarifica algumas das intenções da autora ao escrever GT: “abrir o campo de possibilidade para o género sem determinar quais as possibilidades que devem ser concretizadas” (pág. viii) ao mesmo tempo que pretendia “deslegitimar todas as tentativas de promover um discurso de verdade que retirasse legitimidade às práticas de género e sexuais minoritárias” (pág. viii). Butler (1990) estabelece uma teoria do género não identitária, caracterizada pela análise dos limites da ação/ expressão, de acordo com as normas de género dentro de uma heterossexualidade hegemónica. Trata-se de uma teoria baseada na agência e suas limitações normativas. Este novo entendimento do que é o género desontologizou categorias centrais na teoria feminista, mostrando a necessidade de descentrar a diferença sexual como categoria analítica para passar a entender o género como afetado por muitos outros eixos, como classe, “raça”, mas sobretudo sexualidade. Se não é possível olhar para GT isoladamente, sem esquecer o contexto em que a obra surge, é fundamental pensar que a obra introduz uma dissolução da categoria “sexo”, categoria vazia e desde logo genderizada. Igualmente, a obra inaugura uma visão sobre o género como performatividade, em que, por via da repetição e citacionalidade12 da performance de género vão gerar-se uma série de efeitos, nomeadamente a aparência de substância, interior e essencial, das expressões de género, criando um sujeito que aparenta ser anterior 12 Refere-se à ideia de citação de um original, quando no género, não
há nenhum original a seguir, a não ser um que se presuma existir, mas que não se pode dizer que exista.
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à performance, quando é construído no processo — reportando à ideia nietzscheniana do sujeito construído na ação. Por outro lado, Butler continua o trabalho dos feminismos negros e chicanos sobre a ideia de “mulher” como sujeito da teoria feminista, mostrando que essa universalidade não consegue traduzir os contextos em que as mulheres vivem: que incluem “raça”, classe, sexualidade, diversidade funcional, etc. Até da própria diversidade do género fora do dimorfismo sexual. Pelo contrário, a ideia de “mulher”, ao fazer tábua rasa dessas diferenças, toma as preocupações de mulheres brancas, de classe média, heterossexuais como universais, promovendo um “branqueamento” na teoria feminista. Butler evidencia a sua oposição a estes modelos de representação do feminismo e do seu “sujeito político”, na recusa da universalidade da diferença sexual como foco central do feminismo e de ver na ideia de “mulher” um sujeito de representação política universal, criticando a metafísica de substância neste uso do género. Antes, este sujeito é problematizado e sujeito a uma genealogia crítica, nesta obra: “A formação jurídica da linguagem e da política que representa as mulheres como sujeito do feminismo é uma formação discursiva e efeito de determinada versão das políticas de representação. E o sujeito feminista acaba por ser discursivamente construído pelo mesmo sistema político que é suposto facilitar a sua emancipação” (Butler, 1990, pp. 4-5). A obra atende às relações complexas entre género e sexualidade, mostrando como o policiamento sobre o género, em condições de heterossexualidade normativa, é uma forma de policiar a sexualidade, mantendo-a heterossexual. Daqui decorrem um conjunto de operações discursivas e com efeitos violentos com vista a manter uma homologia entre sexualidade e género. Esta constante atenção à sexualidade, que deve inspiração a Gayle Rubin, é fulcral para o entendimento desta proposta de Butler. Diz a autora: “continuo a acreditar numa coligação de minorias sexuais que transcenderá as simples categorias das identidades” (pág. xxvi). Este interesse em interligar género e sexualidade conduzirá à entronização de GT como texto canónico para a teoria queer (Oliveira, Costa & Carneiro, 2014), sobretudo pela recusa do foco no
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identitário e pela importância da performatividade. Assim, do ponto de vista dos estudos de género e da teoria feminista, a sua contribuição é um verdadeiro tumulto nos estudos de género. A revolução operada pelos trabalhos de Judith Butler, e outras como Donna Haraway (1991), Gayatri Chakravorty Spivak (1993), Eve Sedgwick (1989), Teresa de Lauretis (1987), foi de tal maneira profunda que ainda não é possível entender todos os seus efeitos. GT é um trabalho que mudou radicalmente a maneira como investigadoras/es e ativistas olham para as relações sociais de género e que adquiriu repercussões globais. Butler (2007: 529) descreve o efeito do trabalho de Monique Wittig no seu pensamento, dizendo: “Quando ouvi Wittig na Universidade de Nova Iorque, senti as minhas próprias categorias a dissolverem-se, um sentido de gravidade epistémica mudou”. O efeito de Butler e especificamente de GT é precisamente este. Mudar o sentido da gravidade epistémica nos estudos de género. Irei atender às múltiplas encarnações em Portugal deste livro, escusando-me de apresentar o seu contributo conceptual (Oliveira, 2011), apesar de me referir a ele. Assim este texto apresenta-se em duas partes: as leituras e os desencontros com a obra em Portugal num determinado contexto de produção de conhecimento e de praxis feminista e o modo como os trabalhos de Francisco Camacho e Miguel Bonneville foram afetados (no sentido que lhe dá Espinosa) por este tumulto de género. Desta forma, irei, nestas páginas, detalhar alguns dos principais contornos de disseminação e produção de discursos e contradiscursos em torno de GT. Olhar para esta obra, deste modo, implica uma reflexão sobre os modos como instalamos as nossas leituras de textos. Neste sentido, é importante clarificar o meu posicionamento que é alinhado com o de Gayatri Chakravorty Spivak (2011) neste particular: um texto é uma rede ou uma tessitura que inclui a rede a que chamamos vida. Este alinhamento é inspirado pela tese de Derrida da inexistência de um “fora” do texto. O texto é portanto con/texto. Parto então para este con/texto: o tumulto de Butler nos feminismos contemporâneos.
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Tumultos do Género nas ciências sociais em Portugal Esta obra tardou a chegar a Portugal e nunca foi cá traduzida. A história dos estudos de género, ainda que parcial e parcelar, ajuda a entender esta chegada tardia. Será apenas após a publicação de GT que se começam a desenvolver os estudos de género e o conhecimento oriundo das teorias feministas na academia portuguesa. Como mostra Lígia Amâncio (2003), o conceito de género encontrou várias dificuldades para fazer parte das gramáticas conceptuais das ciências sociais e humanas em Portugal. Vários fatores, enumerados pela autora, permitem um retrato destes obstáculos: uma invisibilidade do feminismo durante a maior parte do século XX, graças à ditadura e ao investimento na luta para derrubar o Estado Novo; a fraca escolarização da população e em particular das mulheres; um desenvolvimento recente das ciências sociais e humanas, que tiveram alguma dificuldade em acompanhar os debates internacionais nesta área. Gostaria de clarificar uma outra leitura, que faço a partir deste contributo de Amâncio (2003), que tem precisamente que ver com GT. A enorme resistência das ciências sociais portuguesas, sobretudo da sociologia e da psicologia, à discussão sobre modelos críticos das ciências sociais, decorrentes das transformações introduzidas a partir das teorizações pós-estruturalistas e pós-modernas, é um fator primordial para entender este processo do ponto de vista da reação epistemológica conservadora, em particular num país com ciências sociais e humanas ainda muito recentes e pouco habituadas a debate científico deste nível. Os sectores das ciências sociais mais conservadores, que vivem do recurso aos modelos empiristas da sociografia e à psicologia experimental, veem no “pós-modernismo” um perigo para a ciência que desrespeita a neutralidade, objetividade e isenção. Note-se como este soi-disant nacional positivismo recorre à retórica de cientifização e da pseudo-ciência e à necessidade de qualificar estas diferentes propostas amalgamadas no termo (para eles, pejorativo) de “pós-moderno” como sinónimo imediato de não científico.
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Tal qual fazem com o género que veem simplesmente como reivindicação política de feministas e que deslegitimam cientificamente com o rótulo da ausência de neutralidade, pedra de toque das suas análises. A neutralidade que defendem desemboca em projetos políticos específicos como os neoliberais, outra ideologia aparentemente sem carga ideológica como o positivismo. Não cabe aqui um excurso sobre a estreiteza de pensamento e a ligeireza das afirmações que fazem. Contudo estas posições vão contaminar o pensamento de investigadores/as na própria área dos estudos de género, o que influencia em muito a receção que fazem de GT. Maria do Mar Pereira (2014) caracteriza a área dos estudos de género em Portugal através de uma abordagem de etnografia feminista, partindo das classificações emic das e dos investigadoras/es da área13, mostrando a sua dependência contextual de uma constante negociação de estatuto, quer dentro das disciplinas de origem, quer em relação à necessidade de internacionalização como forma de garantir estatuto epistémico. Esta dificuldade é muitas vezes traduzida na afirmação do atraso português em relação aos outros contextos de produção de conhecimento, esquecendo todo o contexto português. Esta atribuição ao atraso implica não ter em conta que a semiperiferia portuguesa está numa temporalidade distinta de outros países (Oliveira, 2014), pelo contexto português que Amâncio (2003) enumera, aliada à dificuldade institucional da ausência de departamentos de estudos de género e da necessidade de negociar com as disciplinas de origem, uma série de dimensões como o estatuto epistémico, as práticas metodológicas, a disseminação desejada. No caso do Estado espanhol, o mais próximo do nosso, Pablo Pérez Navarro (2012) analisa a receção do trabalho de Butler na obra de Celia Amorós, mostrando como esta ancora GT e as suas obras no âmbito do pós-modernismo, lendo a performatividade de género como voluntarista, sobretudo no que toca à subversão paródica das identidades, exemplificada com o drag e que para Amorós, com ligeiro travo 13 que apresenta como Estudos sobre as Mulheres/Feministas/de
Género, mostrando a dificuldade em chegar a um consenso sobre o nome, ligado a preferências teóricas e inserções epistemológicas.
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a transfobia, conduz ao imobilismo político pela perda da referência ontológica da mulher, ancorado no universo da diferença sexual. Butler alerta contra este género de leituras, explicando: “[A] leitura errada é mais ou menos esta: posso levantar-me de manhã, abrir o armário, olhar lá para dentro, e decidir que género quero ser hoje […]. O que resulta desta leitura é uma espécie de mercantilização do género, em que escolher um género é uma espécie de ato consumista. […] A performance do género nunca é totalmente fluida, ela é configurada dentro dos limites discursivos do nosso mundo, e esses limites têm de ser tidos em conta.” (Butler, 1992, pág. 83) Recorro a esta citação, pois várias/os investigadoras/es da área usam precisamente este exemplo para se referirem ao género como performatividade no pensamento de Judith Butler, sem sequer saberem que a própria o usa como exemplo de má leitura do seu trabalho. Ou então reduzem-no, caricaturalmente, a uma performance, um fazer do género sem nenhuma produção de efeitos ontológicos que instalam e constroem o sujeito, tomando Butler por Erving Goffman (1993). Felizmente, estas leituras erradas raramente aparecem escritas, surgem sobretudos em comentários a conferências e afirmações do tipo suplemento, o que torna difícil identificar corretamente quem as propõe, mas digamos que apresentam muitas parecenças com a proposta de Celia Amorós e com citação de Butler do ponto de vista de argumentos. Será por via do trabalho de Conceição Nogueira (2001) que os trabalhos de Judith Butler vão começar a ser usados na psicologia feminista crítica em Portugal, no âmbito da sua tese de doutoramento defendida em 1997. Nesta obra, destaca o carácter performativo do género, opondo-o sobretudo à ideia do género como um atributo e localizando GT numa linha pós-estruturalista feminista, ligando-a à desconstrução de Derrida e às teorias de Foucault. Assim Nogueira (2001) é das primeiras autoras a defender que o género se faz, ou seja, que se trata de um ato performativo em vez de ser um atributo que se possua ou um processo identitário, essencialista e psicologizante. É das primeiras feministas em Portugal a advogar a perspetiva feminista crítica, aberta a todas as
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novas teorizações pós-estruturalistas, que argumenta, vêm introduzir uma lógica de implicação política nos estudos de género e novas maneiras de pensar o feminismos e as mulheres. Contudo as restantes leituras não são tão celebratórias. Próxima, mas diferente, é a de Teresa Joaquim (2001) que parece representar o impasse em que o livro colocou o pensamento feminista europeu. Se por um lado, a genealogia feminista e crítica sobre a categoria “mulheres” e “sexo” é bem recebida, a dimensão de recusa das “mulheres” como agente de representação feminista já se torna mais problemática, sendo lido pela autora como provocadora de um “estilhaçar” da categoria. T. Joaquim vai usar, muito elegantemente, uma proposta de Donna Haraway para levantar sobre GT a pergunta “o que conta como humano?” a seguir a esse estilhaço. Esta maneira de problematizar o pensar do género num espaço de fluidez é questionada e problematizada por T. Joaquim que, ao fazer esta ligação, está no fundo a fazer o que Butler (2005) fará, anos mais tarde, ao ligar as questões do género à inteligibilidade do humano. Tanto Macedo & Amaral (2005) como Tavares (2011) recorrem mais à ideia da fragmentação do sujeito. Contudo, não deixam de salientar a importância de questionar a ideia de “mulher”, mas sem lhe retirar esse estatuto de sujeito do feminismo. António Fernando Cascais (2005) problematizará o contributo de GT para um pensamento queer, nomeadamente pelo contraste face ao modelo identitário gay e lésbico. Este contributo é sempre balizado pela preocupação com a perda das identidades como forma de fazer política. Escuso de dar mais exemplos, que os argumentos são muito semelhantes: sujeito-mulher fragmentado, despolitizado e até neoliberal, em casos extremos. É nos números especiais de revistas sobre teoria queer, coordenados por Ana Cristina Santos (2006) e Conceição Nogueira e J. M. Oliveira (2009), que o tratamento da obra de Butler vai ser levado mais longe, sem tanta precaução e aproveitando a dimensão da diversidade das performances de género, o que também é exemplificativo dos efeitos da chegada de uma geração de investigadoras/es que é socializada nos estudos de género já com GT como referência clássica. A atenção dada à performatividade de género parece então
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ser maior na teoria e feminismos queer do que nos estudos de género menos marcados pela sexualidade e maior na segunda geração de investigadores/as. Miguel Vale de Almeida (2014) recentemente publicou um texto sobre Butler, com destaque para GT, sem deixar de referir as suas dúvidas face à eficácia política de uma teoria sem sujeito, assentes na sua ideia de essencialismo estratégico. Creio que, neste domínio, esta posição não toma em linha de conta o papel importante da crítica à ideia de representação. Butler (1999, pág. xxvi) não propõe em momento nenhum que a identidade não possa ser usada como representação política. O que pretende é antes chamar à atenção para esses processos de constituição das subjetividades, que são mais representacionais do que identitários. É pois face a essas normas de inteligibilidade, i.e. de representação do género, que as expressões de género são repetidas. Não é assentar na performatividade uma teoria de reivindicação de direitos, ela deve antes assentar na crítica e exposição dos discursos jurídicos, políticos e sociais que subsumem essas normas, ponto sempre escamoteado do seu pensamento. A política deve trabalhar para que a lei seja uma sabotagem à arbitrariedade das normas. Assim, a teoria de Butler tem, em meu ver, grandes contributos para repensar a ação política: pensá-la, usando as armas da teoria crítica, com a atenção focada nos discursos sociais; por outro lado, descentrar a política do single issue, pensando não num grupo específico identitário LGBT, mas em coligações de que queer é um exemplo. Para os estudos de género, considero que só agora o trabalho de Butler começa a ser incorporado como central na produção na área e não como foi antes, uma espécie de marca do pós-moderno, traduzido em aviso à navegação. O meu próprio trabalho incorpora as suas reflexões, como modo de pensar o humano como processo constitutivo dos feminismos e da teoria queer, que promovem um alargamento dos horizontes do que é tido como humano (Oliveira, 2011; Oliveira et al., 2014). Para esse questionar, é preciso deslocar a conceção do género para fora das identidades e antes para olhar integralmente as subjetividades, percebendo como estas são construídas nos
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discursos, e para isso, GT foi essencial, ao iniciar o desvelar de uma teoria da subjetivação, assente na ideia de um poder que nos sujeita e que nos torna sujeitos, mostrando como o género é fulcral nesse processo. Igualmente, uma teoria da política pensada a partir de epistemologias negativas, fora do anti-intelectualismo das sociografias dominantes, para quem identidade é uma posição num questionário ou das pragmáticas da política imediata. Do meu ponto de vista, a longa vida de GT nas comunidades feministas e queer, quer académicas, quer ativistas, prova como estas teses são problemáticas.
Tumultos de género nas artes performativas: coreografias de género É nas artes performativas, no entanto, que encontramos os primeiros traços da obra, apesar da pouca reflexão sobre género na historiografia e antropologia da dança e da performance em Portugal. Creio que pelos mesmos problemas que apontei às ciências sociais e humanas. Portugal fica imune a este olhar pela necessidade de uma inscrição disciplinar na maioria dos casos que depois se converte numa desatenção aos contributos não disciplinarmente marcados. Com uma importante exceção, os trabalhos de André Lepecki (2003). De facto, Lepecki também pelas suas filiações conceptuais percebeu claramente o modo como uma conceção pós-estruturalista do género e da sexualidade esclarecia o trabalho de Francisco Camacho ou como o trabalho de Vera Mantero poderia adquirir uma inteligibilidade à luz das teorias pós-coloniais. Vou centrar-me com maior detalhe no caso de Francisco Camacho e com menor em Miguel Bonneville, os dois artistas que entendi essenciais para perceber este trânsito. Regressemos ao princípio dos anos 1990, quando a chamada “Nova Dança Portuguesa” (Ribeiro, 1994) surgia, indisciplinada face às tradições da dança moderna e clássica, com uma série de novas preocupações postas em cena. Estes trabalhos precursores de Vera Mantero, Francisco Camacho, João Fiadeiro, Carlota Lagido, entre outras e outros, tinham sido alimentados por estadias no estrangeiro, nomeadamente em Nova Iorque. Estas estadias, sob a forma de estágios ou de frequência de
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escolas, puseram-nos em contacto com o ethos em que Judith Butler também circulou, das performances drag e cinema às lutas coletivas contra a pandemia da sida — como os Queer Nation e Act Up —, e com a indiferença dos governos estado-unidenses de direita face à mesma. Este contacto informa uma sensibilidade a estas questões e que é traduzida nas suas peças. Um desses casos, em que deteto pela primeira vez em Portugal a presença de uma conceção do género como performatividade, é a peça de Francisco Camacho, Nossa Senhora das Flores, de 1993. Portanto, antes desta conceção do género ter entrado nas universidades portuguesas, ela já circulava em palcos pela Europa e por Portugal (dada a grande circulação deste solo). Francisco Camacho, entrevistado por mim para este efeito, fala de “algo que estava no ar” no seu período em Nova Iorque, das suas preocupações com a igualdade de género e a sexualidade. Apesar de a peça ter sido concebida logo a seguir à publicação de GT, Camacho não conhecia, à altura, a obra. Contudo, como demonstrarei abaixo, o seu trabalho nesta peça apresenta uma conceção do género com muitas semelhanças com GT, parecendo que a obra o inspira, apesar de sabermos que o criador não a conhecia. Trata-se portanto de um encontro umheimlich (Freud, 1964), uncanny, estranhamente familiar, que advirá dessa passagem nesses mundos em que o género não era tão conservadoramente policiado e em que determinadas performances de género parodiavam e citavam essa cópia sem original que o género é. A peça centra-se na experiência da transfiguração que usa códigos de feminilidade e de masculinidade, sempre falhados (o género como uma experiência de falha, de citação de originais que nunca o foram), como metonímia para o devir. O recurso a música medieval (Jordi Saval), tal com o figurino de um vestido que faz lembrar um hábito de dama antiga ou mesmo monja com flores, é uma espécie de trompe-l’oeil à ideia de fundacionalismo do género: o recurso aos velhos tempos, em que a ordem de género era simultaneamente imutável e confundida com a natureza. Contudo, é com esta música que a transfiguração e os jogos de género começam, mostrando a ilusão que o próprio
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género propõe, como se viesse de outro lugar essencial que não a performance. A figura, interpretada pelo coreógrafo, tenta novas conceptualizações e corporizações, mas é como se certas normas (de género) não lhe permitissem suster aquelas operações por muito tempo, expondo o logro do género. Há igualmente neste solo uma possibilidade de leitura sobre o desenvolvimento do género sempre associado à hegemonia da heterossexualidade. A figura quando tenta habitar espaços mais normativamente marcados transmite uma sensação de insatisfação, de um habitar um lugar fantasmático que lhe é desconfortável. Mas são estes espaços que são por esta figura testados excessivamente, como se quisesse fazer o género de forma conforme às normas, mas de forma excessiva e ritualizada e portanto demonstrativa da paródia de género, a que alude Butler (1990). Uma leitura intertextual pode ligar Nossa Senhora das Flores com essa luz dos feminismos portugueses que foram as Novas Cartas Portuguesas (Barreno, Horta & Costa, 2011). O recurso à figura da monja e da liberdade na clausura a ela associada não deixam de relembrar Mariana Alcoforado, a freira de Beja desmultiplicada em Anas, Marias Anas, Marianas, Mónicas e tantas outras figurações nessa obra também de excessos, multigenre e elucidativa que, tal como o genre literário, mulher não há só uma. Como refere Ana Luísa Amaral (2001), queer avant la lettre pelo foco na fluidez identitária e sua desmultiplicação. Novas Cartas, escrita por três autoras, começa logo por matar O Autor. Assim poderíamos estabelecer uma estranha genealogia que parece convergir para Nossa Senhora das Flores: uma ligação com uma obra que inicia o feminismo português pós-fascismo, marcada pelo fantasma da monja da literatura portuguesa que encontra a liberdade para pensar fora do laço com o homem e dentro do espaço da clausura com a ligação também fantasmática ao trabalho de Butler, pelo partilhar de territórios e experiências nessa Nova Iorque onde o género não era tão colado com o (falso) original daqui. Espectral, uma verdadeira sociologia da assombração, esta peça (Gordon, 1997). É aqui que vejo a inauguração desta
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forma de olhar para o género, performativa e não simples performance, sem passar pelas universidades e ir direta para a Nova Dança. Seria apenas em 1997 que Judith Butler chegava à cena académica na tese de doutoramento de Conceição Nogueira, quando antes já Francisco Camacho tinha dançado com ela. Vejo, assim, nesta peça, uma experiência de hifenização (Oliveira, 2014) de recorrer a várias perspetivas e construir uma forma coligativa de conhecimento artístico, modo como “este” género foi introduzido na nossa semiperiferia, mas também modo como começou para Butler: coligação de conhecimentos, artes e ativismo, espalhar as múltiplas agências que o género também pode ser, a partir da fratura com as normas e a sua subversão. É esta linha que também é explorada por Miguel Bonneville. O artista trabalhou desde o princípio com a ideia de que entre a vida e o trabalho artístico não há uma separação. Artista feminista, Bonneville dedicou-se primeiro a uma série de performances com o seu nome e distinguidas por números, nas quais mostra as suas preocupações com uma sociedade que divide o mundo entre masculino e feminino, heterossexual e homossexual. Liga essas preocupações às questões das instituições como a família, como é evidente em Family Project em que apresenta fotografias dos seus pais, mas as caras destes estão substituídas pela sua, transmitindo assim uma fantasmagoria identitária em que os laços familiares excessivos e psicologicamente traumáticos são expostos como uma continuidade de si. Este exercício em torno também do género — trauma e falha — constitui um locus fundamental do trabalho de Bonneville. Reportemo-nos à peça sobre A importância de ser Simone de Beauvoir, apresentada em 2015, para ver estas influências nos dias de hoje. Nesta peça, Bonneville ensaia uma série de exercícios e posições para “ser Simone de Beauvoir”. Os exercícios incluem determinadas poses, roupas, uso de objetos que criam essa fundamentação, criando uma aparente ilusão identitária ou pelo menos identificatória. Contudo, a mise-en-scéne trai os intentos
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identitaristas. A ideia de ser Simone é afinal um espaço de ensaios, uma tentativa de devir. Miguel Bonneville ensaia devir Simone de Beauvoir, rememorando-a, com o género e teoria feminista em cena de forma muito consciente. Deixa-se afetar pelas forças intelectuais que o inspiram, forma espinosiana de se deixar afetar. Butler e o seu GT, fantasmaticamente, pairavam sobre esta peça: um arquivo feminista. Ambas as peças analisadas partilham a fantasmagoria e o espaço de arquivo de géneros e feminismos.
Tumultos Esta pequena incursão leva a um confronto com as apropriações de GT num país que tardou a lê-la e preferiu a segurança ontológica da significação exógena, optando por leituras como a de Amorós, uma essencialista assumida da diferença sexual, como é nítido na tónica na fragmentação do sujeito (como se este estivesse ainda intacto). GT pretendia “mostrar como o conhecimento naturalizado do género opera como uma circunscrição preemptiva e violenta da realidade. Dado que as normas de género […] estabelecem aquilo que vai ou não ser inteligivelmente humano, aquilo que é considerado real ou não, constroem um campo ontológico nos quais os corpos podem ter expressão legítima”. (Butler, 1999, pág. xxiii). No país onde a teoria da Butler é antecipada por um corrupio de identidades, multiplicidades e desmultiplicações, onde as mulheres demoram tanto a ser lidas como humanas, com a luz feminista que as Três Marias vieram inventar, onde o género primeiro se dança e só depois é que se estuda, era de crer numa receção mais entusiasta. De facto, ela vai acontecer na psicologia feminista crítica, que, sendo a crítica de uma das disciplinas mais conservadoras, é também das mais radicais (e radical, já dizia Angela Davis, é ir à raiz). Com os estudos queer a nascerem e que rapidamente se envolvem com estes estudos feministas e de género de forma cada vez mais desobediente, teoria bastarda, impura e promíscua. Demorou, mas está a ser.
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Celebremos pois, a diversidade dos géneros, legado esplêndido dos 25 anos de Gender Trouble e saibamos recusar tanta segurança ontológica pré-determinada. Não são isso os feminismos?
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Em português ↣ Moderador: João Pereira
Giulia Lamoni Autorretrato coletivo: algumas notas sobre as relações arte/feminismos Giulia Lamoni é investigadora do Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa e bolseira de pós-doutoramento FCT. É coordenadora da linha de investigação Transnational Perspectives on Contemporary Art: Identities and Representation associada ao grupo Contemporary Art Studies no Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa. O seu projeto de pós-doutoramento explora perspetivas de género na arte contemporânea portuguesa e brasileira. O seu trabalho tem sido publicado em catálogos de exposições, livros e revistas internacionais tais como a N.Paradoxa e o Manifesta Journal. Desde 2015, leciona a cadeira Arte contemporânea na América Latina, Perspectivas transnacionais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. Por motivos alheios ao Teatro Maria Matos, a conferência de Cristiana Pena anteriormente anunciada foi cancelada, sendo substituída por Giulia Lamoni.
Francesca Rayner Performance e performatividade Professora Auxiliar na Universidade do Minho, onde leciona unidades curriculares de graduação e pós-graduação em Teatro e Performance. A sua investigação incide sobre a política cultural da performance, com um enfoque particular na performance de Shakespeare em Portugal. A sua tese de doutoramento Caught in the Act: The Representation of Sexual Transgression in Three Portuguese Performances of Shakespeare foi publicada pelo Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho em 2006. Desde 2006, publicou vários artigos em revistas nacionais e internacionais de especialidade e editou os livros: Género, Cultura Visual e Performance (Húmus, 2011) com Ana Gabriela Macedo e Teatro e Economia: Desafios em tempo de crise (TNDM II & Bicho do Mato, 2011) com Maria João Brilhante & Mónica Almeida (eds.).
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12 maio
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Em português ↣ Moderadora: Ana Lúcia Santos
Ana Gabriela Macedo Enquadrar, Desenquadrar, Reenquadrar/ /Resistir – Mulheres, Arte e Feminismos, modos de ver diferentemente Professora catedrática da Universidade do Minho e doutorada pela Universidade do Sussex, Reino Unido. É diretora do Centro de Estudos da Humanísticos da Universidade do Minho. A sua investigação centra-se em Literatura Comparada, Poéticas Visuais e Interartes, Estudos Feministas e de Género. É autora e coordenadora os trabalhos Paula Rego e o Poder da Visão, ‘a minha pintura é como uma história interior’; Narrando o Pós-Moderno: Reescritas, Re-visões, Adaptações e Dossier Género e Estudos Feministas, Diacrítica 22.3. Traduziu para português Três Mulheres. Poema a três vozes de Sylvia Plath. Coordenou ainda a publicação de Género, Cultura Visual e Performance, em conjunto com Francesca Rayner; Dicionário da Crítica Feminista, em conjunto com Ana Luísa Amaral; e Género, Identidade e Desejo: Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo.
João Florêncio Das Rochas, Apesar de Serem Rochas: Performance e Política Queer para Além do Humano Professor de História da Arte e Cultura Visual Moderna e Contemporânea na Universidade de Exeter, Reino Unido. A sua investigação cruza as disciplinas de Cultura Visual, Estudos da Performance e Pensamento Contemporâneo, numa tentativa de reformular o domínio, função e limites da experiência estética, bem como a divisão entre o “humano” e o “não-humano,” no contexto da presente crise ecológica.
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19 maio ★ Em português e inglês ↣ Moderadora: Andreia Borges
Shahd Wadi Borders trouble: o lugar em jeito de corpo
Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Procura as suas resistências através dos feminismos palestinianos dos corpos ocupados, ultimamente através do doutoramento que obteve em Estudos Feministas na Universidade de Coimbra. A sua tese intitulada Corpos na trouxa: Histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina. Na sua investigação considera as artes um testemunho de vidas. E também da sua.
Carlos Motta From Queer Theory to the Decolonization of Knowledge
Carlos Motta é um artista multidisciplinar cujo trabalho se baseia na história política, numa tentativa de criar contranarrativas que reconheçam histórias, comunidades e identidades reprimidas. O trabalho de Motta — do qual se destaca a sua trilogia Nefandus, três novas curtas-metragens sobre sexualidade pré-hispânica e colonial —, tem sido apresentado internacionalmente em locais como a Tate Modern, o New Museum, o Guggenheim Museum e o MoMA/PS1 Contemporary Art Center e muitos outros espaços públicos, privados e independentes, por todo o mundo. Em 2013, junto com AA Bronson, Motta organizou o evento ritual of queer rituals, na Witte de With (Roterdão). Motta foi o editor convidado em 2013 do jornal da e-flux, (im)practical (im)possibilities, sobre arte e cultura queer contemporâneas. Faz parte do corpo docente da Parsons, The New School of Design e da The School of Visual Arts.
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26 maio
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Em inglês ↣ Moderadora: Ana Bigotte Vieira
Ann Pellegrini Sex, Sacrilege, and The Trouble with performance Ann Pellegrini é professora de Estudos de Performance e Análise Social e Cultural, na Universidade de Nova Iorque, onde também dirige o Centro de Estudos de Género e de Sexualidade. Na sua obra, destacam-se Performance anxieties: staging psychoanalysis, staging race e Love the sin: sexual regulation and the limits of religious tolerance (coescrito com Janet R. Jakobsen). O seu livro mais recente em parceria com Michael Bronski e Michael Amico, “You can tell just by looking” and 20 other myths about LGBT life and people, foi nomeado para o prémio literário Lambda para melhor obra de não-ficção LGBTQ em 2014.
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Em inglês ↣ Moderador: Nuno Carneiro
Judith Butler Why Bodies Matter Judith Butler é professora Maxine Elliot de Literatura Comparada e Teoria Crítica, na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É autora de vários livros, incluindo Gender trouble. Feminism and the Subversion of Identity, Bodies that matter, Undoing gender e Precarious life. É célebre enquanto teórica feminista, queer e de género, que também publica nas áreas da não-violência, filosofia ética e política democrática radical.
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LIVRARIA MARCEL A Livraria Marcel está presente no Teatro Maria Matos durante o ciclo Gender Trouble, apresentando os títulos publicados pelos oradores presentes e disponibilizando ainda um leque de livros dedicados ao tema. A Livraria Marcel nasce da ideia de reunir num só espaço obras de duas áreas diferentes e tão presentes na sociedade contemporânea que se cruzam há décadas — Artes Performativas e Estudos do Género. A Marcel, naturalmente proustiana, dedicar-se-á também à literatura, clássica e contemporânea, com uma coleção que privilegie as minorias dentro e fora do armário. foyer em dias de espetáculos: 20h30 até ao início do espetáculo em dias de conferências: 17h30 às 21h excecionalmente no dia 24 maio: 14h30 às 21h
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MAIO ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ╙Æ
GIULIA LAMONI / FRANCESCA RAYNER ● conferência 5 maio ↣ 18h30 ANA GABRIELA MACEDO / JOÃO FLORÊNCIO ● conferência 12 maio ↣ 18h30 CECILIA BENGOLEA & FRANÇOIS CHAIGNAUD: altered natives’ Say Yes To Another Excess — TWERK ● dança 14 maio ↣ 21h30 LANDER PATRICK: Cascas d’OvO ● oficina 16 e 17 maio ↣ 10h30 às 13h30 SHAHD WADI / CARLOS MOTTA ● conferência 19 maio ↣ 18h30 LANDER PATRICK: Cascas d’OvO ● dança 21 maio ↣ 21h30 PERE FAURA: Striptease e Bomberos con grandes mangueras ● dança 23 maio ↣ 21h30 VÍDEO & GÉNERO ● vídeo 24 maio ↣ 15h às 20h30 ANN PELLEGRINI ● conferência 26 maio ↣ 18h30
Um projeto House on Fire com o apoio do Programa Cultura da União Europeia
╓─── M EN CONFLICTO: Drag King ║ ║ ● workshop ║ ╙ Æ 30 maio ↣ 11h às 17h
ROSANA CADE: Walking:Holding ● performance 30 e 31 maio ↣ 11h30 às 13h30 e 15h30 às 17h30 ╓─── MARIANA TENGNER BARROS: ║ ║ Après le Bain ║ ║ VERA MANTERO: uma ║ ║ misteriosa Coisa, disse ║ ║ o e.e.cummings ║ ║ ● dança ║ ╙ Æ 31 maio ↣ 21h30 ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ
JUNHO 2015 ╓─── JUDITH BUTLER ║ ║ ● conferência ║ ╙ Æ 2 junho ↣ 18h30 ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ╙Æ
AKELARRE CYBORG: The body as a sound post‑ ‑gender instrument ● workshop 6 e 7 junho ↣ 11h às 17h METTE INGVARTSEN: 69 Positions ● performance 6 e 7 junho ↣ 21h30 KARNART: Hermaphrodita ● teatro 18 a 24 junho (exceto 22) ↣ 21h30 Bender‑mente no LuxFrágil ● performance e festa 18 junho ↣ 23h30
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