Fisiatria lesao medular 31out13

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LESテグ MEDULAR Anita Weigand Castro e Daniel Rubio de Souza

Deficiテェncia e incapacidade

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LESÃO MEDULAR

A

lesão da medula espinal é um dos mais graves acometimentos que pode afetar

o ser humano e com enorme repercussão física, psíquica e social. Chamamos de Lesão Medular toda injúria às estruturas contidas no canal medular (medula, cone medular e cauda eqüina), levando a alterações motoras, sensitivas e autonômicas. Estas alterações se manifestarão principalmente como paralisia ou paresia dos membros, alteração de tônus muscular, alteração dos reflexos superficiais e profundos, alteração ou perda das diferentes sensibilidades (tátil, dolorosa, de pressão, vibratória e proprioceptiva), perda de controle esfincteriano, disfunção sexual e alterações autonômicas como vasoplegia, alteração de sudorese, controle de temperatura corporal entre outras. Apesar do grande número de pesquisas e das esperanças depositadas nas novas conquistas de biotecnologia, ainda estamos muito distantes de encontrar um tratamento curativo para a lesão da medula espinal, portanto, a abordagem deve se pautar nos seguintes preceitos: 1) Prevenção: a maioria das causas em nosso meio são traumáticas e poderiam ser evitadas. 2) Abordagem segura e padronizada na fase aguda. 3) Prevenção de complicações secundárias como deformidades de membros ou úlceras de pressão que diminuem o potencial funcional do paciente, retardam o processo de reabilitação e aumentam muito os gastos com o tratamento destes pacientes. 4) Desenvolvimento das habilidades residuais proporcionando a maior independência possível e reinserção social promovendo qualidade de vida.

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O processo de reabilitação é um conjunto de ações que se inicia no resgate adequado

do paciente com traumatismo de coluna e continua até a sua reintegração social. Por isso, toda a equipe de atendimento deve estar envolvida desde a fase aguda em ações que permitam, no futuro, a inclusão social e econômica do paciente com seqüela de trauma raquimedular. Este processo é desenvolvido pelo atendimento simultâneo e integrado de diversos profissionais de saúde. O Médico Fisiatra em conjunto com a Equipe de Terapeutas (Fisioterapeuta, Terapeuta Ocupacional, Enfermeiro, Psicólogo, Assistente Social, Nutricionista e Educador Físico) desenham o Programa de Reabilitação do paciente, a partir das necessidades identificadas na sua avaliação.

O programa ideal de Reabilitação dos indivíduos lesados medulares deve incluir uma

abordagem intra-hospitalar que, de forma intensiva, possibilite a esse paciente recuperar suas capacidades residuais, compreender sua nova condição física e funcional, treinar e orientar o paciente, seus familiares/cuidadores quanto às suas necessidades especiais. Infelizmente, este modelo de tratamento não está disponível na maioria dos hospitais que atendem os pacientes agudos, resumindo-se ao atendimento ambulatorial.

EPIDEMIOLOGIA

Não é possível precisar o número de casos de Lesão Medular no Brasil, uma vez que sua

notificação não é compulsória e não há sistematização no registro de ocorrências nos órgãos governamentais. Estima-se que a cada ano ocorram mais de 10.000 casos novos, que representa uma incidência muito elevada quando comparada com outros países. Nos estudos brasileiros que descrevem a ocorrência de casos em hospitais ou Centros de Reabilitação, é consensual que a maioria é de origem traumática. No entanto há divergências entre a etiologia mais comum. Estudos em Centros de Reabilitação revelam que a maior parte dos casos relaciona-se a ferimentos por projétil de arma de fogo, em primeiro lugar e acidentes automobilísticos como segunda causa mais comum. Em levantamentos realizados em Centros de Referência em traumatologia da cidade de São Paulo, a causa mais comum relaciona-se a quedas, em especial quedas de laje. Vale ressaltar que estes últimos estudos também mostram uma diminuição da ocorrência por projétil de arma de fogo e de acidentes automobilísticos, sendo observado aumento apenas nos acidentes com motociclistas. Mergulhos em água rasa são causa relativamente freqüente e evitável.

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As causas não traumáticas correspondem a cerca de 20% dos casos de Lesão Medular e compreendem um vasto leque de patologias como tumores intra e extra-medulares, fraturas patológicas (metástases vertebrais, tuberculose, osteomielite e osteoporose), estenose de canal medular, deformidades graves da coluna, hérnia discal, isquemia (em especial associada a aneurismas de aorta), infecciosas (p.ex. mielite transversa) e auto-imunes (p.ex. esclerose múltipla).

CLASSIFICAÇÃO A Lesão Medular é classificada segundo a padronização internacional determinada pela American Spinal Injury Association (ASIA - http://asia-spinalinjury.org/). Em relação ao nível da Lesão Medular, define-se como tetraplegia o acometimento de membros superiores, inferiores e tronco e paraplegia como o comprometimento de membros inferiores e tronco. Na propedêutica, conceituamos plegia como a ausência de movimento voluntário e paresia como a presença de contração muscular voluntária com diminuição da força. No entanto, a ASIA recomenda que nos casos de Lesão medular SEMPRE se classifique como tetraplegia ou paraplegia. A diferenciação dos casos nos quais há movimentação muscular ativa e/ou preservação sensitiva abaixo do nível de lesão se dá por uma escala específica (Frankel). Determinamos o nível sensitivo da lesão através da avaliação clínica da sensibilidade dos dermátomos ao toque leve e à dor. São avaliados pontos chaves dos dermátomos dando notas de 0 para ausência de sensibilidade, 1 para sensibilidade alterada (diminuição ou aumento) e 2 para sensibilidade normal ( figura 1). O nível motor é determinado pela avaliação do grau de força muscular (tabela 1) nos grupos musculares correspondentes aos miótomos (tabela 2). Esta graduação não é aplicada aos músculos do tronco.

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Sensitivo

Ponto-chave da Sensibilidade 0 = Ausente 1 = Comprometido 2 = Normal NT = Não testável

Figura 1 Dermátomos e pontos chave da sensibilidade.

Tabela 1 Avaliação da força muscular

Grau O

Paralisia total

Grau 1

Contração visível ou palpável

Grau 2

Movimentação ativa sem vencer a força da gravidade

Grau 3

Vence a gravidade, mas não vence qualquer resistência

Grau 4

Não vence a resistência do examinador

Grau 5

Normal

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Tabela 2 Miótomos e testes musculares correspondentes. Nível Motor

Ação

C5

FLEXÃO DO COTOVELO

C6

EXTENSÃO DO PUNHO

C7

EXTENSÃO DO COTOVELO

C8

FLEXÃO DAS FALANGES DISTAIS

T1

ABDUÇÃO DO QUINTO DEDO

T2 - L1

Não é possível quantificar

L2

FLEXÃO DO QUADRIL

L3

EXTENSÃO DO JOELHO

L4

DORSIFLEXÃO DO PÉ

L5

EXTENSÃO DO HÁLUX

S1

PLANTIFLEXÃO

O nível sensitivo é definido como o último em que a sensibilidade está preservada (nota 2). O nível motor é o último nível em que a força é pelo menos grau 3 e o nível acima tem força muscular normal (grau 5).

QUADRO CLÍNICO E PRINCIPAIS COMPLICAÇÕES Espasticidade: é uma expressão clínica da lesão do sistema piramidal na qual ocorre aumento do tônus muscular (hipertonia) caracterizado por aumento da resistência ao estiramento muscular passivo e dependente da velocidade angular. Geralmente está associada a automatismos (movimentos involuntários em flexão ou extensão). Classifica-se pela Escala Ashworth (tabela 3).

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Tabela 3 Escala de Ashworth

1

Tônus muscular normal

2

Discreto aumento do tônus, com pequena resistência ao movimento passivo

3

Tônus aumentado com facilidade para realizar o movimento passivo

4

Tônus bastante aumentado com dificuldade para realizar o movimento passivo

5

Tônus muito aumentado com articulação fixa em extensão ou flexão

A intensidade da espasticidade assim como a freqüência dos automatismos podem gerar

incapacidade, impedindo ou dificultando a realização de atividades como as transferências (da cadeira de rodas para o leito, carro, cadeira de banho, etc.), vestuário, posicionamento na cadeira de rodas e/ou na cama. A intensidade da espasticidade pode piorar com estímulos nociceptivos abaixo do nível da lesão como distensão vesical, infecção urinária, cálculos urinários, obstipação intestinal, úlceras de pressão, paroníquia, fraturas e roupas apertadas.

A espasticidade também pode ser causadora de deformidades articulares. Com a hipertonia

há desbalanço entre os grupos musculares, prevalecendo a postura favorecida pela musculatura mais forte. Estas posturas, se não corrigidas, podem tornar-se fixas afetando o prognóstico reabilitacional. Bexiga neurogênica: a micção normal envolve complexos mecanismos de integração do sistema nervoso autônomo (involuntário) e piramidal (voluntário). O ciclo normal de micção deve permitir armazenamento de urina, percepção de bexiga cheia e eliminação voluntária com baixa pressão vesical. Para o esvaziamento vesical adequado, deve haver relaxamento voluntário do esfíncter em sincronia com a contração do detrusor (involuntária). Se o relaxamento do esfíncter externo não é possível e ocorre contração involuntária do detrusor, há aumento da pressão intravesical com risco de refluxo vésico ureteral e falência renal a longo prazo por obstrução pós-renal. A estase urinária leva infecções urinárias de repetição e risco de cálculos

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urinários. O manejo da bexiga neurogênica deve garantir esvaziamento vesical a baixa pressão, evitar estase urinária e perdas involuntárias. Na maior parte dos casos, este esvaziamento deverá ser feito por cateterismo vesical intermitente. Além dos riscos clínicos (infecção, insuficiência renal), a incontinência urinária causa isolamento social e tem grande impacto na autonomia funcional do paciente. Intestino neurogênico: após a Lesão Medular, a função intestinal também estará afetada. A motilidade do cólon é basicamente autônoma recebendo pouca influência do sistema nervoso central. Os movimentos peristálticos estarão presentes, ficando comprometido somente o funcionamento esfincteriano. A manifestação clínica será a obstipação intestinal. Todo paciente com lesão medular deve ser orientado a ingerir dieta não obstipante, rica em fibras, usar assento sanitário apropriado e realizar manobras como massagens abdominais para facilitar a eliminação de fezes. Comumente são prescritos medicamentos laxantes. Dor neuropática: a ocorrência de dor após a Lesão Medular é muito freqüente, 60% dos casos terão dor em alguma fase. Cerca de um terço dos pacientes desenvolve dor crônica de forte intensidade. A International Association of Study of Pain (IASP) classifica a dor após a lesão medular em nociceptiva (visceral ou osteomuscular) e neuropática. A dor neuropática caracteriza-se por sensação desconfortável geralmente em queimação, choque ou formigamento em região na qual há perda ou diminuição da sensibilidade. Devemos diagnosticar e tratar a dor o mais precocemente possível para que diminua a chance cronificação. A dor pode ser um fator incapacitante às vezes mais importante que a própria perda motora e tem implicações funcionais, psicológicas e sócio-econômicas. Assim como a espasticidade, a piora do padrão de dor pode relacionar-se a estímulos nociceptivos periféricos. Ossificação Heterotópica: é é a formação de osso em tecidos moles em locais onde normalmente este não existe. Ocorre sempre abaixo do nível de lesão, mais comumente nos quadris, mas pode ocorrer em outras grandes articulações como joelho, ombro e cotovelo. Pode levar à formação de grandes massas ósseas, diminuir a amplitude articular ou até mesmo bloquear completamente a articulação, o que leva à dificuldade para se sentar adequadamente, vestir-se e realizar transferências. A detecção precoce na fase aguda, antes do amadurecimento e calcificação, e o tratamento adequado impedem a progressão do processo.

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Úlceras de pressão: os indivíduos com Lesão Medular devem ser orientados quanto ao cuidado adequado com a pele, desde a fase aguda. A perda de mobilidade associada à perda de sensibilidade faz com que áreas sob proeminências ósseas sofram isquemia da pele, propiciando o desenvolvimento de úlceras de pressão, uma das complicações mais comuns após a Lesão Medular.

As áreas de maior risco para úlceras de pressão são ilustradas na figura 2, e a classifi-

cação, de acordo com a profundidade, na figura 3. Figura 2 Áreas de risco para úlceras de pressão.

A principal medida para evitar a formação de úlceras de pressão é a mudança de decúbito a cada 2 a 4 horas e a realização de push up, quando em cadeiras de rodas (figura 4). O suporte nutricional adequado também é importante fator preventivo e terapêutico, no entanto, o principal cuidado, é não apoiar o paciente sobre a ferida. Curativos e outras medidas podem ter efeitos adjuvantes sobre o fechamento das lesões, mas não tem nenhum efeito se a mudança de decúbito não for realizada adequadamente. Nos estágios 3 e 4 o tratamento adequado deve ser de reconstrução por cirurgia plástica reparadora. Estas feridas têm alta demanda

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catabólica e podem levar a quadros consumptivos importantes. Nas lesões onde há exposição óssea há grande risco de osteomielite que é de difícil tratamento e alta morbi-mortalidade. A ocorrência de úlceras de pressão aumenta a ocorrência de complicações secundárias como deformidades articulares, aumenta a intensidade de espasticidade e dor neuropática além de retardar a alta hospitalar e elevar os custos do tratamento, impedindo a inclusão do lesado medular no Programa de Reabilitação. Figura 3 Classificação das úlceras de pressão. Derme

GRAU 1

Profundidade anatômica: Derme Gordura

GRAU 2

Profundidade anatômica: Gordura Fáscia

GRAU 3

Profundidadeanatômica: Fáscia

GRAU 4

Profundidade anatômica: Osso

Osso

Figura 4 Push up

Alterações vasculares: são três principais complicações no sistema circulatório, que podem ocorrer após a lesão medular - hipotensão postural, disreflexia autonômica e trombose venosa profunda e embolia pulmonar. A trombose venosa profunda é decorrente da hipercoagulabilidade sanguínea, das alterações endoteliais e da estase venosa, devido à vasoplegia (tríade de Virchow). Cerca de 50% dos pacientes na fase aguda desenvolvem TVP assintomática, 15% apresentam manifestações clínicas

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e 4% evoluem para embolia pulmonar, muitas vezes fatal. O quadro clínico se caracteriza pelo edema e empastamento da extremidade, aumento da temperatura local, cianose ou hiperemia. A dor é referida quando o paciente tem a sensibilidade preservada. A prevenção deve ser feita com uso precoce de anticoagulantes e movimentação passiva dos membros inferiores.

A hipotensão postural é conseqüência da vasodilatação abaixo do nível de lesão medular

e represamento de sangue nos vasos de capacitância venosa dos membros inferiores. A elevação brusca do decúbito, ao assumir a posição sentada ou em pé, provoca queda da pressão arterial sistólica e diastólica, manifestando-se clinicamente como zumbido, escurecimento da visão e até síncope. A prevenção é feita com treinamento progressivo de elevação de decúbito, sentarse no leito com as pernas pendentes e depois transferência para cadeira. Ingestão hídrica adequada e uso de meias elásticas ajudam na prevenção da hipotensão postural.

A disreflexia autonômica é caracterizada pelo início súbito de cefaléia e hipertensão arte-

rial, associada à sudorese, piloereção, dilatação das pupilas e rubor facial. Ocorre em pacientes com Lesão Medular acima de T6 e é conseqüente à vasoconstrição periférica e visceral, em território esplânico, por estímulo simpático. É uma resposta a um estímulo nociceptivo, como distensão vesical, obstipação intestinal, infecção urinária, paroníquia ou até mal posicionamento dos pés quando sentado na cadeira de rodas. Em indivíduos com a medula íntegra, impulsos inibitórios do sistema nervoso central causam vasodilatação e bradicardia. Nos indivíduos com Lesão Medular acima do tronco simpático, a vasodilatação não ocorre acima do nível da lesão, mantendo o quadro de hipertensão arterial, temida pelo risco de hemorragia cerebral. O tratamento é a resolução ou retirada do estímulo nociceptivo, sendo desnecessário, na maioria dos casos, o uso de drogas vasoativas.

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LEITURA RECOMENDADA 1. Greve, JMD; Casalis, MEP; Barros Filho, TEP; Diagnóstico e tratamento da lesão da medula espinal. 1a edição. São Paulo: Ed. Roca, 2001 2. Ares, MJJ; Cristante, ARL.; Lesão Medular. In: Fernandes, AC; Ramos, ACR; Casalis, MEP; Herbert,SK, coordenadores; AACD: Medicina e Reabilitação, Princípios e práticas. 1a edição. São Paulo:Ed. Artes Médicas, 2007. 189 – 206. 3. Maynard, FM; Bracken, MB; Creasey, G; Ditunno, JF; Donovan,HW; Ducker,TB; Garber, SL; Marino, RJ; Stover, SL; Tator, CH; Waters, RL; Wilberger; JE; Young, W., International Standards for Neurological and Functional Classification of Spinal Cord Injury, Spinal Cord (1997) 35, 266-74 4. Delisa, J.A; Gans, BM; Beckebek, WL; Rehabilitation Medicine: Principles and Practice, 3rd Ed., Linppincott Williams & Wilkins 5. Braddom, RL; Physical Medicine & Rehabilitation, 2nd Ed. , Saunders 6. Kottke, FJ; Lehmann, JF; Krusen’s Handbook of Physical Medicine and Rehabilitation, 4th Ed., Saunders

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