A Cidade Socialista - A Experiência Soviética de 1918 a 1932

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A CIDADE SOCIALISTA

A EXPERIÊNCIA SOVIÉTICA DE 1918 A 1932

TEO BUTENAS SANTOS



CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO - CNPq RELATÓRIO FINAL - INICIAÇÃO CIENTÍFICA – AGOSTO 2017 FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO - USP

A CIDADE SOCIALISTA A EXPERIÊNCIA SOVIÉTICA DE 1918 A 1932

BENEFICIÁRIO: TEO BUTENAS SANTOS [PIBIC 2016-2017] ORIENTADORA: PROFA. DRA. JOANA MELLO DE CARVALHO E SILVA



“É necessário um reassentamento da humanidade, com a eliminação da negligência e do isolamento rural e da aglomeração não natural de enormes massas nas grandes cidades. ” - V. I. LENIN LENIN apud. GINZBURG, Moisei. Carta em resposta a Le Corbusier. In. Sovremennaia arkhitektura, nº 1-2. Moscou, 1930.



Dedico este trabalho aos meus pais e Ă minha namorada, que me deram todo o apoio que precisei ao longo deste ano, e a todos os trabalhadores russos que hĂĄ exatos 100 anos se levantaram para lutar por uma sociedade melhor.



SUMÁRIO

PREFÁCIO .......................................................................................................................... viii INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 01 A CIDADE-JARDIM E O PLANEJAMENTO REGIONAL ......................................................... 05 A ESCALA DA ARQUITETURA ............................................................................................. 18 DE MOSCOU A MAGNITOGORSK, OU DAS EXPERIMENTAÇÕES TEÓRICAS AO PRODUTIVISMO REAL ...................................................... 26

“URBANISMO” E “DESURBANISMO” ................................................................................ 29 A LINHA DE MONTAGEM DE MILIUTIN ............................................................................. 45 DE MAGNITOGORSK A BRASÍLIA ....................................................................................... 59 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 69


PREFÁCIO

A década de 1920 na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) se constituiu como um momento de excepcional liberdade de pensamento criativo e desenvolvimento de propostas teóricas em diversos campos, em especial na Arquitetura e no Urbanismo. Situado entre a Revolução Bolchevique (1917) e o início do Segundo Plano Quinquenal (1933) – quando o governo de Stalin voltou sua atenção para a cidade – esse período ofereceu aos arquitetos e urbanistas soviéticos uma grande oportunidade e o desafio, nunca antes enfrentado, de pensar uma cidade que fosse, em sua própria expressão espacial, socialista. Embasados no pensamento de Marx, Engels e Lenin, e enfrentando as problemáticas modernas da relação cidade-campo, bem como do advento da indústria – elemento fundamental no processo de modernização da União Soviética e que precisava ser, além de instalada, servida de mão-de-obra qualificada – esses profissionais desenvolveram um grande número de propostas, muitas delas, de características revolucionárias. Com a instauração do Segundo Plano Quinquenal e do hipertrófico projeto stalinista para transformar as cidades soviéticas em vitrines do poder do Estado, todas essas propostas foram engavetadas e seus criadores tiveram que se adequar às novas políticas de urbanismo impostas pelo Partido Comunista. No âmbito internacional, com o advento da Segunda Guerra Mundial, e posteriormente da Guerra Fria, elas acabaram também sendo deixadas de lado e eventualmente esquecidas, mas não sem antes terem causado um impacto definitivo no modo de ver e pensar o urbanismo em todo o mundo. Foi justamente com a intenção de resgatar essas propostas e analisá-las no contexto da arquitetura e do urbanismo mundial – não como um momento isolado na história, específico e restrito à União Soviética, como é em geral tratado – que essa pesquisa foi desenvolvida. A produção de conhecimento acerca dessa outra face da modernidade tem especial relevância no contexto brasileiro, uma vez que praticamente nada sobre o tema foi produzido no país. A falta de material em português, seja de produção própria sejam traduções, dificulta o acesso a essas propostas e, portanto, a compreensão, por parte dos arquitetos e urbanistas brasileiros, das origens de vários conceitos que temos hoje já plenamente difundidos pelo imaginário moderno. Assim, grande parte da pesquisa consistiu na busca por material; tradução e cruzamento de informações, muitas vezes incompletas ou contra dizentes – em grande parte devido à forma conturbada como esses projetos e ideias chegaram e se difundiram pelo ocidente. Por isso, a análise de fontes primárias, como desenhos e esquemas originais, tratados e manifestos publicados no período, foi fundamental à pesquisa.

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O trabalho foi organizado em cinco capítulos, divididos em dois blocos; uma introdução e um capítulo de transição, totalizando sete. A Introdução apresenta o problema enfrentado pelos urbanistas soviéticos e seu contexto. Os dois primeiros capítulos constituem o primeiro bloco, tratando do período entre a Revolução Bolchevique (1917) e o Primeiro Plano Quinquenal (1928), no qual a impossibilidade econômica de se realizar grandes planos em uma URSS pouco industrializada e ainda se recuperando da guerra civil, levou à produção de diversas utopias. Enquanto o capítulo “A Cidade-Jardim e o Planejamento Regional” foca na produção de grandes planos urbanos e regionais, contextualizando-os no panorama geral do que vinha sendo desenvolvido e aplicado no restante da Europa, “A Escala da Arquitetura” foca na tentativa de mudança da realidade social nas cidades soviéticas pelo viés da arquitetura, mais viável nas condições econômicas presentes que o planejamento em grande escala. O capítulo de transição, “De Moscou a Magnitogorsk, ou das Experimentações Teóricas ao Produtivismo Real” trata da passagem – assinalada pelo fim da NEP e início do Primeiro Plano Quinquenal – para o momento histórico na URSS no qual se tornaria enfim possível a produção de cidades e planejamento urbano em grande escala. O período também marca a passagem do interesse da produção urbanística, inicialmente restrito às grandes metrópoles – Moscou –, para o interior do território soviético. O segundo bloco é constituído de três capítulos, que giram em torno do concurso de 1930 para a construção de Magnitogorsk – cidade socialista modelo e símbolo do Primeiro Plano Quinquenal de Joseph Stalin. O capítulo “’Urbanismo’ e ‘Desurbanismo’” trata das disputas internas e entre si nas principais organizações de arquitetos e urbanistas atuantes no período, quanto à forma que deveria tomar um assentamento socialista. Nesse capítulo é apresentada a linha de pensamento “desurbanista”, a mais potente investigação urbanística desenvolvida na URSS. O capítulo seguinte, “A Linha de Montagem de Miliutin” foca nas ideias propostas peculiares de Nikolai Miliutin (18891942), um burocrata funcionário do Partido Comunista da RSFSR, publicadas em seu emblemático livro Sotsgorod, de 1930. Por fim, o capítulo “De Magnitogorsk a Brasília” apresenta a proposta do jovem e influente arquiteto Ivan Leonidov (1902-1959) para a cidade de Magnitogorsk e em seguida analisa de que formas essas propostas soviéticas influenciaram o debate da arquitetura e do urbanismo modernos no contexto mundial.

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INTRODUÇÃO

Com a Revolução Bolchevique em 1917 e o nascimento do primeiro Estado socialista, os arquitetos e urbanistas russos – a partir de 1922, soviéticos – se defrontaram com um desafio sem precedentes: definir um modelo de ocupação territorial compatível com a vida cotidiana idealizada para uma sociedade socialista, um modelo que promovesse a Revolução e ajudasse a difundi-la pelo mundo. Se a empreitada criativa – nascida por volta de 1918 e desenvolvida até 1932 – assume por si só dimensões gigantescas, pode-se dizer que ganha contornos quixotescos diante de dificuldades como a carência de recursos materiais e tecnológicos, a incipiente experiência dos soviéticos no planejamento urbano moderno, e, sobretudo, a fundação em princípios ideológicos não testados na prática e que, não raro, dialogavam com a utopia. Ainda os soviéticos possam ter dado origem a uma forma distinta de cidade utópica, convém registrar que a ideia de utopia vinculada ao urbanismo não era inaudita, já que uma parte sempre foi indissociável da outra. De fato, não há como pensar no urbanismo moderno, desde o seu princípio, sem associá-lo aos ideais da sociedade igualitária, porque a linhagem utópica novecentista, atrelada ao ideário socialista nascente e representada no urbanismo por figuras como Charles Fourier e Robert Owen – “socialistas utópicos”, segundo Karl Marx – assentou-se na base das vanguardas modernas do século XX. Assim é que, na busca por um modelo ideal, a cidade utópica moderna surge em diferentes formatos no decorrer da segunda metade do século XIX e de todo o século XX, sempre em um lugar à parte da realidade decaída, representada naquele momento pela imundice insalubre da cidade industrial. No final do século XIX, a visão mais corrente entre os pensadores europeus era a da cidade como vício - “A cidade simbolizava, em tijolos, fuligem e imundice, o crime social da época”1. A superlotação da cidade industrial moderna, em especial das grandes capitais como Londres e Paris, as condições insalubres de moradia, e a pobreza generalizada – tão bem descritas por Engels em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, em 1845 -, levaram ao surgimento de um forte desejo de abandono da cidade, representada entre os arcaístas por uma busca à volta da sociedade agrária e das pequenas cidades. Ao mesmo tempo, com o advento da indústria, o enorme afluxo de trabalhadores rurais nas cidades tornou indispensável alguma forma de organização geral do crescimento urbano.

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SCHORSKE, Carl E. A ideia de cidade no pensamento europeu: de Voltaire a Spengler. In. Pensando com História: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000

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Nesse sentido, grande parte das propostas modernas assumem a forma da ilha utópica de Thomas More, isolada temporalmente do real, estando ora em um passado pré-urbano, árcade, ora em um futuro radiante. Fig. 1 – Os Falanstérios idealizados por Charles Fourier em 1843 eram como cidades autossuficientes, compostas por um máximo de 1600 moradores vivendo em comunidade, inseridas no campo, ao mesmo tempo rurais e urbanas. Figs. 2, 3 e 4 – A ‘Ville Contemporaine’ (1922), o ‘Plan Voisin’ (1925) e finalmente a ‘Ville Radieuse’ (1930), todos modelos utópicos de cidade idealizados por Le Corbusier na década de 1920, representam bem a visão da utopia existente em um futuro brilhante, tecnológico, radiante. Tratam-se de propostas que trabalham com tábula rasa, dialogando com a cidade industrial decadente não na ideia de fuga para o campo, retorno a um passado árcade, mas de destruição e reconstrução, da salvação da cidade pela sobreposição do novo ao antigo.

Tanto os Falanstérios de Fourier (fig. 1), quanto as Cidades Radiantes de Corbusier (figs. 2,3,4) carregam fortemente a ideia de ilha utópica, cada um a sua maneira isolandose da realidade presente em seu próprio “não-lugar”, seja pelo afastamento no campo, seja pela destruição da cidade industrial e em todos os casos, como uma ruptura total em relação ao existente. Inúmeras outras propostas modernas para o problema da cidade se fizeram de modo semelhante por toda a extensão dos séculos XIX e XX, umas mais outras menos próximas de finalmente poder existir. Da mesma forma que no restante da Europa, os pensadores bolcheviques também desprezavam a cidade industrial tradicional. Lenin diria que “nas grandes cidades, as pessoas sufocam, como Engels colocaria, em seu próprio excremento.”2

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ENGELS apud. MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. Sotsgorod: The Problem of Building Socialist Cities. Moscou: State Publishing House RFSFR, 1930. Tradução para o inglês por Arthur Sprague. Prefácio e Introdução por George R. Collins e William Alex. Copyright 1974 pelo MIT

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Desprezavam com tal paixão as grandes cidades que Nikolai Miliutin legendaria em seu livro Sotsgorod 3 uma imagem de centro industrial apenas como “Inferno na Terra”. Por outro lado, as propostas vindas do ocidente, da Europa capitalista, eram também rejeitadas, por seus valores burgueses, incompatíveis com os ideais revolucionários. Modelos como as cidades-jardim e o Plan Voisin de Le Corbusier seriam catalogados por Miliutin no mesmo livro, em uma série de imagens legendadas, como “Os Pesadelos do Urbanismo”. Assim, com pouquíssima ou nenhuma experiência prévia em planejamento urbano e territorial moderno, e sem poder contar com os ensaios desenvolvidos no Ocidente – ou ao menos sem poder admitir tal referência como que veremos – os intelectuais soviéticos se apoiaram fortemente no pensa mento de Marx, Engels e Lenin, que embora não tratassem diretamente do problema da cidade, davam os princípios básicos para garantir um urbanismo verdadeiramente socialista: A separação entre a cidade e o campo condenou a população rural a milênios de atraso e a população urbana a serem meros escravos do salário, ela destruiu as bases para o desenvolvimento espiritual do primeiro e o desenvolvimento físico do último. F. ENGELS4

A contradição entre cidade e campo é a expressão mais grosseira da sujeição da personalidade à divisão do trabalho, que transforma o indivíduo em um animal urbano limitado, por um lado, e um animal rural limitado, por outro. K. MARX5

A libertação total da humanidade das cadeias forjadas pelo passado histórico só se pode realizar com a supressão da oposição entre a cidade e o campo. F. ENGELS6

A eliminação das diferenças entre a cidade e o campo é uma das primeiras condições para a coletivização. K. MARX7

Apenas a unificação da cidade e do campo pode parar o envenenamento do ar, da água e do solo dos dias de hoje. F. ENGELS8

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MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit.

4

ENGELS apud. GINZBURG, Moisei. Carta em resposta a Le Corbusier. In. Sovremennaia arkhitektura, 1930. Disponível em: http://socks-studio.com/2012/07/14/mikhail-okhitovich-and-the-disurbanism/ 5

MARX apud. GINZBURG, Moisei. op. cit.

6

Capa do nº 3 da revista Sovremenaia arkitectura, 1930.

7

MARX apud. RODRIGUES, A. Jacinto. Urbanismo e Revolução. Porto: Edições Afrontamento, 1975

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ENGELS apud. MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 64

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Fica claro que a questão principal para esses pensadores, no que se diz respeito ao planejamento territorial urbano, está na relação entre cidade e campo, mais precisamente, na necessidade de supressão das diferenças entre esses dois espaços. El Lissitzky escreveria em seu livro Rússia: uma Arquitetura para a Revolução Mundial de 1930, em um capítulo intitulado “A Nova Cidade”: “Evolução social leva à eliminação da velha dicotomia entre cidade e campo. A cidade se empenha para trazer a natureza para seu centro e para, através da industrialização, introduzir um nível de cultura mais elevado no campo” - ecoando o pleito de abolição da distinção entre os trabalhadores rurais e urbanos, de Marx e Engels, e o chamado de Lenin à “fusão da indústria e agricultura”. Na especificidade historicamente construída do território russo, essa dicotomia se torna ainda mais evidente por se tratar de um imenso país, caracterizado por constante e absurda distância entre recursos naturais, aglomerações de população, força de trabalho e as cidades, que se desenvolveram muito mais ligadas ao poder político do que por seus serviços a uma economia nacional. Nesse sentido, a oposição entre cidade – centros de poder - e campo – depósito de energias produtivas, marginalizadas e consagradas à subsistência – se apresenta da forma mais clara, e a necessidade de sua superação se dá latente. Essa questão será levada como elemento principal e fundamental das experimentações por todo o período pré-Stalinista.

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A CIDADE-JARDIM E O PLANEJAMENTO REGIONAL

A preocupação com a relação entre cidade e campo não se restringiu apenas aos pensadores da esquerda e tomou sua forma mais concreta e influente em uma proposta fortemente liberal. Em 1898, o inglês Ebenezer Howard (1850-1928) publicou o livro To-morrow, cuja segunda edição, de 1902, viria a se chamar Garden-Cities of To-morrow. Preocupado com as condições da cidade industrial superlotada, Howard avaliou os fatores de atração da população para as cidades e para o campo, e propôs uma terceira opção: uma cidadecampo, ou Cidade-Jardim de baixa densidade, onde estariam presentes os benefícios tanto da vida rural quanto da urbana, sem os malefícios de uma ou de outra (fig. 5). As cidades-jardim seriam instaladas próximas a uma grande metrópole e conectadas a ela pelos meios de transporte e comunicação modernos, como linhas férreas. Seriam pequenos núcleos urbanos, inteiramente novos, contando com cerca de 32 mil habitantes vivendo em casas térreas, unifamiliares, com amplos jardins e áreas livres verdes, rodeados por grandes áreas rurais onde se desenvolveriam agricultura e pecuária (fig. 6). Contando também com indústria leve, elas seriam autossuficientes, constituindo-se colônias periféricas autônomas9. Trata-se, portanto, não simplesmente de uma fuga da cidade, mas de um modelo de crescimento da metrópole – um sistema de cidades-satélites conectadas entre si e à cidade principal (figs. 7, 8), capaz de acomodar a população excedente e de garantir um modelo de expansão infinita que se contrapunha ao padrão de desenvolvimento contínuo da metrópole do século XIX.

Fig. 5 – “Os três ímãs” de Howard, apresentados em seu livro “To-morrow”. (

Fig. 6 – Proporções ideais entre área urbana e área rural em uma Cidade-Jardim.

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Esse mesmo modelo seria adotado, e ganharia enorme força na Inglaterra em 1946, com a instituição do “New Towns Act”, que buscou suprir o déficit habitacional causado pelos bombardeios na Segunda Guerra Mundial através da construção de cidades-satélite no modelo das propostas de Howard.

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Figs. 7 e 8 – Modelo de crescimento da metrópole, segundo o princípio das cidades-satélite, de forma a sempre garantir afastamento entre elas (preenchido pela zona rural) e conexões intermunicipais.

Ainda que tenha sido Howard o idealizador inicial da cidade-jardim, o modelo seria difundido pela Europa principalmente a partir das ações de Raymond Unwin (18631940). Assim, Unwin, que trabalhara com ele na realização da primeira cidade-jardim inglesa - Letchworth (fig. 10) -, publicou em 1912 o livro Nothing Gained by Overcrowding! (Nenhuma Vantagem na Superlotação!), com a intenção de incentivar os investidores ingleses a promoverem novas cidades-jardim (fig. 9). Vale apontar que Howard entendia a cidade-jardim como investimento privado, gerador de lucro para o loteador e retorno financeiro para a sociedade pela valorização dos territórios periféricos. Nesse livro, além de dar uma forma palpável para a teoria de Howard - descrevendo como deveriam ser cada elemento da cidade-jardim (casas, ruas, etc.) -, o autor se opõe à ideia fundamental de seu predecessor: a de que a qualidade de vida urbana só seria possível em uma cidade inteiramente nova. Para Unwin, não se tratava da criação de novos centros urbanos, mas de novas unidades em escala metropolitana, ou seja, não de fundar comunidades autônomas, mas definir linhas de expansão racional para as grandes cidades. Com esse propósito, propõe subúrbios-satélite - em oposição às cidades-satélites – que seriam ligados a uma cidade existente, porém separados por uma faixa de campo aberto (fig. 12). Nesse sentido, Unwin defendia uma cultura de descentralização, caracterizada pela criação de centralidades polares periféricas, onde as vantagens do ambiente rural deveriam prevalecer sobre os efeitos urbanos devastadores, através do instrumento da ocupação de suburbana de baixa densidade.

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Fig. 10 – Letchworth Garden City. E. Howard e R. Unwin, 1905

Fig. 9 – Propaganda da segunda cidade-jardim inglesa, Welwyn, mostra Fig. 11 – Welwyn Garden City. a preocupação de Howard com a qualidade de vida na cidade industrial E. Howard e R. Unwin, 1920

Fig. 12 – Diagrama “The Garden City Principle applied to Suburbs”, in The Town Extension Plan, 1912. O diagrama de Unwin mostra dois subúrbios com centralidades próprias (à esquerda) se desenvolvendo no entorno da cidade principal (no centro), separados desta, e entre si, por faixas de espaço aberto.

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Essa mesma premissa se traduziria na República de Weimar no “trabantenprinzip” ou “princípio dos satélites”. A ideia era que novos bairros com centralidade própria e servidos de equipamentos coletivos, construídos a curta distância das grandes cidades, promoveriam pontos de partida para um desenvolvimento suburbano mais organizado. Esses bairros periféricos ficariam conhecidos como Siedlungen. Assim, ainda que com enormes diferenças de tipologia e densidade - afinal a proposta alemã era muito mais densa, baseada construção de edifícios verticais, multi-familiares, produzidos industrialmente no contexto das enormes mudanças de paradigma causadas pelo fim da Primeira Guerra -, podemos facilmente observar a semelhança entre o projeto encabeçado por Ernst May para o Vale do Rio Nidda (fig. 13)10, de 1927, e o emblemático projeto para o Hampstead Garden Suburb, realizado por Unwin em 1911 (fig. 14). Ambos estão implantandos em um novo subúrbio-satélite na periferia de uma grande cidade preexistente, Frankfurt e Londres respectivamente, deixando uma faixa de áreas livres, verdes e cultiváveis entre as duas áreas urbanizadas.

Fig. 13 – Projeto para o Vale do rio Nidda, implantação. Ernst May, 1925. Novas Siedlungen a noroeste (mais escuro) e a cidade existente – Frankfurt – a sudeste (mais claro). Em branco, as áreas de campo aberto.

Fig. 14 – Hampstead Garden Suburb, implantação. Raymond Unwin, 1911. O novo subúrbio-jardim (à direita) é implantado separado de Londres pela grande área de campo aberta chamada Hampstead Heath, a noroeste da capital. Para garantir a manutenção do isolamento no caso da expansão dos limites da cidade, Unwin projeta uma extensão do Hampstead Heath – marcada no desenho – para dentro do terreno de projeto.

Essa solução, ao mesmo tempo em que isola o bairro suburbano do corpo principal da cidade, impedindo a conurbação e o crescimento em “mancha de óleo”, amplia a área de contato das zonas urbanizadas com as áreas livres e rurais. Com isso, ambos os projetistas buscam melhorar a qualidade de vida da população moradora, tendo em mente a experiência da cidade industrial oitocentista. 10

O projeto foi desenvolvido quando Ersnt May era Conselheiro de Construção (Stadtbaurat) para a municipalidade de Frankfurt, incluindo emblemáticas Siedlungen que foram tema de diversos debates do urbanismo moderno internacional, como a Römerstadt Siedlung, na porção norte, e a FrankfurtWesthausen, na porção sul.

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As ideias de Howard e Unwin não influenciaram apenas os urbanistas alemães, mas se difundiram por toda a Europa, tornando a cidade-jardim o modelo mais popularmente adotado nos subúrbios europeus, tido como solução para o problema da habitação que se agravaria após a destruição causada pela Primeira Guerra. A jovem burguesia russa pré-revolucionária não é exceção, e se volta para o modelo da cidadejardim como resposta à acumulação crescente do sub-proletariado urbano, na tentativa de situar a Rússia, economicamente atrasada, no mesmo ritmo do resto da Europa. No entanto, a falta de bases econômicas e jurídicas do urbanismo russo frustraram as primeiras tentativas, encabeçadas por V. N. Semenov (1874-1960)11, de projetar uma cidade-jardim russa, e o planejamento urbano se manteve uma prática reformista12 – atuando principalmente na requalificação de áreas centrais e produção de habitação. Os arquitetos e urbanistas da vanguarda russa verão nessa solução, ainda que desenvolvida para um modelo econômico fortemente liberal, uma forma de aproximar cidade e campo. Assim, mesmo após a Revolução, a cidade-jardim continuou a ser vista como a melhor solução de ocupação territorial, pois parecia resolver o dilema cidadecampo, sendo entendida como última fase de um processo evolutivo que tinha o subúrbio-jardim como uma fase transitória. Nas palavras de E. Shor, um dos primeiros porta-vozes de uma política de reconstrução pública na Rússia pós-revolucionária: [...] a descentralização das grandes cidades e o translado do centro de gravidade da população ao subúrbio representa uma fase do processo criativo de um novo tipo de cidade. [...] O subúrbio-jardim proletário que se desenvolve ao redor das fábricas como centro de trabalho organizador, representa o embrião de uma nova concepção de edificação pública.13 Entre 1918 e 1920, uma série de novas normas foram desenvolvidas para regulamentar projetos de subúrbios-jardim proletárias. As primeiras hipóteses de planificação se referiam ao problema da ordenação territorial, a partir da reestruturação do campo. Tratavam-se de modelos de instalação extra-urbana e decentralizados, que buscavam fazer coincidir forças produtivas e estruturas habitacionais, conciliando o mundo camponês com o proletariado. Um dos primeiros ensaios nesse sentido, foi desenvolvido pelo Escritório de Arquitetura da Seção de Construções do MOSSOVET (Soviete de Moscou) em 1919, na forma de um “Plano Geral de descongestão de Moscou” (fig. 15). O projeto visava a criação de uma rede territorial de cidades-satélites que deveria garantir a nivelação de condições entre a cidade e o território agrícola, deixando 11

Em julho de 1922, em uma palestra intitulada “Princípios Básicos das Cidades-Jardim”, Semenov cunhou o slogan “A Cidade-Jardim – Cidade do trabalho liberto”, associando ideias do socialismo a cidade-jardim. 12

“Reformista” tem aqui o mesmo sentido utilizado por Manfredo Tafuri em TAFURI, Manfredo. Pojecto e utopia. Coleção Dimensões, Presença: Lisboa (Portugal), 1985.

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SHOR, E. I compiti piú urgenti dela sezione di architettura e i metodi per realizzarli, 1920. Cit. In. QUILICI, Vieri. L’archutettura del costruttivismo. Bari, 1969, pag. 470-174

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aberto aos arquitetos e urbanistas o desafio de propor o desenho dessas novas cidades – o que viria a produzir diversas experimentações, tendo destaque as de Ivan Zholtovsky (1867-1959) e Aleksei Schusev (1973-1949). Assim, nesse período, o foco dos urbanistas se manteve restrito a Moscou e seu entorno, e é só a partir de 1920, com a criação da Comissão do Estado para Eletrificação da Rússia (GOELRO) que se iniciaria o processo de transformação da imensa realidade social soviética, em função da elevação do potencial produtivo industrial.

Fig. 15 – Plano Geral de descongestão de Moscou, desenvolvido pelo Escritório de Arquitetura da Seção de Construções do MOSSOVET, 1919. As pequenas manchas quadriculadas ao longo das principais linhas de transporte representam os locais de implantação das novas cidades-satélite propostas. Seus traçados seriam posteriormente alvos de concursos públicos.

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A criação da GOELRO iniciou, de forma tangível, a história do produtivismo14 na URSS. Tendo como objetivo “em um prazo de 10 a 20 anos eletrificar toda a Rússia, tanto a indústria como a agricultura”, nas palavras otimistas de Lenin, a Comissão buscava criar uma rede de instalações para produção e distribuição de energia por todo o território russo, recorrendo a recursos locais, como carvão e turfa, de forma a reforçar as bases regionais de um desenvolvimento geral. Mais que um instrumento de progresso econômico, que buscava equiparar a Rússia aos países industrializados do oeste europeu, a GOELRO se tornou o instrumento simbólico principal da perspectiva de desenvolvimento da sociedade soviética. Nas palavras de Lenin: “Devemos demonstrar aos camponeses que implantar uma indústria baseada na tecnologia moderna, baseada na eletricidade, eliminará as diferenças existentes entre cidade e campo e permitirá a elevação do nível cultural do ambiente rural”. Nesse sentido, ela assume o papel de instrumento coordenador dos distintos estudos e propostas de planificação que foram elaborados nos primeiros anos pós-revolução – até entrar em vigor o Primeiro Plano Quinquenal, em 1928.

Fig. 16 – Plano de eletrificação da região de Moscou. GOELRO, 1920 1. Rede elétrica. 2. Centrais de distribuição. 3. Área de influência da rede.

Fig. 17 – Esquema de organização do território de Moscou. B. Sakulin, 1918. 1. Principais linhas férreas. 2. Linhas férreas em projeto. 3. Artérias veiculares em projeto. 4. Cidades sujeitas a transformação. 5. Zona de influência econômica de Moscou. 6-7. Anéis férreos (projeto).

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Entende-se “produtivismo” como a real produção ou construção dos edifícios e cidades projetados, portanto aquilo que sai do papel, que é trazido para a realidade em oposição a se manter apenas no plano das ideias. Esse conceito é importante pois caracteriza um período na história da arquitetura e urbanismo soviéticos que se inicia com o fim da NEP e início do Primeiro Plano Quinquenal, quando o foco passa da experimentação para a produção efetiva.

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Um bom exemplo da influência da GOELRO nessas primeiras propostas, é o plano de B. Sakulin para a organização da região ao redor de Moscou, apresentado inicialmente em 1918 como Esquema de organização do território de Moscou (fig. 17). Este é o primeiro projeto a transferir ao território russo o modelo howardiano de cidades-jardim satélites, dando uma acentuação distinta ao papel da indústria e dos transportes, elementos dominantes dos novos marcos infra-estruturais do país. A proposta assume de maneira decisiva um caráter regional, referindo-se a Moscou e sua região econômica. Em 1922 esse pano foi modificado segundo os ideais de planificação propostos pela GOELRO. Apresentado como Esquema de distribuição da população nos territórios europeus da URSS (fig. 18), o plano se amplia até cobrir grande parte do território europeu do país – como evidenciado pelo novo título da proposta –, compreendendo toda a área da região industrial central,15 território mais industrializado da União, e que já apresentava nesse ano crescimento populacional sensivelmente maior nos centros urbanos (+85,9%) que no campo (+30,7%).

Fig. 18 – Esquema de distribuição da população nos territórios europeus da URSS. B. Sakulin, 1922. 1. Principais linhas férreas. 2. Linhas férreas em projeto. 3. Artérias veiculares em projeto. 4. Limites administrativos dos municípios (Oblast). 5. Capital (Moscou). 6. Grandes cidades. 7. Pequenas cidades. 8. Cidades-jardim. 9. Povoados-jardim. 10. Cidades e povoados em projeto. 15

A GOELRO dividiu o território russo em oito grandes regiões econômicas, sendo elas: a industrial central (que inclui Moscou), a do Nordeste, os Urais, o Donec, o Oeste, o Volga Médio, a Sibéria e o Cáucaso.

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Fig. 19 - Esquema genérico, ilustrativo do sistema proposto por B. Sakulin para organização territorial regional, produzido pelo autor a partir das ideias expressas nas propostas de Sakulin para a região econômica de Moscou, de 1918, e para o território europeu da URSS, de 1922.

Ainda que as duas propostas tenham escalas bastante diferentes – algo fundamental do ponto de vista da planificação do território -, os aspectos gerais de organização regional se repetem de forma bem clara. Seguindo o esquema howardiano de cidades-jardim satélites, Sakulin propõe no plano de 1918 um sistema de anéis de transportes, sendo os mais externos ferroviários – com um trecho fluvial no caso apresentado –, conectando pequenas cidades da região, e um rodoviário, interno aos outros dois, integrando um anel de cidades-jardim no entorno imediato da capital. No segundo esquema, de 1922, Sakulin propõe uma rede de cidades, formada pela ligação entre uma cidade principal – no caso Moscou – a outros grandes centros urbanos – Smolensk, Kursk e Nizhny-Novgorod – por linhas férreas radiais, ao mesmo tempo em que esses centros se unem entre si por uma linha circular, sendo um trecho, no caso da região de Moscou, substituído por transporte fluvial. Para o entorno de cada grande cidade da rede, Sakulin repete, com alguma modificação, o sistema de anéis de 13


transportes, um mais externo, ferroviário, e um mais interno, rodoviário, conectando cidades-jardim. Nos pontos de cruzamento entre as principais linhas de transporte (ferroviário), Sakulin dispõe novas unidades urbanas de pequeno porte. A intenção principal presente nas duas propostas de B. Sakulin está em extrapolar para além dos limites da cidade a população operária, dando, a partir de um sistema integrado e eficiente de transportes, a possibilidade de moradia afastada dos centros de produção industrial onde se concentra o trabalho – descongestionando as grandes cidades. Ao mesmo tempo, com a criação dessa rede que insere e espalha no território novos centros produtivos de pequeno porte, a população rural não estaria mais isolada, fora das cidades, mas se tornaria parte de um conjunto produtivo e logístico em que os locais de moradia e trabalho das populações rural e urbana se imbricariam. Trata-se da intenção mais clara de introduzir um nível cultural mais elevado à população camponesa, a partir da indústria e da urbanização da vida – como proposto por Lenin –, e de integrar à produção industrial os benefícios da vida no campo. Outra proposta que tem destaque no período, é a “Nova Moscou” de Alexei Schusev (1873-1949), apresentada em 1923 como sequência de seu trabalho no Escritório de Arquitetura da Seção de Construções do MOSSOVET – onde participara da elaboração do Plano de descongestão de Moscou, de 1919. Schusev fora também responsável pela reestruturação da primeira associação de arquitetos organizada no regime socialista, a Associação dos Arquitetos de Moscou (MAO). Fundada inicialmente em 1867 e reorganizada em 1922 por Schusev (após ter sido desmanchada nos anos de guerra civil), a MAO representava a velha-guarda, sendo composta majoritariamente por defensores do academicismo do antigo regime e do chamado “academicismo de esquerda”. No entanto, ainda que fortemente marcado por ideais da ala conservadora do Partido, o projeto para a “Nova Moscou” introduz a ideia de um modelo alternativo de planejamento, que mais que levar a urbanização para as zonas rurais, pretendia trazer o campo para dentro da cidade. Para tanto, zonas verdes se inserem no corpo urbano em zonas circulares equivalentes às linhas de transporte, ao mesmo tempo em que um anel externo exerce a função de conector entre as novas cidades-jardim previstas. Desenvolvida paralelamente ao plano oficial do MOSSOVET, outra proposta que utilizou dos mesmos princípios de inserção do campo nas áreas urbanas foi para a “Grande Moscou” de Sergei S. Shestakov, publicada em 1925 no jornal Izvestiia, e considerada, no mesmo ano, “adequada” pelo Plenário da Seção do Soviete de Moscou. O projeto prevê enorme expansão territorial da cidade a partir de anéis em torno do núcleo construído pré-existente, acompanhados de uma expansão radial da malha rodoviária. Esse crescimento tornaria Moscou a maior cidade do mundo em área,16 possibilitando enormes áreas plantadas e drástica ampliação no número de moradias. 16

Shestakov propõe a expansão da área urbana de Moscou para uma área de 200 mil hectares, quase quatro vezes mais que os 60 mil hectares propostos por Schusev para a “Nova Moscou”.

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Fig. 20 – “Grande Moscou”. S. Shestakov, 1925. Desenvolvimento radial em anéis, sendo eles: 1. Anel diretamente ligado à área central contendo dois setores industriais e dois setores verdes. 2. Anel intermediário mais largo, contendo quatro grandes setores para novas construções (zona residencial) e quatro setores menores de área plantada. 3. Anel verde circundando toda a cidade e conectando as demais áreas plantadas. 4. Anel ferroviário associado a indústrias, bordeando o limite da cidade e conectando todas as linhas férreas que entram e saem de Moscou.

O desenho lembra uma cruz grega inscrita em um círculo delimitado por um anel ferroviário, com cidades-satélites para fora da circunferência. Novas áreas industriais se localizam adjacentes à área central, separando-a dos novos subúrbios residenciais, de modo que ambas as partes da cidade tenham fácil acesso aos postos de trabalho. Ao mesmo tempo, faixas de áreas verdes isolam os novos subúrbios da área central e entre si – de maneira semelhante às propostas defendidas por Unwin. O anel de áreas verdes que circunda a cidade serve à contenção da expansão horizontal e como separação entre as áreas de subúrbio residencial e o setor industrial que se desenvolve associado ao anel férroviário, movido para a borda da cidade, onde se dá o trabalho da população operária moradora das cidades-satélites circundantes. 15


Fig. 21 – “Grande Moscou”. S. Shestakov, 1925. Escala regional.

Como Sakulin, Shestakov leva o planejamento para o nível regional, propondo o desenvolvimento de novos núcleos urbanos ao longo dos eixos de transporte que irradiam de Moscou (fig. 21). Mesmo que não tenha sido patrocinada pelo governo, a proposta recebeu considerável publicidade e exerceu bastante influência no período. No entanto, receberá posteriormente fortes críticas por sua aposta estrita ao desenho de um esquema geométrico definido como típico de um “plano burocrático”, por sua divisão em zonas “mecânica e simplista” e pela rigidez do esquema em relação ao futuro crescimento urbano – diferente do esquema de Sakulin, que sugere um modelo de expansão, em teoria, infinito. Na “Grande Moscou”, “a vontade do projetista reduz esquematicamente a uma hipótese formal (abstrata e geométrica) a dinâmica contraditória do desenvolvimento econômico e social”,17 resultando em algo muito aquém da expectativa 17

QUILICI, Vieri. Ciudad rusa y ciudad soviética. Barcelona (Espanha): Editorial Gustavo Gili, 1978, p. 172

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otimista dos anos que se seguiram à instituição da GOELRO (1920) e da Nova Política Econômica (NEP)(1921). O desenvolvimento teórico do urbanismo nesse período é fortemente marcado por um conflito entre o desejo de planificação do território – representado pela GOELRO –, e a necessidade de tomar provisões imediatas para combater a crise econômica causada pela guerra civil – representada pela NEP. O GOSPLAN, criado em 1921, institucionalizou os temas da “regionalização”, substituindo a aspiração de alcançar o equilíbrio utópico entre cidade e campo por uma estratégia de “competição organizada” entre os polos da economia urbana e da agrícola. Nesse sentido, as propostas desenvolvidas por Sakulin, Schusev e Shestakov, privilegiam a planificação sobre o estado de emergência social e econômica, mas também se projetam como hipótese de transformação radical do território baseada em uma clara supremacia do tipo metropolitano da cidade. Os excessos da utopia regionalista levaram a um precário equilíbrio entre os dois polos da “competição organizada” ao privilegiarem as ampliações territoriais do modelo urbano justamente na parte mais industrializada e urbanizada de todo o território soviético. Com isso, ainda que a ânsia planificadora fosse fortemente presente nos projetos, as realizações desses primeiros anos não se diferenciam substancialmente das soluções levadas a cabo pelo reformismo pré-revolucionário e do que se estava pondo em prática na Europa ocidental, tendo se restringido a aldeias proletárias construídas próximas às novas indústrias e a novas e numerosas instalações e centrais elétricas. Assim, não é diretamente a partir do planejamento regional que a União Soviética entrará no produtivismo histórico, mas pela vertente da reestruturação da vida urbana.

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A ESCALA DA ARQUITETURA

Uma vez que o planejamento regional se mantém praticamente estagnado até o fim da década de 1920 – quando entra em vigor o Primeiro Plano Quinquenal –, para compreender como se dá o desenvolvimento do pensamento acerca do urbanismo na União Soviética, é necessário voltar-se para uma outra escala: a escala da arquitetura. Até a Revolução Bolchevique em 1917, a Rússia não tinha qualquer forma própria de arquitetura e planejamento urbano modernos, apenas se atualizando com o que era desenvolvido no ocidente. No entanto, com a instauração de um regime socialista, o país não poderia mais depender dos modelos desenvolvidos no capitalismo, era necessário formular uma arquitetura que deveria expressar novos valores. Não os presentes, da ordem recém-instaurada, mas aqueles que viriam a emergir do progresso da revolução. Trata-se, portanto, de um desafio que pressupõe uma vanguarda. Além disso, durante o período pré-stalinista, a ideia corrente entre os intelectuais bolcheviques era que não deveria existir nacionalismo, uma vez que a Revolução, segundo o ideal marxista, viria a ser mundial18. Dessa forma, os projetos desenvolvidos não deveriam representar uma arquitetura russa, ou mesmo soviética, mas apresentar intenção global – o foco estava na universalização. Assim, após 1917, mas principalmente em 1918, quando a guerra civil entre os exércitos Branco e Vermelho se acalma, começa uma explosão de experimentações visuais nos campos da pintura, escultura e arquitetura (figs. 22, 23). Essas experimentações, que ficariam no papel, não tinham real intenção de serem construídas – algo que só seria possível a partir de 1924 quando a economia nacional começasse a se regularizar –, mas de criar uma base necessária para o desenvolvimento posterior, visto que tudo que se tinha como referência eram os frutos imprestáveis do regime tzarista e a arquitetura e urbanismo modernos ocidentais, que reproduziam os valores da burguesia. No intuito de promover essas experimentações e criar uma nova classe de profissionais, livres da formação acadêmica baseada nos ideais prérevolucionários, o Partido Comunista criou, em 1920, a VKhUTEMAS, escola de artes integrada (arquitetura, escultura e pintura), à partir da união de organizações preexistentes (Sinskulptarkh – arquitetos e escultores – e Zhivskulptarkt – pintores). Com programa bastante similar à Bauhaus, é na VKhUTEMAS onde se dá a maior parte do debate da arquitetura e do planejamento urbano, e de onde nascem as principais organizações de arquitetos e urbanistas.

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Esse ideal se modifica quando, por volta de 1932, o Partido comandado por Stalin começa a reforçar o nacionalismo e tornar a União Soviética não um foco de dispersão da um Revolução mundial, mas um modelo a ser seguido.

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Fig. 22 (acima) – Projeto de Casa Comunal, Nikolai Ladovsky, 1920 Fig. 23 (direita) – Monumento à Terceira Internacional, Vadimir Tatlin, 1919 (modelo). Construído de “aço, vidro e revolução”, nas palavras do crítico Nikolai Punin, o monumento de mais de 400 m de altura que representava o espírito revolucionário era inexequível nas presentes condições tecnológicas e industriais.

Essas experimentações, ou “construções teatrais”, como as chamaria León Trotsky, tratavam-se de uma série de experiências libertas dos vínculos e das limitações próprias de um produtivismo. Elas se relacionavam com as prefigurações do utopismo objetual-matérico de uma vanguarda para a qual a cidade representava o ideal e o constante ponto de referência, o campo do desenvolvimento criativo-construtivo da revolução cultural. A polêmica em torno dessa “teatralização da vida” causaria a primeira ruptura intelectual entre os arquitetos e urbanistas ligados à VKhUTEMAS, ficando de um lado os Racionalistas – pejorativamente denominados Formalistas –, e do outro os Produtivistas, que mais tarde ficariam conhecidos como Construtivistas. Os arquitetos racionalistas, organizados em torno da Associação dos Novos Arquitetos (ASNOVA), fundada em 1923 por Nikolai Ladovsky (1881-1941), acreditavam na arquitetura como arte ativa, que deveria educar a vontade e o sentimento das massas no esforço rumo ao comunismo. Davam, por essa razão, enorme importância ao aspecto simbólico e formal de seus projetos. Assim, não é surpreendente que grande parte de seus integrantes fossem além de arquitetos, também designers e artistas plásticos, destacando-se entre eles além de Ladovsky, também Konstantin Melnikov (1890-1974) e El Lissitsky (1890-1941). Os Produtivistas, também chamados de “lefistas” por se organizarem em torno da revista LEF que começa a ser publicada em 1923 (fig. 24), por outro lado, não se dedicam à criação das formas artísticas em estado puro, mas à construção racional da realidade. É justamente nas páginas da LEF que ocorrerão os

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principais ataques aos Formalistas, sendo as mais incisivas as palavras de Boris Arvatov19 (1896-1940): Era de se esperar que os artistas revolucionários modernos projetassem uma “Cidade do Futuro”. O romantismo da Comuna, e não o idílio do cottage, isso em primeiro lugar.20 [...] Uma cidade suspendida no ar. Uma cidade de vidro e amianto. Uma cidade sobre molas. E isso tudo por acaso não é excentricidade, originalidade e truque? Por que devem girar essas raras casas? Quem ousará dizer que isto não é futurismo, não é estetização futurista da vida? Em outras palavras, não é o mesmo esteticismo apresentado de forma distinta?21[...] Entre a construção e o objeto existe um abismo: o mesmo abismo que há entre a arte e a produção [...] os últimos moicanos da criação separada da vida pontuam a morte do “fim em si mesmo”. [...] Iconoclastas do esteticismo estão condenados ao esteticismo até que se encontre uma ponte para a produção. [...] Como construir essa ponte em um país cuja produção mal se mantém em pé?22 O artista deve se permitir ao luxo de fazer um experimento gigantesco e extraordinário ou deve resistir a todo custo? É possível perceber no fim do trecho a essência autocrítica do discurso, destacada pela dúvida colocada no final: a mesma vanguarda que critica a criação separada da realidade é ciente do significado precário que pode ter para o momento o efeito de caracterizar a produção como nova base da sublimação estética de um problema político real. Nesse sentido, a vanguarda produtivista também se mantém sempre utópica em todos os seus diferentes níveis de organização. Em 1925 parte do grupo produtivista fundou, também no seio da VKhUTEMAS, a Associação dos Arquitetos Contemporâneos (OSA), que se tornaria a organização com maior expressão no planejamento urbano soviético até o fim da década de 1920. Os membros da OSA acreditavam no papel social da arquitetura como instrumento para construir o socialismo através da reorganização da vida cotidiana (coletivização da vida, racionalização do trabalho, etc.), não apenas na escala do edifício, mas também na escala da cidade. Por esse motivo, a maior parte de seus integrantes, que ficariam conhecidos internacionalmente como Construtivistas, eram arquitetos e urbanistas. Entre os integrantes dessa associação destacam-se, Alexander Vesnin (1883-1959), Moisei 19

Revista LEF nº 3, 1923

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Aqui Arvatov se dirige aos projetistas tratados no capítulo anterior, parte de uma classe de profissionais de formação clássica, fortemente influenciados pelos modelos de ocupação burgueses de baixa densidade baseados no princípio das cidades-jardim. 21

Aqui a crítica se volta claramente aos Formalistas e seus modelos de cidade descolados da realidade.

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Por fim Arvatov destaca a condição econômica e material do país, com a já pequena e pouco desenvolvida economia doméstica em crise causada pela guerra civil

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Ginzburg (1892-1946) – fundadores –, Mikhail Okhitovich (1896-1937), e Ivan Leonidov (1902-1959). Ginzburg foi também editor da revista Sovremennaia arkhitektura (Arquitetura Contemporânea) – ou apenas SA – (fig. 25), onde de 1925 a 1930 foram publicados os principais trabalhos e manifestos da OSA, além de receber contribuições de arquitetos e urbanistas estrangeiros – constituindo-se um dos mais importantes veículos de divulgação da arquitetura construtivista soviética para o resto do mundo.

Fig. 24 – Capa da terceira edição da Revista LEF, elaborada por Alexander Rodchenko em 1923.

Fig. 25 – Capa das edições nº 4 e 5 da Revista SA, elaborada por Alexei Gan em 1927

Para esses arquitetos e urbanistas, a vida coletiva – idealizada para o modelo político-social soviético23 - seria o resultado natural de uma organização urbana socialista. Nas palavras de G. Dubelir, proferidas em um discurso em 1918: “O plano [urbanístico] não é um mero desenho de ruas e praças, é um programa de organização da vida cidadã, uma arma de atividade social”. Assim, a ala Produtivista – representada especialmente pela OSA –, interessada na produção real da cidade e plenamente ciente da impossibilidade econômica de se executar um grande plano urbano no período, buscou uma forma de trazer para a realidade o que se vinha desenvolvendo no plano das ideias, em menor escala, uma que fosse factível nas condições presentes: a do edifício. 23

Durante os primeiros anos pós Revolução e toda a década de 1920, predominava a ideia de que era necessário instituir um novo modo de vida para os trabalhadores soviéticos, que os libertasse das construções sociais capitalistas. Em seu livro Sotsgorod, de 1930, Miliutin dedica um capítulo inteiro a argumentar em favor da coletivização da vida, fornecendo dados detalhados de como as mudanças nos hábitos cotidianos da população seriam a chave para resolver os problemas econômicos na URSS.

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Foram então criados os chamados “condensadores sociais”, grandes edifícios coletivos onde ocorreria a maturação das relações sociais e hábitos da vida coletiva. Os condensadores deveriam acelerar as mudanças na vida cotidiana da classe trabalhadora rumo à coletivização, ou, nas palavras de Anatole Kopp, “transformar o indivíduo egoísta da sociedade capitalista em um homem completo, o militante informado da sociedade socialista na qual os interesses de cada um se mesclam com os interesses de todos”. 24 Nesse sentido, diferenciam-se muito de projetos de habitação coletiva que vinham se desenvolvendo simultaneamente no ocidente25, pois buscavam, mais que atender a uma demanda por habitação e equipamentos públicos, educar a população. Tratava-se, portanto, de preparar os trabalhadores para uma transição para a vida coletivizada que seria plenamente expressa no tecido da cidade quando as condições econômicas nacionais permitissem. Os condensadores se davam de dois tipos: as casas comunais e os clubes operários. As casas comunais buscavam criar um ideal de vida doméstica coletivizada, independente da construção burguesa de núcleos familiares. No entanto, “casa comunal” era mais um slogan um conceito bem definido, de forma que surgiram desde projetos que pretendiam total independência dos indivíduos adultos, através do conceito de “células de morar”, onde cada um teria um quarto próprio e todas as atividades seriam desenvolvidas em conjunto em espaços comunitários de grandes edifícios habitacionais (lavanderias, cantinas, bibliotecas, etc.), até projetos menos idealizados de casas onde quatro a seis famílias viveriam sob o mesmo teto, compartilhando os espaços e criando seus filhos em conjunto. Esse ideal de vida coletivizada trazia a possibilidade de libertação das mulheres da escravidão doméstica, permitindo que elas se integrassem à força de trabalho. Dessa forma seria possível suprir as demandas da indústria sem adensar demais as cidades, além de um aumento do padrão de vida da classe trabalhadora com o salário da mulher, agora independente. O projeto mais icônico de casa comunal, e que mais se difundiu para o ocidente foi o Narkomfin, idealizado por Moisei Ginzburg e Ignaty Milinis para um bairro periférico de Moscou (fig. 26).

24

KOPP apud. MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 18

25

Ainda que nesse período a maior parte dos países europeus ainda apostasse nos subúrbios-jardim como solução para o problema da moradia, os modelos de habitação coletiva vinham ganhando força devido ao enorme déficit habitacional criado pela Primeira Guerra. Entre eles, ganham destaque as propostas para as Siedlungen alemãs, de arquitetos como Ernst May, Bruno Taut e Walter Gropius, e em especial os ‘Hof’ vienenses: enormes edificações unitárias, de alta densidade, equipadas com escolas, lavanderias coletivas, núcleos de artesãos e todo tipo de equipamento coletivo, constituindo blocos fechados ou semiabertos em torno de grandes áreas verdes públicas. Esses superblocos, que emulavam os tradicionais blocos de habitação vienenses, construídos ao redor de pátios, porém em enorme escala, ficariam conhecidos como “cidadelas operárias”. Tendo sido construídos em um breve período de governo socialista na municipalidade (que ficaria conhecido como “Viena Vermelha”), esse modelo foi o que mais se aproximou dos “condensadores sociais” soviéticos.

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Fig. 26 – Casa Comunal Narkomfin, Moisei Ginzburg e Ignaty Milinis, Moscou, URSS (Rússia), 1928-30

Fig. 27 – Casa Comunal, Moisei Ginzburg, Sverdlovsk, URSS (Rússia), 1930

Os clubes operários surgiram como uma extrapolação do edifício habitacional para a cidade. Equipados com bibliotecas, auditórios, e todo tipo de equipamento comunitário, os clubes operários deveriam ser lugares de reunião dos trabalhadores fora do período de trabalho, e servir como local de confrontação de ideias e aculturação. Dessa forma, se criaria uma massa de trabalhadores mais culta, vivendo coletivamente, ao invés de se prender a um antro familiar. Ainda que sofrendo oposição das alas mais conservadoras do Partido, diversos projetos de casas comunas e especialmente de clubes operários (pois serviam aos interesses propagandísticos do Estado) foram construídos e amplamente divulgados, influenciando inclusive arquitetos ocidentais como Le Corbusier26. Com o impacto inicial desses projetos, arquitetos da ala Racionalista começam também a aderir e a produzir algumas das mais icônicas arquiteturas soviéticas do período, como o Clube Operário Rusakov de Konstantin Melnikov (fig. 28).

Fig. 28 – Clube Operário Rusakov, Konstantin Melnikov, Moscou, URSS (Rússia), 1927

Fig. 29 – Clube Operário Zuev, Ilya Golosov, Moscou, URSS (Rússia), 1928

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Especialmente na Unité d’Habitation em Marselha (1952) podemos perceber a enorme influência de projetos como o Narkomfin. A famosa seção transversal da Unité (fig. 30), com seu sistema de duplex articulados em torno de um corredor central chega a ser quase idêntica à seção transversal do projeto de K. Ivanov de casas comunais para os alunos do instituto de arquitetura de Leningrado, idealizado quase três décadas antes (fig. 31).

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Fig. 30 – Unité d’Habitation, Le Corbusier. Marselha, 1952

Fig. 31 – Casa comunal para os alunos do Instituto de Arquitetura de Leningrado, K. Ivanov

É justamente por essa intenção de direcionamento a um modo de vida específico que caracteriza os condensadores sociais que eles serão fortemente criticados no final da década de 1920 e começo dos anos 1930, justamente pela própria ala Produtivista. É importante reforçar a característica autocrítica dos produtivistas. Esses arquitetos e urbanistas, em especial os membros da OSA se consideravam cientistas que se encontravam em uma “posição delicada e frágil”, levando a cabo uma “investigação desinteressada”27 com o objetivo de fazer coincidir a busca por novos valores coletivos com a produção de habitação para milhões de trabalhadores. Assim, seus projetos no período tratavam-se de experimentações na busca por um modelo ideal e que, portanto, não só poderiam como deveriam ser criticadas. Isso tornava a autocrítica uma prática recorrente, em especial em relação àqueles projetos que se deixavam levar pelos excessos da supercoletivização da vida. Ginzburg escreveria em um artigo para a SA em 1926: “Consideramos indispensável criar um certo número de elementos que estimulem a paisagem em formas de vidas sociais superiores. Que estimulem, mas não decretem.”. Dessa forma, ainda que contando com enorme entusiasmo e apoio iniciais, com o passar dos anos os condensadores sociais, aos quais se pretendia atribuir a imagem plena de “cidade socialista”, se tornam alvos de críticas por configurarem ilhas de socialismo, aberrações em um mar de atraso e subdesenvolvimento: ... antecipar a etapa final do socialismo, do comunismo, em forma de pequenas ilhas significa bem pouco quando o resto do país se encontra ainda na fase de liquidação da NEP e nas primeiras fases do socialismo.28

27

QUILICI, Vieri. op. cit. p. 182

Nesse sentido, os membros da OSA se assemelhavam muito aos arquitetos do CIAM, por acreditarem em uma arquitetura baseada na objetividade imparcial da ciência, fruto de um procedimento científico. 28

MEHNERT, 1932 apud. QUILICI, Vieri. op. cit. p.143

24


O mesmo tipo de crítica seria direcionada aos projetos para bairros periféricos que na impossibilidade econômica de execução de planos regionais eram pensados como conjuntos urbanos unitários. É o caso do bairro Moskovsky-Narvsky, construído em Moscou para abrigar a crescente população urbana, tido como uma autêntica parcela realizada de “cidade socialista”. Com isso, fica claro que apenas uma reestruturação completa do território soviético seria capaz de alavancar o país rumo a um modo de vida realmente socialista. Isso só seria possível após 1928, com a instauração do Primeiro Plano Quinquenal.

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DE MOSCOU A MAGNITOGORSK, OU DAS EXPERIMENTAÇÕES TEÓRICAS AO PRODUTIVISMO REAL

Ainda que sete anos de NEP tivessem estimulado a economia urbana e tirado a União Soviética da grave crise econômica causada pela Guerra Civil e a destruição do mercado privado durante os anos do comunismo de guerra29, eles pouco contribuíram para atenuar os enormes contrastes entre campo e cidade. O modelo de “competição organizada” instituído pelo GOSPLAN de 1921, que tinha por objetivo “regionalizar a economia a partir de nós urbanos conservando em parte as características utópicas de um desenvolvimento homogêneo”, não contribuiu para dar soluções aos “desequilíbrios constitucionais do território, que se deviam principalmente às enormes distâncias entre as zonas dotadas de recursos naturais (agrícolas, minerais e energéticos) e os centros de produção e consumo, as cidades”30. Até 1928 as iniciativas de reorganização do território nacional haviam “oscilado entre a utopia do desenvolvimento homogêneo e a necessidade de estabelecer uma divisão de papeis entre as distintas partes geográficas, com base em critérios de especialização e prioridade de intervenção”31. O desenvolvimento organizado e mais integrado do território soviético só seria institucionalizado em 1928 com o Primeiro Plano Quinquenal, que tinha como tema principal a industrialização do país. O problema enfrentado pelo Plano seria bem colocado por Stalin, quando assumiu – no mesmo ano – o controle do Partido: “Independente da forma como desenvolvamos nossa economia nacional, não podemos evitar a questão de como distribuir corretamente a indústria [de forma que ela se torne] o principal elemento da economia nacional”32. Entretanto, conforme a situação econômica ia se estabilizando nos anos que precederam o Plano, avanços políticos já eram feitos no sentido de um desenvolvimento integrado da indústria nacional. Em dezembro de 1925, o XIV Congresso do Partido Comunista sancionou o princípio de desenvolvimento autônomo da indústria pesada na URSS, um novo sistema produtivo pensado a partir da plena exploração de recursos naturais. No XV Congresso, ocorrido em dezembro de 1927, foram traçadas as diretrizes do Plano de 1928, no âmbito dos aspectos materiais (quantitativos), das finanças, do trabalho e das mercadorias. O foco do Plano estava no rápido esforço de industrialização e, portanto, o Congresso tratou da definição da quantidade dos meios e bens a produzir, 29

Período que se estendeu da Revolução de 1917 até 1921, ano da criação da NEP, sob direção de Lenin. O “comunismo de guerra” foi marcado por mudanças radicais na economia russa, como a desapropriação forçada da propriedade privada, a estatização da economia e o consequente caos econômico. 30

QUILICI, Vieri. op. cit. p. 186

31

Idem, ibidem. p. 188

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STALIN apud. MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 63

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a quantidade de mão de obra a empregar ou a transferir de um setor ao outro e, o mais importante para a questão do urbanismo, a definição dos lugares em que concentrar a nova população urbana (transferida das zonas rurais), das instalações e cadeias produtivas em torno das quais fazer ela gravitar e a quais vincular a força de trabalho. Para atingir os ambiciosos objetivos colocados pelo Plano, seria necessária a mobilização de meios e de força de trabalho para realizar extraordinários movimentos de população e sua rápida e nova instalação junto às novas instalações industriais que deveriam ser produzidas33. Isso trouxe para os arquitetos e urbanistas um problema totalmente novo: realizar, produzir cidades inteiras. Não mais o foco estaria nos planos regionais para as áreas metropolitanas existentes, nem na produção de bairros periféricos ou experimentações com edifícios coletivos. A partir do Primeiro Plano Quinquenal, o esforço dos projetistas bolcheviques se voltaria para o planejamento e construção de novas cidades para acomodar a nova população operária. Com isso, o alvo dos concursos públicos de urbanismo e propostas independentes (dessa vez com real intenção de se construir e fundos para tal) seria transferido Moscou e sua região econômica para o interior do território russo onde novas cidades industriais como Magnitogorsk seriam instaladas (fig. 32).

Fig. 32 – Mapa do território soviético (em destaque), com quatro cidades marcadas: 1. Moscou (capital) 2. Nizhny-Novgorod 3. Stalingrado (Volgogrado) 4. Magnitogorsk. As três últimas foram alvo de concursos públicos entre 1928 e 1930, e Moscou entra aqui como referência geográfica. É importante destacar que ainda que Magnitogorsk não pareça tão distante de Moscou dada a enormidade do território soviético, a enorme maioria da população russa e quase toda a indústria soviética se concentravam a oeste dos montes Urais, na porção europeia do território. Magnitogorsk, que recebeu esse nome pelas propriedades magnéticas da montanha aos pés da qual a cidade foi construída, instalou-se na base dos Urais, quase na fronteira com o atual Cazaquistão, portanto uma expansão drástica dos limites da urbanização do território.

33

Têm destaque a produção de novos grandes centros metalúrgicos e carbosiderúrgicos sobre toda a região Ural-Siberiana, de forma a expandir as fronteiras da urbanização soviética para novos territórios, com baixíssima densidade populacional e grandes quantidades de recursos naturais (minerais em especial).

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À partir dessa mudança fundamental de foco, associado a uma nova situação da economia nacional “o produtivismo predominantemente ideológico dos primeiros anos da década de 1920, ao qual a cultura arquitetônica soube dar uma resposta em termos de imagens das concretas operações de projeto, concebidas como símbolos de uma nova cultura” (construções teatrais, condensadores sociais) “, foi substituído por um produtivismo real, fundado na generalização dos meios de produção industrial, na massificação e tipificação dos produtos, e na diminuição drástica dos custos.”34.

34

QUILICI, Vieri. Op. cit., p. 197

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“URBANISMO” E “DESURBANISMO”

Com o Primeiro Plano Quinquenal de 1928 iniciou-se um enorme esforço rumo à industrialização da União Soviética e, com isso, a necessidade de construção de milhares de novas fábricas e centenas de novas cidades que comportassem a indústria e seus operários. Além de impulsionar ainda mais as experimentações, a medida representou a abertura de possibilidade para os urbanistas colocarem finalmente seus projetos em prática, em especial com a criação de diversos concursos públicos. No entanto, a pergunta fundamental ainda não estava respondida: que forma deveria tomar o planejamento urbano nacional? O primeiro conjunto de respostas – desenvolvidas no seio da VKhUTEIN35, inclusive com participação dos estudantes – veio da ala Racionalista, representada pela ASNOVA. Se dedicando ao tema da cidade socialista, as propostas desenvolvidas por esses arquitetos e urbanistas consistiam numa extensão natural do trabalho sobre o controle da forma arquitetônica que havia caracterizado o trabalho dos ladovskianos36 na primeira metade da década de 1920. A teoria racionalista atribuiu à arquitetura, de maneira muito explícita, o papel de um “sistema psicológico e ideológico que dá força ao conjunto social da cidade”, ou seja, a arquitetura era vista como um “meio de organização da psicologia das massas”37. Nesse sentido, os membros da ASNOVA viam a possibilidade de reconstruir de uma maneira racional a implantação social a partir da consideração dos fatores arquitetônicos na planificação das cidades. Eram também defensores da individualidade, se opondo à “transformação da cidade socialista e suas ruas em uma série de idênticas comunidades de moradia estandardizada”38. Se opondo a esse primeiro grupo, encontravam-se os Produtivistas, representados pela OSA. Além da temática do “novo modo de vida” à qual já vinham se dedicando, com a instauração do Primeiro Plano Quinquenal esses arquitetos e urbanistas se voltaram também ao problema da distribuição socialista da população, com 35

Em 1927 a palavra “Estúdio” que compunha o nome da VKhUTEMAS foi substituída por “Instituto”, de forma a alterar a sigla para VKhUTEIN. Essa mudança ocorreu em resposta a uma publicação de 1923 na revista LEF, escrita por Alexander Rodchenko (1891-1956) – membro do grupo Produtivista – intitulada A Repartição de VKhUTEMAS: Relatório sobre a Condição das Oficinas Técnicas e Artísticas Superiores, na qual criticava a falta de conexão entre o que era ensinado e as atividades práticas, em especial a falta de contato dos alunos com a atividade industrial 36

Além de fundador da ASNOVA, Nikolai Ladovsky foi também professor na VKhUTEMAS de 1920-1932, chegando a disputar a diretoria da escola com Zholtovsky. Dessa forma, exerceu muita influência na década de 1920 definindo-se o rosto da ala Racionalista. 37

LAVRON, V. L’assoziazione degli architetti-urbanisti, L’ARU. In. Sovetskaya arjitektur, nº 18, Moscou, 1969 38

Crítica aos modelos de estandardização da produção de habitação, publicadas no artigo LUNACHARSKY, A. La cultura nelle cittá socialiste. In. Revoliutsia i kultura, nº 1, Moscou 1930

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evidente intenção de dar uma resposta imediata em termos de novo modelo territorial às novas perspectivas de industrialização nacional. No entanto, a proposição para esse novo modelo gerou disputas internas que dividiram os membros da OSA em dois grupos: os “Urbanistas”, liderados por Leonid Sabsovich e os “Desurbanistas”, liderados por Mikhail Okhitovich. Ainda que houvessem grandes diferenças entre eles, uma série de elementos comuns, claramente representativos da ideologia produtivista, aproximavam as propostas de ambos os lados, como: a adesão quase acrítica às perspectivas de industrialização acelerada de todo o país; a confiança em uma transformação cultural da população igualmente rápida; uma visão exclusivamente urbana dos problemas; e o caráter unilateral das soluções propostas. A diferença fundamental entre os dois grupos, está no fato de que os “urbanistas” viam a cidade como único meio de organização da indústria e dos assentamentos humanos, devido à crença no gradualismo do crescimento urbano, baseado na lei de aglomeração de Weber, que provocaria uma “cadeia ininterrupta [...] de cidades gigantescas, pode-se dizer, de um produto típico da época capitalista”. Nesse sentido, o objetivo dos “urbanistas” estava em encontrar um modo de organizar o desenvolvimento das cidades de forma a garantir condições para esse inevitável crescimento populacional. A crença nessa rápida multiplicação da força de trabalho é facilmente observada no mais marcante projeto “urbanista”, apresentado por Sabsovich em 1929 como A URSS em 15 anos: hipóteses de um plano geral de construção do socialismo na Rússia, no qual o autor estimava um crescimento populacional para os próximos dez anos cerca de 40 vezes superior ao registrado entre 1928 e 1929. O projeto previa, depois de um primeiro quinquênio de reorganização preliminar da vida doméstica, um período dedicado à ampla reorganização das cidades e dos campos, à “reconstrução radical e socialista imediata das cidades existentes”.39A proposta consistia na criação de uma densa rede de cidades de pequeno/médio porte, com “medida standard de 50-60mil habitantes, válida tanto para uma população industrial como para uma população agrícola”40. Com esse modelo, Sabsovich acreditava ser possível eliminar, em 5 a 8 anos, quase por completo toda a contradição entre cidade e campo – questão fundamental para projetistas de todas as correntes de pensamento atuantes no período. Os “desurbanistas”, por outro lado, ainda que compartilhassem dos mesmos desejos de planificação e eliminação das contradições entre cidade e campo com os “urbanistas”, viam a cidade como algo inseparável de seu mal de fundo e, portanto, não havia sentido em se falar em “cidade socialista”. Assim, o desurbanismo pregava a descentralização radical, levando à erradicação completa das cidades. Tratava-se de distribuir de uma maneira uniforme a população, desagregando e anulando os centros

39

SABSOVICH, Leonid. A URSS em 15 anos: hipóteses de um plano geral de construção do socialismo na Rússia. In. Planovoie Jozhiaistvo, Moscou, 1929 40

SABSOVICH, Leonid. op. cit.

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urbanos, apoiando-se nos meios de transporte. O aspecto fundamental desse movimento está justamente na ideia de que o desenvolvimento dos meios de transporte e comunicações, tonara possível a separação das diversas partes da cidade (fig. 33). As distâncias passaram a ser medidas em tempo (de deslocamento), que se tornava cada vez menor com os rápidos avanços tecnológicos. Assim, não seria necessário concentrar toda a população e edifícios em um único ponto, uma cidade, um novo assentamento poderia se dar de acordo com o princípio de máxima liberdade em um novo complexo organizacional fruto do processo de desurbanização. A ideia era reverter todos os pressupostos da aglomeração urbana criando um modelo onde a “proximidade [fosse] uma função da distância” e a “comunidade [...] uma função da separação. ”41

Fig. 33 – Esquema desenhado por Mikhail Okhitovich, demonstrando a decomposição da cidade em suas diversas partes e a dispersão dessas pelo território

O termo “desurbanização” foi utilizado pela primeira vez no manifesto Sobre o Problema da Cidade42, escrito por Mikhail Okhitovivh em 1929 e publicado na quarta edição da revista Sovremennaia arkhitektura, onde é definido como “processo de força centrífuga e de repulsão”. No artigo, que expõe as ideias fundamentais do desurbanismo, Okhitovich questiona a própria necessidade de existência das cidades: Será que a cidade lotada é o resultado inevitável das possibilidades técnicas e econômicas? Será que todas as outras soluções para o problema são tecnicamente ou economicamente impossíveis? A cidade é uma determinação especificamente social, não territorial da realidade humana ... É um complexo econômico e cultural. A questão a ser esclarecida agora é: devem as diferentes funções da "cidade" existir em um único corpo? Será que eles se tornam fatalmente distanciados pela separação, como as partes de um organismo vivo? Em outras palavras, é o crescimento de uma grande aglomeração, incluindo a aglomeração "socialista" de pessoas, edifícios, e assim por diante, em um único ponto, inevitável ou não? 41

OKHITOVICH, Mikhail. On the Problem of the City. In. Sovremennaia arkhitektura n.4, p. 130-134, 1929. Disponível em: http://socks-studio.com/2012/07/14/mikhail-okhitovich-and-the-disurbanism/ Acesso em: 27/07/2017 42

Idem. op. cit

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O arquiteto via a cidade como uma forma tipicamente capitalista de instalação que “nem sempre existiu, nem existirá de maneira eterna”, portanto, uma visão fundamentalmente oposta à dos “urbanistas”, que viam a cidade como única forma de organização da população. Nesse sentido, suas ideias se alinhavam com as expressas por Engels: A civilização nos deixou o legado das enormes cidades, e nos livrar delas nos custará muito em tempo e esforço. Mas será necessário, e isso será realizado.43 É justamente na defesa dessa visão que Moisei Ginzburg, o membro da OSA mais próximo de Okhitovich e mais alinhado com suas ideias, criticou Le Corbusier, após receber em carta comentários do arquiteto acerca dos projetos apresentados para o concurso nacional “Cidade Verde de Moscou” de 1930, no qual os ideais desurbanistas se popularizaram. A crítica de Le Corbusier ao movimento vinha a partir da ideia de que a aglomeração em cidades seria uma tendência natural da humanidade e que o desenvolvimento cultural de uma população só seria possível nas cidades. “A humanidade tende a urbanizar”44, ele dizia. Em resposta, Ginzburg reforçou a visão da cidade como construção da sociedade capitalista, criticando o arquiteto franco-suíço por sua incapacidade se superar as contradições do capitalismo moderno. Por essa razão, Ginzburg o chama de “cirurgião da cidade moderna”, que buscava “curar” a cidade de seus males, mas mantendo-a essencialmente da forma como o capitalismo a constituiu. Ele escreveria, criticando a prática reformista: Nós na URSS estamos em uma posição mais favorável – não estamos presos ao passado. [...] Nós estamos fazendo um diagnóstico da cidade moderna. Nós dizemos: sim, ela está doente, fatalmente doente. Mas não queremos curá-la. Preferimos destruí-la e pretendemos começar a trabalhar em uma nova forma de assentamento humano que será livre de contradições internas e poderá ser chamada socialista.45 Segue no mesmo sentido a resposta à alegação de Le Corbusier de que o desenvolvimento cultural da população só seria possível nas cidades: Isso descreve a situação em uma sociedade capitalista, mas não em outro lugar. Nós na União Soviética devemos tornar a cultura acessível para toda a população, não meramente a população urbana [...]. Nós queremos todas as consequências benéficas da concentração para o desenvolvimento da cultura e, ao mesmo 43

ENGELS apud. MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 61

44

Le Corbusier. Carta a Moisei Ginzburg em 17 de março de 1930. Disponível em: http://socks-studio.com/2012/07/14/mikhail-okhitovich-and-the-disurbanism/. Acesso em 27/07/2017

45

GINZBURG, Moisei. Carta em resposta a Le Corbusier. In. Sovremennaia arkhitektura, nº 1-2. Moscou, 1930. Disponível em: http://socks-studio.com/2012/07/14/mikhail-okhitovich-and-the-disurbanism/

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tempo, todas as vantagens da dispersão e descentralização para o espalhamento da cultura tão uniformemente quanto possível sobre a população. E para isso é necessário criar novas formas socialistas de assentamento da população, baseadas na eliminação de todas as disparidades entre cidade e campo.46 Por fim, respondendo à acusação de que as propostas desurbanistas seriam meras tentativas de tirar a moradia das cidades e espalhar pelo campo, Ginzburg escreve uma das frases que mais caracteriza as ideias defendidas pelo movimento desurbanista: Nós estamos removendo da cidade nada menos que a própria cidade, seu completo sistema de suprimento e cultura.47 Ainda assim, restava a questão: com a cidade capitalista erradicada, onde se assentaria a população, as indústrias e todo o aparato cultural e político? Nós nos perguntamos, onde vamos reassentar toda a população e equipamento urbanos? Resposta: não de acordo com o princípio da aglomeração, mas de acordo com o princípio da máxima liberdade, facilidade e rapidez das possibilidades de comunicação48. Fica claro pela resposta que Okhitovich dá a seu próprio questionamento, que em 1929, quando da publicação do manifesto, os aspectos práticos do processo de desurbanização ainda não estavam inteiramente claros e definidos, consistindo mais um ideal que um modelo real de ocupação do território. Porém, já no ano seguinte essa teoria seria apresentada em modelos práticos, desenvolvidos para dois concursos públicos que marcaram o debate do urbanismo soviético. O evento que deu início à argumentação entre o reformismo capitalista – representado por Le Corbusier – e o desurbanismo socialista – defendido por Ginzburg – foi o concurso de 1930 para a “Cidade Verde de Moscou”, do qual participou o próprio Ginzburg, juntamente com Mikhail Barsch. Ainda que o concurso buscasse um modelo de “Cidade Verde” satélite a Moscou que pudesse acomodar a crescente população operária, os dois arquitetos desurbanistas foram além, e propuseram uma mudança radical na forma de organização de todo o território da capital: a transformação da própria Moscou em uma “cidade verde” – a substituição da área urbana por um enorme parque. Os dois arquitetos, membros da OSA, viam as cidades e subúrbios-jardim como apenas um “remédio” para os problemas da cidade moderna, congestionada, portanto, 46

Idem, op. cit.

47

Idem, ibidem.

48

OKHITOVICH, Mikhail, op. cit.

33


apresentaram um projeto que tinha por objetivo reconstruir completamente Moscou, de forma socialista. Segundo a previsão dos próprios projetistas, apresentada no memorial do plano, a população de Moscou (que em 1930 era de aproximadamente dois milhões de habitantes) iria crescer atingindo três milhões em três a cinco anos, de forma que não haveria habitação para todos, e os espaços livres e verdes seriam destruídos para dar espaço a mais moradias. Da mesma forma, o excesso de carros congestionaria as ruas, tornando o trânsito um grave problema no deslocamento de pessoas e mercadorias49. No entanto, se o desurbanismo pregava o fim das cidades, o que aconteceria com os dois milhões de habitantes já alocados em Moscou? Ao invés de destruir a cidade, deixando milhões desabrigados, o que os projetistas propunham era uma descentralização sistemática de Moscou e sua dispersão pelo território. Seria proibida toda e qualquer expansão da cidade, e todos os recursos que originalmente serviriam à ampliação e manutenção seriam investidos única e exclusivamente na construção de novos assentamentos ao longo dos principais elos de comunicação entre a capital e os centros próximos. Nenhum capital deveria ser investido nas estruturas existentes de Moscou e estaria proibida qualquer construção no perímetro da cidade, assim o desgaste natural dos edifícios ao longo dos anos levaria à demolição dos velhos bairros para dar lugar às áreas verdes. Toda a reestruturação de Moscou deveria se voltar para o objetivo de ampliar as áreas verdes, sistematicamente transformando em área de parque todas as áreas livres fruto das demolições. Seria, portanto, um processo indolor de desinfecção da cidade, um processo, que em termos econômicos “nem deve ser notado”50, de transformação da cidade em um parque central para repouso e cultura a partir do qual se distribuiriam as direções do assentamento socialista da população. O plano, ao mesmo tempo em que é extremamente radical, porque busca eliminar o problema pela raiz, também é econômico, porquê é feito sistemática e progressivamente, sem grandes investimentos de capital. Por esse motivo, talvez pela primeira vez na breve história do planejamento soviético foi apresentado um modelo de absoluta planificação do território “perfeitamente realizável e real, e economicamente possível já na atualidade e, de todo modo, inevitável no futuro”51.

49

É interessante notar que a ideia do automóvel como solução definitiva para todos os problemas de deslocamento, como ele é inicialmente colocado pelos modernistas, começa a ser contestada, não pela ineficiência da máquina, mas pela incapacidade do sistema viário nas cidades suportar o rápido crescimento da frota. Hoje sabemos que a previsão estava correta: até 2015 Moscou era considerada a cidade mais congestionada do mundo, e hoje – após enorme investimento da prefeitura em controle de tráfego – se encontra na 4ª posição, segundo o TomTom Trafic Index. 50

BARSCH, M. GINZBURG, M. A Cidade Verde. A Reconstrução Socialista de Moscou. In. Sovremennaia arkhitektura, nº 1-2, Moscou, 1930, p.17. Disponível em: CECCARELLI, Paolo. La Construcción de la Ciudad Soviética. Barcelona (Espanha): Editorial Gustavo Gili, 1970 51

Idem, op. cit

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Fig. 34 – Projeto para a “Cidade Verde de Moscou”. Mikhail Barsch e Moisei Ginzburg, 1930. O desenho mostra a “cidade verde” satélite a Moscou proposta para o concurso, no entanto, longe de ser uma cidade, o esquema de Barsch e Ginzburg representa o modelo de realocação da população em faixas de habitação ao longo dos principais eixos de transporte que cruzam uma área não-urbanizada. As figuras no canto superior esquerdo dão a referência territorial: na inferior, a cidade de Moscou, e na superior, em destaque, a área ampliada. O ponto mais interessante do esquema está justamente nessas duas imagens: ambas mostram, em diferentes escalas, a área onde se insere Moscou, porém, na figura superior – que considera o plano implantado – podemos perceber que a cidade desapareceu por completo, restando apenas as linhas de transporte e novos assentamentos – evidenciando a intenção dos projetistas. Dessa forma, os arquitetos conseguiram atender às exigências do concurso (completamente contrárias à visão desurbanista, pois pedia um projeto de cidade-jardim) ao mesmo tempo em que expressavam sua ideia com desenhos fortemente embasados pelo memorial, publicado no mesmo ano na revista SA.

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Figs. 35, 36 e 37 – Propostas apresentadas para o concurso “Cidade Verde de Moscou” por Ladovsky, Melnikov – racionalistas membros da ASNOVA –, Barsch e Ginzburg, respectivamente. A proposta de Ladovsky se destaca por claramente reforçar a centralidade, enquanto o modelo de Melnikov apresenta uma intenção de ramificação do espaço urbanizado que se aproxima mais das propostas desurbanistas.

Fig. 38 – Esquema simplificado, elaborado pelo autor, demonstrando a principal intenção de projeto expressa na proposta desurbanista para a “Cidade Verde de Moscou” – liberação da área construída da cidade (dando lugar a áreas verdes) e transferência da população para assentamentos ao longo das principais vias de transporte intermunicipais.

O modelo de distribuição da população proposto no projeto se opõe à forma tradicional de assentamento humano, que os projetistas chamaram de “duplo sistema de vias”: eixos principais, que conectam as diversas centralidades, e ruas locais, ao longo das quais se acomoda a população. A ideia era transferir toda a moradia para as vias que unem entre si as diversas cidades, criando um sistema de ocupação linear muito mais custo-efetivo se compararmos a área de via construída e seu aproveitamento nos dois 36


modelos. O assentamento da moradia deveria se dar livremente através da construção continua de faixas de habitação ao longo das vias de transporte, deixando uma distância mínima de 200-250 m entre as residências e o alinhamento viário, de modo a criar uma faixa compacta de parque dos dois lados da via, extensão natural do grande parque que substituiria Moscou. Assim, todos os conjuntos de habitação teriam, de um lado um parque com equipamentos de lazer e cultura, e do outro bosques e paisagens naturais.

Fig. 39 – Projeto para a “Cidade Verde de Moscou”. Mikhail Barsch e Moisei Ginzburg, 1930. Modelo de ocupação contínua ao longo das linhas de transporte.

Fig. 40 – Idem. Sistema de distribuição da população. Vista ampliada. Destaque para a relação entre os edifícios habitacionais e as linhas de transporte.

37


Fig. 41 – Idem. Detalhamento do ponto de encontro entre o sistema viário e o sistema residencial.

Fig. 42 – Modelo de unidades residenciais pré-fabricadas, projetadas por Ginzburg para serem distribuídas livremente ao longo das faixas residenciais propostas. Essas casas individuais, poderiam ser construídas separadas umas das outras ou organizadas em núcleos familiares ou até mesmo em clusters comunitários (nos últimos desenhos é possível ver a intenção de acoplamento das unidades modulares).

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Enquanto o projeto para a “Cidade Verde” focava especialmente na desconstrução da cidade existente, foi no concurso público para Magnitogorsk, ocorrido após o de Moscou, no mesmo ano, onde a questão da distribuição e organização social da população seria mais trabalhada. O concurso para construção da cidade de Magnitogorsk – que deveria abrigar uma imensa siderúrgica na região dos Urais –, foi a maior exposição de projetos urbanos ocorrida nesse período, contando com a participação de todos os principais grupos de urbanistas soviéticos e até de arquitetos estrangeiros, como. Como a cidade nem sequer existia52, os desurbanistas puderam expressar um modelo mais completo de ocupação do território, sem ter que se preocupar em se livrar da cidade existente. Assim, o projeto desenvolvido por M. Barsch, V. Vladimirov, N. Sokolov e o próprio Okhitovich, com apoio de outros membros da OSA, aprimorou conceitos apresentados por Barsch e Ginzburg no concurso anterior e detalhou melhor o funcionamento da nova sociedade, verdadeiramente socialista. O projeto se baseava no princípio de diluição das residências e serviços ao longo dos principais eixos viários e a eliminação da “proximidade coercitiva”53. A célula tipo se reduziria ao mínimo espaço de um indivíduo e a organização da casa para a família seria substituída pela moradia individual. As células de habitação independentes poderiam ficar isoladas ou organizadas em grupos, em pequenas ou grande comunidades, dispostas e orientadas com absoluta liberdade, sem locais, formas ou densidades específicas, segundo a vontade de cada morador. Ao longo das linhas férreas, se ergueriam a cada quilômetro grandes estações, edifícios dotados de refeitório, sistema de distribuição de objetos de uso comum, armazéns, equipamentos esportivos, salas de repouso e serviços como barbearia. No entanto, as paradas dos trens não seriam fixas às estações, cada pessoa poderia solicitar a parada onde considerasse mais oportuno, integrando completamente a moradia ao sistema de transportes. Um aspecto fundamental desse projeto é justamente a crença quase desmedida na eficiência do sistema transportes. A ideia era que os serviços e equipamentos culturais e de lazer espalhados pelo território estariam acessíveis a todos graças à liberdade e fluidez de uma rede integrada de transportes. Isso tornaria possível não só disfrutar da influência da coletividade, mas também manter um espaço reservado e pessoal, onde seria possível aprofundar o conhecimento sobre si mesmo. Nesse sentido, o projeto critica as propostas iniciais dos “condensadores sociais” desenvolvidos por membros da própria OSA, pois defende uma cultura da individualidade apoiada em um sistema de serviços coletivizado, em oposição a uma vida inteiramente coletivizada onde não há espaço para a liberdade individual. É justamente na concepção desse sistema integrado de serviços, possível graças a uma rede de transportes super-eficiente 52

Uma pequena operação de mineração era realizada na montanha Magnitnaya – constituída quase inteiramente de minério de ferro (uma anomalia geológica – desde o século XVIII, porém nada comparado ao que se propunha para a região em 1930, que viria a se tornar o maior complexo siderúrgico do mundo. 53

Necessidade de as pessoas viverem em um mesmo local para o funcionamento adequado da sociedade

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que esse projeto avança em relação ao da “Cidade Verde”. Para esses arquitetos e urbanistas, a habitação individual deveria ser o ponto central da organização social, e não mais as centralidades existentes em uma cidade típica: Tudo isso [influência da comunidade e espaço pessoal] se obtém e deve-se obter da própria habitação. As construções bastante distantes umas das outras e separadas por árvores de grande porte, mas ao mesmo tempo unidas entre si por um sistema de meios de comunicação e transportes muito desenvolvido, permitem alcançar essa situação ideal.54 A intenção era de que todos os serviços domésticos, desde a montagem da casa a partir de peças pré-fabricadas, seriam realizados por pessoal especializado. A limpeza das células, a retirada da roupa suja e entrega da roupa lavada, tudo isso seria controlado por um inspetor sanitário, responsável pelo estado higiênico e sanitário das células, tirando, portanto, a responsabilidade do próprio morador. Até mesmo a comida, quando não consumida nas fábricas (refeições principais) ou nos refeitórios das estações, seria entregue diretamente nas células, livrando o morador da responsabilidade de cozinhar. Trata-se, portanto, de um sistema de terceirização dos serviços domésticos, que buscava garantir ao trabalhador tempo para o trabalho, seja no campo ou na indústria, para a autorreflexão, aprendizado, aculturação e lazer. Com isso, termos como “minha” cozinha, ou “minha” lavanderia tenderiam a desaparecer, e a forma de acesso a serviços tradicional seria substituída por uma nova economia coletiva e social.

Fig. 43 – Modelo geral de assentamento em uma área geográfica tomada em abstrato. Mikhail Okhitovich. A área é atravessada por uma linha férrea que une uma série de centros industriais. Em ambos os lados da linha, com uma profundidade de aproximadamente 150 m se distribuem as instalações para a população do território circundante. As habitações se distribuem livremente no território. Esse modelo de ocupação do território foi utilizado na proposta para Magnitogorsk do grupo desurbanista. 54

BARSCH, M. OKHITOVICH, M. SOKOLOV, N. Magnitogorsk. In. Sovremennaia arkhitektura, nº 1-2, 1930, p.38. Disponível em: CECCARELLI, Paolo. op. cit. p. 265

40


Fig. 44 - Projeto para a Magnitogorsk. M. Barsch, V. Vladimirov, M. Okhitovich e N. Sokolov, 1930. Esquema geral. Destaca-se a inexistência de área urbanizada expressiva concentrada em qualquer ponto, estando ela toda distribuída ao longo dos eixos de transporte que irradiam do centro mineiro-metalúrgico de Magnitogorsk.

41


Fig. 45 – Idem. Esquema de distribuição linear da habitação na região.

Fig. 46 – Idem. Esquema de organização da zona central de Magnitogorsk (terminal da linha férrea).

Fig. 47 – Idem. Detalhe de faixa residencial desenvolvida ao longo da linha férrea.

Fig. 48 – Modelo de unidades residenciais pré-fabricadas, aprimoradas a partir do modelo apresentado para o concurso “Cidade Verde”. Seguindo o mesmo princípio, essas células de habitação, constituídas de elementos modulares, poderiam ser agrupadas de diversas formas e implantadas conforme a conveniência.

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A preocupação desses arquitetos com o papel da habitação na vida do trabalhador ia além do princípio básico de prover ar, luz e espaço – garantidos aqui pelo contato direto das unidades com a natureza55 –, mas cunhava-se na ideia de que a casa não deveria ser apenas o lugar onde se dorme, mas também o lugar apto ao trabalho criativo e desenvolvimento pessoal. As tendências pessoais não deveriam só se expressar na comida e nas vestimentas, mas também na própria moradia, em suas formas, dimensões e organização interna. Essa visão, que diferia radicalmente daquilo que vinha sendo proposto pelos “urbanistas”, acirrou a disputa entre os dois grupos, rendendo críticas explícitas ao Sabsovich: Os construtores de nossas cidades socialistas desde sempre56 têm pregado teimosamente a ideia de transformar a moradia do operário em um simples lugar para dormir (o camarada Sabsovich em particular). O resto de sua vida, segundo sua opinião, deve desenvolver-se coletivamente. Nós consideramos, pelo contrário, a habitação individual como local onde se desenvolve um trabalho considerável, concentrado e profundo. Estamos firmemente convencidos de que só em sociedade a personalidade pode isolarse como unidade social e que em nenhum lugar a personalidade se manifesta tão plenamente como na própria moradia.57 A união com a coletividade não se estabelece pelo feito de dormir todos juntos, não consiste no uso de algo, mas na participação comum no processo social da produção, ainda que isso se produza a distância.58 Nessa última frase, os autores deixam claro a opção por um modelo de coletividade baseada em um sistema social integrado pela rede de transportes e comunicações em detrimento do modelo clássico baseado na proximidade coercitiva. Esse aspecto logo se tornou o ponto fundamental de discordância entre “urbanistas” e “desurbanistas”, uma vez que em termos de propostas de ocupação do território, as respostas dos dois grupos divergem, à distância, em aspectos formais em essência. Ainda que os “urbanistas” fossem tachados de “socialistas burgueses”, por “quererem que alguns níveis discutíveis, alcançados pela civilização burguesa, se radicalizem na

55

A natureza foi conquistada, mas não constrangida em sua totalidade.

BARSCH, M. OKHITOVICH, M. SOKOLOV, N. Op. cit. p. 267 56

Aqui os autores se referem não só aos projetos dos “urbanistas”, mas também à toda a atenção dada ao desenvolvimento e produção de condensadores sociais ao longo da década de 1920. 57

BARSCH, M. OKHITOVICH, M. SOKOLOV, N. Op. cit. p. 285

58

Idem, ibidem. p. 267

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sociedade comunista, como se se tratassem de estimáveis virtudes”59, e os “desurbanistas” criticados por seu realismo pobre, utópico e ilusão de futuro, ambos os grupos buscavam uma mesma coisa: encontrar um modelo infinito de dispersão da população e da indústria pelo território capaz de integrar a cidade e o campo. Fig. 49 – Esse esquema de distribuição das unidades de habitação pelo território foi apresentado por Okhitovich junto a seus primeiros escritos sobre o “desurbanismo”, como modelo de expansão da ocupação socialista do espaço por todo o planeta.

O comunismo moderno instaurará uma comuna única da humanidade. Será o comunismo planetário, o comunismo do globo terrestre, povoado de maneira uniforme. (OKHITOVICH, 1929) Ainda assim, ele poderia muito bem ser um esquema da rede de cidades de pequeno/médio porte proposta por Sabsovich em 1929 (que também deveria se extender por toda a superfície terrestre), exemplificando a similaridade das intenções de projeto dos dois grupos, ainda que apresentadas de formas distintas.

59

Idem, ibidem. p. 285

Aqui os autores criticam a defesa dos “urbanistas” da ideia de cidade, considerada por eles uma construção burguesa que deveria ser erradicada da sociedade socialista.

44


A LINHA DE MONTAGEM DE MILIUTIN

Os modelos desurbanistas em geral se apoiavam na ideia de que as linhas de transporte dariam a base para a dispersão da população pelo território, constituindo assentamentos lineares em uma rede potencialmente infinita (como pode ser observado nas figuras 34, 39, 40, 43, 44, 45 e 47), no entanto, os modelos até aqui apresentados pouco esclarecem em relação a como deveria se dar a distribuição da indústria, e como ela se relacionaria com o assentamento da força de trabalho. Curiosamente, o modelo mais completo e influente de um assentamento industrial linear foi elaborado não na OSA, ASNOVA ou outra associação de arquitetos e urbanistas, mas independentemente por ex-funcionário de alto escalão do Partido Comunista Russo. Nikolai Miliutin (1889-1942) foi um ativo membro do Partido na República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR), tendo participado como ativista na Revolução Bolchevique em São Petersburgo (que passaria a se chamar Petrogrado durante o governo socialista) e atuado em diversos cargos internos do Partido chegando a Ministro das Finanças da RSFSR em 1924. Miliutin nunca estudou arquitetura60, mas já demonstrara bastante interesse em 1928 quando comissionou a Moisei Ginzburg – de quem era próximo – um dos projetos mais importantes de casa comunal, os apartamentos Narkomfin (fig. 26)61. Em 1929, Miliutin deixou o cargo de Ministro das Finanças para se dedicar ao estudo e planejamento de novos assentamentos, publicando, em 1930, seu emblemático livro intitulado Sotsgorod62 – que pode ser traduzido do russo literalmente como “Cidade Socialista”: Sots = abreviação de Socialista e Gorod = Cidade. As ideias de Miliutin são bastante alinhadas com os ideais desurbanistas, buscando uma completa transformação social e econômica a partir da reconstrução da cultura e do modo de vida apoiada no reassentamento socialista da população A vila soviética deve ser construída de forma a não perpetuar as mesmas condições contra as quais estamos lutando, mas a criar a base para a organização de um novo, e socialista, modo de vida coletivizado.63

60

Miliutin recebeu seu diploma de arquiteto apenas em 1940, após passar em um teste nacional.

61

Ainda que não tenha participado oficialmente do projeto, muitas de suas ideias – que só seriam publicadas em 1930 – estão ali presentes, de modo que é bastante provável que as tenha discutido com Ginzburg na época. 62

MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. Sotsgorod: The Problem of Building Socialist Cities. Moscou: State Publishing House RFSFR, 1930. Tradução para o inglês por Arthur Sprague. Prefácio e Introdução por George R. Collins e William Alex. Copyright 1974 pelo MIT 63

Idem, ibidem. p. 50

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Miliutin deixa claro seu posicionamento quanto a essa disputa no terceiro capítulo do livro, intitulado “Urbanização ou Desurbanização? ”: Para nós não pode haver controvérsia sobre urbanização e desurbanização. Nós iremos definir o problema da nova redistribuição da humanidade após termos eliminados essa centralização sem sentido (para nós) da produção industrial que dá luz à cidade moderna.64 A cidade moderna é um produto da sociedade mercantil, e morrerá junto com ela, mesclando-se ao campo industrializado socialista.65 Em sua visão, dentro de um regime capitalista só há duas possibilidades de assentamento: construir cidades a partir do princípio de centralização, concentrando indústria, moradia, comércio e serviços, ou então dispersar a indústria e as zonas residenciais na maior área possível, separando moradia (nos subúrbios) e indústria (nas áreas centrais) – como é o caso das cidades-jardim. Ainda que em termos de qualidade de vida e higiene as cidades-jardim sejam melhores, o autor destaca o perigo desse modelo, pois ele cria a ilusão de que é possível escapar das terríveis condições da metrópole moderna sem antes se livrar do sistema capitalista, atenuando a vontade de luta do proletariado66. Ambos os modelos partem da ideia de que as relações econômicas existentes na cidade capitalista são imutáveis. No entanto, as condições presentes na URSS permitiam uma solução inteiramente diferente: graças à coletivização do solo, estabelecida em 1918, o maior obstáculo ao reassentamento da população foi vencido67. Associado ao desenvolvimento tecnológico, isso tornava o desurbanismo não só possível, como na visão de Miliuin fundamental para um reassentamento socialista da população. 64

Idem, ibidem. p. 60

65

Idem, ibidem. p. 56

Aqui, Miliutin ecoa as palavras de Okhitovich no manifesto Sobre o Problema da Cidade, de 1929, e de Ginzburg, nas cartas publicadas no mesmo ano. 66

A crítica reside no fato de que, ainda que as cidades-jardim pareçam uma boa solução para o problema da insalubridade nas grandes metrópoles, o que se observa nesse período em todos os países da Europa que adotaram esse sistema, ou mesmo conceitos semelhantes de periferização dos bairros residenciais (como as Siedlungen alemãs), é uma tomada desses espaços, inicialmente construídos para acomodar a população operária, por uma classe média e alta que busca a fuga da cidade. Sem poder competir em poder aquisitivo, a população operária se mantém em geral restrita aos bairros centrais, junto às indústrias, onde as condições de moradia beiram o desumano. 67

Nos países capitalistas, onde há a propriedade privada da terra, modelos de reassentamento total da população são virtualmente impossíveis, pois dependem do mercado de terras sobre o qual o governo não tem pleno controle. Miliutin enfatiza que o sistema das cidades modernas é fruto da propriedade privada da terra, que divide a economia e o território em inúmeras partes complicando qualquer solução geral. Com o setor privado o problema é semelhante: o próprio Howard reconhece em seus textos o problema da supervalorização das terras, que frustra algumas de suas primeiras tentativas de implantar cidadesjardim satélites a Londres – é o caso da cidade de Welwyn, cuja implantação se tornou economicamente inviável para o investidor privado após a subida dos preços dos terrenos quando o projeto foi anunciado.

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Nas palavras de Lenin, citadas no Sotsgorod: No tempo presente, quando a transmissão de energia elétrica por grandes distâncias é possível e quando a tecnologia de transportes está aperfeiçoada, não há absolutamente nenhum obstáculo técnico em reassentar a população mais ou menos uniformemente por todo o país e ainda tirar proveito das valiosas casas de ciência e arte que por séculos se acumularam em apenas alguns centros.68 Com isso, os “assentamentos socialistas diferirão sensivelmente do que nós vemos hoje em nossa cidade ou campo: eles não serão nem um, nem outro. ”69 É clara a intenção de dispersão da população e fim da dicotomia campo cidade. Quanto às cidades já existentes, a estratégia proposta por Miliutin se assemelha ao proposto por Ginzburg e Barsch no concurso para a “Cidade Verde” de 1929, clamando por uma parada definitiva em todo investimento de capital na ampliação de cidades: ... nossa crescente tendência de construir novas instalações onde já existem cidades e vilas contendo instalações similares deve ser definitivamente parada.70 É inadmissível fazer significante investimento de capital nas velhas cidades sem formular um esquema geral preparatório para a reconstrução dessas cidades e assentamentos. 71 No entanto, nessa última frase ele deixa claro que sua intenção não está em transformar toda a área urbanizada em áreas verdes como Ginzburg e Barsch, mas “formular um esquema geral preparatório para a reconstrução dessas cidades e assentamentos”. Uma das diferenças fundamentais das duas propostas está justamente na relação do arquiteto com as preexistências. Miliutin critica a cidade capitalista e pede pela parada da industrialização contínua das metrópoles, mas ao mesmo tempo enfatiza que as cidades e assentamentos existentes não devem ser ignorados. Toda sua expansão deve ser feita de forma planejada, tirando máximo proveito de uma produção mecanizada. Não podemos jogar no lixo, indiscriminadamente, tudo que herdamos do passado. Nós devemos transformar e assimilar essa herança de tal forma que ela sirva aos nossos propósitos e não interfira em sua realização.72 68

LENIN apud. MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 61

69

MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 60

70

Idem, ibidem. p. 61

71

Idem, ibidem. p. 60

72

Idem, ibidem. p. 62

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Miliutin, se comparado à maior parte dos desurbanistas, é bastante moderado, pois ainda que apresente uma proposta de radical mudança, busca se manter inteiramente afastado de utopias. Ele dedica o segundo capítulo do Sotsgorod, intitulado “Evitando Extremos”, justamente a justificar seu posicionamento, longe do tradicional reformismo burguês, mas também da utopia excessiva. No livro ele critica os acadêmicos da antiga geração, os apoiadores da arquitetura eclética e os coletivistas extremos – um posicionamento alinhado com os ideais de individualidade dentro de um sistema coletivizado, defendidos em especial no projeto para Magnitogorsk de Barsch, Vladimirov, Sokolov e Okhitovich – mas também critica, ainda que de maneira mais sutil, projetos desenvolvidos por membros da OSA, inclusive o da “Cidade Verde de Moscou”, por seus excessos. Contando com mais de uma década de experiência no planejamento e custeamento de serviços públicos, Miliutin tinha todas as estatísticas nas pontas dos dedos e estava atualizado nos mais recentes estudos e censos populacionais. Assim, extremamente racional e pragmático, ele propõe um “meio termo realista”, focando em produzir um modelo funcional e economicamente viável de assentamento industrial com o propósito de aumentar a produtividade73. Não se trata meramente de um problema de movimento de população e qualidade de vida. Para Miliutin, trata-se da questão econômica maior de mecanizar a produção, tanto industrial quanto agrícola em larga escala, através de uma redistribuição e reassentamento da humanidade74. Ele não está preocupado com o aspecto final que os assentamentos devem tomar, reduzindo o problema à sua raiz: Nós deixaremos aos novelistas desenharem imagens da cidade do futuro, sob o socialismo desenvolvido. [...] Hoje estamos interessados na nossa construção contemporânea na base da tecnologia contemporânea e meios materiais atualmente à nossa disposição.75

73

Miliutin dedica quase metade do Sotsgorod ao cálculo detalhado de cada fator necessário à aplicação de seu modelo bem como dos resultados previstos. Nenhuma decisão é arbitrária: o arquiteto testa, numericamente, diversas possibilidades - um bom exemplo é o cálculo da economia relativa dos serviços coletivizados em relação aos individuais (como cozinhas e lavanderias), dada como certa nos modelos desurbanistas anteriores, sem qualquer comprovação numérica. 74

Isso não significa que Miliutin não esteja preocupado com os aspectos da vida cotidiana da população, defendendo constantemente no livro a necessidade de uma mudança no modo de vida que garanta, além de mais produtividade dos trabalhadores, maior qualidade de vida, aprendizado e aculturação. 75

MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 53

Por essa razão, Miliutin não apresenta perspectivas ou desenhos detalhados de qualquer uma de suas propostas, mas apenas esquemas de implantação, como um zoneamento.

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Ainda assim, não foi apenas por seu pragmatismo e preocupação com a realidade econômica que Miliutin se destacou em relação a seus colegas desurbanistas tendo suas ideias amplamente disseminadas não só na URSS mas por todo o mundo. Sua contribuição fundamental ao planejamento e ao debate internacional foi a criação do primeiro modelo prático de assentamento industrial linear, que ele próprio intitulou “sistema de linha de montagem funcional”. Claro que ele não foi o primeiro a idealizar um assentamento linear – as primeiras investigações nesse sentido datam do século XIX, e já haviam sido inclusive utilizados em propostas desurbanistas anteriores – no entanto, Miliutin redefiniu o conceito de cidade linear a partir de sua integração com o sistema produtivo industrial. Dessa forma, para compreender a dimensão do trabalho do arquiteto, é necessário antes analisar dois antecedentes fundamentais: as cidades lineares de Soria y Mata e as cidades industriais de Tony Garnier. O conceito de cidades que se desenvolvam linearmente ao longo de artérias de transporte de mercadorias, pessoas, e serviços, surgiu pela primeira vez em Madri na Espanha, nas palavras de Arturo Soria y Mata, sendo reproposto inúmeras vezes ao longo de todo o século XX. A ideia é que esses eixos de deslocamento proporcionariam suporte para uma urbanização sucessiva, com “possibilidade de um crescimento ilimitado segundo um processo de desenvolvimento substancialmente repetível” 76. Assim, as cidades lineares poderiam se estender infinitamente, “ligando cidades pré-existentes tão distantes como Barcelona e Moscou”77. Trata-se, portanto, de um projeto com forte intenção global. Outro aspecto positivo desse modelo está em sua relação com o campo, que nas palavras de Soria y Mata ao jornal Espanhol El Progresso em 1883, deveria “ruralizar a vida urbana e urbanizar o campo”78. Isso porque, devido à sua forma, a cidade linear possibilitaria contato direto da cidade com a natureza no entorno, ou seja, uma relação cidade-campo diferente da cidade polar, com vantagens recíprocas para ambos. Assim, as cidades lineares se espalhariam pelo campo de modo a tornar a proposta, mais de planejamento regional do que urbano. Para Soria y Mata, as cidades lineares, não deveriam ser entendidas como uma sequência de casas de veraneio ou de campo, ou como moradias operárias, mas como um assentamento normal, estendendo-se a partir de uma capital, onde a baixa densidade e o contato com o campo garantiriam mais higiene e melhores condições de vida.

76

CALABI, Donatella. História do Urbanismo Europeu: questões, instrumentos, casos exemplares. São Paulo: Perspectiva, 2012. Tradução de Marisa Barda 77

CURTIS, William. Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre: Bookman, 2008.

78

Soria y Mata demonstra, ainda no século XIX, ideais já bastante semelhantes aos defendidos pelos pensadores soviéticos do século XX. Não é por acaso que grande parte das propostas desurbanistas, inclusive as de Miliutin, apoiaram-se em modelos de assentamento linear.

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Fig. 50 – Representação de uma cidade linear genérica, conectando duas “cidades ponto” pré-existentes.

Fig. 51 – Perfil transversal da cidade linear desenvolvida por Soria y Mata em 1882 para ser construída ao longo de uma estrada saindo de Madri. Destaque para as construções baixas e grande porcentagem de áreas verdes, característicos da baixa densidade proposta.

Fig. 52 – Plano de implantação de uma Cidade Linear na periferia de Madri. Arturo Soria y Mata, 1890.

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No entanto, a Cidade Linear Espanhola nunca foi devidamente construída – apenas um trecho, hoje inteiramente englobado pela malha urbana de Madri –, e nem poderia ter sido em um país capitalista. Afinal, embora tenha o potencial de crescimento ilimitado, a implantação real de cidades lineares enfrenta um grave problema: dado que esse modelo possibilita apenas um sentido de expansão, ele se vê sujeito às forças do mercado especulativo de terrenos. Uma vez que é anunciado o desejo de se construir uma cidade linear em determinado local, os terrenos ao longo da linha de transportes supervalorizam, efeito que se amplifica, pela especulação, quanto mais a cidade se estende e desenvolve, impossibilitando-a de se expandir linearmente. Dessa forma, a cidade idealizada por Soria y Mata só poderá se tornar uma realidade anos mais tarde, no solo coletivizado da União Soviética.

Fig. 53 – “Cidade Linear Espanhola”, ilustrada por El Lissitsky em seu livro Rússia: uma Arquitetura para a Revolução Mundial. O desenho demonstra não só o interesse dos arquitetos e planejadores soviéticos pelos modelos lineares, como que também se dedicavam a estudar a produção teórica dos países capitalistas.

O segundo modelo, a “Cité Industrielle” formulada por Tony Garnier em 1901 apresentou-se como uma variação da ideia de cidade-jardim, porém passando por uma mudança fundamental de princípio. O plano proposto é para uma ocupação urbana de médio porte e baixa densidade, equilibrando área construída e natureza. No entanto, ainda que mantenha o imaginário bucólico da cidade-jardim, a proposta se adapta às técnicas, potenciais e valores de uma sociedade industrial – utiliza-se de vocabulário da produção fabril, em oposição ao imaginário Arts and Crafts de Unwin. Ela se desassocia completamente do ideal idílico anti-urbano de Howard, uma vez que demonstra os aspectos inevitáveis, e na visão de Garnier, positivos, do desenvolvimento industrial. Trata-se de um projeto urbano que integra indústria ao tecido da cidade, de forma racional e organizada, utilizando-se do zoneamento, desenvolvido quase contemporaneamente na Alemanha. O aspecto pioneiro e fundamental do plano de Garnier está justamente na fragmentaçãoda imagem urbana em zonas funcionais bem distintas, elemento que seria amplamente incorporado nos modelos de cidade linear de Miliutin em 1930. 51


Figs. 54 – Desenho esquemático da proposta de implantação da ‘Cité Industrielle’ em região no sul da França. Tony Garnier, 1904. A. Zona Industrial. B. Escolas Técnicas C. Zona Residencial, Centro Cívico e escolas. D. Estação de trem principal E. Zona Hospitalar. F. Rio Ródamo

Figs. 54 – Idem. Destacam-se, nas duas figuras, a organização da cidade em zonas, com funções específicas, mantendo a zona habitacional separada da industrial por motivos de higiene e qualidade de vida; e a organização do sistema de transportes, que dá suporte à ocupação e integra as zonas.

52


Miliutin uniu as duas ideias de modo a incorporar indústria – aplicando o princípio de segregação em zonas funcionais distintas – ao sistema de desenvolvimento contínuo linear. Assim, desenvolveu um modo de ocupação em faixas divididas por função (fig. 55) que garantiria a proximidade dos trabalhadores a seus postos de trabalho, na indústria ou na produção rural, sem comprometer a qualidade de vida proporcionada pela união entre cidade e campo.

Fig. 55 – Esquema ilustrativo do sistema proposto por N. A. Miliutin para a criação de novas cidades, produzido a partir de suas ideias expressas no livro Sotsgorod de 1930, e da síntese de suas propostas para Magnitogorsk, Stalingrado e Nizhninovgorod. Esquema elaborado e produzido pelo autor.

O esquema acima (fig. 55) explicita a ocupação do território em seis faixas divididas por função, como idealizado por Miliutin, sendo elas: 1. Ferrovia ao longo da qual a cidade se estenderia, responsável por prover matériaprima para a indústria. 2. Zona Industrial, onde ocorreria toda a produção de bens materiais. 3. Zona Verde provida de rodovia, responsável pelo transporte de pessoas ao longo do território e pelo abastecimento de produtos. A Zona Verde serviria como amortizador dos impactos da atividade industrial, separando dela a Zona Residencial. 4. Zona Residencial, onde se instalariam as unidades de habitação e equipamentos públicos, de forma que a distância entre a casa do trabalhador e seu posto de trabalho não ultrapassasse 1,5 km, ficando preferivelmente entre 500 e 700 m. 5. Zona Verde contígua à Zona Residencial, contendo parques e áreas de lazer. 6. Zona Agrícola, onde ocorreria toda a produção necessária para o sustento da cidade. Destaca-se também o posicionamento das faixas de acordo com o sentido predominante dos ventos, para que a fumaça das fábricas fosse soprada para longe da Zona Residencial. 53


Foi esse o modelo teórico do “sistema de linha de montagem funcional” que deu base paras as três propostas teóricas79, apresentadas pelo arquiteto no quinto capítulo do Sotsgorod, intitulado “Os Princípios do Planejamento”. A proposta que segue mais rigidamente o modelo – e talvez por sua clareza de desenho a que mais se disseminou pelo resto do mundo – foi a para a fábrica de tratores a ser instalada em Stalingrado – hoje Volgogrado (fig. 56). Miliutin não desenvolveu uma proposta apenas para a fábrica de tratores, mas estabeleceu a implantação das faixas funcionais que dariam suporte à industrialização de Stalingrado, podendo se estender infinitamente. O esquema se aproxima tanto do modelo genérico, que se tornou a figura ideal para a disseminação da ideia, sendo reproduzida em livros e textos acerca do planejamento urbano moderno mundo afora. A única referência à realidade, que dá a escala e o posicionamento geográfico ao esquema, é a presença do rio Volga, ao longo do qual a cidade se desenvolve. Miliutin destaca que, em casos como esse, onde as linhas de transporte existentes estão próximas a corpos d’água, é imprescindível tirar proveito das margens para lazer e relaxamento, associando-as às zonas de parque e residenciais80. Esse mesmo princípio é utilizado na proposta para Magnitogorsk do arquiteto (fig. 57), que a compara com os projetos participantes do concurso para construção da enorme siderúrgica81 - como os submetidos pela OSA e pelo Stroikom (associação paraoficial liderada por Ginzburg). Inclusive, uma de suas principais críticas às outras propostas é o não aproveitamento devido das margens do rio Ural para lazer e descanso. A implantação do projeto, ainda que siga o modelo do sistema de linha de montagem funcional, é mais específica ao terreno, graças às peculiaridades do sitio escolhido para o concurso – a disposição das linhas férreas é mais complexa que em Stalingrado – e acaba por configurar-se mais como um assentamento pontual em faixas paralelas que um eixo de expansão infinita82. Ainda assim, os aspectos fundamentais do modelo estão presentes no esquema, tendo destaque especial a curta distância que separa trabalho e moradia – Miliutin critica esse aspecto em todas as outras propostas e afirma que em seu projeto, o trabalhador viveria, em média, de 500 a 700 metros de seu posto de trabalho. 79

As propostas se referem a três concursos públicos para instalação indústria em Stalingrado, Nizhninovgorod e Magnitogorsk. No entanto, Miliutin não participou de nenhum deles, desenvolvendo os projetos apenas como forma de expor suas ideias na prática, tendo como comparação os projetos participantes nos concursos. As três propostas foram publicadas pela primeira vez no Sotsgorod, em 1930. 80

Trata-se de uma visão diametralmente oposta ao assentamento industrial tradicional, desenvolvido ao longo do século XIX na Europa, que consistia em geral em posicionar a indústria nas margens dos rios, facilitando o acesso à agua e o descarte de resíduos – prática que poluiu grande parte dos rios nas metrópoles europeias. 81

Ver página 39

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Aqui, assim como na proposta de Ginzburg e Barsch para a “Cidade Verde de Moscou”, se apresenta claramente o grande dilema dos arquitetos desurbanistas: como apresentar na pratica um modelo de ocupação do território como um todo, quando todos os concursos nacionais delimitam locais (Moscou, Stalingrado, Magnitogorsk) e programas (cidade satélite, fábrica de tratores, siderúrgica) específicos?

54


Fig. 56 – Esquema para um assentamento na fåbrica de tratores de Stalingrado de acordo com o sistema de linha de montagem funcional.

Fig. 57 – Esquema para Magnitogorsk de acordo com o sistema de linha de montagem funcional.

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Na terceira proposta, para uma fábrica automotiva em Nizhninovgorod (fig. 58), nas margens do rio Oka, Miliutin se foca no detalhamento da organização racional da indústria, posicionando suas máquinas – não apenas uma faixa ou grandes retângulos representando edifícios industriais –, organizadas por funções, em uma linha ao longo da via férrea. Seu objetivo com esse esquema é mostrar o aumento de produtividade que se teria substituindo os grandes núcleos industriais pelo assentamento das máquinas em linha, paralela à zona residencial. Além de simplificar a produção e reduzir gastos excessivos na movimentação de materiais, essa disposição permitiria o acesso dos operários diretamente ao seu posto de trabalho, à sua máquina, evitando gasto de tempo e energia na circulação no interior da fábrica. Para enfatiza esse aspecto, o arquiteto marca no esquema os eixos de acesso que conectam a zona residencial à industrial, espaçados regularmente.

Fig. 58 – Plano para a fábrica automobilística de Nizhninovgorod de acordo com o sistema de linha de montagem funcional.

Miliutin se mostra claramente interessado em acelerar a produção, e por isso extrapola para a malha urbana o modelo fordista de linha de montagem. Não só no sentido longitudinal – mais óbvio –, mas também no transversal, seus assentamentos funcionam como uma linha de montagem extremamente funcional. Pode-se observar por exemplo a organização das linhas de transportes em duas faixas, uma provedora (férrea) e uma distribuidora (rodoviária): a matéria prima entra na zona industrial por um lado e após ser transformada em produto, sai pelo outro, diretamente no eixo de distribuição para a zona residencial, sem qualquer volta, retorno ou cruzamento de vias.

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Ainda que o autor de Sotsgorod nos queira fazer acreditar que todas as suas ideias foram formuladas em termos de análises de Marx, Engels e Lenin – citando-os inúmeras vezes –, é clara a influência da metodologia industrial norte-americana. Para os arquitetos do CIAM, Ford e Taylor eram tidos como apóstolos da racionalização, defendendo o incremento da eficiência na produção como solução para todos os problemas – uma visão bastante alinhada com as ideias de Miliutin – mas não é só no ocidente que esses industriais eram estudados. Os arquitetos e urbanistas soviéticos, em especial da ala Produtivista, estudaram profundamente a obra de Ford e Taylor. No entanto, sendo eles considerados grandes símbolos do capitalismo ocidental, eram pouco citados e referenciados na União Soviética. Não é à toa que Miliutin, ao mesmo tempo que denomina seu modelo “sistema de linha de montagem funcional”, em uma clara referência ao modelo de produção industrial fordista, não cita ou faz qualquer referência ao industrial norte-americano. Ainda assim, para além da linha de montagem, a principal contribuição de Ford ao pensamento moderno foi substituir o cliente individual do artesanato pré-industrial, com seus requisitos particulares, por uma massa consumidora com requisitos estandardizados. Essa ideia fundamental se adequou tão bem aos ideais de produção e consumo pretendidos pelos bolcheviques que se tornou impensável discutir urbanismo soviético sem levar em conta a influência do fordismo e do taylorismo na produção moderna, ainda que não seja explicitada. No entanto, é claro que Miliutin busca distinguir seus ideais de produção dos ideais de produção capitalistas: Se o pivô da economia capitalista é o mercado e suas leis, então o pivot da economia socialista deve ser a produção e seu planejamento.83 Analisando dessa forma, Miliutin pode parecer interessado apenas nos aspectos econômicos e produtivos do assentamento da produção. No entanto, embora do seu ponto de vista de ex-Ministro das Finanças esses fatores fossem de particular interesse, o arquiteto foi muitas vezes mal interpretado. A dificuldade de encontrar o livro (Sotsgorod) no ocidente – tendo ficado restrito à URSS devido a conturbações políticas internas ao Partido nos anos que se seguiram a 1930 – somada à rápida disseminação de seu esquema para Stalingrado pelo mundo capitalista, levaram à perda do contexto, de forma que na maior parte das vezes nem o significado social nem arquitetônico foram compreendidos. Isso levou as ideias de Miliutin a serem entendidas no ocidente como um simples sistema de organização da indústria, e não como uma teoria de planejamento que pretendia uma completa transformação social e econômica. Mais do que resolver o problema da produção, o arquiteto buscava uma mudança radical no modo de vida da população, dedicando especial atenção à libertação das mulheres da escravidão

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MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 62

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doméstica84 e aos cuidados e educação das crianças, que deveria ser transferida do particular para o coletivo: A presente influência da família na educação deve ser gradualmente substituída pela influência do coletivo.85 Em relação à arquitetura dos novos assentamentos propostos, Miliutin já esclarecera que deveriam deixar “aos novelistas desenharem imagens da cidade do futuro”. Ainda assim, baseando-se nas referências que utiliza no Sotsgorod em outros trabalhos, fica claro que se apoia majoritariamente no estilo arquitetônico modernista, em especial de Le Corbusier e da Bauhaus. A exceção está nos edifícios para as fábricas. Na visão de Miliutin, seria necessário gastar o mínimo possível em edificações industriais, construindo-as de madeira ou outro material barato e pouco durável, diretamente no chão sem grandes fundações. As máquinas deveriam ser assentadas diretamente no solo, de forma que a indústria e seus elementos produtivos se integrassem completamente à cidade, em oposição a se isolar dentro de grandes edifícios. Por essa razão, acreditava também que todas as instalações fabris deveriam ser térreas e de livre acesso, evitandose fábricas de múltiplos pisos e arranha-céus – “o último grito do capitalismo.”86 Por fim, é importante destacar que Miliutin não parou sua produção após o Sotsgorod. Ainda que continuasse a acumular cargos menores dento do Partido, a partir de 1930 passou a se dedicar cada vez mais ao estudo e planejamento urbanos. No fim do mesmo ano se tornou editor do periódico Sovetskaia arkhitektura (Arquitetura Soviética), publicado pelo Comissariado de Educação Pública. A revista tomou o lugar da Sovremennaia arkhitektura (Arquitetura Contemporânea) da OSA87 – que teve seu último volume publicado em 1930 – como maior veículo de disseminação das ideias da vanguarda arquitetônica soviética.

84

Há aqui também um interesse econômico. Um modelo de vida coletivizada trazia a possibilidade de libertação das mulheres da escravidão doméstica, permitindo que elas se integrassem à força de trabalho. Dessa forma seria possível suprir as demandas da indústria sem adensar demais as cidades, além de aumentar o padrão de vida da classe trabalhadora com o salário da mulher, agora independente. 85

MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 66

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Idem, ibidem. p. 51

87

Ver página 21

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DE MAGNITOGORSK A BRASÍLIA

No emblemático Sotsgorod, Miliutin dá especial destaque a dois projetos de seus colegas arquitetos, a “Cidade Verde de Moscou” de Ginzburg e Barsch e o plano da OSA para o concurso de Magnitogorsk – dedicando seis páginas a cada um. Ainda que esse segundo seja o projeto oficialmente submetido para o concurso de 1930 pela OSA como organização, é curioso que não conte com a participação de nenhum dos Construtivistas mais expoentes, como Ginzburg, Okhitovich ou Sabsovich. A polarização entre “urbanistas” e “desurbanistas” dentro da OSA acabou afastando esses arquitetos do seio da organização e levando a muitas submissões de projetos independentes, como o de Barsch, Vladimirov, Sokolov e Okhitovich e o do Stroikom (Ginzburg). Assim, quem tomou as rédeas do projeto oficial da Associação dos Arquitetos Contemporâneos foi o jovem arquiteto, formado apenas três anos antes, Ivan Leonidov. Leonidov (1902-1959) foi um expoente aluno da VkHUTEMAS, chamando a atenção de Alexander Vesnin – seu professor –, que o convidou a participar da OSA já em 1925, quando ele ainda era um estudante. Em 1927, apresentou seu visionário projeto final de graduação, um edifício-monumento dedicado ao líder da Revolução de 1917 – Instituto Lenin de Ciências Bibliográficas (fig. 59) –, que foi recebido com entusiasmo pela crítica arquitetônica soviética. Ainda que nunca tenha sido construído, o projeto – lembrado ao lado do Monumento à Terceira Internacional, de Vladimir Tatlin (1919) (fig. 23) e do Pavilhão Soviético de Paris, de Konstantin Melnikov (1925) (fig. 60) como um dos símbolos do espírito progressista da arquitetura soviética pós-revolução – lhe garantiu rápida notoriedade internacional.

Fig. 59 – Instituto Lenin de Ciências Bibliográficas (não construído). Fig. 60 – Pavilhão Soviético na Ivan Leonidov, 1927 Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas de Paris. Konstantin Melnikov, 1925

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Ao longo da década de 1920, Leonidov desenvolveu projetos de arquitetura ao lado de seus colegas na OSA, em especial clubes operários e edifícios institucionais, e embora participasse do debate acerca do modelo ideal de cidade socialista – logo adotando o posicionamento dos desurbanistas –, foi só em 1930 que fez sua estreia no campo do planejamento. A proposta apresentada pelo arquiteto – representando a OSA – para o concurso de Magnitogorsk consistia em um assentamento linear se estendendo por 25 km, dividido em três faixas de grandes quarteirões contínuos e margeado por uma artéria principal de circulação de pessoas e mercadorias. Ainda que o projeto tenha claramente uma intenção desurbanista, ele é bastante peculiar em relação às propostas de Okhitovich e Ginzburg, pois dá uma imagem clara da cidade proposta, em oposição à defesa de um livre assentamento baseado na vontade individual de cada morador. As superquadras que caracterizam o desenho organizam indústria, moradia, produção agrícola e espaços públicos e institucionais dentro das três faixas, deixando o entorno às paisagens naturais em uma clara intenção de harmonização entre o trabalho agrícola e o trabalho industrial88 e, sobretudo, de controle do crescimento urbano. Trata-se de uma linha de ocupação não mais como matriz de uma simples urbanização residencial individual, mas “bem densamente povoada de simbólicos elementos volumétricos-arquitetônicos que se opõe de modo dialético ao território e ao espaço natural que o circunda”89. O assentamento não tende a se mesclar à paisagem natural, dissolvendo-se no campo, mas se impõe na paisagem como um elemento “regenerador da vitalidade da nova população instalada”90. É justamente por essa força simbólica, e pelo desenho expressivo de Leonidov, que a proposta logo se tornou a imagem mais aceita no ocidente do que seria uma cidade socialista. Outro fator que contribuiu à disseminação do projeto de Leonidov pelos países capitalistas – e também para sua escolha como representante de uma OSA dividida – foi seu posicionamento menos radical em relação ao de Okhitovich e Ginzburg. Embora proponha um sistema contrastante com a metrópole industrial tradicional, buscando a aproximação entre cidade e campo, Leonidov apresenta um modelo completo do que pode ser compreendido como “cidade” – diferindo de propostas como a “Cidade Verde” de Ginzburg e Barsch e para Magnitogorsk de Okhitovich, Barsch, Vladimirov e Sokolov, que são melhor compreendias como manifestos que como projetos de real implantação. Assim, críticas como as de Le Corbusier a Ginzburg, insinuando que “desurbanismo” seria

88

É esse um dos principais motivos que chamam a atenção de Miliutin para o projeto – o autor pensa a relação entre moradia, indústria e agricultura sem cair no exagero utópico da completa dispersão da população pelo território 89

QUILICI, Vieri. op. cit. p. 213

90

Idem, ibidem.

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substituir Moscou por “cabanas de palha na floresta”91, não cabem à proposta de Leonidov. Além disso, o uso de elementos típicos de uma cidade capitalista, como a malha ortogonal de ruas e até arranha-céus92 – esse último aspecto fortemente criticado por Miliutin – facilitou a compreensão e assimilação da proposta nos países capitalistas.

Fig. 61 – Proposta da OSA, encabeçada por Ivan Leonidov, para Magnitogorsk, 1930. Perspectiva aérea. Neste ângulo, propositalmente escolhido pelo arquiteto, a proposta se apresenta claramente como um elemento marcante no território. Nessa versão (Leonidov apresenta diferentes alternativas para a proposta, variando densidade) os edifícios são baixos, contando com no máximo dois andares, o que resulta em uma baixa densidade populacional. Destaque para ao eixo rodoviário que acompanha o assentamento no lado direito da figura, divergindo da solução geralmente adotada pelos desurbanistas de ocupar as laterais de linhas férreas pré-existentes. 91

Le Corbusier. Carta a Moisei Ginzburg em 17 de março de 1930. op. cit.

92

O arranha-céu é um elemento que acompanha toda a carreira de Leonidov, desde seu projeto para o Instituto Lenin de Ciências Bibliográficas em 1927 até sua cidade utópica do pós-guerra, desenvolvida nas décadas de 1940 e 1950, sob o nome de “Cidade do Sol”.

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Fig. 62 – Proposta da OSA, encabeçada por Ivan Leonidov, para Magnitogorsk, 1930. Planta perspectivada. Nesta imagem, além de explicitar claramente o sistema de superquadras organizadas em três faixas, Leonidov acrescenta o arranha-céu como elemento marcante, indicando a possibilidade de adensamento pela verticalização, e também sua abertura aos modelos desenvolvidos no ocidente.

Fig. 63 – Proposta da OSA, encabeçada por Ivan Leonidov, para Magnitogorsk, 1930. Implantação. A figura apresenta alguns aspectos interessantes da proposta. Primeiro, que a implantação do assentamento é feita em um eixo perpendicular a uma linha férrea existente, e não ao longo dela. Isso demonstra uma visão do automóvel como principal meio de transporte urbano. Segundo, o completo desprezo pela topografia, que não altera – nem deve alterar, como defenderia Miliutin em seu livro poucos meses depois – a forma do assentamento.

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Ainda assim, a proposta de Leonidov não é menos vanguardista ou socialista que as de seus colegas. Pelo contrário, a maior parte das críticas que o projeto recebeu na União Soviética referiam-se a uma utopia excessiva, taxando Leonidov de “sonhador em papel”. A intenção de unir campo e cidade – conforme as ideias de Marx, Engels e Lenin –, proporcionar um novo modo de vida para os trabalhadores – coletivizado e com maior qualidade – e criar um modelo de expansão e dispersão infinita da população e indústria pelo território, está fortemente presente no modelo. Ainda que para efeito do concurso o assentamento se limitasse a uma extensão de 25 km, é importante notar que em nenhum desenho Leonidov apresenta um final para sua cidade, que é sempre representada como algo que se estende até onde os olhos possam alcançar (fig. 61), ou então como um trecho quase modular de um todo ilimitado (fig. 62). A própria implantação carrega uma forte marca dessa intenção de ser um modelo infinitamente extensível: a figura é cortada, de modo que o traçado do assentamento sangre para fora do papel, num ato claro de se negar a definir um ponto final da expansão. _______________________________ Fica claro que o ano de 1930 assumiu particular importância na história do urbanismo soviético, em especial através do concurso de projeto para Magnitogorsk, cidade socialista modelo e símbolo do Primeiro Plano Quinquenal de Joseph Stalin93 ainda que nenhum dos projetos tenha sido oficialmente escolhido94. No entanto, a explosão de experimentações durou pouco. Em 1931, quando os debates entre urbanistas e desurbanistas, mas também entre Racionalistas e Produtivistas, estavam em seu ápice, o concurso para a construção do Palácio dos Sovietes, símbolo do poderio do Estado Proletário, serviu de pretexto para que o Partido Comunista formulasse uma posição oficial sobre arquitetura. Assim, em 1932 foi instituída a “reorganização das uniões literárias e artísticas”, que dissolveu todos os grupos existentes e convidou seus membros a ingressarem uma união centralizada, sob os olhos do Partido. Com isso, o Estado tomou as rédeas da produção arquitetônica e teve fim a enorme empreitada criativa. A partir da implantação do Segundo Plano Quinquenal em 1933 a União Soviética ingressou em uma nova era, onde não mais o foco estava na universalização, mas em tornar a cidade, em especial Moscou, a vitrine do Estado Socialista.

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Mesmo o trabalho de Miliutin, publicado após o concurso, se baseia em grande parte nas propostas apresentadas para a competição. 94

Apenas em 1933, após a contratação do arquiteto alemão Ernst May para realizar o projeto, que Magnitogorsk começou a ser realmente construída. O projeto, baseado em um conjunto de superquadras organizadas ao redor de eixos rodoviários paralelos e ruas perpendiculares, nunca foi devidamente seguido e difere consideravelmente da cidade de Magnitogorsk como ela existe hoje.

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Apesar da curta duração, a empreitada criativa soviética impactou profundamente o debate do urbanismo e da arquitetura modernos em todo o mundo, em especial graças ao sucesso da proposta da OSA para Magnitogorsk e dos esquemas de Miliutin. O próprio Le Corbusier, além da experiência com a Unité d’Habitation – fortemente inspirada nos condensadores sociais soviéticos (figs. 30, 31) – realizaria, em 1942, experimentos com cidades lineares, desenvolvendo a “Cité Lineaire Industrielle” (fig. 64), em uma clara referência ao sistema funcional de linha de montagem de Miliutin.

Fig. 64 – Cité Lineaire Industrielle. Le Corbusier, 1942

Mesmo em trabalhos desenvolvidos quase simultaneamente, é possível perceber a troca constante entre os arquitetos soviéticos e seus colegas do mundo capitalista. É inegável a semelhança estética entre as Casas Citrohan (fig. 65) de Le Corbusier e os modelos de casas individuais desenvolvidas por Ginzburg para a “Cidade Verde de Moscou” e para Magnitogorsk (figs. 42, 48); ou ainda a semelhança no ponto de vista construtivo dessas mesmas casas com o bairro Törten de Gropius em Dessau (fig. 66).

Fig. 65 – Casa Citrohan em Stuttgart. Le Corbusier, 1927.

Fig. 66 – Sistema de acoplamento de casas pré-fabricadas para o bairro Törten em Dessau, Alemanha. Water Gropius, 1926-1928.

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Os debates mantidos na OSA, entre os defensores do “urbanismo” e os do “desurbanismo” também acabariam por influenciar projetistas do ocidente capitalista, tendo destaque projetos como a “Ville Radieuse” (fig. 67) de Le Corbusier95 – modelo centralizador que busca aproximar campo e cidade pela transformação do solo urbano em um grande parque – e a “Broadacre City” (fig. 68), idealizada por Frank Lloyld Wright em 1934 – modelo descentralizado, fortemente inspirado nas propostas e manifestos desurbanistas desenvolvidos por Okhitovich e Ginzburg.

Fig. 67 – Ville Radieuse. Le Corbusier, 1930. Modelo com forte distinção da área central, o “business center”, onde se alojaria a maior parte dos empregos e serviços.

Fig. 68 – Broadacre City. Frank Lloyld Wright, 1934. Modelo de dispersão pelo território dos Estados Unidos.

No entanto, para nós brasileiros, talvez a referência mais clara ao urbanismo soviético das décadas de 1920 e 1930 esteja no aclamado Plano Piloto da nossa capital federal. O projeto para Brasília, elaborado por Lúcio Costa em 1957, é tido como a mais completa experiência de aplicação dos princípios da Carta de Atenas em seu conjunto, e por isso, primeiramente, é preciso compreender como surgiu a Carta. Considerada o maior manifesto urbanístico moderno, a Carta de Atenas foi elaborada no IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), que tinha como tema a “Cidade Funcional”. Buscando uma solução para o problema da metrópole industrial moderna, a Carta pregava, entre outros pontos, a separação das zonas residenciais, de lazer e de trabalho, através da setorização e de um planejamento do uso do solo. Não é à toa que as expressões “cidade funcional” e “setorização” nos remetam tão rapidamente às cidades funcionais de Miliutin. O IV CIAM estava originalmente programado para acontecer em 1932, em Moscou, mas devido a conturbações internas no Partido Comunista – relacionadas à escalada definitiva de Stalin ao poder – o evento foi cancelado e só pode ocorrer em 1933 a bordo do navio Paris II, e concluído em Atenas. 95

Embora se trate de um claro desenvolvimento das propostas anteriores para a Ville Contemporaine de 1922 e o Plan Voisin de 1925, a Ville Radieuse dialoga com os projetos “urbanistas” soviéticos, seja pela intenção de pensar um modelo de cidade genérica a ser repetido por todo o território, seja pelo desejo de proporcionar a união da cidade com o campo a partir de um modelo fortemente centralizado.

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Ainda assim, a promessa do evento na capital soviética atraiu a atenção de arquitetos e urbanistas do mundo todo para o que se estava desenvolvendo na URSS, e projetos como os de Miliutin, Leonidov entraram definitivamente na discussão global. Dessa forma, mesmo sem contar com a participação de planejadores soviéticos, o clima no IV CIAM de 1933 estava fortemente carregado da influência de seus projetos e ideias. Os esquemas de Miliutin em especial, assumem o papel de clara transição entre a Cité Industrielle’ de Garnier e os princípios de planejamento expostos na Carta de Atenas.96 Mas a relação de Brasília com o planejamento soviético não parece se encerrar na Carta de Atenas, embora precise ainda ser investigada. De todo modo, analisando a proposta de Lúcio Costa é notável a inspiração dos modelos de cidade socialista desenvolvidos na URSS. Se compararmos o Plano Piloto (fig. 69) ao projeto para Magnitogorsk da OSA (figs. 61, 62, 63), as semelhanças são inegáveis. Se voltarmos nosso olhar do Eixo Monumental – característica particular de Brasília, por ser uma capital federal – para o assentamento urbano da população, nas asas norte e sul, ele pode facilmente ser descrito como um assentamento linear de superquadras, dispostas em três faixas ao longo de um eixo rodoviário principal, e apostando no automóvel como principal meio de transporte. Não por acaso, a descrição pode ser exatamente a mesma para a Magnitogorsk de Leonidov.

Fig. 69 – Plano Piloto de Brasília. Lúcio Costa, 1957 Destaque para os assentamentos lineares nas asas norte e sul. 96

Arthur Sprague, nos comentários à tradução para o inglês do Sotsgorod.

MILIUTIN, Nikolai Aleksandrovich. op. cit. p. 1

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Assim, é preciso deixar de lado a ideia de que o desenvolvimento criativo soviético nos campos da arquitetura e do urbanismo se manteve restrito ao país socialista, ou mesmo que se desenvolveu independentemente de influência externa. Pelo contrário, foram as constantes trocas entre arquitetos do mundo capitalista e do socialista – seja por cartas, congressos ou publicação de projetos e manifestos – que o debate da arquitetura e do planejamento urbano modernos se desenvolveu. A explosão de experimentações na União Soviética, que durou de 1918 até 1932, não foi um momento isolado na história, restringindo-se apenas ao período e depois desaparecendo atrás da cortina de ferro stalinista, mas uma brilhante faísca que despertou ideais e modelos que até hoje influenciam o pensamento da arquitetura e do urbanismo em todo o mundo.

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