14 minute read
EntrEvista MEMórias Paulistanas dE dEnisE dEl vEcchio
from Escritores Brasileiros Contemporâneos - n. 19 - dez/2020 - edição especial Memórias Paulistanas
Peça Feliz Ano Velho, 1985
Advertisement
MeMórias Paulistanas de denise del Vecchio
Nesta edição especial em homenagem às memórias paulistanas, temos a alegria e a honra de trazer para os nossos leitores uma entrevista descontraída com a atriz Denise Del Vecchio. Denise é uma atriz consagrada, realizou trabalhos memoráveis no teatro, televisão e cinema. Nascida na Mooca, tem raízes ligadas aos bairros operários da Zona Leste. É, também, escritora, diretora, dramaturga e professora.
Começou a carreira no Teatro de Arena em São Paulo. A partir daí, desenvolveu uma brilhante trajetória. Em 1974, estreou na TV Tupi, na telenovela Ídolo de Pano. Em seguida, atuou em dezenas de séries e novelas das emissoras Rede Globo, Record, Bandeirantes, Manchete e SBT.
D. Jurema e Denise
Quem não se lembra de personagens inesquecíveis interpretadas por Denise na telinha, como Bárbara Ventura, de Força de um Desejo (1999), e Dona Mocinha em Chocolate com Pimenta (2003)? Seu papel mais recente foi o de Madalena, em Topíssima (2019), na TV Record.
Desde 2006, Denise coleciona grandes trabalhos e participa das novelas da TV Record. Paralelamente também atua no teatro. É detentora de vários prêmios de melhor atriz no teatro, entre os quais: Molière (1981), pela peça Lua
Fantasiada de espanhola em foto tirada no fotógrafo Roberto, no Belezinho
de Cetim; Governador do Estado (1985), por Lembranças da China; Prêmio Shell (2014), por Trágica. Em 2008, ganhou uma biografia, Memórias da Lua, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, dentro da Coleção Aplauso, de autoria da atriz e escritora Tuna Dwek.
► Denise, conte-nos um pouco sobre as origens das suas famílias materna e paterna.
A minha avó materna, Alzira Aída, é nascida em Portugal, na freguesia de Torre de Montecorvo.
Meu avô, José Dib, seu marido, é originário da Síria, de numa região quase fronteiriça com o Líbano.
A avó Alzira veio menina para o estado de São Paulo. Casou-se numa cerimônia arranjada, aos 15 anos, com meu avô, recém-chegado e com 33 anos. Ela católica, ele muçulmano não praticante. Tinham uma venda de secos e molhados na Rua Caetano Pinto, no Brás. Os hábitos e a cultura de meu avô se perderam no meio dos espanhóis, portugueses e italianos que viviam naquela rua.
Lembro-me do forte sotaque que carregava e da raiva que explodia quando era chamado de “turco”. Por conta da ocupação turca na região, sua nacionalidade nos documentos foi alterada e ele guardava o rancor e a humilhação de ter tido sua terra invadida.
Minha avó materna chamava Angelina De Vecchis e era de origem romana. Meu avô por parte de mãe, Vicente Falotico, era calabrês. Ela, de origem “nobre”, teve que fugir para se casar com um homem do sul da Itália.
Meu avô Vicente eu não conheci. Era carpinteiro e fazia móveis lindos que conheci na casa de minha avó, na Rua Visconde de Parnaíba, perto da linha do trem [antiga ferrovia Central do Brasil] e quase ao lado da Hospedaria dos Imigrantes.
As avós de Denise, d. Angelina (italiana) e d. Alzira (portuguesa), seus pais d. Jurema e sr. Nelson, e o filho André Frateschi
Tiveram oito filhos, papai sempre me falava da dificuldade enfrentada pela família, quando teve início, em São Bernardo do Campo, a produção industrial de móveis. Lembro com carinho e saudade daquela casa ampla com jardim, quintal, galinheiro e barracão, onde se fazia de tudo, desde macarrão até peças para algum eletrodoméstico da família.
► A família italiana é sempre alegre e unida. Quais são suas lembranças junto aos seus parentes nas reuniões e almoços de domingos? Na sua família, tinha algum artista?
A família era grande e costumávamos nos encontrar todos os domingos. Além dos filhos, recebíamos visitas de parentes mais distantes. A primeira lembrança era chegar à casa da vovó e sentir o cheiro do molho do macarrão que estava no fogo desde 5 horas da manhã. Depois, era correr para o quintal e brincar com os primos e primas. Havia muita cantoria. A tia Inês tocava piano, a única da família, e lá vinham as canções italianas que todos os irmãos conheciam. Essas canções que até bem pouco tempo se ouviam nas cantinas tradicionais. A mesa era montada no quintal, pois éramos muitos. Uma mesa comprida, feita de tábuas. Macarrão, salada e braciola. Em dias de festa, quando éramos muitos, tínhamos carne de cabrito. À noite, a vovó servia uma sopa de músculo maravilhosa, e ninguém se atrevia a voltar para casa antes de tomá-la. Natal, Ano Novo (com a esperadíssima corrida de São Silvestre na TV), Páscoa, Dia de São Pedro (com fogueira e balões feitos pelo meu pai), eram grandes festas. Cada família levava um doce e era muita alegria! Minha avó Angelina, desde a morte do meu avô Vicente, nunca deixou o luto. No máximo, usava um vestido escuro estampado com pequenas flores claras. Usava o cabelo preso em coque, calçava chinelas. Não lembro dela de forma diferente e nem de vê-la fora de sua casa.
► Você se recorda dos endereços em que morou com sua família na Mooca e no Belenzinho?
Nasci na Rua Wandenkolk, na Mooca. Morei lá, dividindo a casa com minha tia Raquel, irmã do papai e mãe de dois garotos, meus primos Gilberto e Vicente, com quem aprendi a jogar bolinha de gude na rua. Mudei para a Rua Padre Adelino aos 4 anos, quando nasceu minha irmã Alzira. Morávamos nos fundos da loja de joias e relógios
da qual meu pai e seu irmão eram proprietários e trabalhavam. Minha mãe trabalhava em casa, pespontando sapatos finos. Cresci ouvindo radionovelas, o barulho da máquina de pespontar e o cheiro de cola de sapateiro. Em 1960, meu pai, encantado com a proposta de interiorização da Capital por Juscelino, resolveu ir a Brasília para a inauguração e tentar mudarse com a família para lá. Voltou decepcionado com as dificuldades que encontrou e, de todo modo, resolveu mudar de ramo e de bairro. Fomos para o Brooklin, na Zona Sul.
► Quando você era pequenininha e acompanhava sua mãe, d. Jurema, ao cinema, quais eram as salas frequentadas?
Minha mãe afirmou que íamos ao Cine Itapura, que ficava no Glicério e passava a programação da Metro. Tinha Tom e Jerry aos domingos e A viúva Alegre durante a semana. Minha mãe adorava! Adora cinema até hoje, aos 92 anos.
► Quando residiu no Belenzinho, você estudou no Grupo Escolar Amadeu Amaral. Fora esse colégio, passou por outro?
Comecei no Externato São José do Belém, na pré-escola. Depois, fui para Escola Agrupada do Hipódromo, nuns barracões de madeira da Prefeitura, que tinha também um Parque Infantil onde estudava minha irmã. Na quarta série (quarto ano do Ensino Fundamental), fui para o Grupo Escolar Amadeu Amaral.
► Foi no Amadeu Amaral que você teve sua quase primeira experiência com o teatro?
Sim, minha experiência frustrada. De fada da Bela Adormecida, fui rebaixada para... não me lembro que papel, pois preferi não participar da apresentação. Será que eu era péssima atriz?
► Desde menina apreciava a leitura?
Sim. Quando criança, não havia muito entretenimento e a leitura me encantava. Meus pais não puderam estudar muito, pois foram trabalhar desde cedo, mas gostavam muito de ler e eram assinantes do Clube do Livro. Todos os meses, recebíamos um livro em casa e isso era mágico para mim. No Natal em que fiz 7 anos, meu pai me deu a coleção completa do Monteiro Lobato, que tenho até hoje. Li encantada cada um dos 17 volumes. Depois, Moby Dick, A Moreninha, Iracema, e tudo do Machado de Assis.
“Essa foto da primeira comunhão foi tirada no fotógrafo ROBERTO, na Rua Silva Jardim, em cuja vitrine eu ficava encantada olhando as fotos das noivas. Todos os moradores do entorno fotografavam lá, saindo direto da comunhão para o fotógrafo, tinha o vários cenários para fazer o fundo de acordo com a ocasião”, conta Denise.
► Durante a sua infância, costumava brincar na rua com a garotada do bairro? Quais eram as suas brincadeiras preferidas?
Como já contei anteriormente, aprendi a jogar bolinha de gude com meus primos, na Rua Waldenkolk. Gostava também de bater bafo com as figurinhas do álbum de futebol. Maiorzinha, adorava pular corda e amarelinha na Rua Padre Adelino. Lá também gostava de brincar na casa de uma amiguinha, que era filha do alfaiate vizinho. Ficávamos sob a sua mesa de trabalho, que era enorme, recolhendo e juntando retalhinhos de pano. Não se iluda… nunca aprendi a costurar.
► Com que idade mudou-se para a Zona Sul da cidade?
Eu tinha 10 anos. Mudamos de bairro, meu pai mudou de profissão e eu e minha irmã mudamos de escola. Sofri num colégio chamado Beatíssima Virgem Maria. Só aguentei um ano.
► Foi nesse período que você entrou para o teatro?
Depois do desastre que foi o Beatíssima, fui fazer curso de Admissão, como se chamava na época, para prestar exame para cursar o ginásio numa escola estadual, que eram as mais concorridas. Com a ajuda da professora, d. Milde, ingressei no Instituto Estadual de Educação Prof. Alberto Conte. Aí comecei a entrar em contato com o teatro. O colégio tinha anfiteatro e aulas de canto, além de professores que incentivavam a apresentação de trabalhos através do teatro. Já no curso Clássico, o querido professor de Geografia, Gáudio, levava as classes para assistir a vários espetáculos. Era um momento efervescente do teatro paulista e nacional, com grandes autores e belas montagens. Pude assistir à montagem de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto; Roda Viva, de Chico Buarque; Édipo, o Rei, com Paulo Autran; Esperando Godot, com Cacilda Becker; O Balcão, de Jean Genet; Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos, e muitos outros espetáculos. Já havia feito cursos de e sobre teatro que a Folha de S. Paulo ministrava no seu auditório. Mas era uma jovem tímida, que tinha pouquíssimos amigos. Minha mãe, que sempre foi uma mulher extrovertida e uma atriz frustrada, eu acho, me inscreveu num curso que ela encontrou num anúncio de jornal. Era o curso do professor Emílio Fontana, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Ao pisar naquele pequeno palco da sala de
baixo daquele teatro, tive certeza que tinha encontrado meu lugar no mundo. Depois desse curso, fui estudar no Teatro de Arena, na Vila Buarque, com Augusto Boal, Cecília Thumin e Heleny Guariba. A partir desse curso, fiquei no Arena, num grupo de pesquisa de Teatro Jornal, e segui carreira.
► No período em que esteve no Teatro de Arena, atuou ao lado de outros artistas no Teatro Jornal, desenvolvido por Boal no fim dos anos 1960 e início dos 70, como forma de sobrevivência à censura imposta pelo regime militar. Como foi essa experiência?
O Teatro Jornal foi a experiência mais rica da minha carreira. Um grupo remanescente do curso foi convidado pelo Boal para desenvolver uma pesquisa que ele estava tentando fazer havia algum tempo. O trabalho era escolher notícias do jornal e improvisar uma encenação sobre elas. Era uma forma de falar e discutir o dia a dia. Essa pesquisa foi o pontapé inicial para a extensa e rica pesquisa que Boal depois fez no exílio. O primeiro espetáculo se chamou Teatro Jornal, Primeira Edição, em 1971. Com notícias simples, publicadas no jornal, que havia sido censurado, mostrávamos o que havia por trás da notícia e discutíamos os movimentos estudantis nos EEUU, a tortura no Brasil, as terríveis condições de trabalho nas minas de carvão e muitos outros. Era uma dramaturgia direta e emocional. Chocava o espectador pela coragem e força. O espetáculo foi apresentado no Areninha, um pequeno teatro sobre o Teatro de Arena. Depois, foi levado a outros estados e cidades do interior e quando Boal foi exilado, levamos para o Festival de Nancy, apresentamos em Paris, Toulouse e Marselha, na França.
► Devia ser desafiador, instigante e altamente criativo interpretar as peças do Teatro Jornal. Era desafiador e perigoso, pois sempre corríamos o risco de sermos abordados ou agredidos pela repressão. Criativamente era muito rico, pois exigia rapidez de criação, improviso e agilidade. Para mim é inesquecível a experiência que adquiri com esse trabalho. Ganhei os instrumentos para seguir adiante na minha profissão. ► Entre tantos trabalhos de relevo em sua carreira, outro projeto, Teatro Núcleo Independente, também está ligado à história
do teatro na Zona Leste de São Paulo. O ideal do grupo era levar o teatro até a periferia da cidade e contemplar a população que não tinha acesso aos equipamentos de cultura da região central?
Com o Teatro de Arena, viajamos para o Festival de Nancy, no ano de 1971, levando Arena Conta Zumbi e Teatro Jornal. Eu e Celso Frateschi estávamos nos dois elencos. Augusto Boal era prisioneiro em São Paulo, mas devido à pressão internacional, acaba sendo libertado e vai encontrar-se conosco em Paris, e inicia seu longo exílio. Na volta da viagem, a situação do Teatro de Arena era cada vez mais frágil. Fomos obrigados a deixar o Teatro. Então, fomos acolhidos por Maurício Segal no Teatro São Pedro, na Barra Funda, na sala pequena que era chamada de “São Pedrinho”. Lá, fazemos A Semana, texto de Carlos Queiroz Telles, e direção de Fernando Peixoto. Trabalho que discutia as questões da Semana de Arte Moderna de 1922. Novamente, a repressão ataca e somos obrigados a deixar o Teatro São Pedro. Alugamos, então, uma sede numa casa abandonada na Rua 13 de Maio, na Bela Vista, e ali se consolida o trabalho do Núcleo.
Ensaiamos A Epidemia, também baseada em notícias de jornal, mas desta vez a pesquisa foi feita em jornais de 1918 e retratávamos a situação do país na época da Gripe Espanhola. Tão atual, quem diria! Passamos a levar para a Zona Leste os espetáculos e a ministrar cursos nas sedes do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Apresentávamo-nos em teatros da prefeitura (Martins Pena), escolas, igrejas e na rua, fomos ganhando a confiança da região. Saímos da Bela Vista e alugamos um enorme galpão na Estrada de São Miguel e ali construímos, nós mesmos, as arquibancadas e os praticáveis para o público e para servirem como palco. Fizemos um lindo trabalho chamado Os Imigrantes, que fez grande sucesso com o público da região, bem como recebeu ótimas críticas, inclusive uma de página dupla do inesquecível Sábato Magaldi no Jornal da Tarde. O espaço do Teatro na mídia impressa era bem maior. Nesse trabalho, tratávamos da situação de uma família vinda de Polignano a Mare, na Itália, tendo de enfrentar a dureza do trabalho na cidade de São Paulo. Mesmo com a sede, seguíamos nos apresentando nas ruas da região, praças, pátios de igrejas e até nos altares.
Medeia em Trágica.3 Caixa de Memórias, 2019
Medeia em Trágica.3
A personagem D. Mocinha da novela
Chocolate com
Pimenta, 2004. Um sucesso!
► Já instalados no barracão na Estrada de São Miguel, o grupo, além das atuações, também oferecia cursos de formação e desenvolvia outras atividades?
Sim. Nosso objetivo principal era formar grupos locais que produzissem seus próprios trabalhos. Grupos de teatro, música, ou grupos de discussão. Então utilizávamos muitas técnicas do Teatro Jornal para incentivar os interessados a reproduzirem suas realidades através do teatro. Tínhamos espetáculos infantis que geralmente eram apresentados nos pátios das igrejas.
► No cinema você teve a oportunidade de trabalhar com o Maz- zaropi, um artista paulistano também muito querido do público. Como surgiu o convite para atuar no filme “Jecão, um fofoqueiro no céu” (1977)?
Tenho enorme orgulho de ter tido essa sorte de trabalhar com Mazzaropi, também filho de imigrantes. Fazia uma das minhas primeiras novelas na TV Tupi e no elenco estava a querida Geny Prado, que sempre foi a atriz que representava a mulher do Jecão. A indicação foi dela. Ele mesmo me chamou e me recebeu em seu escritório. Olhou para mim e me disse rapidamente do que se tratava o papel, pediu que eu levasse um certo número de roupas para o figurino (risos) e lá fui eu para sua fazenda/estúdio/oficina /hotel em Taubaté, para filmar Jecão, um Fofoqueiro no céu.
► Quais são seus projetos futuros?
Hoje, assim como toda a muita gente, estou à espera que chegue a vacina que irá controlar essa pandemia. Tenho acompanhado muitos espetáculos on-line. Grandes trabalhos. Acho que um novo caminho está se abrindo, mas que não substituirá a velha trilha. Irá, certamente, se somar a ela. O teatro vive do contato social. É uma cerimônia profana que envolve todos os presentes e abraça todos os sentidos. Antes do teatro, é a nossa própria vida em sociedade que carece do contato, da presença da voz, do cheiro, do olhar.
►►► Para saber mais sobre a trajetória artística de Denise Del Vecchio, recomendamos a leitura do livro Memórias da Lua, de Tuna Dwek (266 páginas, Coleção Aplauso – Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).