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MEu bEléM dE ontEM nEidE loPEs ciarlariEllo
from Escritores Brasileiros Contemporâneos - n. 19 - dez/2020 - edição especial Memórias Paulistanas
neide loPes ciarlariello
Fui acolhida pelo Belém em 1944 quando meus pais saíram do emblemático bairro do Brás. Especificamente na Rua Siqueira Cardoso, área que os antigos moradores, denominavam de “Brejo seco”. Não me perguntem o porquê.
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A rua era de terra batida, o que permitia fazermos grandes fogueiras no dia de São João; sem asfalto e sem calçadas minha rua estava coroada com valetas onde corriam águas servidas e pluviais. Para ter acesso, do meio fio às casas, havia pequenas pinguelas. Em contrapartida encontramos uma vizinhança afável e amiga naquele quarteirão: família Octaviano, Pontes, Pastore, Felix Garrucho, Mantelli, Casangne, Testa e principalmente a família Gaspareto cuja amizade preservo até os dias de hoje.
No final da minha rua havia grande área que era utilizada como chácaras e campos de futebol de várzea (Campo do Áz Preto – Campo do Pires do Rio), que terminavam do lado direito, nos grandes armazéns da Estrada de Ferro Central do Brasil, que chamávamos simplesmente de “linha do trem”. Meus avós diziam que naquele espaço estava projetada uma grande avenida que ligaria o centro da cidade à Vila Matilde, e realmente em 1957 foi inaugurado o primeiro trecho da Av. Radial leste, na gestão do prefeito Prestes Maia.
Havia uma grande área verde que se avistava da nossa casa, que conhecíamos como “prado” e onde os meninos iam caçar passarinho. Antigamente, muito antigamente, aproximadamente até o ano de 1941 ali estava instalado o Hipódromo da Mooca e as partes que avistávamos eram os fundos; posteriormente a área ficou sendo utilizada pela aeronáutica e finalmente criou-se ali o Parque Educacional e Esportivo e a Sub Prefeitura que, maravilhosamente, servem à comunidade até hoje.
Minha primeira escola em 1945 foi a Álvaro Guião na Rua Silva Jardim, 260, os proprietários e diretores eram Sr. Francisco Ferreira e sua mulher d. Anna, onde em 1958, também cursei datilografia e taquigrafia.
Nessa mesma Rua Silva Jardim, no nº 25 nasceu o meu avô materno em 1895, Roque Ricciardi, que na velha guarda musical de São Paulo
Grupo de alunas do 4º ano primário, no Grupo Escolar Amadeu Amaral, em 1948, com o diretor Prof. José e a professora Maria do Carmo Monteiro Cunha.
era conhecido como Paraguassú – O Cantor das Noites Enluaradas.
Paraguassú
E o Largo São José do Belém? Para chegarmos até ele era necessário ultrapassar a “linha do trem”, obedecendo o bimbalhar de uma porteira, posto que não existia ainda o Viaduto Guadalajara.
Cursei o primário ali no Grupo Escolar Amadeu Amaral, que tinha na época como diretor o professor José; saudosa memória da minha professora do quarto ano, Maria do Carmo Monteiro Cunha, mestra por vocação. Havia uma troça que a meninada que estudava em outras escolas fazia para quem estudava nesse Grupo Escolar... “Amadeu Amaral, entra burro e sai animal.” Mas ninguém se ofendia, nem brigavam por isso; tudo era motivo de troça.
No ano de 1946/1947 com vinte centavos eu comprava uma porção de “machadinho” ao sair da aula do
Amadeu Amaral. O vendedor ficava com seu tabuleiro no Largo São José em frente ao Grupo; “Machadinho” era um doce estranho, não me perguntem do que era feito, lembro que era cor de rosa e muito duro, que para nos servir o vendedor usava uma machadinha e um pequeno martelo. O tal “machadinho” era o pavor do dentista do Grupo Escolar, que abominava esse nosso hábito. Belo mesmo preço, às vezes eu substituía o “machadinho” por um pirulito porque entre os pirulitos havia um prêmio maravilhoso que era uma bexiga.
Naquele tempo no “Amadeu Amaral” tínhamos um consultório dentário que funcionava diariamente para atender os alunos dos três períodos diurnos, e um consultório médico aonde o Dr. Surerus vinha a cada dois ou três meses. Eu odiava quando ele vinha nos ministrar óleo de rícino. Cada um de nós tínhamos que levar uma laranja descascada e cortada ao meio para, após a ingestão do vermífugo abrandar aquele horrível sabor e textura.
No “Amadeu Amaral” tínhamos aula de canto orfeônico com a professora Dona Virgínia. Uma negra, bonita, alta, elegante, imponente com seu guarda-chuva de cabo longo e uma voz maravilhosa. Eu era
Neide em foto oficial do Grupo Escolar Amadeu Amaral
apaixonada por ela, e por sorte, fui encontrá-la 40 anos depois, em Barequeçaba, e tive a alegria de gozar dessa convivência por mais de 10 anos, participando da festa de seu aniversário de 80 anos.
Tínhamos também aulas de trabalhos manuais; para os meninos era tecelagem; lembro de meu irmão fazendo cintos e chaveiros com tiras plásticas, e para as meninas eram iniciações de costura manual e bordados (até hoje guardo meu pano de amostra).
Além do uniforme azul e branco usávamos laços brancos que prendiam nossas tranças ou simplesmente os grandes laços que ornamentavam o topo das nossas cabeças. As meninas de hoje acham isso ridículo, mas nós gostávamos.
No Belém havia o Colégio Saldanha Marinho, que inicialmente se chamava Academia de Comércio
Saldanha Marinho e era oriundo da Escola Moderna nº 1 do período anarquista de 1920 e, depois de 90 anos encerrou suas atividades, tendo sido a primeira escola profissionalizante no bairro.
E o Educandário e Externato São José do Belém?
Ainda hoje suas alunas enfeitam o Belém com seus uniformes pregueados azul e branco, e entre os famosos alunos que por ali passaram está o Padre Júlio Lancellotti.
Vejam os leitores que relato aqui o meu pequeno núcleo de vivência nesse bairro tão querido, posto que o Belém era e é muito maior que este quadrilátero de saudade.
Quanta saudade me dá relembrando a juventude com as amigas, quando passeávamos ao redor da igreja nas noites de sábado para flertarmos com os rapazes do bairro. Aquele mesmo flerte inocente que praticávamos nas procissões do “Senhor Morto” da sexta-feira Santa, e da “Ressureição” no domingo de Páscoa. Transgressões inocentes da juventude.
As família tradicionais e os comerciantes do Belenzinho se uniam para as comemorações da paróquia e entre elas havia a farmácia Bom Jesus do Belém, fundada em 1935 que por mais de sessenta anos funcionou com o mesmo dono, Sr. Antônio Teixeira, primeiramente na rua Herval esquina com Silva Jardim e depois no Largo São José.
Uma história curiosa: ao saber que a igreja precisava de um novo sino a Sr. Iolanda matriarca da família Teixeira, socorreu-se de sua comadre Sra. Teresinha Fazzolari Campilongo e esta, por devoção ao Santo, doou o sino à igreja. ... E as matinés no Cine Teatro São José, e no cine Íris... Ah Belém, quanta saudade me dá!!!