ABRIL/MAIO 2014 • NÚMERO 14 • FAMECOS/PUCRS • WWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIAL J
Polos arrecadam R$ 5,4 bilhões
Levantamento exclusivo feito pelo Editorial J calcula o valor acumulado da receita das praças privadas de pedágio ao longo de 15 anos de contrato com o Estado PÁGINAS 6 E 7
Raízes da diferença Por que as mulheres ainda recebem menos do que os homens no Brasil PÁGINAS 8 E 9
O ibope da psicopatia Como os desvios comportamentais cativam a audiência na televisão PÁGINAS 4 E 5
CADERNO ESPECIAL
50 anos de um golpe na história do Brasil
papo de redação
Jornal mensal do Laboratório de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Avenida Ipiranga, 6681 Porto Alegre/RS
Cruzando os dados
PUCRS Reitor Ir. Joaquim Clotet Vice-reitor Ir. Evilázio Teixeira Pró-reitora Acadêmica Mágda Rodrigues Cunha FAMECOS Diretor João Guilherme Barone Reis e Silva Coordenador do curso de Jornalismo Fábian Chelkanoff Thier Coordenadora do Espaço Experiência Denise Avancini Coordenador do Editorial J Fabio Canatta Coordenadora de produção Ivone Cassol Projeto gráfico Luiz Adolfo Lino de Souza e Núcleo de Design Editorial/ Espaço Experiência Professores responsáveis Alexandre Elmi, Fabio Canatta, Flávia Quadros, Ivone Cassol, Marcelo Träsel, Marco Villalobos, Paula Puhl, Rogério Fraga e Tércio Saccol Alunos editores Bibiana Dihl, Caroline Ferraz, Guilherme Almeida,Thamíris Mondin, Thiago Valença e Victor Rypl Alunos Amanda Gonçalves, Amanda Oshida, Ana Paula Conrad, Antônio Carlos de Marchi, Bruna Gassen, Bruna Goulart, Bruna Zanatta, Bruno Ibaldo, Carine Santos, Caroline França Medeiros, Daniely Medeiros, Dimitri Barcellos, Douglas Agostinho, Douglas Cauduro, Edna Alves, Eduardo Deconto, Elisa Célia, Fernanda Mazzocco, Fernando Bacoff, Frederico Martins, Gabriel Correa, Gabriel Palma, Gabriela Brasil, Gabriela Giacomini, Gabriel Golçalves, Jéssica Tarantino, João Alexandre Rodrigues, João Pedro Arroque Lopes, Júlia Alves, Júlia Bernardi, Júlia Braga, Julia Tarrago, Julian Schumacher, Juliana Bonotto, Karyne de Oliveira, Kelly Freitas, Kimberly Winheski, Luiza Menezes, Laura Marcon, Manoela Tomasi, Mariana Fritsch, Mariana Lubke, Mariana Melleu, Marina Spim, Marianne Santiago, Maura Meregali, Natalia Rodrigues, Nathalia Adami, Pamela Floriano, Pedro Francisco Pacheco, Rafael Ferri, Rafaela Johann, Raquel Baracho, Renata Araújo, Renata Fernandes, Ricardo Miorelli, Rômulo Fernandes, Stephanie Gomes, Sofia Schuck, Thiago Rocha, Yanlin Costa e Yasmin Luz
Laboratório convergente da Famecos www.pucrs.br/famecos/editorialj
P O R Victor Rypl (8º sem.)
A
reportagem “A matemática dos pedágios” surgiu a partir da descoberta de um documento do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), que trazia dados sobre o trabalho das concessionárias de pedágio durante cada um dos 15 anos de contrato com o governo do Estado. O Editorial J começou a trabalhar com o arquivo no meio do primeiro semestre de 2013, inicialmente criando um banco de dados com a totalidade desses números, mas organizando, a partir deles, valores novos. As informações do documento intitulado Relatório de acompanhamento do programa de concessões do Rio Grande do Sul - 1998 a 2012 - Relatório N° 27, disponível no site do Daer, foram passadas para uma planilha nova. Trabalhamos principalmente com os valores de receita e gastos com a estrada, divididos entre investimento, manutenção e conservação. Esses dados foram escolhidos pois eram os que mais impactavam na população do Estado, revelando o quanto ela contribuiu e recebeu de volta. A reportagem permitiu adotar estratégias de apuração do jornalismo de dados, que está se tornando tendência nas redações. A experiência de tentar traduzir a montanha de valores e porcentagens em algo que fizesse sentido ao leitor foi um processo de produção um pouco diferente do normal, devido a sua complexidade, mas permitiu entender melhor a pauta e o que realmente era importante. Uma grande parte dos números não teve espaço na reportagem, por mais que tenham ajudado a entender melhor a história dos polos. Os valores e porcentagens entraram no texto conforme a necessidade da pauta. Algo que ajudou na construção da matéria foi a criação de gráficos como procedimento anterior à análise. Foi mais fácil tirar conclusões dos valores dessa maneira do que encarando uma planilha de Excel.
PASSO A PASSO
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O ponto de partida foi o site do Daer, no qual continha um documento sobre o trabalho das cencessinárias de pedágio durante os 15 anos de contrato.
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O documento, denominado Relatório de acompanhamentos de programa de concessões de rodovias do Rio Grande do Sul, trazia os valores e gastos com as principais estradas estaduais.
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Estes dados foram divididos em uma planilha por seções tais como investimentos, manutenção e conservação. O objetivo era avaliar o quanto foi aplicado e o quanto o Estado recebeu de retorno nas estradas.
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Criamos elementos gráficos no estilo de cartões para melhor visualização dos números, a fim de que o leitor tenha mais facilidade em comparar os valores investidos.
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Olhar para trás A prática do jornalismo está ligada à ideia de atualização e de que é preciso correr contra o tempo presente. Mas há também o registro e o resgate, elementos fronteiriços que deixam o trabalho do jornalista entre o passado, o presente e o futuro. A imprensa é uma constante criadora de arquivos que poderão ser resgatados para que a História seja conhecida e estudada depois. No ano em que o Brasil pontua cinco décadas do golpe que instalou a ditadura militar no país por 21 anos, o Editorial J olhou para trás para rememorar parte das consequências daquele momento. Cinquenta anos podem ser pouco para a História, mas foram suficientes para desconectar trajetórias de pais, filhos e netos. O mais comum de se ouvir dos jovens é que a ditadura e o golpe não são assuntos comentados em casa, mesmo que seus pais tenham vivido o período. Esta desintegração geracional é perigosa, porque a memória que não existe deixa espaço para repetições. Com a redemocratização, o regime autoritário aplicou uma sistemática de esquecimento a partir da versão oficial, que excluía a memória dos silenciados. Abrandando o academicismo do texto histórico, o jornalismo pode fazer a ponte entre a sociedade e o seu passado dissolvido. A partir disso, revigora-se a memória coletiva , a maior defesa de um povo e fator essencial para que patologias políticas e sociais não se repitam.
memória
Uma praça chamada Harald Edelstam
EMB AI X ADO R S U E C O E S T Á PRE S TE S A S E R H OME NAGE ADO COM PRA ÇA EM PORTO A LEGRE Arquivo do Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos
POR Julia Bernardi
P
(3º sem.)
orto Alegre pode ganhar uma praça, cujo nome será uma homenagem ao embaixador sueco que salvou milhares de vidas nos primeiros instantes do regime militar de Augusto Pinochet, no Chile. Por iniciativa do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), a prefeitura da Capital procura um local para batizar com o nome do diplomata Harald Edelstam. O prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, abraçou a causa da instituição, em reunião no início de 2013 com o MJDH. A ideia inicial era escolher uma praça próxima à Arena do Grêmio, no bairro Humaitá, mas uma vistoria do local descartou a ideia. De acordo com o secretário de Comunicação Social de Porto Alegre, Flávio Dutra, ela não atendeu as especificações do projeto e uma nova praça está sendo escolhida. O projeto surgiu em 2012 com a exibição de um filme sobre o trabalho de Edelstam, produzido para comemorar os 100 anos de seu nascimento. A vida de Edelstam é de um herói. Em 11 de setembro de 1973, Pinochet derrubou o então presidente Salvador Allende com um golpe militar. Em meio a este cenário, o embaixador se comportou como um defensor da Justiça. No dia 30 de outubro de 1973, levou para a Suécia, em um avião alugado no Chile, um grupo de mais de 20 pessoas. Dias após, foi considerado persona non grata no Chile e ficou impedido de voltar. O diplomata salvou, entre os presos que estavam no Estádio Nacional do Chile e em todo o território chileno, mais de mil pessoas, entre uruguaios, paraguaios, brasileiros, cubanos e chilenos. Falava como o representante do povo sueco no Chile e conquistava, como diplo-
Diplomata usou influência para salvar militantes ameaçados pelo regime de Pinochet em 1973 no Chile mata, respeito de outras nações. A carreira de Edelstam como diplomata se iniciou em 1939, na Segunda Guerra Mundial, em Berlim, depois na Noruega, quando houve a invasão dos nazistas. Ajudou muitas pessoas da mesma forma. Após, em 1954, na Guatemala no golpe que derrubou Jacob Arbenz, o alvo da sua atuação foi salvar indígenas. Em 1978, trabalhou na Espanha, e terminou sua carreira em 1979, na Argélia. Ele é lembrado pelas pessoas que salvou como um howmem astuto. Tinha mais de 1m90cm de altura, nariz largo, mistério no sorriso e sensibilidade aguçada. Em razão de todo esse trabalho em prol da defesa do ser humano, o professor Marco Antônio Villalobos com os alunos do núcleo de vídeo do Editorial
J realizou em 2013, o documentário Harald Edelstam - O Nome da Esperança,vencedor do prêmio Direitos Humanos de Jornalismo de 2013, na categoria acadêmica. “Pessoas como Harald Edelstam não se encontram mais no mundo”, diz Belela Herrera, esposa do embaixador uruguiaio no Chile, entrevistada no documentário. As entrevistas e as pesquisas históricas realizadas para o documentário permitiram traçar um perfil de Edelstam. O diplomata queria despertar a opinião pública mundial, sobre o que ocorria nas cadeias e nos centros de tortura que os militares haviam instalado. “Não conhecemos nenhum outro embaixador no período que teve esta atitude”, emociona-se Milton Gianoni, exilado uruguaio.
Exilados uruguaios no Chile breviveu em função do envolviwcontam que estavam na resimento do embaixador da Suécia. dência de Raul Rodriguez, um “Qualquer outro não teria feito o militante Tupamaro, quando que ele fez: arriscar-se por desum ônibus levou todos para o conhecidos, que não tínhamos Estádio Nacional do as mesmas ideias Chile. “Havia tortupolíticas que ele”, ra por todos os lados afirma. Assista ao documendo Estádio Nacional O MJDH, mentário sobre o diplomata do Chile, muita gentor dessa homenate assassinada que gem, é um moviqualquer um podemento que apura ria tropeçar em um os abusos dos recadáver a qualquer gimes militares na momento. DesespeAmérica do Sul. O ro e simulações de presidente da insfuzilamento”, conta tituição, Jair KrisRodriguez, também chke, diz que segue entrevistado no documentário. na luta para que a praça saia O Estádio Nacional do Chile do papel.Diante de todas essas era um lugar de horror e tortura, histórias de vidas modificadas, a onde Edelstam atuou para tenpraça pretende ser uma parte da tar evitar um número maior de homenagem de Porto Alegre ao mortes. Rodriguez conta que sotrabalho de Edelstam.
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psicologia
Perigosa atração P E RS O N AG E N S DE S E RIADOS DE TV E CRIMINO SOS COM TRA ÇOS DE P SI C O PAT I A C O N Q UIS TAM UM NÚME RO CADA VE Z MA IOR DE A DMIRA DORES P O R Flavia Drago (8º sem.) e Betina Carcuchinski (2º sem.)
Dexter, Eric e Dylan têm em comum uma personalidade denominada pelos especialistas de perversa, que pode resultar na psicoalvez esta seja a execupatia. A desordem está ligada aos ção mais difícil que Dexcasos de tiroteios, principalmente ter já fez. Normalmente, nas escolas norte-americanas e quando mata alguém, hoje tem se mostrado presente ele não sente nada além do prazer não só nestes episódios de violênde acabar com uma vida. Só que cia, mas também nas telas de TV. desta vez será diferente: a vítima é A psicopatia é um transtorno que seu próprio irmão. As leis de Dexacumula admiradores no univerter são claras: é permitido matar se so televisivo e amores platônicos a vítima também for um matador entre adolescentes. em série – mais do que permitido, Existe uma fórmula utilizaé necessário. O próprio irmão de da pelos roteiristas de seriados Dexter é um serial killer e por que vem dando certo entre os este motivo é amarrado na mesma telespectadores: apostar em percama que utilizava para matar sonagens que se distinguem dos prostitutas inocentes. Enquanto demais pelo seu comportamento ata o irmão à cama, Dexter ouve, atípico, colocando-os para viver em pensamento, “ele é seu irmão, em ambientes com situações cotimas ameaçou sua irmã adotiva. É dianas. Estes protagonistas apreum risco a ser combatido” e “você sentam distúrbios de personalidanunca teve sentimentos, Dexter”. de e, alguns deles, são assassinos, O personagem hesita, mas precisa cínicos e mentirosos – a exemplo continuar: ajoelha-se aos pés da dos seriados Dexter, Sopranos e cama e, com uma faca afiada, corta Breaking Bad. De acordo com o o pescoço e o deixa sangrar até a roteirista Gibran Dipp, o segredo morte. do sucesso é colocar estas figuras Por um ano, Eric Harris e problemáticas e fazê-los interagir Dylan Klebold planejam em seus em um cenário dominado por quartos um massacre na Columbiregras sociais e éticas conhecidas ne High School ao estilo do videopela audiência. game DOOM. Depositam bombas Além das caracem três pontos na esterísticas que levam cola, compram duas a crer em um diagcaçadeiras, uma pisEle faz nóstico psicopata, tola semiautomática são retratados nos e um rifle de assalto o que, de seriados os motivos de 9 mm. O plano forma instidestes personagens inicial é explodir os serem como são. artefatos no refeitiva, as pes“Existe sempre uma tório na hora do resoas gostajustificativa para creio. Quem sair vivo suas ações, provopelos portões deve riam.” cando no público um ser alvejado pelas arGibran Dipp sentimento de pena e mas. As bombas, no compreensão”, analisa entanto, não exploDipp. Os seriados também dem. Os dois garobuscam a empatia pela identifitos, que em dois meses se formacação. O telespectador chega à riam, entram na escola atirando a conclusão de que não está sozinho esmo. O saldo total é de 13 mortos ao sentir vontade de agir de forma e 21 feridos, além do suicídio dos não pensada e fora da conduta dois atiradores na biblioteca. social. “Há uma admiração em rePode parecer absurdo, mas lação ao personagem corrompido, cenas como a retratada no seriado pois ele faz o que, de forma instinDexter e a do tiroteio que acontetiva, as pessoas gostariam de fazer ceu na região de Columbine (Estaum dia: roubar, matar, violar a lei dos Unidos), em 1999, têm atraído sem sentir culpa depois - pois espessoas que se identificam com o tas são ações que, devido à ética e comportamento dos assassinos.
T
“
Dexter (Dexter) É um assassino, mas a grande diferença deste personagem dos demais é que ele direciona seu transtorno para a extinção de quem ele acha que merece morrer. Segue, portanto, uma ética inventada por seu pai (Código de Harry) no qual ele só poderá matar assassinos.
empatia impostas pela sociedade, são impedidas de serem realizadas”, diz o roteirista. Marcelo Pereira, músico e estudante de psicologia, é um destes telespectadores que se considera fã das três séries. Para ele, o que atrai nestes personagens é justamente o fato deles fugirem das regras sociais. “É muito mais interessante e divertido de assistir estes tipos de seriados do que aquele no qual o personagem certinho segue a bondade à risca”, admite. Pereira, que sempre se interessou pelo comportamento dos psicopatas, sociopatas e criminosos, acredita que Dexter segue as leis impostas pelo próprio pai ao matar criminosos porque, desta forma, pode se sentir menos culpado. “Ao mesmo tempo, ele segue um raciocínio maquiavélico, utilizando meios que nem sempre são os melhores
ou mais éticos para justificar o seus fins. Isso só torna o personagem mais interessante”, acrescenta. Para quem acompanha estas séries, os meios não convencionais de conquistarem um objetivo por muitas vezes têm a sua razão. “No caso de House, é fazendo literalmente qualquer coisa que ele puder para salvar um paciente. No caso de Walter [personagem de Breaking Bad], ele resolve fabricar meta-anfetamina para poder deixar uma boa herança à sua família quando ele morrer. Por causa disto, eles se tornam anti-heróis, fazendo coisas erradas, sendo grosseiros e reclusos, tudo por um bem maior (ou pelo menos é a maneira que entendem o que fazem)”, avalia Pereira. Segundo o psiquiatra Gabriel Gauer, especialista em Ciências Criminais, são diversos os fatores
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que colaboram para o desenvolvimento da psicopatia. “Existe a genética, que acaba tornando o indivíduo predisposto a ser psicopata, e também depende de como foram os traumas, a infância e se sofreu abusos sexuais ou psicológicos”, explica. Para ele, a psicopatia tem como característica a vontade de exercer poder sobre os outros. “Muitos do que praticam crimes e gostam de ver suas vítimas sofrerem é porque de alguma forma sofreram abusos. Há uma inversão de papéis, pois no momento do crime ele se sente no controle”, analisa Gauer. Além disso, o psicopata pode ser caracterizado como um mentiroso crônico, pois acredita controlar a verdade. Também é frequentemente descrito como sedutor, que envolve as pessoas em sua personalidade perversa.
Amor platônico por autores de crimes
Walter White (Breaking Bad) Costumava ser uma espécie de vítima da vida. Sem muito dinheiro, trabalha em mais de um emprego para sustentar a família – um deles como professor de química. Descobre que tem câncer e acaba liberando o que há de pior em si. Deixa de ser o professor quieto, virando um assassino e grande comerciante de metanfetamina.
O TRANS TORNO Segundo a psicóloga Débora Coelho, a psicopatia se encaixa no que se conhece como personalidade perversa. São indivíduos que não obedecem às leis, mas preferem adotar uma própria lei e acreditam que as suas regras são melhores, desejando que as pessoas ao seu redor as sigam. Segundo a psicóloga, o perverso não experimenta a empatia, não demonstra compadecimento com o próximo, não sente culpa pelas coisas que comete e carrega forte narcisismo.
Tony Soprano (The Sopranos) Pertencente à máfia italiana residente em New Jersey (EUA), é o protagonista da série e possui cargo importante na família DiMeo. Tony passa a se consultar na série com uma terapeuta para tratar a depressão e crises de síndrome do pânico.
A atração por personagens problemáticos pode sair da televisão e invadir o mundo real. Existem casos de pessoas, geralmente do sexo feminino, que se apaixonam fantasiosamente por sujeitos perigosos ou que cometeram algum tipo de crime. Este comportamento é classificado como hibristofilia, uma conduta sexual onde o prazer não se encontra no ato sexual, e sim no imaginário. A hibristofilia ganha espaço na internet, principalmente em blogs pessoais como o Tumblr. Nestes websites onde há o compartilhamento de interesses, muitas meninas trocam informações a respeito de presidiários e criminosos que já estão mortos – desde o endereço da penitenciária até discussões sobre a personalidade e vida pessoal deles. Um dos sites mais conhecidos pelas ditas hibristofílicas é o truecrimehothouse.tumblr.com. A dona do blog , que não se identifica, dá dicas sobre como mandar a primeira carta para um detento e aborda outras questões sobre quem quer começar a manter contato com eles. Apesar de dedicar muito tempo ao assunto, ela não se considera hibristofílica, pois seu interesse nestes infratores é estudá-los de forma psicológica e por que eles cometeram seus crimes. Quando questionada a respeito da possível hibristofilia de suas leitoras, ela diz que algumas são legítimas e outras apenas garotas jovens e inseguras. “Acho que algumas garotas se atraem por bad boys e algumas se sentem seguras em começar um relacionamento com um preso, principalmente com aquele que nunca vai ser solto. Quando eu digo ‘segura’, quero dizer que elas sabem que o prisioneiro não vai traí-las fisicamente”, explica a dona do website. “Algumas mulheres com história de abuso começam relacionamentos com estes presos porque estes homens estão cumprindo [prisão] perpétua e não podem abusar delas. Vejo o quão perturbador é o fato de que algumas meninas bajulem jovens assassinos e mais velhos também, mas isto pode passar, como também pode não passar”, comenta. Já as hibristofílicas legítimas apresentam essa atração em consequência de fatores que vão desde traumas com relacionamentos
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antigos, até o simples gosto pelo perigo. Ao mesmo tempo, podem se sentir atraída porque busca um elemento transgressor na sociedade. Quando questionadas sobre o próprio comportamento, algumas meninas não sentem vergonha de falar sobre o que sentem em relação aos criminosos. Uma destas garotas, que se chama na internet “senhora Eric Harris”, explica que, desde sempre, interessou-se por assuntos soturnos. “Lembro de ler histórias sobre crime quando jovem e me atrair pelos personagens. Para mim, é o homem violento e não o ato de violência que excita. Acho sexy que eles queiram fazer coisas más e que suas mentes sejam escuras e desequilibradas. É o poder deles e o estar tão vulnerável com alguém”, diz. Ao mesmo tempo, ela sente que poderia ter feito algo pelo Eric Harris. “Às vezes eu queria ter ajudado eles e os amado, pois era isso que eles precisavam. Toda mulher com hibristofilia quer um homem sombrio e perigoso que poderia matar ou torturar alguém sem pensar duas vezes, mas é gentil e amável com suas mulheres”, admite. Débora explica que a mulher tem, de forma inata, um sentimento materno de proteção. “Elas acreditam que o amor pode curar tudo”, explica. Além disto, a mulher sente que tem poder quando um homem que não demonstra afeto pela sociedade em geral, mas consegue unicamente amá-la. Existe uma tendência em mulheres masoquistas de se unirem a um agressor. De acordo com a psicóloga, não se pode dizer que todas que se apaixonam por criminosos sejam masoquistas, mas há sempre a questão do vínculo. Alguém que tem traços sádicos apresenta uma pré-disposição a buscar um par com características violentas semelhantes. Sendo um fator de vínculo, admiração ou identificação, os especialistas consideram complicado classificar adolescentes como hibristofílicas. “A adolescência é uma época muito peculiar. Todo o comportamento do adolescente é patológico, então não se diz que há alguma coisa muito forte acontecendo psiquicamente, porque crescer é um momento maluco. Ter comportamentos bizarros na adolescência – e isto é normal”, avalia a psicóloga.
estradas
A matemática bilion P O R Victor Rypl (8º sem.)
O Editorial J produziu um retrato do trabalho das concessionárias de pedágio, que administraram as rodovias do Estado durante 15 anos. POr meio das informações de um documento do Daer foi construído um banco de dados descrevendo a atuação em cada um dos sete polos rodoviários cedidos pelo governo. A iniciativa privada gastou nas estradas R$2,7 bilhões dos R$5,4 bilhões que ganhou durante o contrato, com valores corrigidos pelo IPC-A. Em 2013 foi substituída pela empresa pública EGR, que promete mais investimentos mesmo com uma diminuição no preço dos tarifas.
E
tende trabalhar sem lucro, aplicando 80% m 15 anos, R$ 5,4 bilhões foram de sua arrecadação nas estradas, gastando arrecadados pelas empresas con50% em manutenção e conservação e 30% cessionárias de pedágios no Rio em investimentos. Os 20% restantes serão os Grande do Sul. No mesmo período, custos administrativos. “Ainda não foi possível as administradoras aplicaram R$ 2,7 bilhões alcançar essa meta, pelo número de licitações nas estradas, gastando R$ 1,2 bilhão em inem andamento”, explica o presidente da emvestimentos e R$ 1,5 bilhão em manutenção e presa Luiz Carlos Bertotto. Os valores estão conservação. Os valores foram obtidos depois em discussão, porque não foram definidos de um trabalho de cruzamento de dados pupara quais impostos a EGR é imune. Ainda blicados em um documento do Departamento não está determinado se a empresa pública Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), pagará o Imposto Sobre Serviços (ISS) para as intitulado Relatório de acompanhamento do prefeituras e Imposto de Renda, por exemplo. programa de concessões do Rio Grande do Enquanto nas praças comunitáSul - 1998 a 2012 - Relatório rias o custo do pedágio continuará N° 27. Nele constam números o mesmo, nas antes administradas anuais sobre a receita e os pelas concessionárias a tarifa será gastos de cada um dos polos Ainda 26% menor, resultando em uma rodoviários do Estado durante não foi diminuição da receita na mesma a década e meia de contrato. O porcentagem. Bertotto entende dinheiro aplicado nas estradas possível que, mesmo com a arrecadação foi dividido nas categorias alcançar a menor, vai sobrar muito mais diinvestimento, conservação e nheiro para as estradas. manutenção. As despesas de meta.” Aplicando a previsão da EGR conservação são serviços mais Luiz Carlos aos dados do Daer, constatou-se leves como roçada e limpeza, Bertotto que a promessa da empresa pode enquanto as de manutenção se concretizar. Durante os 15 anos são operações mais complexas, de contrato, apenas os polos que serão como tapar buracos e retirar administradas pelo Estado a partir de agora terra. Os valores de 1998 a 2011 foram corarrecadaram R$ 4,2 bilhões e gastaram R$ 2 rigidos para dezembro de 2012 através do bilhões nas estradas. Se esta distribuição fosse IPC-A, permitindo a criação de números que preservada no modelo da estatal, com uma reretratassem a totalidade do contrato. ceita 26% menor e 80% aplicada nas rodovias, A partir dos cálculos, comparou-se o traos valores gastos na estrada seriam 19,24% balho das concessionárias com o novo modelo maiores, com R$ 2,4 bilhões. Esse aumento de administração das estradas no Estado. A aconteceria principalmente na manutenção, Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR) assumiu que cresceria 31,25%, enquanto os investimenao longo de 2013 os polos Metropolitano, Gratos subiriam em 3,46%. mado, Lajeado, Caxias do Sul e Santa Cruz do A EGR assumiu os últimos compromissos Sul, além das praças de pedágio comunitárias, combinados para o seu primeiro ano de exisque eram responsabilidade do Daer durante tência. Na virada do ano, passou a administrar o período das concessionárias. A estatal pre-
“
os polos Metropolitano e Gramado. A empresa do governo do Estado já controlava os polos de Lajeado, Santa Cruz do Sul e Caxias, junto dos pedágios comunitários de Coxilha, Portão e Campo Bom, que antes pertenciam ao Daer. Essas praças foram assumidas no dia 15 de fevereiro de 2013 e constituíram a primeira arrecadação da empresa. A EGR foi criada pelo governo Tarso Genro (PT) seguindo o modelo das praças de pedágio comunitárias. A iniciativa marcou um abandono do modelo das concessões, que foi aplicado em 1997 em um acordo que cedeu os polos rodoviarios do Estado para a iniciativa privada por 15 anos. Enquanto o contrato firmado durante o governo Antônio Britto (PMDB) previa as obras a serem realizadas durante toda a sua duração, o modelo estatal irá investir conforme houver recursos em caixa, seguindo decisões de conselhos comunitários. Bertotto afirma que a retomada das estradas pelo governo não foi uma aventura, porque já havia uma experiência exitosa na administração de rodovias com as praças comunitárias. Ele aponta o fato de que foram realizados investimentos nessas estradas como duplicação de vias, mesmo sem o Daer aplicar todos os recursos arrecadados. Bertotto defende que, apesar de as rodovias não terem o mesmo padrão estético das anteriormente comandadas pela iniciativa privada, em termos de estrutura elas são ainda melhores. A diferença entre o que era praticado nessas praças comunitárias e o momento atual é que se viu a necessidade de uma empresa e não de um departamento. Enquanto a receita dos pedágios do Daer ia para o caixa único do Governo, a arrecadação da EGR é administrada pela própria empresa. O modelo de negócios da EGR é criticado pelo especialista em transportes Luiz Afonso Senna, que afirma ser “errado” cobrar por um
O raio-X A partir de documentos disponíveis no site do Daer, o Editorial J agrupou os principais números dos polos entre os anos de 1998-2012. A apuração exigiu que a reportagem montasse uma nova base de dados, para cruzamentos e comparações. As fichas ao lado mostram o montante da arrecadação, os valores aplicados em investimento, os recursos com manutenção (e conservação), a extensão total e qual foi o tráfego no período. Em 15 anos, 564.011.370 veículos circularam pelos trechos – é como se cada veículo da atual frota gaúcha tivesse atravessado cem vezes pelo menos uma das cancelas.
Metropolitano Receita
R$ 1.259.151.761,98
Caxias Receita
Vacaria
R$ 803.170.109,48
Receita
R$ 443.113.919,38
Investimento
20,78%
Investimento
20,07%
Investimento
17,09%
Manutenção
26,75%
Manutenção
30,78%
Manutenção
48,34%
Extensão Tráfego
535,77 km 149.592.730 veículos
Extensão Tráfego
191,07 km 98.302.962 veículos
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Extensão Tráfego
141,84 km 43.670.045 veículos
nária dos pedágios delária) por determinação da Justiça. O motivo serviço que ainda não está sendo prestado. seria a ausência dos serviços essenciais, como “Não faz sentido cobrar pedágio sem um croguincho e ambulância. Bertotto defende que, nograma de obras”, diz ele. Como trabalha sendo uma empresa pública, a EGR tem uma exclusivamente com o que arrecada nas praestrutura diferente das concessionárias privaças, a empresa estatal começou sem o dinheiro das e que, dessa forma, utiliza os serviços de necessário para realizar investimentos. A EGR órgãos do próprio governo, especializados na foi criada com um capital de R$ 500 mil, desigprestação de socorro, como o Serviço de Atennado para infraestrutura administrativa e condimento Móvel de Urgência (Samu), o Corpo tratação de pessoal. Esse modelo é diferente do de Bombeiros e o guincho do Departamento utilizado anteriormente pela iniciativa privada. Estadual de Trânsito (Detran-RS). Segundo Em 1998, primeiro ano do contrato das ele, o modelo se assemelha ao que o Daer concessionárias, as empresas aplicaram adotava quando administrava os pedágios covalores consideráveis nas estradas, mesmo munitários. Bertotto admite que trabalhando com pouca receita. houve uma demora no processo Polos como o Metropolitano, de firmar os convênios com o DeLajeado e Caxias gastaram nas tran-RS e os bombeiros e associa rodovias 838,81%, 497,48% e Não faz isso à burocracia pela qual uma 419,46% do que arrecadaram, sentido empresa estatal é submetida. “O respectivamente. Para Senna, Estado tem uma burocracia diesse investimento alto no início cobrar ferente, não posso simplesmente do contrato é o que justifica o pedágios ir até a esquina e contratar uma fato de que, nos últimos anos das empresa”, explica.— O presidente concessões, não se investia uma sem obras.” garante que, ainda sim, nenhum parcela grande da receita. “A Luiz Afonso atendimento foi prejudicado. concessionária não é uma ladra Senna Outra questão que levou a e nem a Madre Teresa”, brinca: EGR aos tribunais em 2013 foi o “Ela se comprometeu a realizar repasse do ISS. As concessionárias um serviço durante 15 anos e chegavam a repassar às prefeituras uma alícumpriu”. quota de até 5% da arrecadação. Para BertotBertotto afirma que a EGR já está pronta to, a questão, de novo, diz respeito ao caráter para trabalhar, após um ano de existência. público da empresa, que a tornaria imune “Hoje já temos recursos para fazer manutenao imposto. “Se os municípios acharem que ção e conservação, e também para investimennão [são imunes], e nós entendermos que tos”, explica. Ele garante que, caso seja necessim, quem vai decidir é a Justiça”, alega. sário realizar um investimento que precise de Ainda segundo ele, as empresas terceirizamais recursos do que a empresa tem em caixa, das, contratadas pela EGR para realizarem ela pode ter aportes do governo por um períoos serviços de arrecadação, manutenção, do determinado, ou realizar financiamentos. conservação, pintura e ampliação das rodoEm seu primeiro ano de atuação, a EGR já vias, repassam o imposto para as prefeituras teve de interromper a cobrança em três praças mensalmente. de pedágio, (Encantado, Venâncio Aires e Can-
“
Gramado Receita
Carazinho
R$ 264.731.263,14
Receita
Como foi
Como seria
A distribuição de recursos no modelo de concessionárias, nos polos que a EGR assumiu:
Como ficaria se a EGR aplicassse sua proposta de divisão sobre os valores do modelo anterior:
R$ 4,2 bilhões
R$ 3,1 bilhões
R$ 1,2 bilhão
R$ 1,6 bilhão
R$ 904 milhões
R$ 935 milhões
Receita
Manutenção
Receita
Manutenção
Investimentos
Investimentos
+ Confira a base de dados em http://www.eusoufamecos.net/ editorialj/banco-de-dados-pedagios/. É possível pesquisar: • Divisão dos gastos. • Fatia de cada polo. • Evolução anual. • Comparação entre polos.
Santa Cruz do Sul
R$ 733.491.146,82
Receita
R$ 580.273.435,95
Lajeado Receita
R$ 1.304.989.183,32
Investimento
14,89%
Investimento
30,37%
Investimento
30,67%
Investimento
20,21%
Manutenção
39,12%
Manutenção
42,27%
Manutenção
35,81%
Manutenção
34,23%
Extensão Tráfego
144,07 km 38.016.044 veículos
Extensão Tráfego
250,4 km 75.139.343 veículos
Extensão Tráfego
207,87 km 36.626.600 carros
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Extensão Tráfego
328,78 km 122.663.646 carros
economia
Por que elas ainda recebem menos A pressão cultural que tende a cimentar os gêneros em papéis pré estabelecidos é uma entre as tantas questões que inibem o avanço das mulheres e estancam seus salários. Por que, embora sejam tão economicamente ativas quanto os homens, elas ainda recebem menos do que eles? Mulheres que perseveraram em posições convencionadas como masculinas e pesquisadoras das questões de gênero conversaram com o Editorial J para tentar explicar esta situação desigual.
P O R Anna Cláudia Fernandes (8º sem.) e Thamíris Mondin (5º sem.)
A negociação salarial é outra justifique levaram as mulheres à posição que cativa para a mulher receber menos, emocupam hoje. Ela lembra dos brinquedos bora seja contestada por pesquisadores. infantis: enquanto os de meninos instigam uando era estudante de Física No levantamento realizado pelas autoras a aventura e a curiosidade, com carrinhos e na Universidade Federal do Rio norte-americanas Linda Babcock e Sara jogos, os das meninas remetem aos cuidados Grande do Sul (UFRGS), em Laschever, chegou-se à conclusão de que da casa e das crianças, com bonecas e utensíumas das disciplinas, Daniela Paos homens negociam quatro vezes mais do lios domésticos de brinquedo. vani fazia as provas com o professor sentado que as mulheres. As autoras do livro WoDessa forma, homens são entendidos ao seu lado. Isso não acontecia por alguma men don’t ask (Mulheres não pedem, em como mais objetivos, melhores nas ciências dificuldade de aprendizado. Pelo contrário, tradução livre), da Editora Random House, exatas, enquanto elas, como organizadas por ir bem no conteúdo, concluíram que enquanto eles encaram a e maternais, ideais para o professor acreditava negociação como uma diversão, para elas, atividades cuidadoras, estaque a aluna só poderia pode chegar a ser tão assustador quanto ir belecendo-se, assim, áreas estar colando, afinal, ao dentista. mais masculinas ou feminimulheres não entenEntretanto, nem todas pensam assim. nas. De uma maneira geral, é o valor que elas dem matemática. Hoje A publicitária Gabriela Wolffenbüttel, atuas profissões associadas ao recebem a menos Daniela é pós-doutora almente atendimento de uma empresa de feminino têm remuneração do que eles. Com em Astronomia e protecnologia, não se esquivou ao cobrar uma mais baixa (como pedago12 anos ou mais de fessora da universidade, promoção prometida pelo seu ex-chefe, mas gia, serviço social, fisioteraprovando que as mulheda qual ele fugia até demiti-la, com a desculpia e enfermagem) do que estudo, a diferença res pertencem também pa de corte de gastos. Além da demissão, a as masculinas (engenharia, aumenta: elas à área das exatas. O prepublicitária aponta para outras formas de ciências e carreiras execurecebem 40,8% a conceito que ela sofreu tratamento dentro de sua profissão com as tivas). No departamento menos. aconteceu em meados quais não concordava. Já recebeu convites de astronomia da UFRGS, de 1990, menos de duas para sair de clientes, o que a deixava conspor exemplo, mesmo sendo Fonte: Pesquisa Nacional décadas atrás. Ou seja, trangida. Para o ex-chefe, era uma forma de considerada uma das áreas por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Braele é recente e parte dele atrair mais trabalhos. “Eu não imagino em da Física com maior presileiro de Geografia e pode ser encontrado na um ambiente profissional que um homem sença feminina, são quatro Estatística (IBGE) Pesquisa Nacional por tivesse que lidar com esse tipo de situação”, professoras de um quadro Amostra de Domicílios afirma. formado por 12 docentes. (PNAD) do Instituto Para Elena Schunck, pesquisadora do “Qual é o problema para Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a as mulheres que procuram um emprego divulgada em novembro de 2013, que mosMulher e Gênero (NIEM) da UFRGS, a negofora dos ‘guetos cor-de-rosa’ das funções tra que as mulheres ainda recebem menos ciação por melhores salários ou promoções, de secretária, professora, e das ocupações do que os homens e se dedicam muito mais no caso feminino, é menos uma questão de na área da saúde? Uma possibilidade é a ao lar e à família do que eles. coragem e mais um conflito entre assumir ‘falta de compatibilidade’ entre o estereótipo Neste último ano, Daniela passou a se novas responsabilidades no trabalho e depopular da mulher e os cargos profissionais envolver mais com o debate de gênero, ao dicar-se aos cuidados com a família, sempre que exigem perícia, esforço e dedicação”, participar do edital do Conselho Nacional associados primeiramente às mulheres e, afirma Cordelia Fine, autora canadense do de Desenvolvimento Científico e Tecnolómuitas vezes, exclusivamente a elas. “Acho livro Homens não são de Marte, Mulheres gico (CNPq) Meninas nas Ciências Exatas, que também existe uma questão das responnão são de Vênus, da Editora Cultrix. Para incentivo para a entrada e a permanência de sabilidades que a mulher assume, que são a autora, esses estereótipos podem deturpar mulheres na área. Ela participa também da maiores do que as dos homens”, diz. Como a maneira como as pessoas interpretam as Conferência Nacional de Educação em disa maternidade acaba sencoisas. Cordelia apresenta cussões de recorte de gênero. A astrônoma do um fator constante uma série de pesquisas em acredita que os resultados obtidos pelo IBGE no debate entre mulher que currículos idênticos estão relacionados à estrutura social brasie carreira, ela também carregavam ora o nome leira, que seria machista. Para ela, uma série influencia na aceitação ou de mulheres, ora o de hodos homens de comportamentos culturais podem inibir não de promoções. mens, ora como solteiros e negociam o salário a presença das mulheres em determinados No início de 2013, solteiras, ora como pais. O no primeiro empregos. Ela explica que há na sociedade Priscila Bortolato, gerente resultado indicou que, em emprego, mas a visão da mulher como guardiã da vida de desenvolvimento de cargos considerados mais apenas privada, do cuidado com os filhos, enquanto negócios da Givaudan, masculinos, elas eram os homens ainda não são percebidos como empresa de fragrâncias, rejeitadas, ou contratadas responsáveis por este aspecto doméstico ao deu à luz Bernardo. Com com ressalvas, enquanto lado delas. Uma diferença tida como natural 33 anos, já havia conquisas mães eram consideraentre os gêneros, mas que é parte de uma tado certa estabilidade das menos comprometidas mulheres fazem construção histórica. As mulheres acumuem sua empresa, e seus das e merecedoras de um isso. lam responsabilidades que não são divididas chefes já sabiam que ela salário menor do que as e acabam, muitas vezes, impedidas de ascenplanejava ter uma família. solteiras. Já os pais não Fonte: Women don’t ask der em suas carreiras profissionais. Segundo Seu emprego está garansofreram qualquer tipo de Daniela, não foram as distinções biológicas tido, mas ela mesma já rejeição.
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Caroline Ferraz (6º sem.)
Diretora do Instituto de Física da UFRGS, Márcia Barbosa é ativista das questões de gênero e uma exceção em relação às estatísticas respondi no evento: ‘ganhei porque meus é uma das criadoras do o que acaba se refletindo se impôs um limite: daqui para frente, não argumentos eram melhores do que os seus. grupo de gênero da União na dificuldade delas de poderá assumir cargos com exigências de Eu penso com os meus neurônios, sinto Internacional de Física se comprometerem com viagens seguidas ou jornada de trabalho muito se tu pensas com os teus hormôe participa do grupo de viagens a trabalho e mais mais longa. “Também acredito que algumas das mulheres nios’”, relembra. Ela observa o fato de as gênero da Sociedade Brahoras no emprego. Dados oportunidades poderão ser vetadas, e que economicamente mulheres ainda terem de ouvir gracinhas sileira de Física. Também do IBGE mostram que os eu não seja considerada como uma opção no ambiente de trabalho, que revela um é a única mulher entre os homens passam 42,1 hopara determinados cargos, o que talvez não ativas já sofreram preconceito subjacente. vinte integrantes do Coras por semana no trabaacontecesse se não tivesse filho e possuísse assédio sexual. Em ambientes onde a presença mascumitê de Assessoramento lho, enquanto as mulhemais disponibilidade e flexibilidade”, afirma. Fonte: Organização Inlina é dominante, a mulher ainda é recebida de Física e Astronomia res, 36,1 horas. Contudo, Ao evitar assumir cargos mais altos ternacional do Trabacom estranheza, embora o cenário esteja do CNPq, por meio do nas tarefas domésticas, a mulher entra em desvantagem econôlho (OIT) mudando. Para Joana Siqueira de Souza, qual conseguiu obter a eles dedicam 10 horas mica em relação ao homem. Para Márcia engenheira civil e professora da Pontifícia licença maternidade para semanais, enquanto elas, Barbosa, professora doutora e diretora do Universidade do Rio Grande do Sul (PUas bolsistas de produti20,8 horas semanais. SoInstituto de Física da UFRGS, duas resCRS), há uma maior presença de mulheres vidade científica. Ela ainda é uma das três mando-se as atividades, elas trabalham ponsabilidades acabam se tornando quase em canteiro de obras. “Vejo alunas que mulheres dos cerca de 30 membros do 4,8 horas a mais. Ao optar por ter filhos, a exclusivamente femininas: as crianças e os estão conseguindo se colocar em cargos no Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, mulher já não priorizaria cargos que exigem velhos. “As mulheres sofrem uma sobrechão de fábrica. A mulher está conseguindo que assessora a presidente Dilma Rousseff. jornadas maiores. Por esse motivo, deixa carga no começo da carreira, que é quando comandar uma equipe. Mas ainda acham Márcia conta que, uma vez que começou de ser indicada para promoções. “Aí, como elas têm que cuidar dos filhos, e no final que ela tem que provar, enquanto para o jovem na carreira, participava das confemulheres não assumem essa responsabida carreira, que é quando têm que cuidar homem, já está provado”, reflete. rências de minissaia. Sua atenção era chalidade, mesmo as que não têm família não dos pais”, afirma. A física explica que isso 62ª é a posição do Brasil no Ranking mada até por pesquisadoras mais velhas, são pensadas para essas responsabilidades, ocorre porque a família é considerada uma do Relatório de Desigualdade de Gênero que diziam que os participantes poderiam porque não são vistas como líderes”, conquestão privada, de forma que as políticas produzido anualmente pelo Fórum Econônotar que ela era mulher e sofreria mais clui Márcia. voltadas para esse âmbito são restritas. mico Mundial. São avaliadas quatro quespreconceito por isso. “Como se não fosse Para a física, a lideQuando há crianças mais tões: o acesso à saúde e a capacidade de possível notar que uma pessoa é mulher”, rança acaba associada ao novas em creches e elas sobrevivência, o acesso à completa. Posteriormengênero masculino. Ela ficam doentes, quem é educação, a participação te, ao ir a um debate, um aponta que esse processo chamada é a mãe, nunca política e a participação colega se afirmou que passa a ser exponencial, o pai. Dessa forma, o emdas mães econômica. Em relação à havia perdido uma das agravando o problema. pregador não quer pagar trabalham. 2011, o país subiu 20 podiscussões porque o per“Urge ter políticas púa mesma quantia para é a posição do Quando o filho não sições, mas esta evolução fume de Márcia era muito blicas para identificar uma mulher que provaBrasil no ranking frequenta creche, se deve mais às duas priforte e havia atrapalhaas barreiras para as muvelmente vai precisar sair da desigualdade de esse número cai meiras questões do que do o raciocínio dele. “É lheres ascenderem nas mais cedo. A tendência é gênero. para 43,9%. aos outros aspectos ananormal as pessoas virem diferentes carreiras e o empresário optar por lisados. Apesar do avanço com argumento que te contornar esse procespagar um homem, que vai Fonte: Relatório de Fonte: Pesquisa Nacional em pontos fundamentais, lembram que tu és muso”, propõe. Algumas das poder ficar até mais tarde. Desigualdade de Gênero por Amostra de Domicílios a igualdade na área polítilher, que tu estás usando políticas apontadas são a As obrigações domésproduzido e divulgado (PNAD) do Instituto Braca e na economia ainda é anualmente pelo Fórum o fato de ser mulher para flexibilidade na jornada ticas e familiares ainda sileiro de Geografia e Econômico Mundial Estatística (IBGE) um desafio. levar vantagem. E tu tens de trabalho e maior núocupam muito mais esque responder, como eu mero de creches. Márcia paço na rotina feminina,
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biblioteca + Giovanna Pozzer (6º sem.)
Coleções relevam a paixão por livros e a identidade cultural dos seus proprietários
O senhor livro B I B LI OT E C AS C AS E I RAS RE S IS TE M À TE CNOLOGIA DIGITA L P O R Helena Lukianski (7-º sem.) e Giovanna Pozzer (6º sem.)
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ivros tradicionais podem ser totalmente substituídos por arquivos eletrônicos? Conforme uma pesquisa feita pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), as obras digitais ainda não representam nem 1% do faturamento das editoras do Brasil, embora o índice de crescimento do mercado de e-books tenha sido de 350% de 2011 para 2012. Porém, mais do que uma questão de dados econômicos, a decisão de manter uma biblioteca em casa costuma estar relacionada a um sentimento de afeto pelos livros de papel. Charles Kiefer, professor e autor de mais de 30 livros, contabiliza cerca de 10 mil exemplares em sua biblioteca. “Livro é fetiche, né?”, diz. Kiefer não é avesso a novas tecnologias, mas comenta que usa mais aparelhos eletrônicos para consultar enciclopédias e escutar música. Para o escritor, uma tecnologia não substitui a outra. Ele exemplifica: “O cinema não matou o teatro, e o CD não matou a orquestra”. Além
disso, Kiefer garante que a maior parte da sua biblioteca não pode ser encontrada em formato digital: “Não dá para pensar que o livro digital substituirá o papel tão cedo”. Nos Estados Unidos, a venda de e-books representou 20% do faturamento do mercado editorial em 2012. O escritor, professor e editor Paulo Tedesco fundou, em 2009, a Oficina do Livro, que surgiu com o objetivo de ministrar aulas sobre a prática de editoração e o mercado dessa atividade. Sobre o futuro do livro tradicional, ele afirma: “Todo livro hoje nasce digital, todos nós escrevemos em computadores ou transformamos em arquivos digitais para o livro depois se transformar em outro arquivo ou em outro suporte”. Tedesco acredita que, em breve, o mercado estagnará em 50% de suporte papel e 50% digitalizado. Na sua visão, “a interatividade do livro em papel é maior do que a do digital, pois ela se dá com o suporte e não necessariamente com o conteúdo”. Compositor e pianista, Flávio Oliveira cria uma metáfora para definir o deleite do ser humano aos livros. Para ele, as biblio-
tecas trazem o conceito de “egrégora”, palavra que significava a vigília dos monges em oração permanente diante de suas catedrais. Ele explica que esta ideia de vigiar, como forma de cuidado e contemplação, também é identificada em bibliotecas. “O livro constitui parte essencial desta egrégora-vigília, que mantém a memória e o saber humanos vivos. Livros causam-me tanto prazer quanto fazer música. Meu local de trabalho, meu atelier, está em casa, na minha biblioteca”, conta. O projeto Minha Biblioteca, do Editorial J, tem o objetivo de abordar a importância do papel na vida de alguns amantes dos livros. O convidado de cada episódio abre sua casa para mostrar sua biblioteca, fala de suas primeiras leituras e de como os livros entraram em suas vidas. Contam, também, quais os autores e os personagens preferidos e como organizam as bibliotecas. Nos três primeiros episódios, Antônio Hohlfeldt, David Coimbra e Diego Grando mostram, cada um a sua maneira, seus gostos e estilos, por meio das suas bibliotecas particulares.
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Assista aos vídeos da seção Minha Biblioteca no site http://www.youtube.com/ user/editorialj.
cidade
Os extremos da Capital CO N T R AST E S MA RC A M VI DA DA POP ULAÇÃO QUE MORA NOS LIMITES DE PORTO A LEGRE Guilherme Almeida (5º sem.)
P O R Douglas Roehrs (6º sem.)
C
om um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,805, conforme dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) divulgados em 2013, Porto Alegre convive com contrastes. O número, baseado em educação, renda per capita e longevidade, é considerado alto, o que levaria a supor que a qualidade de vida na cidade é excelente se ela for comparada com os padrões internacionais. No entanto, um único número não reflete a realidade encontrada na capital gaúcha, que é de extremos, dividida em zonas de qualidade elevadíssima, que divergem de outras com números muito baixos. Para entender estas particularidades e fazer uma análise das diferenças entre os bairros porto-alegrenses, o Editorial J visitou os extremos geográficos de Porto Alegre, em busca de histórias capazes de ilustrar as discrepâncias estatísticas. Os bairros Lami (Sul), Anchieta (Norte), Mário Quintana (Leste), Vila Assunção (Oeste), Belém Velho (Centro) e Centro Histórico representam a pluralidade da sexta capital com maior IDH do país – o Centro Histórico foi visitado por ser a parte mais frequentada da cidade. Natural de Erechim, Clea Passuello Sandre, 66 anos, farmacêutica bioquímica aposentada, mora há 38 anos com seu Ângela mora na região Leste e marido, João Lino Sandre, 78, também farmacêutico bioquímico aposentado, no No entanto, é difícil executar as reformas bairro Vila Assunção. Mãe de três filhos, necessárias, o que já fez com que ela até gosta de ir ao cinema, assistir a peças de mesmo cogitasse a hipótese de mudar de teatro e espetáculos musicais e de viajar – bairro. Seus filhos a convenceram a não sua última viagem foi para Maceió. Quatro levar ideia adiante, decisão aprovada peempregados trabalham na sua casa: faxilos vizinhos e familiares. “O que ganho é neira, passadeira, jardineiro e uma pessoa muito pouco e ainda tem basresponsável pela manutenção tante coisa para arrumar na geral do imóvel. O bairro, que casa”, desabafa. O rendimensegundo ela é perfeito, possui to médio dos responsáveis um rendimento médio dos Renda tem por domicílio na região onde responsáveis por domicílio variação mora Ângela é de 1,46 saláde 10,38 salários mínimos rios mínimos (R$ 1.057,04, (o equivalente a R$ 7.515,12, de até tomando como base o valor pelo salário mínimo em vigor 1.241% unitário de R$ 724), um desde 1º de janeiro de 2014), pouco mais elevado do que a conforme levantamento da entre média mais baixa da cidade. Prefeitura Municipal de Porto bairros. O bairro Serraria, na reAlegre e IBGE-Censo 2010. gião sul, que possui o pior A porto-alegrense Ângela índice entre os locais com dados Maria dos Santos Goulart, disponíveis, tem um rendimento 57 anos, doméstica, reside médio dos responsáveis por domicílio cerhá 25 anos no bairro Mario ca de 14 vezes menor que o bairro Pedra Quintana. Viúva há 22 anos, dois dos sete Redonda, de melhor índice em Porto Alefilhos moram com ela. No seu tempo livre, gre. Enquanto a média salarial na Serraria gosta de costurar para fora – a atividade é de 1,41 salários mínimos (R$ 1.020,84), também lhe possibilita uma renda além no bairro Pedra Redonda o valor é 17,5, ou do salário mínimo recebido no trabalho. seja, a variação entre os pontos, mesmo Sua casa amarela, que também é habientre localidades próximas geograficatada pelo cachorro Marley, precisa de mente, é de 1.241%. reparos, que ela tenta fazer com o tempo.
complementa a renda costurando para clientes
+ O telejornal temático Pontos extremos de Porto Alegre sobre as condições opostas da capital gaúcha está dividido em duas partes e pode ser visto através do canal do youtube do Editorial J: http://www. youtube.com/user/editorialj
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Anchieta Mário Quintana Centro Histórico
Vila Assunção
Belém Velho
Lami
Eu, Carolina P O R Douglas Rohers (7º sem.)
Faltam algumas horas para o show, mas Cássio dos Santos Rezende,29 anos, já se prepara. Durante o dia, ele é cabeleireiro e maquiador; à noite, dá lugar a Carolina Schults, divertida mulher
que realiza performances de dança no Vitraux. A família sabe que ele é homossexual e aceita. Nenhum deles sabe que ele é drag queen. Cássio tem medo de contar. Confira o vídeo no site do Editorial J.
+ Confira a transformação de Cássio em Carolina
CADERNO ESPECIAL - 50 ANOS DO GOLPE DE 1964
ABRIL/MAIO 2014 • FAMECOS/PUCRS WWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIAL J
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vazio acima traduz o silêncio que imperou no Brasil durante os anos de chumbo. Entre 1964 e 1985, militares governaram o país a partir de um golpe contra o governo de João Goulart em 1º de abril, impondo um período de violência, censura e arbitrariedade. Cinquenta anos depois, os brasileiros ainda buscam a verdade e têm o direito de entender os desdobramentos de duas décadas que esvaziaram de sentido a vida de muitos. O Editorial J mergulhou em algumas histórias daqueles tempos de medo e sobressaltos, mas também de resistência. Neste caderno especial de oito páginas, o leitor conhecerá como a repressão montou um aparato de vigilância e perseguição no Interior do Rio Grande do Sul, Estado-chave para o regime conter
qualquer possibilidade de reação aos golpistas. O sistema criou filiais do temido Dops em dez municípios gaúchos. Também mostramos como a mídia, de uma maneira geral, aliouse aos militares e civis que urdiram a derrubada de Jango. Por meio de editoriais e coberturas parciais dos acontecimentos, a imprensa agiu como aliada dos grupos que traçaram o objetivo de afastar do poder o governo legitimamente eleito. Mesmo com o clima político asfixiado pela censura, houve indignação e mobilizações para mostrar que alguma coisa de errado atormentava a normalidade política. Fotógrafos usaram as paredes de prédios nas ruas do centro da Capital para compartilhar imagens vetadas ou que poderiam soar provocativas - um movimento de reação àqueles anos de vazio e silêncio.
A cronologia segundo o @golpe1964 Um perfil criado pelo Editorial J no Twitter recontou episódios do golpe. Nas próximas páginas, o jornal publica uma seleção dos principais posts:
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Março, 13 - Comício das Reformas, na Praça da República, no Rio de Janeiro, com a presença do presidente João Goulart.
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Março, 31 - Gen. Mourão dá início ao golpe em Juiz de Fora (MG), horas antes do combinado. As tropas se dirigem ao Rio de Janeiro.
O Interior perseguido C OM O O B J ET I VO DE CRIAR UMA TE IA DE VIGILÂNCIA, DEZ CIDA DES GA ÚCHAS T I N H A M F I L I A I S DO TE MIDO D OPS, QUE E RAM CONHECIDAS COMO SOPS Guilherme Almeida: (5º sem.)
P O R Bruna Zanatta (3º sem.) e Júlia Bernardi (3º sem.)
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uitos preferem esquecer o ano de 1964. Porém, com oito décadas de vida, Valdetar Antônio Dorneles ainda lembra de tudo. Com o apoio de Leonel Brizola, então exilado no Uruguai, Dorneles convocou um grupo de rebeldes na primeira guerrilha rural contra o governo militar, na cidade de Três Passos, a 470 km da Capital. A operação, que contava com 20 homens, acabou fracassando. Seus militantes foram cruelmente torturados, e o grupo ficou 11 meses sem qualquer comunicação, encarcerado. Preso por quatro anos, cumpriu pena em cinco prisões e carrega na pele cicatrizes daquele tempo de lutas. O militante é uma das tantas vítimas da repressão no interior do Rio Grande do Sul, Estado que recebeu atenção especial dos militares, pela resistência à tentativa de golpe de 1961, no movimento que ficou conhecido como Campanha da Legalidade. Já nessa época, segundo a historiadora Caroline Bauer, foram criadas as Seções de Ordem Política e Social (Sops), que funcionavam como uma espécie de filial do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), e agiam dentro das delegacias regionais de cada cidade, vigiando de perto a atuação de possíveis rebeldes no Interior. Essa comunicação, porém, não era exclusividade do sistema de repressão gaúcho. “O diálogo entre o Dops, nas capitais, e as delegacias regionais, no Interior, acontecia em todo o território nacional, porém, no Rio Grande do Sul acontecia através de um departamento especial”,
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Dorneles começou a ser perseguido com a atuação no Grupo dos 11 explica Caroline. Esses braços operacionais elaboravam relatórios diários sobre a movimentação política, ainda que nada de anormal tivesse ocorrido na região. Ao fim do dia, um resumo de todas as ocorrências era encaminhado ao Dops, na Capital. Todos os movimentos articulados pela sociedade estavam sob vigilância. Em debates ou discussões nas escolas, os professores e organizadores eram minuciosamente
ABRIL/MAIO DE 2014
observados, para saber se agiam ou pensavam contra ou a favor do regime militar. Essa era, em suma, a principal função do Sops. Caroline ressalta que a filial tinha a função de vigiar maior até do que a de reprimir. Segundo a dissertação de mestrado de Vanessa Lieberknecht, dois fatores eram mencionados com frequência nos documentos: a preocupação com a padronização da informação, para que se pudesse operar de forma mais eficiente e sem erros;
e a diferenciação entre informe e informação. Os informes eram produzidos a partir de fatos concretos ocorridos na região, acusando um indivíduo específico. Já as informações não tinham uma comprovação efetiva do fato. Era preciso confirmação, por parte do delegado para que a informação (Código INFE) se tornasse um informe (Código INFO). A produção desses informes garantia o controle da população e a repressão.Toda essa vigilância, para a
historiadora Evelise Zimmer Neves, se devia, principalmente ao fato de que, na década de 1960, a maioria (55%) da população brasileira estava longe dos grandes centros urbanos. No Rio Grande do Sul, essa porcentagem era ainda maior, 62% dos gaúchos estavam na zona rural. “A presença [da repressão] no interior era indispensável”, conclui Evelise. No total, dez Sops foram distribuídos de maneira estratégica pelo Estado, nas cidades de Alegrete, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul, Cruz Alta, Erechim, Lajeado, Lagoa Vermelha, Osório, Rio Grande e Santo Ângelo.
Três Passos, onde Dorneles vivia com a família, estava sob acompanhamento do Sops de Santo Ângelo. Mais velho de oito irmãos, ele ingressou na vida política com a Legalidade e a defesa da posse de João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. Na época, era professor e, pelas cidades onde passou lecionando, sempre buscou mobilizar a população em prol de melhorias, como escolas, times de futebol, igrejas e até reforma agrária. Sua família, respeitada e influente, sempre esteve engajada na política e, por essa razão, eram vigiados de perto. Em um domingo de abril de 1964, o primeiro mês da ditadura militar (1964-1985), instaurada no Brasil em 31 de março daquele ano, a casa de Dorneles foi invadida por 41 militares. “Fizeram uma limpa na minha casa. Não fiquei nem com a faca de cozinha. Levaram tudo”, conta. Levaram também seu pai, Euzébio Teixeira Dornelles, preso, acusado de participar do Grupo dos 11 e solto na mesma noite. Na cozinha, abaixo da
Março, 31 - Juscelino avisa a Jango sobre as ações em Minas Gerais. O Presidente não acredita.
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tregado o movimento. Dorneles pistola fixada na parede que foi ficou encarregado de mobilizar levada pelos soldados, estava os colonos. No total, 23 homens, uma pasta contendo documenentre eles, seu pai, Euzébio Teitos e atas referentes aos grupos. xeira Dornelles, e seu irmão A casa foi revirada, mas a pasta Abrão Antonio Dornelles, deificou ali. Dias depois, Dorneles, xaram suas casas para fazerem temendo que mais famílias fosparte da primeira guerrilha. Ao sem prejudicadas, retirou-a do se despedir da mãe e dos irmãos, local e ateou fogo. Hoje, ele se o alerta: “Se disserem que eu arrepende: “Eu podia ter só enmorri, não acreditem”. terrado aquela pasta. Aquilo era documento histórico”. O Grupo dos 11 era formado por colonos de uma região, que A Guerrilha de Três Passos se comprometiam a garantir a começou em 25 de março de legalidade constitucional e a con1965. Os rebeldes tomaram o cretização das reformas agrária presídio e o destacamento da e urbana. Apesar de terem sido Brigada Militar de Três Passos, idealizados por Brizola, não chelevando armas, munição e fardas. garam a ter uma coordenação Deixaram a cidade sem comunigeral e centralizada. Para alguns cação telefônica, cortando os fios setores sociais – militares, inteda rede e ainda invadiram a Rágrantes de partidos como PSD e dio Difusora, onde Odilon Vieira UDN e a maioria da Igreja CatóBruhn transmitiu lica –, essas organipara toda a popuzações eram vistas lação um manifesto como subversivas e contra a ditadura integradas ao “moDali militar: “As armas vimento comunista em dianque derrubaram internacional”. Em nossos presidensua tese, Evelise te, para o tes e governadores conta que, em alExército, hoje se levantam gumas paróquias para reestruturar a no interior do Eséramos codemocracia desse tado, os filhos dos munistas.” país”, explicaram. integrantes desses No caminhão grupos não eram Valdetar Mercedes ano nem batizados. Dorneles 1939, o grupo pasSegundo a edisava por cidades peção de 10 de abril dindo apoio e realizando de 1965 da extinta saques. Escondiam-se no mato. revista Manchete, o número de Quando o Exército os encontrou, Grupo dos 11 chegou a 24 mil, eles já estavam no Paraná, na ciem Santa Catarina e Rio Grandade de Leônidas Marques (PR). de do Sul. A partir do Golpe As ordens do coronel eram de de 1964, a perseguição a quem que não atirassem em ninguém estivesse ligado a esses comanpara matar. Ao verem o grupo dos só aumentou. “Na verdade, diminuir de 20 para 10 integrana acusação de pertencer a essa tes, resolveram se entregar, mas organização foi um amplo guaracabaram caindo em uma emda-chuva sob o qual os novos boscada. O grupo foi capturado e donos do poder – civis e militapreso no Quartel General de Foz res – enquadraram toda sorte de do Iguaçu (PR), quartel mais próinimigo político”, avalia Evelise. ximo da região, apenas dois dias Mais tarde, a maior parte dos depois do começo da guerrilha. indiciados foi absolvida por No Paraná, começou aquela absoluta falta de provas. Ainda que Dorneles considera a fase assim, naquele momento, para mais dura de sua vida. Nos interDorneles, o cenário mudou. “De rogatórios, negou que tivessem ali em diante, para o exército, tido o apoio de Brizola, e tomou éramos comunistas”, lembra. a responsabilidade da guerrilha No Uruguai, Brizola enviou para si quando o coronel Jefo coronel Jefferson Cardim de ferson pensou em se matar. Ele Alencar Osório e Albery Vieira pagou caro por sua astúcia. Por dos Santos que, mais tarde, seria quatro anos, oscilou por prisões acusado de ter se infiltrado e en-
Março, 31 - Gen. Ladário é recebido por Jango, que lhe entrega o comando do III Exército e o ordena se deslocar para o Sul do país.
entre Porto Alegre e cidades do Paraná até ser liberto, em 1968. Ele lembra das sessões de tortura pelas quais passou: “Enrolavam uma linha de pescar nos nossos dedos, ‘tu conhece Fulano?’ ‘Não’, e puxavam aquela linha. A linha corta até o osso”. Em Foz do Iguaçu, passou 51 dias em uma sala com 48 homens e apenas um banheiro. O pior momento veio em Porto Alegre. Na sede do 18º Regimento de Infantaria, que funcionava na Avenida Padre Cacique, onde hoje se localiza a Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase), Dorneles passou cinco dias sem saber se era dia ou noite. “O pior castigo que tive, não foi o pau, não foi a corda, nem o enforcamento. Nada me abalou tanto quanto aqueles cinco dias. Desligado do mundo, não se ouvia nada”, lembra.
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Março, 31 - Gen. Kruel apela para Jango se libertar do cerco das forças populares. O presidente se nega.
A conexão da vigília
Informe diário produzido por Delegacias Regionais para o Sops de Lagoa Vermelha
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Alguns não conseguiram resristir tanto. Dorneles conta com pesar, que o ex-sargento da Brigada Militar Albery Vieira dos Santos entregou o grupo. Homem da confiança de Brizola, Santos teria atuado dentro do movimento, como agente do governo militar, e, mais tarde, em interrogatório, entregou todo o esquema da Guerrilha de Três Passos, conforme trechos do seu depoimento que relatam que “dotado de privilegiada memória, menciona grande número de pessoas que estão ligadas ao esquema contrarrevolucionário de Leonel Brizola”. Segundo Dorneles, “muita gente inocente apanhou por causa dele”. O irmão de Albery, José Soares dos Santos, foi uma vítima fatal da repressão, morrendo de forma violenta em 1977, também em Foz do Iguaçu. Ao que tudo indica, uma ação de queima de arquivo. O Dops deixou de existir em 1982, e junto com ele, o Sops. Cinquenta anos depois, hoje advogado, casado, pai de três filhos, Dorneles ainda mora em Três Passos e reafirma seu compromisso com o Brasil: “Se a pátria for ultrajada e precisar de um voluntário, eu saio outra vez”.
Solicitação do Dops pedindo informação para o Sops de Lagoa Vermelha
Informe do fim da ditadura ainda acusa presença do Grupo dos 11 na região
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A cronologia segundo o @golpe1964 Março, 31 - Jango recebe um bilhete do Ministro da Justiça, Abelardo Jurema, lhe informando da movimentação das tropas em Minas.
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Março, 31 - Gov. Carlos Lacerda é informado que o Ministro da Justiça, Abelardo Jurema, ordenou um ataque ao Palácio da Guanabara.
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Março, 31 - Gen. Zerbini intercepta o Esquadrão Motorizado. O General Aluísio diz que foi forçado a aderir à manobra do Gen. Kruel.
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Conspiração imp
Os 50 anos do golpe que instalou a ditadura militar no Brasil espalham uma sensação de constrangimento pela imprensa brasileira. Nos idos de 1964, os grandes grupos midiáticos assumiram um objetivo claro: derrubar o presidente João Goulart. O Editorial J buscou registros que ilustram a posição dos jornais da época e mostram como a imprensa integrou o conjunto de forças dominantes do país que, temerosas pela postura reformista de Jango, ajudaram a consolidar o golpe de Estado.
P O R Thamiris Mondin (5º sem.)
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atuação da imprensa nos últimos dias do governo de João Goulart antes do golpe militar de 1964 alinhavou o discurso fervoroso das classes conservadoras brasileiras, que enxergavam uma ameaça nas reformas de base propostas pelo presidente. A mídia nacional da época concentrava suas forças nos periódicos impressos, que detinham grande influência sobre a sociedade civil. O esforço pela neutralidade, ainda que superficial, só viria depois. Com as redações pouco profissionalizadas, a opinião naquele período não ficava restrita aos editoriais: as páginas também pingavam ideologia. A tensão da Guerra Fria e a campanha anticomunista davam o tom da conjuntura histórica de 1964. A imprensa destacava o suposto perigo de uma “cubanização” do Brasil a partir das ideias de transformação social do governo federal. “A mídia da época representava os interesses das camadas mais ricas da população e cumpriu esse papel de reagir às reformas de base de Jango como quem reage diante do medo de perder seus privilégios. Uma mídia de classe, ideologicamente marcada e que se deixou envolver naquela trama da Guerra Fria, acreditando ou fingindo acreditar que o Brasil estava à beira de uma revolução comunista”, explica o historiador e jornalista Juremir Machado da Silva, autor do livro
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1964:golpe midiático-civil-militar . Dos jornais do eixo central do país surgia um discurso replicado por todo o Brasil. Os opositores declarados do governo Jango eram essencialmente os diários paulistas Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo e os cariocas O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Tribuna da Imprensa, este de Carlos Lacerda, então governador do Estado da Guanabara e inimigo político de Getúlio Vargas, de quem Jango foi ministro do Trabalho e herdou o posicionamento reformista. Os editoriais do Correio da Manhã de 31 de março e 1 de abril de 1964, intitulados de “Basta!” e “Fora!”, foram o marco da atuação da imprensa na construção do golpe. Com um discuro imperativo, clamavam pela saída do presidente. As propostas de Jango, apesar do viés social, propunham movimentação econômica e consequente manutenção do sistema capitalista. Mesmo assim, ele era diariamente associado aos ideais soviéticos. Destacado como imprudente e ignorante, o presidente, que era um social democrata, foi pintado nos jornais como uma personalidade fraca e influenciada pela aproximação com o comunismo. Estas acusações sustentaram a ideia do contragolpe, que legitimava a intenção de derrubar um governante
eleito democraticamente em nome da preservação da legalidade. Uma esquizofrenia política hoje tão evidente, que deixa dúvidas sobre a ingenuidade dos jornalistas que participaram do golpe. Entre os intelectuais que emprestaram suas palavras para vociferar contra Jango, a maioria purgou o arrependimento quase imediato após o golpe. Muitos, no entanto, se mantiverem fiéis Editorial do Cor ao regime militar, de 31 de março que ainda apareceria um marco da aç na imprensa como uma revolução legalista ou um contragolpe, mesmo depois de 1965, quando os militares não respeitaram o que seria o final do mandato de Jango e permaneceram no poder. “O Correio da Manhã reconheceu imediatamente que havia uma ditadura e tentou combatê-la mas
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Março, 31 - Gen. Assis Brasil, chefe da Casa Militar, pede informações ao Gen. Zerbini, que acredita não possuir forças para enfrentar o II Exército.
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Março, 31 - Kruel emite proclamação de que o II Exército aderiu ao golpe para “salvar a pátria, livrando-a do jugo vermelho”.
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Abril, 1 - Gen. Morais Âncora sugere ao presidente deixar o Rio de Janeiro por falta de segurança.
pressa nos jornais
ainda assim, sempre que falava do Jango, falava mal. O jornal do Brasil falava mal do Jango e gostava do regime. O Globo também. A Tribuna da Imprensa se arrependeu porque acreditava que, com a queda do Jango, o governo iria para o colo de Carlos Lacerda, e não foi”, eclarece Juremir. Passados 50 anos, os grandes veículos tentam espiar a culpa, destacando princirreio da Manhã palmente o período da censura, mas o de 1964 foi estrago foi irremeção golpista diável. No Rio Grande do Sul, o Diário de Notícias, um braço dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, estampava nos seus editoriais a insatisfação com João Goulart e, especialmente, com o decreto da Superintendência de Política Agrária (SUPRA), um passo decisivo para a
implantação da reforma agrária. A campanha de desmoralização do governo federal condizia com o público do jornal, as classes que se autodenominaram “produtoras” durante a tentativa de golpe de 1961, que encontrou a resistência na campanha da Legalidade liderada por Leonel Brizola. Ruralistas tinham espaço privilegiado no Diário e acusavam Jango de populista e incoerente, um traidor, já que ele era também um produtor rural. Eles representavam na época a classe mais conservadora da sociedade, em um país predominantemente agrícola e cujo latifúndio era a expressão maior da riqueza. Embora a imprensa gaúcha não repercutisse com intensidade no cenário nacional, era essencial para as forças direitistas que o aparato midiático do Rio Grande do Sul mantivesse a opinião de seu público no caminho da campanha contra Jango, para evitar insurreições como a de 1961. “O Rio Grande do Sul sempre foi muito visado pelo regime em função do eleitorado trabalhista e pelos simpatizantes de Jango e Brizola”, explica o historiador e pesquisador de ditaduras de segurança nacional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Enrique Padrós. Apesar da atmosfera midiática predominantemente contrária ao governo Jango, houve também
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resistência dentro da imprensa. O jornal Última Hora, do carioca Samuel Wainer, era o respiro janguista no país, em especial na sua versão gaúcha, por se tratar de um veículo com trajetória fortemente ligada à Getúlio Vargas. Sufocado pela censura, o periódico se desfez de suas sedes regionais e encerrou as atividades definitivamente em 1971. João Batista Melo Filho era redator da Agência Nacional em 1964, a agência de notícias oficial criada durante o Estado Novo como um braço do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Por se posicionar a favor do governo de João Goulart, como boa parte dos funcionários, foi demitido em 5 de março de 1964. “ Eu fui incluído entre os afastados porque esta era a minha posição, depois de ter acompanhado muito de perto o movimento da legalidade em 1961”, lembra Batista. Na época Batista também trabalhava como diretor de telejornalismo na TV Piratini. A sua demissão foi solicitada ao diretor da emissora, que recusou. Mas o nome de Batista não apareceria nos créditos do telejornal até 1977. Para ele, não é possível dissociar o golpe de Estado dos interesses da mídia da época. “Os grandes veículos eram das famílias conservadoras, passavam de geração para geração. Com as imagens das marchas da família com Deus, o papel fundamental da imprensa foi transmitir a sensação de que toda a nação estava contra o governo”, conclui.
Roteiro de ataques
1 Artigos do Diário de Notícias, de março de 1964, atacam Jango, acusando-o de entravar o desenvolvimento brasileiro. 2 Correspondente do O Estado de S.Paulo em Buenos Aires, em edição de 6 de abril de 1964, fala sobre os louvores da Argentina à participação da imprensa brasileira no Golpe. 3 Capa do O Globo, de 3 de abril de 1964, exalta a Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade como “Marcha da Vitória”. 4 Nota do jornal O Estado de S. Paulo, de março de 1964, desqualifica João Goulart, destacando-o como inculto e ironizando seus conhecimentos políticos. 5 Notícia do O Estado de S. Paulo, de 3 de abril de 1964, anuncia o primeiro Ato Institucional.
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A cronologia segundo o @golpe1964 Abril, 1 - Leonel Brizola visita o Gen. Ladário e sugere uma requisição das emissoras de rádio e TV, para fazer propaganda da Legalidade.
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Abril, 1 - Jango informa Raul Ryff, seu assessor de imprensa, que está indo para Brasília.
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Abril, 1 - Jango debate com seus aliados se deve permanecer em Brasília ou se deslocar para o Rio Grande do Sul.
Retratos da ditadura F OT Ó G RA F O S O RGA NIZ ARAM MOS TRA LIVRE QUE APROXIMOU REPORTAGENS DA P O P U L A Ç Ã O E E NFRE NTOU RE PRE SS ÃO DO REGIME MILITA R P O R Caroline Ferraz (5º sem.)
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Rua da Praia já foi um local para dar voz a fotojornalistas, quando as redações se calavam em apoio à ditadura e esqueciam temáticas sociais. Por quase dez anos e com o objetivo de democratizar o acesso à arte fotográfica, um grupo de profissionais organizou a Mostra Livre de Fotografia. Para alguns fotógrafos, foi um meio de dar visibilidade ao seu trabalho. Para outros, uma forma, aberta ao público, de contestar o momento em que se vivia. Iniciou em 1976 com exposições de profissionais e, como era livre, contava até mesmo com a participação de arquivos pessoais daqueles que passavam pela Praça da Alfândega, em Porto Alegre. Já na primeira edição, em 1976, na Praça da Alfândega, a exposição foi marcada por vendaval e chuva, situação que deixou registros na memória daqueles que participaram. Mas o evento ocorreu mesmo com as fotos molhadas e as imagens no chão. No segundo ano, a Empresa Porto Alegrense de Turismo (Epatur) ofereceu uma área coberta, para evitar o problema. Quem passava pela Rua da Praia acompanhava de perto o material exposto, os quais, segundo os participantes, não tinham exclusivamente um viés de denúncia. Ricardo Chaves, o Kadão, por muito tempo editor de Fotografia de Zero Hora, fala de uma série de imagens que fez em Londres, no Speak Corner, em que há um grande número de pessoas com as mais variadas ideologias e expressam suas opiniões. Para o fotógrafo, mostrar estas fotos era uma contradição
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Jorge Aguiar registrou agressão truculenta de policiais militares contra estudantes com a situação do Brasil. “Expus pra mostrar que em algum lugar do mundo as pessoas podiam dizer o que queriam e não eram punidas”, explica. A escolha do local não ocorreu por um motivo qualquer. Além de ser um ponto de grande circulação diária, era próximo à Companhia Jornalística Caldas Júnior, empresa em que trabalhavam boa parte dos fotógrafos que expunham seu material. Entre eles, Baru Derquin, apontado como um dos idealizadores da Mostra Livre. Junto a Baru, Juan Carlos Gomez, um uruguaio que saiu do país por causa da ditadura e foi recebido no jornal Zero Hora para trabalhar como repór-
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ter fotográfico. Eles organizaram a primeira edição. A intensão de trazer os trabalhos para a Rua da Praia foi de aproximar a fotografia do público. “O que pretendíamos ali era conseguir um espaço para mostrar nosso trabalho, não apenas com cunho militar, mas de opressão social”, esclarece Gomez. Havia diversidade nas fotografias, pois elas não reportavam apenas ações dos órgãos de repressão. Seu caráter livre também deu suporte a uma pluralidade de interesses. Daniel de Andrade integrou-se à mostra na década de 1980. Ele conta que foi uma forma de dar maior visibilidade ao seu trabalho como fotojorna-
lista, uma vez que a exposição já estava consolidada. Com a colaboração da Epatur, foi criado um prêmio que elegia as melhores fotografias a cada ano. Os vencedores recebiam um valor de 10 mil cruzados. Ao mesmo tempo em que atraiu participantes, a premiação também afastou idealizadores, como Luiz Abreu. Ele participou da primeira edição e afirma que eleger a melhor fotografia não era a ideia inicial. “Não me agradou. Estava quebrando o espírito original da mostra, por que estava propondo um tema e com prêmio em dinheiro. Já não seria tão livre assim, alguns botariam lá porque queriam ganhar o prêmio da
Epatur”, explica. Abreu também participou da concepção da Mostra, a partir de um conceito “anárquico, que dentro do período e da proposta era coerente com o que a gente pensava e com o momento em que a gente vivia”. O termo livre ligado à exposição dizia respeito à igualdade entre aqueles que colocavam suas fotografias no varal. Havia consenso sobre a necessidade de tornar democrática a arte fotográfica. “A gente renegava a ideia de galeria por que era muito elitizado. Achava que o espaço verdadeiro para a foto deveria ser a rua, onde o público podia olhar”, completa Abreu.
Abril, 1 - Jango deixa Brasília rumo a Porto Alegre, usando um avião menor que o planejado.
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Abril, 2 - Ignorando protestos dos deputados janguistas, presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declara vaga a Presidência.
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Acesse todos os posts com a reencenação da derrubada de João Goulart acessando www.twitter.com/ golpe1964:
Luta com imagens
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Luiz Abreu documentou varal, que retratava temáticas variadas
Ricardo Chaves, o Kadão, expôs imagens feitas fora do país Os depoimentos do livro em www.eusoufamecos.net/editorialj/historiasparalembrar
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Acesse o site com o conteúdo do Histórias para Lembrar
Histórias para lembrar Relatos sobre a ditadura de 1964
presos. “Eu me emociono ao A mostra na Praça da Alfalar sobre este assunto, porfândega ocorreu até meados da que teve colegas que sumiram, década de 1980. Para Eduardo foram presos, torturados e Tavares, repórter que participerderam suas vidas”, declara. pou de diversas edições, um Luiz Ávila também enfrendos motivos para que ela não tou a censura na Zero Hora, continuasse, além do diferentes jornal que foi criado em 4 de rumos que tomaram as carreiras maio de 1964, após o fechados fotógrafos organizadores, mento do diário Última Hora. está a abertura política e o fim do Ele lembra que, como boa parte regime militar. Trabalhar durandos trabalhos acabavam por te o regime militar não foi fácil não ser publicados, os repórpara os fotógrafos que iniciavam teres fotográficos expunham suas carreiras. Enquanto na rua seu material em frente à Loja repórteres se arriscavam ao tenGuaspari, na Avenida Borges tar fotografias que desafiassem o de Medeiros. na Capital. olhar dos militares, nas redações Os três fotógranem sempre estes trabalhos vifos – que mais tarde partinham a público. ciparam da Mostra Livre – Tavares, fotógrafo há 40 expunham anos, conta seus materiais que era chaali, já no fim mado de louco do período por fotógrafos considerado profissionais de maior requando copressão milimeçou, pois tar (do AI-5, ficava em cima em 1968, até da cena com 1974) como suas lentes, forma de reenquanto os sistência pooutros acomlítica. Profispanhavam de sionais com longe com tetrabalho de le-objetivas. maior viés poAlém disso, ele lítico colavam lembra que, suas fotos na em situações Coojornal destaca parede da loja, de aglomera- primeira Mostra sem assinatução de repórra, e logo se teres, como afastavam para acompanhar as nas visitas a Porto Alegre do reações do público que passava presidente-general João Figueipela rua. Eles se mantinham redo (1979-1985), os agentes de afastados, também, porque não segurança seguravam pregos tardava para que as fotografias para afugentar os jornalistas fossem retiradas por militares que tentavam se aproximar da fardados ou infiltrados entre os comitiva presidencial. transeuntes. Como Tavares, diversos Aguiar lembra que estas fotógrafos eram jovens e ainda ações não tinham data marmantêm na memória os aconcada para ocorrer, até mesmo tecimentos de um período marporque existia um medo conscado pela autocensura e pela tante de que a espionagem do censura dos militares no poder. governo pudesse descobrir e Jorge Aguiar, 58 anos, chegou levá-los presos. Outra tática a publicar materiais sem o seu usada, até mesmo para reporcrédito, pois receava a repertagens cotidianas, era nunca cussão que poderia ter a divulandar sozinho para que não gação de fotos que não fossem ocorresse de serem levados percebidas pela censura. Em para esclarecimentos no Deconversa com a reportagem do partamento de Ordem Política Editorial J, ele se comoveu ao e Social (Dops). lembrar de colegas que foram
Meio século é pouco para a história de um país, mas é muito tempo para que se corra o risco de perder a memória. Em 2014, completam-se 50 anos do golpe militar que instaurou uma ditadura no Brasil. Ela durou até 1985. Antes que a memória perca o viço, deve-se ouvir e registrar a voz de quem viveu esse período de arbítrio, quando o terrorismo de Estado se impôs. Alguns tiveram atuação no combate ou na manutenção do regime de exceção; outros, viveram o período sem envolvimento direto. Há ainda aqueles que guardam lembranças, mesmo que tenham nascido depois do fim da ditadura. A memória de um país é coletiva. Ao mesmo tempo, individual. Da singularidade de vidas, surgem narrativas que abrem caminhos para se entender um tempo. Histórias para lembrar se inscreve na perspectiva de dar voz a 31 sujeitos. O militante que combateu e foi preso. Os jornalistas que tentaram contar o que se passava. O rapaz que descobriu que sua mãe foi torturada. O filho do torturador que descreve os traumas de sua família. Há também os entusiastas, que enaltecem o regime de 1964. E quem vive diariamente com a ausência e que, décadas depois, luta para ter o direito de pelo menos sepultar o familiar desaparecido.
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“Todos fomos afetados” P R O F E SS O R DA P U CRS LANÇOU LIVRO S OBRE AÇÃO DA MÍDIA EM 1 9 6 4 Foto: Guilherme Almeida
P O R Anselmo Loureiro (3º sem.) Jornalista e pesquisador acostumado a colecionar polêmicas, Juremir Machado da Silva comprou mais uma. Desta vez, ao lançar um livro que relaciona mídia e ditadura militar (19641985) no Brasil. Autor de 34 obras, seus dois últimos lançamentos abordam fatos ligados, de alguma forma, aos 21 anos do regime militar no país: Jango: a vida e a morte no exílio, lançado pela L&PM no ano passado, e o mais recente, 1964: golpe midiático-civil-militar, pela Sulina, sobre a forma como a imprensa brasileira apoiou o golpe. O Editorial J conversou com o Juremir sobre suas pesquisas. “Enxergamos de uma maneira muito positiva, aqueles (jornalistas) que apoiaram o golpe, como Alberto Dines, Antônio Calado e Carlos Heitor Cony. Depois, eles rapidamente se arrependeram, mas na época jornalistas e intelectuais caíram no discurso de uma ameaça comunista”, explicou. A seguir, trechos da entrevista:
J – Quais são as responsabilidades individuais do jornalista, em situações como a campanha da imprensa contra Jango? Juremir – Os jornalistas têm, como todas as pessoas, uma margem de autonomia. Quanto maior o capital simbólico, mais audiência e prestigio e mais ele é reconhecido. O principal problema da autonomia é a ideologia profissional. Em 1964, apoiaram o golpe porque acreditavam que era preciso derrubar o Jango. Não foi porque eles eram obrigados, mas sim por adesão. J – Atualmente, se houvesse uma situação no país como a de 1964, a mídia brasileira seria golpista? Juremir – É especulação, mas parece que sim. Parte de nossa imprensa gostaria de se livrar do governo petista. Não sei se a imprensa iria muito longe. Atualmente, temos um espírito democrático mais consolidado. Na época, todos eram golpistas. Toda hora havia tentativas de golpe. Nos anos 1950 foram muitas. O golpismo estava na mentalidade de todos. Hoje é muito difícil.
Editorial J – A reação da imprensa do Rio Grande do Sul foi diferente da do resto do país? Juremir Machado da Silva – A reação da imprensa gaúcha não foi diferente. O meu livro trata dos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, por uma escolha metodológica. J – Houve uma mudança de postura da imprensa gaúcha em relação aos golpistas entre 1961, com a Legalidade, e 1964? Juremir – São posturas totalmente diferentes, tanto no Rio Grande do Sul quanto fora do Estado. Em 1961, era visto como despropósito, como algo ilegítimo agir contra Jango, que de alguma maneira foi considerado injustiçado. No mesmo ano, o (Leonel) Brizola era governador do Estado e cunhado do Jango. Também os periódicos apoiaram o Jango de maneira geral, com a exceção do O Globo. Três anos depois, a imprensa ficou contra o presidente deposto. Poderíamos dizer que os mais coerentes foram o jornal A Última Hora que em 1961 e 1964 estava com ele. Já a Tribuna da Imprensa e O Globo eram contrários a Jango nos dois episódios. Os demais mudaram de posição. J – Por que quase toda imprensa apoiou um movimento antidemocrático? Juremir – Creio que existiram vá-
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que a esquerda está no poder, eles defendem a ideia de que são (os componentes da esquerda) corruptos. Na época do Getulio, Jango e agora. Sempre foi assim.
Juremir acredita que jornalistas têm espaço para autonomia rios fatores. Primeiramente, a situação da Guerra Fria. O mundo estava dividido em dois blocos. O capitalismo, influenciado pelos EUA. A passagem de Cuba para o socialismo assustava a população e a mídia da época. Também havia a influência da imprensa estadunidense. Eles criaram essa ideia de que o Brasil estava a mercê de uma ameaça comunista muito concreta. Outro fator também é o conservadorismo exacerbado dos proprietários dos jornais e dos jornalistas. Os jornalistas e os intelectuais caíram em uma ameaça comunista. J – É possível traçar algum paralelo entre o comportamento da
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mídia em 1964 e hoje? Juremir – Hoje não estamos mais perto de uma ameaça comunista. Atualmente, é bem mais difícil de se criar esta ideia, embora muitos dos que se opõem ao governo Dilma Rousseff, ao lulismo e ao petismo utilizem uma retórica anticomunista como se eles (Dilma, o lulismo e o petismo) estivessem próximo de Cuba. Tentam mostrar que o PT é, no fundo, marxista e gostariam que o Brasil fosse viver um regime cubano. O que está mais próximo mesmo é o clima de combate ao governo, apesar de o sistema ser de centro-esquerda, tentando fazer crer que é a gestão mais corrupta de todos os tempos. Em 1964, também era assim. Toda vez
J – Quais as fontes que o senhor utilizou? Juremir – Os jornais da época são fontes primárias. Os livros escritos na época por jornalistas caíram no esquecimento. Documentos e bibliografia. Para esse tipo de obra, o fundamental são os periódicos. J – Por que o senhor se interessa em pesquisar e escrever sobre o Jango e Golpe de 64? Juremir – Estamos vivendo agora os 50 anos do golpe. Esse assunto sempre mexeu como o nosso ego. O período mudou a vida de todos. Pessoas foram exiladas, assassinadas, desaparecidas, torturadas, presas. Outras perderam emprego. Foi uma transformação radical. Todos nós fomos afetados pela ditadura militar. Cresci nesse momento. Foi uma mudança tremenda na nação e que não terminou, em certo sentido, porque os torturadores não sofreram punições. As comissões da verdade ainda estão na justiça de transição. O Jango é uma figura emblemática. Se ele foi assassinado ou não, ele é o personagem importante da história.