CHICLETE
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ANOS 80 E O NOVO ROCK PORTUGUÊS
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«E COMO TUDO QUE É COISA QUE PROMETE, A GENTE VÊ-A COMO UMA CHICLETE, QUE SE PROVA, MASTIGA E DEITA FORA SEM DEMORA.»
BOOM DO
POOF! AO
AQUI D’EL ROCK / ALBATRUZ / ALKATEYA / BAN / BASTARDOS DO CARDEAL / BRAMASSAJI / CÃES VADIOS / CASINO TWIST / CENSURADOS / CLANDESTINOS / CORPO DIPLOMÁTICO / C.T.T. / CRISE TOTAL / CROIX SAINTE / D’AGE / DAMAS ROCK / DA VINCI / DEAD DREAM FACTORY / DELFINS / DOUTORES & ENGENHEIROS / ECOS DA CAVE / M’AS FOICE / EMÍLIO E A TRIBO DO RUM / ENA PÁ 2000 / ESSA ENTENTE / F.A.S. / FERRO & FOGO / FLÁVIO COM F DE FOLHA / FRODO / G.N.R. / GOLPE DE ESTADO / HERÓIS DO MAR / IBERIA / IK MUX / IN LOCO / IODO / JAFUMEGA / JAROJUPE / KING FISHER’S BAND / KU DE JUDAS / LINHA GERAL / LOBO MEIGO / MÃO MORTA / MATA-RATOS / MAU-MAU / MLER IFE DADA / NZZN / OCASO ÉPICO / OPINIÃO PÚBLICA / PESTE & SIDA / PIPPERMINT TWIST/ POP DELL’ARTE / QUINTA DO BILL / RADAR KADAFI / RÁDIO MACAU / RIMANÇO / ROQUIVÁRIOS / ROXIGÉNIO / RUI VELOSO / SALDA DE FRUTAS / SANTALUZIA / SANTA MARIA, GASOLINA EM TEU VENTRE / SÉTIMA LEGIÃO / SITIADOS / STREET KIDS / TANTRA / TAXI / T.N.T./ TÉDIO BOYS / TELECTU / TRABALHADORES DO COMÉRCIO / UHF / XUTOS & PONTAPÉS
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OS PRIMEIROS PASSOS A mesma juventude que tinha despontado para a vida com o 25 de Abril estava a despontar também para a música, para uma cultura jovem que não existia em Portugal. E com a mesma vontade de vencer um regime fascista, alguns desses jovens tomaram nas suas mãos a responsabilidade de rejeitar mais um sistema instituído: o de que, em Portugal, só havia espaço para as canções de intervenção. Com o relativo sucesso dos Tantra, outros jovens houve que se sentiram ansiosos por encontrar o seu lugar musical, numa altura em que ser músico significava um olhar de lado, uma incompreensão da própria actividade, e implicava também a necessidade de busca de outro meio de subsistência, já que ser músico em Portugal, na época, significava nenhum dinheiro ganho. Apenas um sonho vivido.
Com alguma insistência iam surgindo, alguns projectos, mas o rock era quase inexistente... até que se começou a ouvir falar dos Tantra, uma banda que ia beber as suas principais influências a bandas como os Genesis, a um rock sinfónico e encenado, e que conseguiu, apesar de tudo, encher o Coliseu, numa altura em que tudo faltava - até o público, pouco habituado a ritmos eléctricos e a este tipo de propostas. Mas, como Zé Pedro, guitarrista dos Xutos e Pontapés, recorda, havia outras bandas precedentes, que foram abrindo alas ao que se iria passar de seguida. «Comecei a ver concertos quando os circuitos que havia eram dos convívios de liceu, em que havia uma série de bandas a tocar covers, e que começavam a apresentar alguns originais. Nessa fase, e falamos do início dos anos 70, as maiores referências eram os Objectivo, uma banda que reunia uma série de gente conhecida, desde o Guilherme Inês ao Zé Nabo; havia os Chinchilas, a banda do Filipe Mendes... O concerto dos Genesis, em Cascais, em 74, foi um marco bastante importante para o pessoal. Apareceram, ou estavam já envolvidas, uma série de bandas que estavam a beber dessa onda musical do rock progressivo, com os Beatnicks, com a Lena d'Água e o Tó Leal a cantar; também os Ananga-Ranga tinham uma certa importância. Até que surgiram os Tantra, a primeira banda a aparecer com uma verdadeira postura de banda. Apesar das muitas bandas, a escassez era total: não havia meios técnicos, não havia instrumentos, nem grandes possibilidades de gravação, de promoção do trabalho efectuado. Com a chegada da democracia, o ímpeto de viver tudo de uma vez tornou-se ainda maior. Os partidos políticos aumentaram, assim como o debate de ideias, que punha os jovens em constante confronto intelectual, nos ginásios dos liceus, rapidamente transformados em espaço de albergue de concertos. A música estrangeira era devorada com enorme sofreguidão, e aos poucos foram pululando as bandas nacionais. Porventura, uma das mais importantes da época terão sido os Faíscas, estreados em 1978, no Pavilhão do Restelo, e apresentados como o primeiro grupo punk português. «Lembro-me que, em 78, pouco tempo depois de ter chegado do InterRail, houve um concerto no Pavilhão do Restelo, em Outubro ou Novembro, que reunia os Arte & Ofício, os Psico, e onde aparecia uma banda nova que eram os Faíscas. Eram uma banda punk, daí eu ter ido assistir ao concerto e ter-me tornado amigo deles, e ter andado com eles durante o tempo em que a banda existiu. Acabaram por nunca gravar nada. Os Faíscas terão
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sido a banda mais punk da altura», recorda Zé Pedro. O grupo reunia Paulo Gonçalves, Pedro Ayres Magalhães e Emanuel Ramalho. A indumentária era a requerida, baseada nos blusões de cabedal, e a música, a esperada, com temas muito rápidos. «Faíscas eram a melhor banda do seu tempo. Era uma banda adequada a essa altura, a um mundo peregrino, quando não havia amplificadores, não havia guitarras, não havia nada, só havia conjuntos de baile e cantores de intervenção - e queríamos fazer uma banda eléctrica, que fizesse música a que não chamávamos de rock. Aliás, durante todos esses anos do rock português, em todas as entrevistas que demos, e nos concertos, eram os jornalistas a chamarem-nos de rock e nós a dizermos que não éramos rock, mas que fazíamos música moderna portuguesa, eléctrica, mas que não era rock. E nem éramos a juventude operária ou industrial que deixava os postos de trabalho para falar das suas condições de vida. Todos vínhamos de uma burguesia média alta, fazíamos aquilo com intenções artísticas e intelectuais. E essa aproximação que tínhamos à música era diferente da que o rock exigia. Na sua altura, os Faíscas já eram contra o explicar toda a música eléctrica como sendo rock, porque achávamos que isso só ia afastar os portugueses de se relacionarem com uma música eléctrica cantada em português. Por outro lado, o que queríamos, sim, era fazer concertos, criar ocasiões de convívio, criar um repertório em português, fazer comentários sociais, criar um sistema de convívio alternativo ao sistema bem-comportado que havia na altura. E acho que o fomos fazendo, nessa altura. Lá montávamos os concertos, fazíamos os cartazes, acartávamos com os instrumentos, como fizeram todas as bandas da nossa idade. E reunimos à nossa volta uma enorme vontade de fazer música», afirma Pedro Ayres Magalhães. Dispostos a marcar a diferença, os Faíscas começaram a organizar concertos, criando a tradição das matinés de sábado, nos Alunos de Apolo - onde terão inspirado o nascimento de outras bandas, como os Xutos & Pontapés, os Aqui D’El Rock, os UHF. Queriam que a sua importância fosse notada e instituíam as suas próprias acções de divulgação, já que não conseguiam entrar nos programas de rádio, nem nos jornais, e não havia música na televisão. Faziam uma fanzine chamada apenas «Faíscas», que distribuíam durante os concertos, com uma grande irregularidade e pouca informação. A desatenção geral em relação ao que se passava com um novo género de música portuguesa era de tal ordem que não há registos fotográficos dos concertos dados,
não há registos audio dos seus temas, com excepção de uma gravação efectuada por António Sérgio, para o seu programa de rádio, registo a que os músicos perderam o rasto. Na altura não era uma coisa que nos preocupasse. Claro que gravámos umas fitas, mas ficaram em casa de não sei quem, e acabaram por se perder. Mas o António Sérgio fez uma gravação de um concerto que demos num clube em Lisboa, onde tocávamos muitas vezes», continua Pedro Ayres. Perante a desatenção da industria discográfica face às novas expectativas do mercado, iam surgindo discos piratas, numa ânsia de divulgar o que mais ninguém divulgava, e de ver satisfeita uma curiosidade de um novo público, que emergia ao mesmo tempo que as novas bandas. Os concertos, que rapidamente começaram a nascer nas caves de qualquer bar nas duas cidades maiores do país, eram divulgados de boca em boca, ou com pequenos panfletos, sabiamente colados às portas dos liceus. «Nessa altura, as pessoas nem sequer sabiam tocar mas acabaram por se associar ao nosso entusiasmo, que se demarcava e definia por oposição às bandas que existiam na altura, que tinham nascido nas gerações anteriores, e que eram apenas ou os tais conjuntos de baile ou os cantores de intervenção, ou as bandas de rock sinfónico que cantavam em inglês como os Psico ou os Arte & Ofício, ou os Tantra, que partiam dos ídolos da música rock e que faziam uma linguagem musical que se assemelhasse à realidade inglesa. E começámos precisamente por ir contra essa corrente. Mas tivemos sempre muitas dificuldades em fazer valer essa filosofia. E nessa altura era um entusiasmo muito pioneiro, difícil de explicar, e muito contra o espírito de Lisboa, que ou era queque, com o comportado social com os cafés e as praias e os carros; ou era a parte dos cantores de intervenção. Sempre fomos olhados de lado, mas isso ainda hoje somos, ainda hoje é difícil sermos olhados com dignidade, é um estatuto difícil de explicar às pessoas, a dignidade que a nossa actividade tem, as pessoas não lhe conferem dignidade, e na altura nem sequer sabiam o que era a nossa actividade», conta Pedro Ayres. Com a intensidade da vontade de fazer música, instaurada pelos Faíscas, as iniciativas de concertos aumentavam. Novas salas surgem, como os Alunos d’Apolo. «Em Janeiro de 1979, decide-se fazer nos Alunos d’Apolo um concerto comemorativo dos vinte cinco anos do rock’n roll. É aí que os Xutos se apresentam pela primeira vez, e os Faíscas, pela última. Tenho a impressão que havia mais uma ou duas bandas por lá, mas nem me lembro quem eram.
Aparecemos a actuar por eu ser muito amigo dos Faíscas, e eles ensaiarem na minha garagem... O Pedro andava sempre a picar-me para eu fazer uma banda. E foi assim que as coisas começaram», recorda Zé Pedro. Com o final dos Faíscas, alguns dos membros da banda decidem não desistir do sonho que os havia unido. «Houve umas discussões internas nos Faíscas, e acabámos por decidir parar com o grupo. Foi assim que apareceu o Corpo Diplomático, que era um grupo diferente. Nesse já estava com o Carlos Maria Trindade, e queríamos ainda fazer algo diferente. Fizemos audições para cantores (um dos que foi prestar prova foi o António Variações) e o Corpo Diplomático já era um grupo, entre 78 e 80, diferente. Já gravou, para uma editora que era do António Sérgio, a “Nova”, e esse grupo teve a mesma vida que os Faíscas. Fez alguns concertos, em Lisboa e pela província, organizados por nós ou inseridos em festas populares. O Corpo Diplomático gravou um disco muito giro, do qual ainda hoje gosto muito. Gravámos em três dias, e fizemos as primeiras partes dos Tubes, em Cascais... Era um espírito muito pioneiro. Claro que o disco que gravámos só passava no programa do António Sérgio...», ironiza o baixista. Segundo Zé Pedro, «para todos os efeitos, o Rock em Stock deu bastante atenção a bandas, conseguiu mostrar algumas bandas nacionais, e misturá-las com as estrangeiras, o que foi bastante importante. Também havia um programa do Rui Pego, na Rádio Renascença, que era só de música nacional, que tinha um top e tudo, e que era um programa que se ouvia muito -- mesmo em viagem, ouvíamos sempre. Portanto, a nível de rádio, até se ganhou alguma projecção. Já na televisão, lembro-me apenas que havia o «Vivámúsica», que dava as notícias, e pouco mais». De banda em banda, com tantas a aparecerem, com o investimento das editoras em algumas delas, com o sucesso alcançado com o álbum «Ar de Rock», de Rui Veloso, todo este movimento começou a ser intitulado de «Boom» do rock português - uma expressão tudo menos consensual. Para Zé Pedro, essa ideia de «Boom» é verdadeira porque «acho que até aí não havia, ou pelo menos não se estava a ligar muito, ao facto de estarem a aparecer bandas . Fazia-se rock e punk, mas não se ligava
muito. Nem às novas tendências, como os Police. O Rui Veloso, por exemplo, no «Ar de Rock» tem muitas pinceladas de Police. E depois do «Ar de Rock» houve uma enxurrada de bandas e um despertar bastante curioso do público, interessado em ouvir rock cantado em português, e apareceram as bandas todas -- até as bandas de baile apareceram a cantar originais. Acho que isso só se pode chamar “boom” do rock português, porque foi a primeira vez que se começou a vender rock português; foi a primeira vez que as bandas começaram a andar na estrada, e havia concertos». Já Pedro Ayres Magalhães considera impossível concordar com essa ideia «porque me envolve a mim também quando acho que não era isso que eu estava a fazer. O Rui Veloso fazia rock cantado em português; fazia blues, com as mesmas notas, as mesmas malhas, cantado com letras em português; os UHF faziam o típico rock português, com as guitarras eléctricas e a bateria, mais as letras de intervenção. Mas nós [Heróis do Mar] não; fazíamos aquilo que achávamos ser uma música eléctrica, portuguesa, que também era música de dança, coisa que os outros grupos não andavam a cultivar, mas queríamos que o público sentisse isso. Aliás, já desde o tempo dos Faíscas que o nosso repertório era mais virado para a dança. Apesar de no caso dos Faíscas ser uma coisa mais inspirada no rock’n roll e o Corpo Diplomático ser mais virado para um rock new wave». Com ou sem «boom», a verdade é que o final da década de 70 e o início dos anos 80 marcaram uma verdadeira revolução no universo musical português. Marcou também o início de uma batalha, ainda com muitos capítulos por escrever. As condições de trabalho eram más, os instrumentos e restante equipamento quase inexistentes. Como em qualquer outra revolução, o sonho era o único sustento. E a única inspiração. «O que é preciso deixar claro é que quem sempre gozou o prato fomos nós. Não lamento coisa nenhuma porque fui fazendo as coisas com muito entusiasmo, e com muito espírito de intervenção. E não há duvida nenhuma que eu, e os meus companheiros músicos, e as pessoas que se dedicavam à música e compreendiam o que estávamos a fazer, na altura, todos nos divertimos à grande. É preciso perceber que, se no início dos anos 80 se deu o Boom do Rock Português, a verdade é, que no final deu-se o Poof!” afirma Pedro Ayres. Com mais ou menos história, houve bandas que se mantiveram. Outras houve das quais só irão restar memórias.
o ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL BLITZ EM 05.09.2000
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AR
DE ROCK
Em Julho de 1980, sem par na história, um disco catalizava entusiasmos. “Ar de Rock”, apresentando o estreante Rui Veloso, acompanhado por uma desconhecida Banda Sonora, com uma canção que marcou a história: “Chico Fininho”. E, de repente, tudo mudou. “Não quero carregar os louros sozinho”, diz Rui Veloso, que aponta nas importantes contribuições de Francisco Vasconcelos (então A&R nacional da Valentim de Carvalho), em David Ferreira (na altura a trabalhar na promoção da mesma editora), António Pinho (produtor do álbum “Ar de Rock”) e Carlos Tê (o letrista). O que aconteceu em 1980 foi, a seu ver, “uma sucessão de eventos que conduziram a uma feliz conclusão”. E justifica na aposta de Francisco Vasconcelos em editar rock cantado em português um dos trunfos maiores da explosão que então se viveu.
"Tudo aconteceu na hora certa. O Rui Veloso tinha um álbum preparado em inglês e estava a passá-lo para português quando nós batemos à porta da editora", recorda António Manuel Ribeiro, dos UHF que acrescenta outro dado importante numa tentativa de explicar o momento de "BOOM!" que o então chamado "Rock Português" viveu há 20 anos: "houve uma greve de músicos, e o próprio Festival da Canção nem teve acompanhamento", recorda. "Artistas como um Paulo de Carvalho ou um Carlos Mendes não conseguiam gravar. Houve então uma abertura de espaço porque nem as editoras nem os estúdios podiam estar parados. Como havia propostas interessantes e nem nós nem o Rui éramos sindicalizados, avançámos. E a Valentim de Carvalho teve muito mérito em todo este processo, já que a PolyGram esperou um ano para ir procurar os Taxi", relata. A adesão da rádio, imprensa e televisão foi igualmente determinante para a sustentação do fenómeno emergente.
do álbum de estreia (e único na carreira da banda) editado em 1979 e com morte ditada pela recusa de Luís Filipe Barros, o "Berros", como então lhe chamavam, em passar o álbum no "Rock em Stock" na Rádio Comercial. "Ainda passei uma faixa ou outra, mas assim que me mostraram o disco disse que não se ouvia nada", recorda hoje Luís Filipe Barros. E acrescenta: "Quando os conheci, num cocktail de apresentação da Stiff, achei-os muito cheios de peneiras". António Sérgio, produtor do álbum do Corpo Diplomático, recorda também essa festa de lançamento da Stiff, onde o grupo actuou, como um momento desastroso. "O vocalista perdeu a cabeça e, no meio das piruetas, desligou os instrumentos todos... Os outros ficaram furiosos". Sobre o "não" do "Berros", António Sérgio reconhece o peso que essa decisão teve na carreira do grupo: "O Rock em Stock era quem levava os discos a um mercado maior".
"Foi um período de intensa militância", recorda David Ferreira, que defende a tese da confluência geracional entre quem fazia música, quem a editava e ouvia. "Eu tinha 26 anos, e o Chico (Francisco vasconcelos) tinha 24", e isso é determinante". António Manuel Ribeiro acrescenta que o facto de haver personagens com a mesma idade neste universo "facilitava a comunicação" e aponta que tanto David Ferreira como Francisco Vasconcelos "tinham o bichinho da música" e que em todo o processo a figura de Tozé Brito "é também importante". Em finais de 70 as movimentações nas caves dos acontecimentos com direito a rádio e televisão tinham-se intensificado. Os Tantra enchiam o Coliseu dos Recreios em 1977, no mesmo ano em que os Arte & Ofício faziam a primeira parte dos Can num Pavilhão dos Desportos à pinha. Alimentado a ideias divulgadas por António Sérgio nas noites da Renascença, o movimento "punk" português surgia discreto com direito a registo em disco num single dos Aqui d'El Rock. Os Xutos nasciam sem pressa. Os Faíscas terminavam uma curta existência, das suas cinzas emergia o núcleo do Corpo Diplomático. Este grupo, no qual militavam Pedro Ayres Magalhães, Paulo Pedro Gonçalves e Carlos Maria Trindade, é o responsável pela introdução no vocabulário pop/rock português do conceito "música moderna", de resto título
Em 1979, ano do "caso" Corpo Diplomático, já os UHF corriam o país. Já Rui Veloso entrara em contacto com a Valentim de Carvalho. Já os Taxi surgiam, da morte dos Pesquisa. Já os Xutos tocavam ao vivo (com primeiro e histórico concerto nos Alunos de Apolo a 13 de Janeiro). Já Vítor Rua, Alexandre Soares e Tóli César Machado ensaiavam, num núcleo do qual um ano depois nasceriam os GNR. Os seis primeiros meses de 1980 poucas novidades acrescentam a este cenário ainda feito de penumbras e sussurros. Os Street Kids formamse em Cascais. No Porto nascem os Trabalhadores do Comércio. Em Lisboa surge a Salada de Frutas. Em grande forma, os UHF (de Almada) correm os palcos do país. Com um single editado em 1979 pela pequena independente Metro-Som ("O Jorge Morreu"), com primeiras partes em concertos dos Dr. Feelgood, Ramones e Elvis Costello, com muitos mais espectáculos em nome individual por todo o lado durante todo o Verão, solidificavam as bases. Chamavam atenção para o nome. E preparavam-se para o salto de divisão, ao assinar pela Valentim de Carvalho. Tudo parecia apontar para que, nos UHF, surgisse o primeiro caso de sucesso de um grupo de rock cantado em português. Inesperadamente, do Porto, chegou uma surpresa. Com carreira inicialmente pensada para seguir um rumo em inglês, Rui Veloso e, sobretudo, Carlos Tê, foram
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desafiados pela mesma editora a fazer um disco em português. Opção que se viria a mostrar fundamental na génese de todo o fenómeno. "O Tê escreveu em português muito relutantemente, e eu musiquei aquilo que nunca tinha feito", lembra o então jovem estreante que deixa claro que o fenómeno que aconteceu no Verão de 1980 "não foi uma coisa pré-concebida nem planeada". Com "um timing certo" para a equipa que trabalhou o disco e conquistou um lugar na primeira divisão das atenções. Rui Veloso conclui: "dá-me um certo gozo termos sido os primeiros a gravar na mesa de 24 pistas no estúdio RPE", num trabalho fulminante de 70 horas nas quais foram feitas gravações e misturas... António Sérgio, já rodado na música quando Rui Veloso edita "Ar de Rock" não escondeu a surpresa com que, também do lado de quem divulga, o álbum foi recebido. "Há uma franca genialidade naquele álbum de estreia", explica, compreendendo na força do disco um dos motores do fenómeno que desencadeou. David Ferreira, na altura responsável pela promoção da Valentim de Carvalho, recorda a carreira fulminante de Rui Veloso: "ele explode ao ponto de ser convidado para fazer a primeira parte dos Police antes do Natal". Pouco depois da edição bem sucedida do álbum de estreia de Rui Veloso, o segundo single dos UHF, "Cavalos de Corrida", sublinha e reforça o momento de franca adesão do público jovem português ao rock cantado na sua língua. E ultrapassa em larga expressão os resultados do single "O Jorge Morreu", editando no ano anterior. "Não havia estrutura de promoção na Metro-Som", recorda António Manuel Ribeiro que, com os colegas, fez em mão própria a distribuição do single na rádio. "Olhavam para nós como bichos, mas esse desbravar de terreno foi importante", lembra. Em 1980 entregam pela segunda vez uma maqueta à Valentim de Carvalho na qual estava já a canção "Cavalos de Corrida" que, recorda António Manuel Ribeiro, "era precisamente a mesma maquete que tínhamos entregue em 1979". Com outra predisposição para gravar e lançar rock cantado em português, o mercado recebe com entusiasmo a música dos UHF e de grupos que, entretanto, começam a brotar do anonimato. "Havia uma lacuna de música nova, e as pessoas estavam à espera de uma coisa nova. Que apareceu". Aos "Cavalos de Corrida" o grupo faz suceder "Rua do Carmo" e "À Flor da Pele", álbum de estreia no qual o grupo vê reconhecido o estatuto de popularidade entretanto conquistado. "Mas o sucesso correu mais depressa que nós", explica o homem do leme dos UHF. "Tivémos de montar uma empresa de som. Não havia técnicos nem managers,
pelo que tivémos de trabalhar rapidamente. E aprendemos muito nos bastidores das primeiras partes das bandas estrangeiras com que tínhamos tocado no ano anterior". Já com quase dois anos de vida, os Xutos & Pontapés continuam sem gravar, e o sucesso entretanto conquistado por Rui Veloso e pelos UHF não os incomoda. "Éramos uma banda mais punk e não procurávamos ainda editora", explica Zé Pedro. "Acima de tudo estávamos empenhados em andar para a frente e verificámos que surgia uma predisposição para ouvir coisas novas, em português". Os Xutos só se estreariam em finais de 81, com "Sémen", editado pela Rotação. "Eles souberam esperar", vinca António Sérgio. "Mesmo mais tarde, quando o álbum saíu, em 1982, não tocou na rádio, que pôs uma pedra em cima dos Xutos". E o grupo insistiu no palco. E sobreviveu. Entre os finais de 1980 e a Primavera de 1981 surgem no mercado os singles de estreia dos Salada de Frutas, dos Trabalhadores do Comércio, dos Street Kids, dos GNR. Todos com considerável êxito. O fenómeno seguinte chegaria em Maio, com o álbum de apresentação dos Taxi, quarteto portuense nascido dos Pesquisa e que, tal como Rui Veloso, são desafiados pela respectiva editora (a PolyGram) a fazer canções em português. "Lembro-me de ter ido ao Colégio Alemão, no Porto, ouvir os Taxi", recorda Tozé Brito. "Cantavam originais, mas em inglês. Achei-os muito bons e propus-lhes gravar imediatamente, mas em português. Foi a única condição. E, em vez de lhes propôr um single, que era a regra, falei-lhes num álbum. O João acabou por se revelar um dos letristas mais inspirados daquela geração". Rui Taborda, baixista do grupo, frisa que "a princípio a ideia dos Taxi não era a de fazer carreira em Portugal", estando decididos a ir de malas e bagagens para fora, o que acabou por não se concretizar. "Não havia referências rock em português a não ser o Rui Veloso e, depois decidimos ficar por cá". Sem acreditar em razões maiores para a justificação do momento que Portugal viveu, Rui Taborda refere, mesmo assim, que "havia entre nós a redescoberta de um certo orgulho em nós mesmos" e que, entre outras coisas, "passámos a ouvir rock feito em português". Sobre a carreira de sucesso de "Chiclete", confessa não o ter surpreendido que a canção tivesse sido um êxito: "Só não esperava aquela amplitude, pelo que nem queríamos acreditar. Não era habitual haver vendas naquela ordem entre nós". Convém aqui recordar que "Taxi" foi o primeiro disco de ouro do rock português, com vendas acima dos 35 mil exemplares, feito que o "Ar de Rock" de Rui Veloso, apesar de editado antes, só mais tarde conseguiu atingir. "Tudo vendia naquela altura", defende Tozé Brito. E,
colocado o cenário de sucesso, assinaturas, apostas e edições multiplicaram-se. Surgiram grupos novos todas a semanas. Uns a Leste do alvo. Outros com sucesso pontual, como os Iodo, CTT ou o bizarro Grupo de Baile e o inesquecível "Patchouly", um dos casos do ano de 1981. Entretanto, dado o excesso de propostas e edições, a ressaca começa a desenhar-se. "As rádios, que antes rodavam tudo o que tivesse o rótulo `rock português, deixam de passar os discos e começam a fazer uma triagem", conta António Manuel Ribeiro. "É o primeiro revés, já que aparecem muitos discos pelos quais a rádio não se interessa. E há concertos que são uma fraude". Depois de um 1981 de euforia, com o "Robot" da Salada de Frutas, "Foram Cardos Foram Prosas" de Manuela Moura Guedes, "Chamem a Pulissia" dos Trabalhadores do Comércio e os dois primeiros singles dos GNR ("Portugal na CEE" e "Sê Um GNR") a vender bem, a ressaca mostrou-se implacável. "1982 foi o ano dos flops", recorda David Ferreira: "O segundo do Rui Veloso quase não vendeu, assim como o primeiro álbum dos GNR, o álbum da Lena d'Água e o JTX, que na altura surgiu. A única excepção foi o máxi do António Variações". "Viveu-se um fenómeno semelhante ao que hoje temos nas boy bands. Tudo grava e o mercado não comporta a oferta. Qualquer tipo inventava um grupo rock, chegava a uma editora e gravava", lembra António Manuel Ribeiro. A ressaca decretaria vítimas em nomes como os Street Kids, os Taxi ou os Jáfumega. Sobre estes últimos, que Tozé Brito lembra como um grupo "genial", a voragem louca, não foi meiga. "O que não vendia ficava para trás e eles, que estavam mais avançados e não entregues a esquemas comerciais, pagaram. Enquanto os Taxi vendem 50 mil e os Heróis do Mar, com o `Amor disparam para esses números, eles ficavam pelos quatro ou cinco mil... E na altura até dez mil discos não interessava. E isto matou muitos outros projectos. O que não impede que aí tenha havido algumas escolas incríveis". Com Rui Veloso, o primeiro "motor" do fenómeno a cantar "não quero ser estrela do rock'n'roll", a apresentar um álbum de título "Fora de Moda", o capítulo encerrava. Para dar entrada a duas novas gerações. A geração pop de meados de 80, com figuras como António Variações, Heróis do Mar, Rádio Macau, Ban e os sobreviventes e transformados GNR na proa dos acontecimentos. E uma geração urbana atenta a raízes antigas, comandada pelos Trovante, acompanhados por uma legião de bandas de recolha das quais poucas sobreviveram aos respectivos 15 minutos de fama.
o ARTIGO PUBLICADO NO DN MAIS, TEXTO DE NUNO GALOPIM
“TUDO COMEÇAVA COM O CIRCUITO PELAS “CAPELINHAS” DA ÉPOCA: “A FEBRE DE SÁBADO DE MANHÔ E “ O PASSEIO DOS ALEGRES”, AMBOS DO JÚLIO ISIDRO, ASSIM COMO O “ROCK EM STOCK”, DE LUÍS FILIPE BARROS, O “ROTAÇÃO” E O “ROLLS ROCK”, DE ANTÓNIO SÉRGIO, PROGRAMAS DE GRANDE AUDIÊNCIA, EM RÁDIO E EM TELEVISÃO, QUE SERVIRAM DE RAMPA DE LANÇAMENTO A TODAS ESTAS BANDAS DO “BOOM” DO ROCK PORTUGUÊS.“
o TOZÉ BRITO
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«OLHAVA-SE PARA TUDO COM UM HORIZONTE CURTO: O DO SUCESSO IMEDIATO, O DAS VENDAS RETUMBANTES, O DE “CHEGAR, VER E VENCER” NOS TOPS NACIONAIS, O DOS DISCOS DE OURO CONQUISTADOS EM 30 A 60 DIAS.»
RUI VELOSO E CARLOS TE
o JOSE NOGUEIRA “O filão de ouro foi descoberto com "Ar de Rock" de Rui Veloso, editado em princípios de 1980. De repente, o rock'n'roll falava de figuras às quais os portugueses eram familiares. Aqui e além viam-se "chico fininhos" a subir as ruas de muitas cidades do país, de um momento para o outro dava-se conta de inúmeras "rapariguinhas do shopping" a deambular pelos corredores dos grandes espaços comerciais portugueses. O rock começava a falar de nós, das nossas coisas, das pessoas com que nos cruzávamos todos os dias. José Nogueira, o ex-saxofonista dos Jáfumega, encontra aqui uma das primeiras razões do "Boom" do rock português. "Foi absolutamente inevitável. Estava a começar-se a falar dos sítios onde todos vamos, onde pelo menos já fomos uma vez, das pessoas que conhecemos ou que já vimos", explica. (...) “ ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA PÚBLICA - 14.11.1999 TEXTO DE DULCE FURTADO
pretar os temas juntamente com o baixista Zé Nabo e o baterista Ramon Galarza, enquanto o verdadeiro autor das letras permanecia (e continuou a permanecer) «oculto» nos bastidores. «Isso é uma coisa engraçada», diz Rui. «O João Monge, por exemplo, também é um bocado como o Tê, fica na retaguarda. Diz que lhe dá imenso jeito poder ir para o meio do público nos concertos da Ala dos Namorados e ficar a ouvir os comentários do pessoal sem ser reconhecido. O que é bestial. Eu sofri um bocado com isso... Uma pessoa não tem preparação nenhuma para ser conhecido, e é uma chatice. Agora já estou habituado, mas penei durante muitos anos.» Duas décadas e oito álbuns depois de "Ar de Rock", Rui Veloso e Carlos Tê mostram-se dispostos a continuar a colaboração, até porque «em equipa que vence não se mexe». Mas, apesar disso, as edições tendem a ser mais espaçadas, porque a vida do rock não mata mas mói e a disponibilidade para compor começa a já não ser a mesma: «Antigamente colaborávamos na base da irresponsabilidade. Não tínhamos filhos, éramos jovens e preocupávamo-nos apenas em desbundar e em tocar numa boa. Hoje as coisas são diferentes. Quando vamos para o estúdio levamos já uma série de coisas apontadas, porque temos menos tempo a perder.» Depois procuram também diversificar a sua actividade: Tê tem-se dedicado a produzir os trabalhos de diversas bandas e editou recentemente um romance, enquanto Rui planeia aproveitar o seu estúdio para criar uma pequena editora e promover novos projectos musicais. Quanto ao actual panorama musical português, Rui Veloso mostra-se algo céptico, porque muita coisa mudou, mas nem tudo para melhor: «Um dia destes um gajo ainda é atropelado por um McDonalds em construção. Estão criadas todas as condições para que daqui a três ou quatro gerações isto não tenha identidade nenhuma...»
testamentos, e eu sempre gostei mais do oposto, de quando o texto serve de suporte à música.» Carlos Tê nem sequer dominava o francês e achava que, para o género de música que gostavam, as letras teriam de ser necessariamente em inglês «Havia uma única coisa em português, que era o 'Chico Fininho', que tinha sido feita para aí três anos antes, em 77. Foi uma letra que fiz a pensar na impossibilidade de se cantar em português... Ou seja, era possível, mas soava mal. O resultado era o que eu definia como uma azeitice. O 'Chico Fininho' começou por ser apenas um momento de humor», recorda Tê. «Olha-me esta foleirice», ironiza Rui. «Mas acabou por ter exactamente um efeito contrário. As pessoas (da EMI-Valentim de Carvalho) ouviram e disseram: 'Arranjem mais dez temas em português.' (risos) Depois pôs-se a questão de fazer isso ou não. Caso não o fizéssemos não haveria disco para ninguém.» Como é óbvio, optaram pela segunda hipótese, o que si-gnificou deixar de lado praticamente tudo o que tinham feito até aí e criar temas em português. Mas o resultado acabou por superar todas as expectativas: "Ar de Rock" tornou-se num inesperado sucesso, chegando a disco de ouro. E Rui Veloso, um jovem franzino de bigode e com uma grande dose de introversão e timidez, saiu subitamente do anonimato, tornando-se numa das figuras centrais do «boom» do rock português. «Na altura não dei conta de nada, andava ali simplesmente ao sabor das coisas que me iam acontecendo. Tinha 23 anos, tinha saído do Porto e vindo para Lisboa. Andei muitos anos sem saber sequer se seis meses depois já não teria largado a música e estaria a fazer outra coisa, se não teria já voltado para o Porto. Não tive muito a noção do que estava a acontecer. Foi uma fase inicial em que toda a gente estava ainda a aprender. Nós fomos completamente cobaias», lembra Rui. As letras de Tê transportavam uma série de expressões de uso popular para um contexto que procurava acentuar o seu lado mais «kitsch», como em «Chico Fininho», em «Um Café e Um Bagaço», ou nas canções criadas para a banda sonora do filme "Crónica dos Bons Malandros", de Fernando Lopes. Mas, ao interpretá-las, Rui Veloso nem sempre conseguia criar o afastamento necessário, e as músicas acabavam muitas vezes por ser tomadas quase por autobiográficas e por lhe ficarem «coladas à pele», como aconteceu no caso de «Chico Fininho». Foi o preço que teve de pagar por ter sido ele a subir aos palcos para inter-
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Rui e Tê conheceram-se através de um amigo comum, que os apresentou, nos tempos em que se costumavam reunir em casa de uns e de outros para ouvir música. «Eram pequenas tribos que se formavam em torno da música», esclarece Tê. As letras que escrevia começaram a ser aproveitadas por Rui para as suas músicas, conforme este último afirma: «Juntámo-nos fazendo músicas à base dos blues, que era um género fácil para improvisar. Aquilo tinha por base apenas uns três acordes de guitarra. Ouvíamos muitas outras coisas, como King Crimson, Gentle Giant, mas essas já não davam para improvisar.» Criar músicas em português era algo que nem lhes passava pela cabeça, até porque as suas referências musicais estavam bem longe daqui. «Desconfio que, se tivéssemos nascido no Brasil, teríamos começado logo por fazer músicas em português, porque todo o ambiente envolvente teria sido outro. Mas, por cá, o meio musical era de uma pobreza confrangedora», vai contando Rui. «Nós começámos a fazer coisas em 76, logo a seguir ao 25 de Abril. Na altura ainda não havia nada, a não ser a canção revolucionária, em contraponto o fado - que era uma coisa conotada com o regime anterior - e depois o Festival da Canção. Não existia nenhum circuito de espectáculos, e os grupos de então acabavam sempre a tocar em bailes de finalistas e em liceus.» Quanto às influências que vinham de fora, sempre estiveram ambos claramente mais perto das bandas anglosaxónicas, em detrimento de outros ventos que então se faziam sentir. «Na altura, havia aquela moda da música francesa revolucionária, mas nem eu nem o Tê estávamos para aí virados. Nós sempre detestámos a música francesa», diz Rui. «Era o predomínio do texto sobre o ritmo, sobre a harmonia», explica Tê. «A música servia de mero suporte para os textos poéticos», complementa Rui, citando nomes como Léo Ferré e Jacques Brel, «eram grandes
ARTIGO PUBLICADO EM 28/10/2000 NO JORNAL EXPRESSO TEXTO DE ALEXANDRE COSTA
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o RUI VELOSO
«ERA FÁCIL GRAVAR UM DISCO, MAS TAMBÉM ERA MUITO MAIS FÁCIL NÃO GRAVAR MAIS NENHUM.»
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“O BOOM DO ROCK PORTUGUÊS, COMECOU A EXPLODIR COM OS CONCERTOS DE BANDAS INTERNACIONAIS POIS OS GRUPOS LOCAIS FAZIAM SEMPRE A PRIMEIRA PARTE. ERA MODA E ESTAVA NA MODA.“
o JOÃO LOUREIRO
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o VOCALISTA DA BANDA IK MUX
ROCKRE
NDEZVOUS
RRV O antigo Cinema Universal, situado na Rua da Beneficiência, nº 175, exibia o seu néon de 12 metros anunciando a chegada da primeira verdadeira sala de espectáculos rock portuguesa. Lá dentro ouviam-se os temas do acabado de editar (Julho de 1980) "Ar de Rock", de Rui Veloso, inaugurando assim dez anos que ficariam para a história e que mudariam para sempre o panorama da música portuguesa. Aconteceu na noite de 18 de Dezembro de 1980. Em poucos anos o Rock Rendez Vous (RRV) transformou-se numa sala mítica. Foi lá que os Xutos & Pontapés deram os primeiros passos, que se formaram os Pop Dell’Arte, que actuaram pela primeira vez em Portugal os Killing Joke, os Teardrop Explodes ou os Chameleons. Era ali que se tomava contacto com o movimento pós-punk, através das tardes e noites do radialista António Sérgio, e foi graças ao RRV que se gravaram 140 discos de novas bandas e se realizaram 1500 concertos em dez anos. Foi através do RRV que se formou a editora – Dansa do Som - que
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lançou discos dos Ocaso Épico (banda do malogrado Farinha Master) ou o primeiro álbum dos Xutos ("Cerco"). E acima de tudo naquela sala que se realizou o primeiro concurso de Música Moderna Portuguesa, que deu a conhecer bandas como os Mão Morta, M’as Foice, Ena Pá 2000, Quinta do Bill, Sitiados e Ritual Tejo (cujo primeiro nome foi Easy Gents). «A indústria musical em Portugal não existia e estava tudo a começar; o que existia em termos de produção era muito ligado ao fado. As multinacionais não estavam instaladas, com excepção da Valentim de Carvalho, e mesmo assim não tinha uma actividade por aí além. A nível de música moderna - rock e pop - era todo um mundo novo que se estava a criar. E o RRV foi importantíssimo para isso», explica Adolfo Luxúria Canibal, vocalista dos Mão Morta. «Até tínhamos excursões. As pessoas tinham de vir ver o Papa. Era a única sala de espectáculos rock em Lisboa e no país. Era a Meca daquela gente», repara Mário Guia, proprietário do espaço.
o BACKSTAGE TIM E KALÚ DOS XUTOS&PONTAPÉS OS GLORIOSOS ANOS... 80! Portugal não viveu o «Summer of Love». Viveu os anos 70 imerso em conspirações e a preparar uma revolução. Portugal viveu 48 anos em ditadura, 13 dos quais em guerra colonial. João Peste, vocalista dos Pop Dell’Arte, frisa que «as consequências económicas e políticas da queda da ditadura e da perda do império só podiam provocar uma grande confusão na cabeça das pessoas. E em termos culturais ainda mais, porque de repente tanto parecia que se tinha acesso a tudo como se considerava algumas coisas alienantes. No início dos anos 80 (de 81 a 83) trabalhava numa loja de discos em Campo de Ourique e as pessoas nem sabiam o que era um disco». Este era o panorama português no que respeita à música. Proliferavam os grupos de baile, as festas populares, o fado e pouco mais. Com o fim da ditadura, em apenas seis anos, deu-se o boom da música moderna portuguesa, cantada em português. Em 1980, "Chico Fininho", de Rui Veloso, estava a fazer sucesso nas rádios e a transformar-se num hino da geração rocker portuguesa dos anos 80. Outras bandas seguiram as pisadas de Veloso, como os UHF, os Heróis do Mar, os GNR ou os Táxi, e poucos anos depois os Xutos & Pontapés, os Mão Morta ou os Pop Dell’ Arte. E se os primeiros emergiam das influências punk dos anos 70, os segundos são quase como que filhos do RRV, o berço do boom da música moderna portuguesa. Para isso muito contribuiu o primeiro Concurso de Música Moderna (CMM) do RRV, iniciado em 1984 e que contou com seis edições (até 1989). Mário Guia, fundador do clube, conta como tudo se processava: «Colocava anúncios a perguntar quem queria ir tocar ao RRV e depois mandavam-me cassetes. Só que a maior parte dos que apareciam eram grupos de baile, as bandas pop rock eram poucas. Consequentemente, não facturávamos e começámos a fazer o concurso, para arranjar bandas que fossem tocar lá. E resultou de tal forma que chamou a atenção dos media e trouxe gente interessante. Tenho em casa mil cassetes, cada uma com quatro originais inéditos. São as cassetes de inscrição», conta. As inscrições estavam abertas a todas as bandas, desde que cantassem em português e não tivessem nenhum álbum editado. Para o primeiro concurso, Mário Guia recebeu 101 cassetes. «Havia boas bandas, mas depois havia aqueles que tocavam mal mas que tinham qualquer coisa e por isso, a partir do segundo concurso, resolvemos criar o prémio originalidade», diz ainda. Prémio que foi atribuído a bandas como os Mão Morta ou os Pop Dell’ Arte – que, curiosamente, marcaram mais que as bandas que ganharam o prémio principal. «Todas as bandas que ganharam o primeiro prémio acabaram», comenta Mário Guia. João Peste atribui importância capital ao RRV na formação de novas formações: uma vez apurada, a banda «dava concertos e tinha logo um tema num disco. Isso fez com que uma série de pessoas começasse a pensar em formar uma banda, arranjar sítios para ensaiar, a trocar conhecimentos, referências musicais, emprestar discos. E isto num Portugal que tinha aquelas condicionantes culturais». A reflexão chega mesma a implicá-lo directamente: «Pergunto-me se teria formado uma banda se não houvesse o concurso RRV». Quatro anos após o encerramento do RRV, a RTP e Mário Guia ainda tentaram reviver os concursos do RRV organizando o sétimo (e último) concurso de música moderna. Gravado no cinema Odeon, nos Restauradores, durou três meses e concorreram mais de 400 bandas. Os Drowning Men foram os vencedores. O Prémio de Originalidade, esse, coube aos Ornatos Violeta.
A SORTE DE TER UM ROCK RENDEZ VOUS «Actuar no RRV era uma coisa almejada por uma banda, tanto ou mais do que fazer um disco», conta Adolfo Luxúria Canibal. E actualmente, há alguma sala de espectáculos como o RRV? «Não», garante taxativamente o vocalista dos Mão Morta. «Criaram o Hard Club, em Gaia, mas não é tão caloroso. É muito bonito… demasiado bonito. É menos clube e mais um bar com vista. Havia o Le Son, em Coimbra, que parecia uma daquelas salas das sociedades cooperativas já decadentes. Tinha boas condições, mas também está fechado. O que há são teatros fechados ou salas bizarras. Interessantes, mas não possuem a mística, a intimidade e a concentração que o RRV conseguia», resume Adolfo Luxúria Canibal. Outro ponto forte do RRV eram as matinés, com os superêxitos da época como a versão de «Ziggy Stardust», pelos Bauhaus; «Ball of Confusion», dos Love and Rockets, «Heaven», dos Psychedelic Furs, mais os New Order, The Sound ou os Chameleons. Na opinião de João Palma, frequentador assíduo do RRV que chegou mesmo a ocupar o palco (tocou com os Ocaso Épico, por exemplo), o RRV «era uma sala com o tamanho justo para concertos de pequena dimensão, e isso foi importante. O que acontecia era que os concertos de bandas estrangeiras eram no estádio d’Os Belenenses ou no Pavilhão de Cascais, e isso fazia com que apenas viessem cá bandas que conseguissem encher esses espaços, tipo Whitesnake. O RRV permitiu que viessem cá tocar os The Sound, Chameleons, Killing Joke... Bandas interessantes e actuais que nunca encheriam um estádio. Quanto às bandas nacionais, tinham um espaço para tocar com material e condições como alternativa às salas das sociedades recreativas e clubes desportivos».
A QUEDA DO IMPÉRIO O nº 175 da Rua da Beneficiência, em Lisboa, é actualmente uma pastelaria e um prédio de habitação (175 A). Do RRV, que encerrou em Julho de 1990, não resta nada. Só as memórias - e essas já se sabe que são muitas. Mário Guia tinha 36 anos quando abriu o RRV. Sempre foi interessado por música e chegou mesmo a fazer parte dos Ekos, banda formada em 1964. Uma fase que acabou para dar lugar a um trabalho na área dos têxteis. Área que, felizmente, o obrigava a viajar muito, principalmente para Inglaterra. «Foi aí que tomei contacto com os clubes, e pensava sempre por que é não havia salas daquelas em Lisboa». De regresso à capital, Mário Guia encontrou o local ideal (um antigo cinema no Bairro Santos, perto da Praça de Espanha e de Sete Rios) e transformou-o no RRV. E porquê Rock Rendez Vous? «Porque era rock e era um encontro com o rock». Estava aberto todas as noites, excepto aos domingos - em que só abria à tarde para as matinés. Os tempos áureos prolongaram-se até 1989, com os concursos e noites de sábado a abarrotar (a entrada custava 300 ou 400 escudos, com direito a duas cervejas). O objectivo era fazer uma sala à imagem de um clube inglês de finais dos anos 70, início dos anos 80. Mas cedo as consequências deste ideal se começaram a fazer sentir. «A casa era só procurada pelos homens, porque as mulheres naquela altura saíam pouco, mas quando o faziam gostavam de ter as atenções concentradas nelas e ali não tinham - a música e o palco é que contavam. Sentiam-se mal. Só iam aquelas que estavam viradas para a música e eram muito poucas. Mas a caixa registadora não se compadecia com essas coisas. Facturava pouco. Então fiz a experiência de só entrarem homens acompanhados, só que não resultou durante muito tempo», conta Mário Guia. Mas o grande problema do RRV era o facto de ser uma casa para uma elite. «Nem toda a gente ouvia aquele tipo de música», diz. Chegou-se a um ponto em que não havia bandas para tocar, daí a criação dos concursos. Mas havia sempre dívidas. «A partir de 86 comecei a ver que aquilo estava a cair. Era sempre uma elite que ia lá. E depois já só havia dois concertos cheios por mês», lamenta. Se tivesse sido mais comercial tinha tido um fim diferente? «Não. Quando o António Variações tocava a casa estava vazia. Quem gostava dele eram pessoas simples que não iam ao RRV. Quem ia ao RRV não gostava do Variações. Aos poucos as pessoas deixaram de ir porque começaram a abrir discotecas noutros lados e deixámos de ter o exclusivo. Em relação à música ao vivo continuávamos a ter público, principalmente com as bandas estrangeiras, e depois com os GNR, os Xutos ou os Mão Morta. Mas não chegava porque as despesas eram elevadas. Agora é que dava. Estou a ver se convenço o proprietário da discoteca W a fazer lá um Pop Rendez Vous. Fazer algo mais abrangente porque não acredito que o rock cá se aguente por muito mais tempo», remata Mário Guia.
o ARTIGO PUBLICADO NA BLITZ TEXTO DE ANA BAPTISTA
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ESTAR Rodrigo Leão, ex-Sétima Legião e Madredeus, actualmente com carreira a solo, recorda-se bem: "Coincidiu com o momento em que comecei a fazer música mais a sério. Éramos [Sétima Legião] putos quando gravámos, em 1982, o 'Glória'. Foi quando comecei a ouvir Joy Division, New Order ou Echo & The Bunnymen. Foi a última corrente musical que me despertou tanto interesse." Os ecos do que se passava em Inglaterra eram dados pelos textos de Miguel Esteves Cardoso (MEC) no "Sete", por artigos da imprensa musical da altura ("Música & Som", "Musicalíssimo", suplemento "Som 80", "Rockweek") e, mais tarde, em 1984, pelo "Blitz". "O meu contacto com a onda de Manchester, que identificávamos com as gabardinas, começou pelos textos do MEC - a coluna 'Bolas Para o Pinhal' no 'Sete' - e apanhei também ecos através do 'Rolls Rock'", confirma Jorge Ferraz, sociólogo e mentor de inúmeros projectos (Bye Bye Lolita Girl, Ezra Pound & A Loucura, Santa Maria Gasolina Em Teu Ventre, Acidoxibordel, God Spirou). "Mas o primeiro contacto com essa música surgiu através de amigos que importavam discos, via postal. Eram objectos raros, quase secretos. Aliás, todo o imaginário colado à música ajudava a uma ruptura com o meio onde estávamos. Todos mitificámos essas figuras. Enquanto músico, nunca me interessaram essas bandas, embora tivesse uma grande paixão pelos Joy Division em 1981 e 1982." Quem importava discos, via postal, era João Pinto, ao tempo a residir no Barreiro. Hoje é advogado, em Lisboa. "Não perdia os programas do Sérgio e chegava a ouvir o John Peel, mesmo com interferências", conta, acrescentando: "Comprava discos de importação numa loja do Imaviz, mas a maior parte mandava-os vir de Inglaterra. Foi uma época fantástica. Durante a semana juntava os amigos em casa, ouvíamos música e, aos fins-de-semana, íamos para Lisboa. Sábado de manhã, à Feira da Ladra, à tarde à Juke Box e, à noite, ao RRV. Dávamo-nos com gente de Campo de Ourique ou de Almada. Enfim, existia um círculo que partilhava o gosto pela mesma música. Depois, vestíamos de igual: de cinzento, gabardines, camisas abotoadas até cima, cabelo espetado, sapatos ingleses ou botas da tropa."
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LISBOA... ERA DIFERENTE HÁ 30 ANOS Os circuitos, os ritmos, os locais. Mas também as pessoas. Criavam-se cumplicidades, secretas, a partir de consumos culturais. Fossem discos, filmes, livros ou... Manchester. Trocavam-se cassetes. Ouvia-se Joy Division, mas não se ouvia Donna Summer. Um círculo restrito ensaiava algo de novo. A música era um dos elementos de ligação, mas rapidamente transbordou para outros campos. Na rádio ouvia-se o "Rolls Rock" de António Sérgio, à noite ia-se à Rockhouse e ao Frágil, nos gestos e nas roupas tentava-se ser como Ian McCulloch, nas garagens ensaiavam-se os acordes de uma pequena revolução na música moderna feita em Portugal, e no Rock Rendez Vouz (RRV) expunha-se ao vivo os resultados das experiências. Directa ou indirectamente, o que sucedia em Manchester e o legado pós-punk - marcava o que de mais estimulante acontecia na cidade. Na altura poucos sabiam; mas nada voltou a ser como antes.
VOCALISTA DA BANDA MLER IFE DADA
E NADA VOLTOU A SER COMO ANTES
PEDRO AYRES MAGALHÃES
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“POR MUITO BOA VONTADE QUE SE TIVESSE, MUITAS BANDAS E EDITORAS DESAPARECERAM... POR MAIS QUE HOUVESSE AMOR A CAMISOLA, HAVIA CONTAS A PAGAR.“
IODO A ACTUAR EM ALMADA
LER E OUVIR Ao tempo, a Rockhouse (a partir de 1982, Juke Box), ao Bairro Alto, era visita obrigatória. Na cabine de DJ estava Fernando Nabais, hoje ligado ao universo da net e da música, nomeadamente ao projecto O Homem Invisível. A leitura do "New Musical Express" era imprescindível, mas não só. "Eram sagradas as crónicas do MEC. Os discos chegavam através de um dos sócios do Eduardo, da Rockhouse, que vivia na Alemanha." A história de Rodrigo Leão não é diferente: "A música chegava-me através de amigos e quando alguém ia a Inglaterra aproveitava-se a deixa." À volta dos Sétima Legião gravitaram duas das mais importantes figuras dessa época - o músico e produtor Ricardo Camacho e MEC. O primeiro viria a tornar-se membro da banda, produzindo o primeiro álbum, "A Um Deus Desconhecido", manifestamente influenciado pelos truques de estúdio aprendidos com o amigo Vini Reilly. "O Camacho foi fundamental", refere Rodrigo. "Era fã dos Durutti Column, dos Joy Division. O Miguel era também amigo do Vini Reilly e captou o espírito da Factory na nossa música." Mas outros acontecimentos revelaram-se decisivos no alimentar da paixão: "Recordo-me de, em 1980, termos ouvido um dos primeiros singles dos U2 e do fascínio que provocou e, mais tarde, em 1982, quando fui ao Festival Vilar de Mouros ver Echo & The Bunnymen, U2 ou A Certain Ratio. Coincidiu com a fase em que começámos a ir para a Juke Box e é evidente que o princípio da Sétima está ligada a esse ambiente. Num dos primeiros concertos tocámos de gabardines, existia uma identificação." Até Dezembro de 1979, o programa "Rotação", da Rádio Renascença, era o veículo de divulgação do punk, new wave e pós-punk. Inclusive, de bandas portuguesas como
os Faíscas, Aqui D'el Rock, Minas & Armadilhas, Xutos & Pontapés e Corpo Diplomático. Em 1980 nasceu o "Rolls Rock". Ao leme destas iniciativas estava António Sérgio. "Havia uma loja ou outra, caso da discoteca do Carmo, onde pessoas esclarecidas importavam discos em pequenas quantidades. Mas a maior parte arranjava-os nas viagens trimestrais a Londres", recorda o responsável pela eclosão do conceito de "som da frente" (nome do seu programa de rádio posterior). "Nessa altura, divulgar música nova tinha um rótulo de militância e era objecto de admiração, até pelo país que Portugal era, onde o peso do antigo regime estava fresco." A música era elemento aglutinador, mas era um novo estilo de vida que se queria implantar e Sérgio tinha consciência disso: "As entrevistas dos músicos serviam de referência bibliográfica. Quando o Joe Strummer dos Clash falou do [Charles] Bukowski despertou-me a atenção. Mais tarde, os Manic Street Preachers levaram-me à Sylvia Plath. Existia esforço para acompanhar um comboio de cultura, de alegria de viver, que era irreversível. Não era só música, era uma maneira de pensar, que tem a ver com livros, filmes. Foi uma bóia de salvação, uma forma de dizermos 'vamos sair daqui', do marasmo dominante em Portugal." João Pinto também refere esse elemento de ligação: "Foi através da música que cheguei a Kafka, Mishima, Artaud, Duras, Coppola, Scorsese. Algumas das referências já nem me dizem muito, mas tudo aquilo fazia-nos sentir vivos. Existia uma curiosidade natural pelo mundo. Provavelmente tem a ver com o tempo da adolescência - que é algo que marca - mas existia um sentimento que estávamos a iniciar algo de novo."
EDITAR Para suprir a dificuldade que era obter os discos, começam a surgir tentativas de implantar lojas, editoras, mecanismos de distribuição. As extintas Fundação Atlântica e loja Contraverso - "que nasceu da intenção de editarmos o Wim Mertens e a Isabel Antenna que pertenciam à Les Disques Du Crépuscule, associada da Factory", segundo José Guedes, hoje responsável pela distribuidora Última seriam dois dos casos mais conhecidos. Mas antes existiu a Cliché. Uma ideia de Rui Pavão, que o Y foi encontrar em férias na ilha de Porto Santo, na companhia de Ana da Silva das Raincoats - também elas modelos do pós-punk em Inglaterra. "Nos anos 80 regressei a Portugal, depois de ter vivido em Inglaterra. A minha mulher tinha tirado um curso de moda e, na companhia de uns amigos, pensámos em criar uma loja de roupa, mas depois a ideia evoluiu para um espaço misto com discos", conta Pavão. "Paralelamente, através de uma pessoa na América, que conhecia um tipo dos Material de Bill Laswell, pensámos em editar o grupo. Ao mesmo tempo, tínhamos contactos em Inglaterra através da Ana das Raincoats, que estavam na Rough Trade. Ou seja, tínhamos amigos que começaram a trazer discos, tudo ilegal. E foi assim que começámos a vender Young Marble Giants, Raincoats e Pig Bag. Mas era uma coisa pequena, não rendia." A Cliché editora acabou e a loja também não se aguentou, mas as sementes estavam lançadas. "Era um sítio onde se juntava malta jovem. Quase não consumiam, mas existia algo no ar. Era malta como o Rui Cunha dos Heróis [do Mar] ou gente que gostava de música, como o Ricardo Saló ou o Leonaldo de Almeida do Lux. O Cunha era grande devorador de revistas e o que se passava em Inglaterra não nos passava ao lado."
o “...ACIMA DE TUDO O QUE ACHEI MAIS POSITIVO NO MEIO DESTE BOOM FOI O FACTO DE AS PESSOAS COMEÇAREM A TOCAR DESCOMPLEXADAMENTE, A COMPOR EM PORTUGUÊS E A IR PARA A ESTRADA SEM PENSAR EM MAIS NADA. AS PESSOAS ENTREGAVAM-SE DE CORPO E ALMA.” SÉRGIO GODINHO
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SAIR Aos sábados de manhã, a Feira da Ladra servia de ponto de encontro. Trocavam discos, criavam-se cumplicidades, arranjavam-se mais membros para a banda. "Vinham pessoas de Lisboa e arredores", recorda João Pinto. "Falava-se de discos, roupas, das viagens que se sonhava fazer a Inglaterra. Era ponto de passagem antes de irmos às 'matinées' da Rockhouse." Fernando Nabais refere o Chiado e a Av. de Roma como poisos habituais. "Parávamos nos cafés do Chiado. Também na Av. de Roma, no Vá-vá. Era lá que parava o pessoal dos Heróis e da Sétima, que ensaiavam no prédio em frente. De vez em quando, à tarde, ensaiavam no terraço e aparecia também o Zé Pedro e o Cabeleira dos Xutos." As memórias de Rodrigo Leão não são diversas: "Andava a estudar no Liceu D. Leonor. Ouvíamos música em casa uns dos outros, íamos ao cinema às famosas sessões do Quarteto, da meia-noite às cinco. À noite íamos para o Bairro Alto, para as tascas, como o Gingão, a Tia Alice e, claro, a Juke Box e o Frágil." À noite, a Rockhouse, o Café Concerto, a Ocarina e o Frágil funcionavam como pontos de encontro. À porta da Rockhouse estava Zé da Guiné, lá dentro os corpos movimentavam-se ao som de "Transmission" dos Joy Division ou "Temptation" dos New Order. Na cabine de DJ, Fernando Nabais. "Comecei como cliente, ia às 'matinées', gostava da música e tornei-me amigo do DJ Bruno. Estava sempre a chateá-lo para ele me dizer o que estava a tocar e, a certa altura, convidou-me a pôr música. Passava Joy Division, A Certain Ratio, Teardrop Explodes - a 'pop das gabardinas' como o MEC lhe chamava - e também aquelas coisas que os influenciavam, como Velvet ou Doors. Mais tarde, passei Rip Rig & Panic ou Pig Bag." Entre os clientes, gente da música, moda e artes. "Era um público exigente que não saía só aos fins-de-semana. Estavam em cima dos fenómenos em Inglaterra e preparavamse para a noite. Sair era um ritual. Recordo-me do António Variações, do Al Berto, do Lima Barreto, dos músicos dos Heróis do Mar antes da formação do grupo, do Rui Reininho quando viveu em Lisboa... À conta dessa aura, passavam por lá também os músicos estrangeiros, como o Vini Reilly ou os Echo & The Bunnymen."
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CRIAR Em Manchester, Liverpool ou Londres, Joy Division, Echo & The Bunnymen, Teardrop Explodes, The Sound, The Chameleons, The Fall ou Siouxsie & The Banshees eram adulados. No Porto, Ban ou Culto Da Ira representavam a geração cinzenta. Em Lisboa, no princípio dos anos 80, surgiam os primeiros sucedâneos dessas bandas inglesas. Na Av. de Roma, Alvalade, Campo de Ourique ou, na outra margem, em Almada, uma nova geração nascia, ao lado dos GNR ou Rádio Macau. Tinham nomes como Sétima Legião, Croix Sainte, Urb ou Dead Dream Factory e serviriam de embrião a outras que surgiriam nos anos vindouros, como Pop Dell'Arte, Mão Morta, Linha Geral, Jovem Guarda, Mler Ife Dada, Essa Entente ou Golpe De Estado. O Rock Rendez Vouz, ao Rego, era a catedral, mas na António Arroio, n'A Teia em Alcântara, no ISCTE, em BelasArtes ou nos liceus de Campo de Ourique existia algo a pulsar. "Fizemos os primeiros concertos no RRV, em Belas-Artes e no Liceu D. Leonor", recorda Rodrigo Leão. "Existiam bandas como os Croix Sainte ou os Urb, que frequentavam os mesmos circuitos. Recordo-me de ir a casa do Luís San Payo, então nos Croix Sainte, buscar amplificadores e íamos a pé com aquilo até ao RRV. Existia um entusiasmo muito grande. Estávamos a concretizar um sonho." O Dramático de Cascais acolhia os Clash, o Pavilhão do Restelo os Echo & The Bunnymen e Siouxsie & The Banshees e a Aula Magna os Durutti Column. Mas foi ao Rego, no Rock Rendez Vouz, que tudo parecia acontecer. Por lá passaram The Woodentops, Danse Society, The Sound ou The Chameleons, mas bandas portuguesas era coisa que não faltava. "Não existia um ambiente de tertúlia à volta deste consumo de música, embora os concertos do RRV tivessem sido importantes. Ia-se ver grupos portugueses, muitas vezes até sem quaisquer referências", lembra Ferraz.
o ARTIGO PUBLICADO NO DIA 20.09.2002
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VESTIR Não eram só os discos que interessavam que eram difíceis de encontrar. Também a roupa exigia imaginação. "Vestíamos roupa em segunda mão. Fornecíamo-nos na Feira ou nas Madames Bettencourt e Irene. As pessoas vestiam de preto, beije, cinzento, azul e castanho. Os sapatos eram um drama, tínhamos que pedir a alguém que fosse lá fora", explica Fernando Nabais. As gabardines eram fundamentais, mas não eram o elemento-chave. "O principal era, a partir de um elemento comum, atribuir-lhe um cunho de diferença", diz João Pinto. "Claro que era uma diferença partilhada, porque se não fosse assim não fazia sentido. Às vezes bastava um pormenor, como a camisa totalmente abotoada, um crachá, um penteado, para surgir identificação. O sentimento de pertença passava por aí. Mais tarde começaram a surgir designações como 'urbano-depressivos' ou 'vanguardistas', mas sempre me pareceu redutor. O que existia era gente, diferente entre si, que ansiava por algo de diverso, mesmo se, depois, por reacção, negasse esse período. O que é natural." António Sérgio partilha da mesma visão: "Não foi o meu caso, mas naturalmente quando nascem fenómenos deste género existe um acompanhamento no modo de vestir. Recordo-me de ver um concerto no pátio de Belas-Artes com a Sétima e os Croix Sainte e de olhar à volta e ver tudo de cinzento. Parecia-me soturno de mais, afinal aquilo era música pop." Música pop que organizava o que vinha de trás - Velvet, Doors, Can, punk - e que prenunciava o que viria a seguir - dança, hip-hop, dispersão, reciclagem, ambiguidade. Um período-charneira que em Portugal se veio a revelar decisivo para a implantação de novas formas de olhar.
SUPLEMENTO Y DO JORNAL PÚBLICO TEXTO DE VITOR BELANCIANO
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CHICLETE
ANOS 80 E O NOVO ROCK PORTUGUÊS
FACULDADE DE BELAS ARTES DA UNVERSIDADE DE LISBOA DESIGN DE COMUNICAÇÃO IV TIAGO FRANCEZ BAIÃO Nº4798
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