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Eugeniusz Costa Lopes da Cruz

Coleção Ciências Criminais Teses Selecionadas Coordenadores

Alexandre Wunderlich Salo de Carvalho

Roberto Lyra

O intelectual militante pela criminologia


Copyright© Tirant lo Blanch Brasil Editor Responsável: Aline Gostinski Assistente Editorial: Izabela Eid Diagramação e Capa: Analu Brettas CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México Juarez Tavares Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil Luis López Guerra Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha Owen M. Fiss Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA Tomás S. Vives Antón Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

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Cruz, Eugeniusz Costa Lopes da Roberto Lyra : o intelectual militante pela criminologia [livro eletrônico] / Eugeniusz Costa Lopes da Cruz; Alexandre Wunderlich, Salo de Carvalho (Coord.); prefácio Gizlene Neder, Gisálio Cerqueira Filho. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023. – (Coleção Ciências Criminais Teses Selecionadas) 1 kb; livro digital ISBN: 978-65-5908-638-2. 1. Roberto Lyra. 2. Criminologia. 3. Ensino jurídico. I. Título. CDU: 343.9 Bibliotecária Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778 DOI: 10.53071/boo-2023-08-17-64de28ce930d3

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

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Eugeniusz Costa Lopes da Cruz

Coleção Ciências Criminais Teses Selecionadas Coordenadores

Alexandre Wunderlich Salo de Carvalho

Roberto Lyra

O intelectual militante pela criminologia


Nota dos coordenadores A coleção “Ciências criminais: teses selecionadas” é fruto de um antigo projeto que nos desafia: aproximar a crítica acadêmica e a produção científica de qualidade aos profissionais do Direito, com o objetivo de sofisticar a jurispru dência nacional, reforçando os mecanismos de controle dos excessos dos poderes punitivos. Ao longo da jornada acadêmica, ocupamos espaços em diversas Instituições de Ensino, na graduação e na pós-graduação, o que nos permitiu acesso a inúmeras investigações, materializadas em dissertações e teses. Algumas pesquisas através do trabalho direto, por meio de orientações, e outras tantas em razão de participações em arguições. Esses materiais foram sendo selecionados e alguns se quedavam inéditos. Ao mesmo tempo, para além da acadêmica, a atividade contínua na advocacia criminal mostra a real necessidade de disponibilizar o que é produzido na universidade ao público especializado, sobretudo aos atores do sistema de Justiça Penal. Diante da excelência de vários desses trabalhos, entendendo que o mercado cada vez mais demanda e absorve investigações profundas e de qualidade, para além dos tradicionais manuais, sugerimos para a Editora Tirant lo Blanch e para o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais uma parceria que viabilizasse as publicações dos trabalhos selecionados. As teses e dissertações selecionadas, portanto, contribuem para o debate e o desenvolvimento das ciências criminais no país, fundamentalmente nas áreas do direito penal, processo penal, criminologia e política criminal. Por fim, reafirmamos o nosso compromisso com a consolidação de uma dogmática crítica, que supera a falsa dicotomia teoria versus prática, e direcionada à defesa intransigente da Constituição da República e dos direitos e garantias nela positivados. Não por outra razão, o garantismo penal acaba sendo o fio condutor de boa parte dos trabalhos que serão publicados. Por todos estes motivos, é um grande prazer e renovado orgulho apresentar aos leitores a coleção “Ciências criminais: teses selecionadas”. Porto Alegre e Rio de Janeiro, junho de 2023. Prof. Dr. Alexandre Wunderlich Prof. Dr. Salo De Carvalho 5


Prefácio O leitor tem em mãos um livro necessário e esclarecedor sobre a história intelectual de Roberto Lyra, eminente professor e pioneiro no campo dos estudos da Criminologia no Brasil. Necessário, porque, em larga medida, a história da formação profissional em nível superior no Brasil não tem recebido atenção suficiente para informar, analisar e fazer avançar a preparação de seus quadros. O livro do professor e pesquisador Eugeniusz Costa Lopes Cruz enfoca a formação jurídica realizada na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, que teve entre seus fundadores, Roberto Lyra e Luiz Carpenter, cujo projeto estratégico visava a inovação no campo dos estudos jurídicos e sociais, através da criação da Universidade do Distrito Federal, em 1935, sob a liderança de Anísio Teixeira, quando foi Diretor Geral de Instrução Pública do Distrito Federal. Contém os resultados de uma pesquisa cuidadosa realizada no decorrer do curso de Doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal Fluminense, defendida com título: “Roberto Lyra: o intelectual militante pelas ciências Sociais”. Recordamos que Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito forma mestres e doutores em “ciências jurídicas e sociais”, em perspectiva multi e interdisciplinar. As exigências e desafios colocados aos pós-graduandos são muitos e Eugeniusz Cruz nos brinda com um resultado de muito valor. O trabalho é valioso porque pesquisou tema original, muito pouco explorado entre os pesquisadores que se dedicam à crítica da formação jurídica no Brasil: a experiência meteórica e combatida pelas forças do regresso e do obscurantismo que assombram a formação política e intelectual brasileira. A Universidade do Distrito Federal teve vida institucional curta (1935-1938); não resistiu à investida do Estado Novo que empalmou o poder em 1937. Contudo, pela resiliência e perspectiva histórica de vários de seus professores, o projeto inovador e os avanços, sobretudo temáticos e pedagógicos ecoaram na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Para a execução da pesquisa Eugeniusz Cruz desenvolve o trabalho em duas dimensões: (I) a primeira, em torno da formação e conteúdo do seu pensamento, visando identificar as influências (escolas e autores) na formação de suas ideias jurídicas e políticas, além dos temas principais de sua produção; e (II) a segunda, voltada para a sua militância no campo da educação, os círculos sociais, intelectuais e políticos frequentados pelo professor e jurista, nos tempos da radicalização política das décadas de 1930-1940 e, posteriormente, como ministro da educação na década de 1960. 6


Importante destacar que este exame também tangenciará a história das instituições públicas e seus agentes, sempre que for relevante para o objeto de pesquisa. Imprescindível, sob esse ponto de vista, a análise dos aspectos de intencionalidade dos atores históricos que elaboraram projetos de leis, produziram discursos públicos e atuaram na vida pública. Para realizar essa investigação há certamente um desafio interpretativo que se realizará buscando rigor metodológico e espírito científico. A pesquisa realizada para a preparação da tese aborda a história intelectual de Roberto Lyra, e do campo intelectual do direito e das ciências humanas e sociais num sentido abrangente. Realiza um levantamento minucioso na Biblioteca de Roberto Lyra e nas principais bibliotecas da cidade do Rio de Janeiro. O esforço é para identificar a abordagem sobre o ensino jurídico no Brasil defendida por Roberto Lyra, autor da frase inscrita no pórtico de entrada do auditório da Universidade do Distrito Federal que dizia: “aqui só entra quem sabe sociologia”. Trata-se de claro enaltecimento à interdisciplinaridade, a valorização da proposta de pensar o direito com as ciências humanas e sociais1, afastando-se da perspectiva dogmática e tecnicista. O pensamento crítico, proveniente do marco teórico, seria o eixo fundamental para a desconstrução de afirmações sem fundamento científico que se perpetuam no senso comum teórico jurídico no Brasil. Parabéns Eugeniusz e seja feliz. Gizlene Neder Gisálio Cerqueira Filho

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NEDER, Gizlene; CERQUEIRA, Gisálio. Formação Jurídica e histórica das faculdades de direito em Portugal e no Brasil. Paper presented at the RCSL-SDJ Conference “Law and Citizenship Beyond the States”, Lisbon, September 2018.

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Agradecimentos Nomear todos que, de alguma maneira, contribuíram para a realização desta pesquisa seria inviável. A tese, embora escrita por mim, é fruto de um extenso círculo de relações e convívios, representadas pelas seguintes: Em primeiro lugar na lista de agradecimentos, não poderia deixar de ser a minha orientadora, professora Gizlene Neder. Me mostrou os caminhos para realizar uma pesquisa interdisciplinar trazendo novos elementos para repensar a relação história das ideias, sociologia e direito. Sempre será, para mim, a representação humana de uma educação pública, gratuita e de qualidade. Estendo os agradecimentos aos camaradas do Laboratório Cidade e Poder (LCP), liderado pela professora Gizlene desde 1992, e do qual orgulho-me de ser integrante. Ao professor Gisálio Cerqueira Filho que, generosamente, me coorientou, com suas preciosas lições na UFF, conversas no bar&retaurante “Tio Cotó” e trocas antes do início das reuniões do GESP (Grupo de Estudos em Subjetividade e Política) vinculado ao Laboratório Cidade e Poder. O grupo é coordenado pelo professor Gisálio e propicia um espaço para discussões de leituras e trocas intelectuais, além de uma convivência afetuosa e de camaradagem que instiga a reflexão acadêmica. Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF: por abrir as portas do ensino público de qualidade, pela estrutura e corpo docente para a realização do curso de doutorado. Agradeço aos professores da UFF com quem tive o prazer de assistir às suas aulas, em especial, aos professores do PPGSD, Jacques d´Adesky, Ana Motta, Maria Alice Costa, Fernando Gama, Cleber Alves e Carla Appollinaro Castro; e do PPGDC, Enzo Bello, Gladstone Leonel Jr, Pedro Curvello Avzaradel. Aos professores que concederam entrevistas para a tese: professor Nilo Batista (UERJ), professor José Geraldo Sousa Jr (UnB), professor Márcio Lemgruber (UFJF). À Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, pela escola de direito que é. Sempre articulando teoria e prática, me possibilitou enxergar – com outro olhar - os problemas relativos à seletividade do sistema penal e a sociedade brasileira em contínua luta de classes. Agradeço assim aos defensores públicos e amigos, que contribuíram para a minha formação crítica, em especial, Felipe Almeida, Rodrigo Roig, Leonardo Rosa, Maria Ignez Baldez e Marco Apolo Ramidan. 8


Às bibliotecárias Janaína Oliveira do IAB e Ana Clara Brandão da UERJ. Sem vocês toda a busca nos acervos de obras raras teria sido inviável. Às professoras Vera Malaguti e Ana Motta; aos professores Enzo Bello e Salo de Carvalho por aceitarem gentilmente ao convite para participar da banca examinadora. Agradeço, por fim, à minha família nada tradicional: a minha companheira Joanna pelo carinho e aos meus pais Sheila e Cleber pela formação e apoio propiciados ao longo dos anos.

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Sumário Nota dos coordenadores. .................................................................................. 5 Prof. Dr. Alexandre Wunderlich e Prof. Dr. Salo De Carvalho

Prefácio.............................................................................................................. 6 Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira Filho

Agradecimentos.................................................................................................. 8 Introdução, delimitação do objeto, metodologia e problema de pesquisa. ...... 12 Capítulo 1 Apresentação e crítica dos fundamentos da teoria do conhecimento para a escola clássica e a escola positiva: elementos centrais para o mapeamento do pensamento de Roberto Lyra............................................................................ 34 1.1. Teoria Tradicional e Teoria Crítica............................................................................ 34 1.2. Teorias Tradicionais nas Ciências Criminais (Escolas Clássica e Positiva).................. 37 1.3. Ideologia da defesa social (IDS) e contradições ideológicas....................................... 44 1.3.1. A ideologia da defesa social ................................................................................45 1.3.1.1. A ideologia da defesa social e o sistema penal.................................................45 1.3.1.2. A contribuição de Althusser para uma compreensão interdisciplinar do sistema penal como Aparelho Repressivo de Estado (ARE).....................................................47 1.3.2. O mito da neutralidade científica.......................................................................49 1.3.3. A escola do fim das ideologias.............................................................................52 1.3.4. O caráter ideológico da ideologia da defesa social...............................................55 1.4. A relação entre o poder punitivo e o capital............................................................. 56

Capítulo 2 O universo político e ideológico em torno de Roberto Lyra.......................... 64 2.1. Considerações políticas, ideológicas e metodológicas................................................ 64 2.2. Antecedentes da família Lyra: raízes abolicionistas.................................................... 67 2.3. O jovem Lyra e a Faculdade Livre de Sciencias Jurídicas e Sociaes do Rio de Janeiro........ 71 2.3.1. Os Lyra: uma família tradicional.........................................................................71 2.3.2. A formação na Faculdade Livre de Sciencias Juridicas e Sociaes do Rio de Janeiro e a ideologia punitivista na Primeira República.............................................................74 2.3.3. Sociabilidade com professores, influenciadores e o debate sobre a pena de morte.......77 2.3.4. Produção científica em matéria penal na década de 1920 e o eixo cultural Rio-São Paulo em perspectiva empírica......................................................................................81 2.4. O pensamento científico e político de Roberto Lyra como chaves interpretativas para a compreensão de sua obra.............................................................................................. 86


2.4.1. Positivismos e o positivista indisciplinado ..........................................................86 2.4.2. O Direito Penal Normativo e o Direito Penal Científico.....................................96 2.4.3. Do pensamento político socialista à criminologia contra-hegemônica e anticarcerária...... 99

Capítulo 3 A militância como professor: a Universidade do Distrito Federal como círculo de sociabilidade intelectual, política e espaço de lutas ideológicas no campo da educação. ....................................................................................................... 112 3.1. Mapeamento das origens e da fundação das primeiras faculdades de Direito no Brasil: a Escola de Recife como berço das abordagens interdisciplinares................................... 113 3.2. A recepção das ideias de Recife: Tobias Barreto e Silvio Romero............................. 117 3.3. O magistério de Roberto Lyra................................................................................ 128 3.3.1. Uma vida dedicada ao ensino e à produção acadêmica......................................128 3.3.2. Início da docência e a disputa com Nelson Hungria.........................................129 3.4. A UDF como projeto inovador na educação superior: a adesão de Lyra à ideia de Anísio Teixeira.............................................................................................................. 137 3.4.1. Conjuntura política na educação na década de 1930 e a nova concepção de ensino.........................................................................................................................138 3.4.2. A incorporação da Faculdade de Direito do RJ pela UDF: “aqui não entra quem não for sociólogo”.......................................................................................................140 3.5. Intelectuais, pluralidade ideológica e a questão religiosa: educação laica e o poder eclesiástico.................................................................................................................... 147 3.6. Ministro da educação socialista, golpe e renúncia................................................... 153 3.6.1. Período histórico antecedente ao primeiro governo de esquerda brasileiro.........154 3.6.2. O ministro da Educação no primeiro governo de esquerda do Brasil.................157 3.7. O drama trágico de Roberto Lyra........................................................................... 165 3.7.1. Teoria do drama trágico....................................................................................166 3.7.2. Sobre Lyra pai e Lyra Filho...............................................................................169

Conclusão...................................................................................................... 177 Referências bibliográficas.............................................................................. 180 ANEXOS Antecedentes da família Lyra......................................................................... 190


Introdução, delimitação do objeto, metodologia e problema de pesquisa

Este livro é fruto da tese de doutorado defendida no programa de Pós-graduação em Ciêcias Jurídicas e Sociais da Universidade Federal Fluminense (PPGSD-UFF), sob orientação da professora Gizlene Neder e coorientada pelo professor Gisálio Cerqueira Filho. Como membros externos participaram da banca examinadora a professora Vera Malaguti Batista (UERJ) e o professor Salo de Carvalho (UFRJ). Como professores internos participaram a professora Ana Maria Motta (UFF) e o professor Enzo Bello (UFF). O título da tese foi “Roberto Lyra: o intelectual militante pelas ciências sociais”, para no livro passar a “Roberto Lyra: o intelectual militante pela criminologia”. Na pesquisa foram problematizados os aspectos da história intelectual e da sociabilidade política do professor, jurista e jornalista Roberto de Lyra Tavares2. Nascido em 19 de maio de 1902, na cidade de Recife, filho de João de Lyra Tavares e de Rosa Amélia Tavares, foi casado com Sophia Augusta Tavares de Lyra, sua prima (filha de Augusto Tavares de Lyra e Sophia Eugênia de Albuquerque Maranhão), com quem teve dois filhos, Sophia Rosa (1925-1927) e Roberto Lyra Filho (1926-1986), este último considerado uma das maiores referências da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Roberto Lyra faleceu no Rio de Janeiro em 28 de outubro de 19823. Inicialmente, cabe explicar a necessidade e a pertinência deste livro. Estudar Roberto Lyra, objeto-sujeito investigado, é resgatar a história do personagem que influenciou decisivamente a formação do pensamento brasileiro no campo das ciências criminais, e que nem sempre recebe o devido reconhecimento. Pretendo perquirir a história da formação do pensamento do criminalista que teve suas primeiras formulações no contexto histórico de lutas pela superação dos traumas deixados pelo regime escravocrata. Formou-se no curso de direito em 1920; em 1924, tomou posse como membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, à época Distrito Federal, e já na década de 1930 ingressou no magistério superior. Esteve à frente dos trabalhos 2 3

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Desde o início desta pesquisa, foi possível identificar a divergência na forma escrita do nome da família Li(y)ra, ora escrito com “y”, ora com “i”. As divergências nessas referências se dão em razão da reforma ortográfica da língua portuguesa no ano de 1911. Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. Disponível em: <http:/ / www. fgv. br/ CPDOC/ BUSCA/ dicionarios/ verbete- biografico/ roberto- tavares- de- lira>. Acesso em: 25 mai. 2019.


de abertura da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, integrada à Universidade do Distrito Federal (UDF)4. Posteriormente, foi vice-reitor da Universidade do Estado da Guanabara (UEG) e diretor do Instituto de Criminologia, devendo-se destacar que criou uma teoria sobre as causas do crime, desenvolvida dentro dos postulados socialistas de sua preferência, além da expressiva produção em livros, artigos e outros trabalhos científicos5. Evaristo Costa, ao prefaciar Criminologia 6, refere-se ao autor como “um dos maiores oradores e conferencistas do Brasil”. Como promotor de justiça, exerceu por mais de uma vez a Procuradoria-Geral do Ministério Público, onde teve atuação perante o tribunal do júri, por ele considerado como um instrumento de liberdade individual. Como advogado, foi o chairman da seção de direito e processo penal da Conferência Interamericana de Advogados, e orador oficial pela Federação Interamericana de Advogados, em nome de 21 nações. Como professor, iniciou sua carreira no ensino primário, atual ensino fundamental, tendo posteriormente lecionado em diferentes faculdades. Chegou a ser vice-reitor da Universidade do Estado da Guanabara, passando mais tarde pelo Ministério da Educação e Cultura, desta vez como ministro de Estado do governo de João Goulart, no qual, segundo Barbosa Lima, “foi uma aura prematura de autenticidade socialista”7. Voltar a Roberto Lyra possibilita identificar também alguns aspectos de Roberto Lyra Filho, que não será aqui estudado, uma vez que tal análise demandaria outra tese. Ainda assim, há espaço suficiente para registrar que este foi o primeiro a promover um diálogo sobre o marxismo e a questão criminal no Brasil8. Lyra Filho é considerado uma referência na criminologia crítica brasileira e é reconhecido na comunidade acadêmica, principalmente, por sua obra Criminologia Dialética9, que simboliza no Brasil aquilo que Punição e Estrutura Social10 representa para os estudos críticos da criminologia. Posteriormente, Lyra Filho aprofundou seus estudos no campo da economia política e publicou, em 4 5 6 7 8 9 10

NEDER, Gizlene; CERQUEIRA, Gisálio. Formação Jurídica e histórica das faculdades de direito em Portugal e no Brasil. Paper presented at the RCSL-SDJ Conference “Law and Citizenship Beyond the States”, Lisbon, September 2018. LIRA, Roberto. Criminologia. São Paulo: Companhia Editora forense, 1964, p. 20-21. COSTA, Evaristo. Prefácio: Obra jurídica de Roberto Lira. In: LIRA, Roberto. Criminologia. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1964, p. 11-32. LIMA, Barbosa. Apud COSTA, Evaristo. Prefácio: Obra jurídica de Roberto Lira. In: LIRA, Roberto. Criminologia. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1964, p. 14. BATISTA, Vera Malaguti. A Escola Crítica e a Criminologia de Juarez Cirino dos Santos. In: ZILIO, Jacson; BOZZA, Fábio (orgs.). Estudos Críticos sobre o Sistema Penal: homenagem ao professor Juarez Cirino dos Santos. Curitiba: Ledze, 2012. LYRA FILHO, Roberto. Criminologia Dialética. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. CARVALHO, Salo de. Perspectivas metodológicas na criminologia crítica brasileira: diretrizes fundacionais e mapeamento de fontes de referência. RBSD – Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 8, n. 2, p. 4-31, maio/ ago. 2021. Disponível em: <http:/ / revista. abrasd. com. br/ index. php/ rbsd/ article/ view/ 540>. Acesso em: 3/ 8/ 2021.

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homenagem a Gisálio Cerqueira Filho e Leandro Konder, a obra Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o Direito11. Na tarefa investigativa da história das ideias jurídicas e políticas, e em seus encadeamentos metodológicos, examinei - nas seções de obras raras- fontes impressas (livros, artigos, prefácios e cartas) e destaquei temas abordados, atento ao referencial bibliográfico por ele utilizado, muitas vezes de difícil identificação nas obras. Essas fontes ofereceram uma trilha concreta para alcançar os resultados esperados. Para a execução da pesquisa, desenvolvi o trabalho em duas dimensões: (I) a primeira, em torno da formação e do conteúdo do seu pensamento, visando identificar as influências (escolas e autores) na formação de suas ideias jurídicas e políticas, além dos temas principais de sua produção; (II) a segunda, voltada para a sua militância no campo da educação, bem como aos círculos sociais, intelectuais e políticos frequentados pelo professor e jurista, nos tempos da radicalização política das décadas de 1930-1940 e, posteriormente, como ministro da Educação na década de 1960. Importante ressaltar que o livro também tangenciará a história das instituições públicas e seus agentes, sempre que isso se mostre relevante para o objeto de pesquisa. Imprescindível, sob esse ponto de vista, a análise dos aspectos de intencionalidade dos atores históricos que elaboraram projetos de leis, produziram discursos públicos e atuaram na vida pública. Para realizar essa investigação, há certamente um desafio interpretativo que realizarei com rigor metodológico e espírito científico. Epistemologicamente, Carl Schorske12 assinala os rumos para a realização do desafio interpretativo no imbricamento entre história, cultura e política no âmbito das subjetividades dos agentes históricos investigados. Essa foi a direção adotada no estudo sobre Roberto Lyra. Carl Emil Schorske foi historiador político e da intelectualidade, com preocupações teóricas interdisciplinares que o aproximaram da psicanálise freudiana e dos estudos sobre humanidades. Formado pelo Columbia College, fez mestrado em Harvard, onde foi influenciado por economistas keynesianos e marxistas. Foi professor das universidades de Wesleyan, Berkeley e Princeton, tendo definido sua técnica de pesquisa como “meu método de historiador intelectual interdisciplinar”13. Num conjunto de ensaios sobre relações culturais e políticas em Viena, na virada do século XIX para o XX, o autor oferece sugestões metodológicas que articulam a história do poder e das 11 12 13

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LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: Fabris, 1983. SCHORSKE, Carl. Viena Fin-de-Siècle, política e cultura. São Paulo/ Campinas: Cia das Letras/ Editora da Unicamp, 1988. SCHORSKE, Carl. Pensando com a História: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 47.


instituições políticas. Destaca as disputas dos diferentes grupos e subgrupos que compunham a elite dominante vienense, na tentativa de moldar a política austríaca na passagem à modernidade. Esse referencial metodológico é importante para este livro, já que a família Lyra se estabelece na Capital brasileira, o Rio de Janeiro, no início do século XX. Na trilha sugerida por Schorske, examinarei o pensamento científico e político de Roberto Lyra no contexto social da transição do regime trabalho escravo para o trabalho assalariado, o que possibilita uma reflexão sobre a conjuntura política em que o sujeito-objeto se constituiu como jurista e professor. Schorske propõe em seu trabalho a análise de trajetórias individuais, para fins de compreensão das ideias políticas, além do estudo das esferas do profissional, do político e do pessoal, como procurei fazer na pesquisa sobre Roberto Lyra. Schorske, no ensaio intitulado Política em Novo Tom: um trio austríaco14, realizou uma análise biográfica e social de três personagens da vida pública vienense, cujas atuações uniram tradição e modernidade em suas trajetórias. O foco do autor deu-se na análise desses líderes políticos que romperam com o liberalismo e outros movimentos sociais nacionais e ideológicos, como nos estudos dos casos do pangermanismo de George von Schonerer, do socialismo cristão de Karl Lueger, e do sionismo de Theodor Herzl. Para ele, a pretensão aristocrática de Schorener (1842-1921) oferece uma pista para as fontes psicológicas de sua rancorosa revolta pessoal contra a cultura liberal, assim como para a sensibilidade dos movimentos sociais que organizou posteriormente. Em apertada síntese, o estudo foi realizado desde a formação estudantil de Schorener até a organização do programa nacional de antissemitismo, após a morte de seu pai, evento este que teria liberado sua agressividade reprimida. Com Lueger (1844-1910) a análise parte da sua formação na faculdade de Direito, onde, no exame oral final em ciência jurídica e política, defendeu tese sobre a importância do sufrágio universal que o caracterizava como austrodemocrata, em uma ideologia social cristã. Mais tarde, adotou uma postura antissemita que o projetou para a vitória nas eleições de 1895 à prefeitura da cidade de Viena. A mesma metodologia foi utilizada na investigação sobre Theodor Herzl (1860-1904), que tentou realizar uma utopia liberal para o seu povo (judeu), afastando a premissa racionalista e trazendo uma tendência criativa, articulada ao princípio do desejo, à arte e ao sonho. Schorske indica que a jornada investigativa deve enfocar as trajetórias pessoais, em especial as relações familiares, políticas e profissionais, numa tentativa 14

SCHORSKE, Carl. Política em Novo Tom: um trio austríaco. In: Viena Fin-de-Siècle, política e cultura. São Paulo/ Campinas: Cia das Letras/ Editora da Unicamp, 1988, p. 125-177.

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de entender a passagem à modernidade, sendo esta a metodologia utilizada. Para compreender o percurso de vida de Roberto Lyra analisarei, em particular, os antecedentes da família e as trajetórias individuais (autores lidos, professores e outros), que possuem o condão de explicar os caminhos profissionais e políticos trilhados por ele. Gizlene Neder, na mesma esteira de Schorske, indica a importância metodológica do exame das relações de amizade, que explicitam as redes de sociabilidade integrantes das identidades políticas. No caso de Roberto Lyra, aprofundarei essa abordagem por meio de entrevistas com pessoas que se relacionaram com o próprio Lyra ou com outros integrantes da família, o que possibilitará a identificação de relações sociais onde se reconheçam pormenores sobre relacionamentos de afeto, camaradagem e cumplicidade política15. Nesse ponto, passo a detalhar o procedimento de pesquisa. Ingressei no PPGSD-UFF no segundo semestre de 2018, com outro projeto conectado à minha dissertação de mestrado ‒ Justiça de transição no Brasil e a análise crítica da persecução penal dos agentes da ditadura militar (1964-1985)16, oportunidade em que fui orientado pelo professor Carlos Eduardo Japiassú. No primeiro e segundo semestres como aluno do programa, estava mais concentrado em cumprir as disciplinas obrigatórias, para depois cursar as eletivas com maior aderência à tese. Metodologicamente, iniciei a pesquisa na dimensão empírica no segundo semestre de 2019. Vasculhei, com a generosa e paciente orientação de Gizlene Neder, as referências bibliográficas em direito penal nos arquivos da Biblioteca Nacional (BN), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na Pontifícia Universidade Católica (PUC) e na Faculdade Nacional de Direito (FND), que integra a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O recorte temporal foi o das décadas de 1920, 1930, 1940 e 195017, a fim de mapear a produção de referência no campo jurídico e identificar os livros lidos, os autores citados e a forma de abordagem (conservadora ou progressista) dos autores nacionais e estrangeiros, além da circularidade das ideias18 nesse período. Em janeiro de 2020, as autoridades chinesas identificaram um novo tipo de vírus que teve como consequência a catástrofe humanitária da pandemia da Covid-19. Com o fechamento das universidades e bibliotecas públicas, tornou-se tarefa frustrante aquilo que até então eu vinha fazendo com relativo espírito lúdi15 16 17 18

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NEDER, Gizlene. As reformas políticas dos homens novos (Brasil Império: 1830-1889). Rio de Janeiro: Revan, 2016, p. 32. Cf. CRUZ, Eugeniusz. Justiça de Transição no Brasil: análise crítica da persecução penal dos agentes da ditadura militar. Curitiba: Juruá, 2015. Anexo 2, 3, 4 e 5 ‒ o quadro das referências bibliográficas em direito penal encontradas nos arquivos da Fundação Biblioteca Nacional (BN), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Pontifícia Universidade Católica (PUC) entre as décadas de 1920 e 1950. Cf. NEDER, Gizlene; com colaboração de Gisálio Cerqueira. Duas Margens: ideias jurídicas e sentimentos políticos no Brasil e em Portugal na passagem à modernidade. Rio de Janeiro: Revan/ Faperj, 2011, p. 17.


co: a procura pelas obras escritas de Roberto Lyra e aquelas outras que circulavam no campo intelectual jurídico envolvente. A jornada investigativa estava temporariamente inviabilizada não só pela falta de acesso aos dados, fontes e documentos, mas principalmente pela limitação das trocas intelectuais e dos debates com os professores e colegas do programa. Naquele momento, tinha em minha estante tão só quatro obras relacionadas ao objeto de pesquisa: (I) A expressão mais simples do Direito Penal (1953), (II) Comentários ao Código Penal ‒ vol. II (1958), (III) Criminologia (1964) e (IV) Direito Penal Normativo (1975). Priorizei os prefácios e logo encontrei a primeira pista, que muito me ajudou: o prólogo de Evaristo da Costa sobre a obra jurídica de Roberto Lyra19, onde foi possível mapear as suas principais publicações e conhecer um pouco mais sobre sua vida pessoal. Com o auxílio da internet, fiz um levantamento sobre o estado da arte das pesquisas sobre a vida e a obra de Roberto Lyra e outros integrantes da família. Encontrei importantes fontes no CPDOC-FGV, além do livro de Lopo Alegria, Assim foi Roberto Lyra (1984); a obra de Sophia A. Lyra, O maior e melhor dos Lyras (1973), que biografou seu próprio pai, Augusto Tavares de Lyra, e a dissertação de mestrado de Maria Anita Buthod, que biografou Sophia A. Lyra, intitulada Educação positivista e condição feminina no Brasil republicano. Os livros comprados pela internet demoraram muito para chegar no início da pandemia, em razão da justificada restrição dos serviços prestados pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Estas primeiras obras atrasaram aproximadamente sessenta dias até serem entregues, para não falar da angústia sobre a possibilidade de extravio. Nesse momento, a ideia era montar uma árvore genealógica da família Lyra para conseguir identificar os nomes citados, os cargos políticos ocupados e o grau de parentesco entre estes e o autor estudado. Tarefa enfadonha, mas com resultado satisfatório, que pode ser consultado no anexo nº 1 da tese. Durante a pandemia, para otimizar a pesquisa, realizei entrevistas semiestruturadas20 com os professores Nilo Batista e José Geraldo de Sousa Junior. Aquele, ex-aluno do próprio Roberto Lyra, e este, discípulo e amigo de Roberto Lyra Filho. As entrevistas revelaram dados inéditos e confirmaram outras informações. Em 2021, a entrega de livros comprados pela internet voltou à normalidade. Passei, posteriormente, a explorar as influências intelectuais, as subjetividades e os sentimentos de cunho religioso que marcaram a vida, a formação e a obra do intelectual. Debrucei-me, igualmente, sobre a sua trajetória acadêmica 19 20

LIRA, Roberto. Criminologia. São Paulo: Companhia Editora Forense, 1964, p. 11-32. XAVIER, José Roberto Franco. Algumas notas sobre entrevista qualitativa de pesquisa. In: MACHADO, Maíra Rocha. Pesquisar empiricamente o Direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017, p. 119-160.

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na Universidade do Distrito Federal (UDF), pois interessava estudar a perspectiva do ensino na UDF, criada em 1935, na perspectiva epistemológica de Anísio Teixeira, que visava dar ampla autonomia técnica, administrativa e econômica às universidades, com o propósito de livrá-las das eventuais pressões políticas, sob a concepção de núcleos de ensino independentes e desvinculados de interesses eleitoreiros21. Desde julho de 2020, início da pandemia (Covid-19), troquei e-mails com a bibliotecária-chefe da UERJ, Ana Clara Brandão, que sempre se mostrou atenciosa e disponível, principalmente depois de ser informada sobre o meu objeto de pesquisa. Em outras palavras, ela sabia da importância de Roberto Lyra para o acervo da UERJ. Explicou-me, então, os caminhos para realizar buscas e identificar referências bibliográficas on-line através da Rede Sirius de bibliotecas daquela instituição. Estava relativamente apreensivo em relação às pesquisas naquele acervo, pois tinha a informação de que Gizlene Neder havia acompanhado a ida de Sophia Lyra Tavares à UERJ a fim de realizar a mudança do acervo pessoal de Roberto Lyra, após o seu falecimento, para aquele centro de estudos. Trata-se da Coleção Especial Roberto Lyra, que estaria disponível na seção de obras raras. Para mim seria disponibilizada toda a produção lyriana, ou seja, artigos, livros, revistas acadêmicas, escritos publicados em jornais e revistas, de grande valia para a minha jornada. Após quase dois anos de troca de e-mails com a chefe do acervo bibliográfico da UERJ, em março de 2022, no caminho final para realizar acertos e sugestões na tese em fase de acabamento, as bibliotecas públicas voltaram a funcionar, com visitações e consultas ao acervo realizadas mediante procedimento burocrático de agendamento. Marquei prontamente visitas às bibliotecas do IAB e da UERJ. Na primeira, encontrei livros que não conseguira adquirir pela internet, e nesta, finalmente, agendei a tão esperada visita à Coleção Especial Roberto Lyra. Com relativa frustração, constatei que lá estavam inúmeros livros do acervo pessoal de Lyra que não versavam propriamente sobre temas criminais. Encontrei centenas de livros de direito internacional, direito civil, processo civil, direito constitucional, direito administrativo e, evidentemente, outros sobre matéria penal. Mas não havia, como imaginado, todas as suas obras completas. Registre-se que este acervo não é catalogado, contudo, está aberto a visitação para leitura e pesquisas. Encontrei muitos livros de Roberto Lyra que foram relacionados por mim no capítulo 3.6 da tese. Naquele momento, tive acesso a muitos novos dados e documentos para serem incluídos em uma pesquisa que já estava em via de conclusão. Era impos21

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FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015, p. 287-290.


sível ignorar as novas fontes e informações aos meus escritos, ainda que aquilo representasse algum risco em termos de prazo. Trabalhei intensamente, dentro de minhas possibilidades, para incluir todos aqueles novos dados nos capítulos já escritos. No dia 1º de junho de 2022, minha avó paterna (Haydeé Sylvia Lima Lopes da Cruz) faleceu, com 101 anos de idade. Nascida em 7 de julho de 1920, ela foi para mim, durante a pesquisa, uma aproximada referência de idade em relação a Roberto Lyra Filho, nascido em 1926. Por que isto faria alguma diferença para a minha pesquisa? Passo a explicar: na cerimônia de cremação, encontrei-me com vários primos, muitos deles que não avistava havia muito tempo. Através de conversas informais, comentei sobre a minha tese que seria defendida ainda no ano de 2022. Para minha surpresa, Márcio Silveira Lemgruber (marido de minha prima Maria José Hena de Souza Lemgruber) fora aluno de Roberto Lyra e frequentador de sua casa, ou seja, do ambiente reservado da família. Certamente eu não poderia relevar as informações que com ele pudessem ser obtidas. Na semana seguinte, realizei às pressas a derradeira entrevista, sem contar para Gizlene Neder, que provavelmente ficaria preocupada com o prazo para o depósito da tese. A entrevista revelou dados inéditos da intimidade do ambiente familiar, além de confirmar as visitas que o professor Lyra recebia de seus alunos em sua própria casa. Isso foi importante para rever toda a parte já escrita do trabalho, voltada à atuação de Roberto Lyra como profissional da educação, que o levou ao gabinete de Brochado da Rocha, onde tomou posse como ministro da Educação no governo João Goulart. Ao investigar a docência do agente histórico aqui estudado, deparei com uma das perguntas que este sempre fazia aos seus alunos: “qual o seu crime? Quais penas em que já incorreu?”22. Roberto Lyra, certamente, não estava a investigar a vida particular de seus alunos, mas fazia esse tipo de provocação para saber o que muitos criminalistas não revelam em seus trabalhos científicos. O que levou essas pessoas a se interessarem pela área criminal? Paralelamente, meu coorientador Gisálio Cerqueira Filho recomendou a leitura de Christopher Bollas, psicanalista e escritor britânico. Bollas23 não se exime em seus trabalhos escritos de citar trechos de relevância sobre sua própria vida que dialoguem com o tema abordado. Ele desenvolve a liberdade essencial de sermos a nossa própria fonte de descobertas e experiências. 22 23

LYRA, Roberto. Como Estudar a Parte Especial do Direito Penal. Publicações da Sociedade Brasileira de Criminologia. Coleção Tobias Barreto nº 3. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 4-5. Cf. BOLLAS, Christopher. Sendo um Personagem. Rio de Janeiro: Ed. Revinter, 1998.

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Respondendo à provocação de Roberto Lyra, na esteira de Bollas, passo a tecer algumas considerações sobre a relação entre o sujeito pesquisador e o sujeito pesquisado. Nasci e fui criado na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Estudei num prestigiado colégio católico da antiga capital brasileira que até hoje, em pleno século XXI, não admite meninas em seus quadros discentes. Não fui um bom aluno. De lá saí e passei por outros colégios da cidade até completar o ensino médio. Somente me encontraria nos estudos na faculdade de Direito, movido pelo desejo de estudar disciplinas relacionadas à área criminal. Mas por quê? Para mim, após mais de dez anos de divã, a resposta começa a se desenhar. Sempre tive, sobretudo durante a adolescência, em minha subjetividade, o sentimento que deu título ao livro de Vera Malaguti Batista, O medo na cidade do Rio de Janeiro. Meu imaginário, constituído em parte pelas imagens do filme de Héctor Babenco – Pixote, a lei do mais fraco ‒, e pelas notícias sensacionalistas de episódios violentos exibidos no horário nobre dos telejornais, sempre me trouxe a sensação de temor. O longa-metragem de Babenco gira em torno do personagem Pixote, um menino recrutado para realizar assaltos e tráfico de drogas, depois de sua fuga de um reformatório para crianças e adolescentes que praticavam atos infracionais. O personagem representava o “perigo” cultivado e reafirmado pela grande mídia como “inimigo” da sociedade. Eram os tão temidos pivetes, que representavam, em minha visão ideologizada, um perigo não muito bem explicado. Algo percebido por mim, naquele tempo, como alguém que poderia expropriar bens de consumo ou tirar a vida de alguém, inclusive a minha. A grande questão para mim era: como me defender daquela forma de perigo iminente? Como fazer para tornar o inimigo um amigo/conhecido? Como integrá-lo ao meu círculo de sociabilidade social? A solução no início de minha adolescência era para lá de complexa, mas, com o passar dos anos, foi se elucidando. Era preciso fazer parte, conhecer os integrantes do “outro lado” da cidade partida (entre o cartão-postal e as favelas). Fui criado jogando bola na rua com outros meninos de classe média e os filhos dos porteiros dos prédios da vizinhança, muitos deles até hoje grandes amigos. Para explicar a dinâmica social, os filhos de porteiros podem ser compreendidos como integrantes de uma classe intermediária entre a média e as marginalizadas. Eram meninos/adolescentes que circulavam nos apartamentos de classe média (pois tinham amizades com os integrantes desta) e entre os moradores de comunidades carentes. A explicação está no fato de que eles (filhos de porteiros) não estudavam nos colégios particulares dos amigos socialmente privilegiados, mas sim na rede pública de ensino frequentada pelos considerados “indesejáveis” (moradores de favelas). Assim ficava estabelecida uma possível conexão que representaria uma espécie de aliança com aqueles que outrora representavam o perigo. 20


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