1_9786559086801

Page 1


Sebastian Scheerer

Temas Contemporâneos da Criminologia: Abolicionismo Penal, Política Sobre Drogas e Controle Social


Copyright© Tirant lo Blanch Brasil Editor Responsável: Aline Gostinski Assistente Editorial: Izabela Eid Diagramação e Capa: Jéssica Razia CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México Juarez Tavares Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil Luis López Guerra Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha Owen M. Fiss Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA Tomás S. Vives Antón Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

S336

Scheerer, Sebastian Temas contemporâneos da criminologia : abolicionismo penal, política sobre drogas e controle social [livro eletrônico] / Sebastian Scheerer; Luiza Borges Terra, Renato Gomes, Ricardo Genelhú (org.); Juarez Cirino dos Santos, Juarez Tavares (coord.); Amós Caldeira (trad.)...[et al.]. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2024. 2.329Kb; livro digital ISBN: 978-65-5908-680-1. 1. Criminologia. 2. Abolicionismo penal. 3. Controle social. 4. Política de drogas. I. Título. CDU: 343.9 Bibliotecária responsável: Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch. Fone: 11 2894 7330 / Email: editoratirantbrasil@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/ Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Sebastian Scheerer

Temas Contemporâneos da Criminologia: Abolicionismo Penal, Política Sobre Drogas e Controle Social Coordenadores

Juarez Cirino dos Santos Juarez Tavares Organizadores

Luiza Borges Terra Renato Gomes Ricardo Genelhú

Tradutores

Amós Caldeira | Chiavelli Falavigno | Deangelis Lacerda | Elizangela Pantoja Jacson Zilio | June Cirino dos Santos | Lucas Groth | Marcos Reis | Marlon Hungaro Nikola Ecks | Patrick Souto | Raphael Boldt | Renato Gomes | Ricardo Genelhú Ricardo Krug | Roberta Pedrinha | Vinicius Fonseca Revisores

Amós Caldeira | Gilberto Bessa | Juarez Tavares Renata Guadagnin | Renato Gomes | Ricardo Genelhú


Sumário Apresentação à edição brasileira........................................................................ 9 Sebastian Scheerer

Apresentação.................................................................................................... 10 Juarez Cirino dos Santos

Apresentação.................................................................................................... 14 Juarez Tavares

1. Teoria da criminalidade............................................................................... 15 1.1. Nível macro: criminalidade como definição................................................................ 17 1.1.1. Riscos para a ordem social..................................................................................... 17 1.1.2. Controle social...................................................................................................... 19 1.1.3. Conceitos de criminalidade................................................................................... 20 1.2. Nível micro: criminalidade como ação....................................................................... 22 1.2.1. O caminho para a criminalidade........................................................................... 24 1.2.2. Criminalidade como acontecimento..................................................................... 26 1.2.3. Produzindo o criminoso........................................................................................ 27 1.3. Nível macro: criminalidade como instituição............................................................. 29 1.3.1. Ambientes, quadrilhas, mercados.......................................................................... 30 1.3.2. A construção da estatística.................................................................................... 31 1.3.3. Discursos sobre criminalidade............................................................................... 33 1.3.4. Criminalidade como ideologia: funções dos mitos cotidianos................................ 36

2. Controle social: defesa e reformulação de um conceito básico. ................. 40 2.1. Um conceito muito criticado..................................................................................... 40 2.1.1. Vagueza................................................................................................................. 40 2.1.2. Stasis..................................................................................................................... 42 2.1.3. O viés estatal e legal.............................................................................................. 43 2.1.4. Eufemismo........................................................................................................... 45 2.1.5. Uso desleixado...................................................................................................... 45 2.2. ...Mas, não obstante, um conceito central.................................................................. 46 2.3. Tipos, limites e ironias do controle social................................................................... 49 2.3.1. A necessidade básica por controle social................................................................ 49 2.3.2. Controle proativo: a construção da conformidade................................................. 50 2.3.3. Buracos na rede: liberdade individual e mudança social......................................... 53 2.3.4. Reações ao delito: regras informais, formais e de sanção........................................ 56 2.3.5. Ironias do controle social...................................................................................... 60 2.4. Tendências no final do milênio................................................................................... 62


2.4.1. O entorpecimento do controle.............................................................................. 63 2.4.2. Socialização: o nascimento do “dividual”?............................................................. 65 2.4.3. Tecnoprevenção e controle por consenso............................................................... 66 2.4.4. Privatização, mercantilização e expansão............................................................... 69 2.4.5. Limites ao lazer e ao prazer: sobre a normalização e a brutalização........................ 71 2.5. Conclusão.................................................................................................................. 73

3. O delinquente enquanto categoria de conhecimento em declínio............... 75 3.1. Introdução................................................................................................................. 75 3.2. História...................................................................................................................... 76 3.2.1. O primeiro estágio: as internações pré–categóricas (Século XVI – metade do Século XVIII)................................................................................................................. 76 3.3. Categorizando o delinquente...................................................................................... 77 3.3.1. O segundo estágio: as demandas categóricas (1791 – 1826).................................. 77 3.3.2. O terceiro estágio: a ascensão do ideal de solitária (1827 – 45).............................. 78 3.3.3. O quarto estágio: a dominação ideológica (1846 – 68)......................................... 79 3.3.4. A primeira fase do declínio: 1870 – 1945............................................................. 80 3.3.5. A segunda fase do declínio: 1946 – 77.................................................................. 81 3.3.6. A terceira fase do declínio: 1978 – 96................................................................... 82 3.4. Tendências................................................................................................................. 83 3.4.1. A primeira tendência: a socialização e o nascimento do “divíduo”......................... 83 3.4.2. A segunda tendência: mercantilização como meio de controle............................... 84 3.4.3. A terceira tendência: a mercantilização da segurança............................................. 85 3.4.4. A quarta tendência: do controle de indivíduos ao controle de situações................. 86 3.4.5. A quinta tendência: do controle reativo, concentrado e declarado ao controle ativo, dissipado e secreto................................................................................................. 86 3.5. O futuro do delinquente enquanto uma categoria de conhecimento.......................... 88 3.6. Evidência contraditória.............................................................................................. 90 3.7. Discussão................................................................................................................... 93

4. A pena criminal como herança cultural da humanidade?............................. 94 4.1. Um risco.................................................................................................................... 94 4.2. O mito da universalidade........................................................................................... 95 4.3. Utilidade e desvantagem do mito............................................................................... 96 4.4. O dilema da ciência do direito penal.......................................................................... 98 4.5. Tarefas inacabadas...................................................................................................... 99 4.6. Crítica da razão punitiva.......................................................................................... 101

5. A função social do direito penal................................................................ 103 5.1. Introdução............................................................................................................... 103 5.2. Esperanças frustradas............................................................................................... 105 5.2.1. Expansão em vez de limitação............................................................................. 105 5.2.2. Paternalismo em vez de liberalidade.................................................................... 107


5.2.3. A “nova honestidade”: identidade em vez de diferença........................................ 107 5.3. Despedida do direito penal....................................................................................... 110 5.3.1. O direito penal é eterno?..................................................................................... 110 5.3.2. O estado deve necessariamente existir?................................................................ 112

6. A punição deve existir! Deve existir o direito penal?.................................. 114 7. Abolicionismo............................................................................................. 122 7.1. Abolição................................................................................................................... 123 7.2. Movimentos abolicionistas....................................................................................... 124 7.2.1. O movimento contra a escravidão....................................................................... 125 7.2.2. O movimento contra a regulamentação da prostituição...................................... 126 7.2.3. O movimento contra as prisões........................................................................... 128 7.3. A perspectiva abolicionista....................................................................................... 130 7.3.1. O nível da política criminal................................................................................ 130 7.3.1.1. A estratégia de negação.................................................................................. 131 7.3.1.2. Crítica do ladeamento (diversion)................................................................... 132 7.3.2. O nível da teoria do delito.................................................................................. 134 7.3.2.1. Crítica da prevenção especial......................................................................... 135 7.3.2.2. Crítica da prevenção geral.............................................................................. 136 7.3.2.3. Crítica das teorias absolutas........................................................................... 138 7.3.2.4. A subsidiariedade do direito penal................................................................. 139 7.3.2.5. O direito penal como problema social........................................................... 140 7.3.3. O nível da teoria do delito.................................................................................. 141 7.3.3.1. Para uma crítica do abolicionismo................................................................. 142

8. A perspectiva abolicionista......................................................................... 145 8.1. Introdução............................................................................................................... 145 8.2. Relembrando a vitória do abolicionismo.................................................................. 146 8.3. Movimento, teoria, método..................................................................................... 150 8.4. Política criminal como crítica: o princípio mefistofélico........................................... 154 8.5. A concepção do ser humano e o estado de natureza.................................................. 155 8.6. O abolicionismo e a chamada ordem social moderna............................................... 158

9. Rumo ao abolicionismo............................................................................... 163 9.1. Introdução............................................................................................................... 163 9.2. Memórias das vitórias abolicionistas no passado....................................................... 165 9.3. O abolicionismo como movimento social e como perspectiva teórica....................... 167 9.3.1. O(s) movimento(s) abolicionistas........................................................................ 167 9.3.2. A perspectiva abolicionista.................................................................................. 167 9.4. O abolicionismo e suas críticas................................................................................. 170 9.4.1. A crítica de negatividade..................................................................................... 170 9.4.2. A crítica do fundamento antropológico do abolicionismo................................... 172


9.4.3. A crítica sociológica............................................................................................ 174 9.5. Observações sobre a situação atual do abolicionismo................................................ 177

10. Abolição das prisões................................................................................. 179 10.1. Verão de 1969........................................................................................................ 179 10.2. Do discurso de reforma à busca pela abolição......................................................... 180 10.3. Boa notícia para todos aqueles que desejam rechaçar as prisões............................... 183 10.4. Uma questão de perspectiva................................................................................... 185 10.5. Conclusão.............................................................................................................. 186

11. O direito à intoxicação e risco. ............................................................... 188 11.1. Política de drogas: o último bastião da economia planificada.................................. 188 11.2. Consumo de drogas como normal.......................................................................... 190 11.3. Para uma cultura de drogas mais civilizada............................................................. 191

12. O circuito amplificador político–publicístico: a respeito da influência dos meios de comunicação de massa no processo de gênese da norma jurídico– penal............................................................................................................... 193 13. Mitos e mítodos. ...................................................................................... 198 13.1. Arqueologia dos serialkillers.................................................................................... 199 13.2. Sobre o simbolismo social dos assassinos em série................................................... 201 13.3. Afinidades de escolha (wahlverwandtschaften)......................................................... 204 13.3.1. Morte do social................................................................................................. 206 13.3.2. Estado reduzido................................................................................................ 207 13.3.3. Do motivo à probabilidade............................................................................... 207 13.3.4. Sociedade do espetáculo.................................................................................... 207 13.4. Perfilamento como mitídico................................................................................... 207

14. Terapia de vício e consumo controlado de opiatos e cocaína/crack........ 212 14.1. Introdução............................................................................................................. 212 14.2. Qualidade e quantidade do consumo controlado.................................................... 214 14.3. Discussão/conclusão............................................................................................... 215

15. Terror...................................................................................................... 218 16. Desvantagens e utilidades da criminologia crítica em tempos de terrorismo...................................................................................................... 222 16.1. Criminologia: uma ciência inútil (ou tornada inútil)?............................................. 222 16.2. Potenciais não utilizados da criminologia crítica..................................................... 223 16.3. Esforços para uma análise crítico–criminológica do terrorismo............................... 226

Referências bibliográficas.............................................................................. 229


Apresentação à edição brasileira Este livro é o produto de um idealismo inacreditável de tantos coordenadores, organizadores, tradutores e revisores do lado brasileiro que eu espero transmitir minha profunda gratidão a cada um deles pessoalmente. Por enquanto, só posso fazê–lo por escrito. Em primeiro lugar estão Luiza Borges Terra, Renato Gomes e Ricardo Genelhú, que tiveram a ideia de transportar alguns dos meus textos para o outro lado do mundo, conseguindo conquistar, inclusive, dois dos mais eminentes especialistas da nossa área para ativamente participarem desta Aventura: os grandes e admiráveis Juarez Cirino dos Santos (de Curitiba) e Juarez Tavares (do Rio de Janeiro). É simplesmente inacreditável a quantidade de colegas adoráveis que passaram semanas e meses com um trabalho complicadíssimo, traduzindo por vezes textos bastante teutônicos. As repetidas conversas (e muitas cervejas) com Amós Caldeira, Marlon Hungaro e Ricardo Genelhú trouxeram–me tanto quanto as ocasionais sopinhas Dhal na Holstenstrasse de Hamburgo com Chiavelli Falavigno, e os contatos enriquecedores com Gilberto Bessa, Jacson Zilio, June Cirino dos Santos e, claro – por último, mas não menos importante –, com meus grandes jovens colegas Raphael Boldt e Ricardo Krug. Agradecemos também as habilidades de tradução de Deangelis Lacerda, Elizangela Pantoja, Lucas Groth, Marco Reis, Nikola Ecks, Patrick Souto, Roberta Pedrinha e Vinícius Fonseca. Amós e Gilberto (mais uma vez), Juarez Tavares, Renata Guadagnin, Renato Gomes e – é claro –, o incansável Ricardo Genelhú atuaram (também) como revisores. Que trabalho, que amabilidade! Gostaria de dedicar este livro a todos os meus verdadeiros professores, mentores e heróis no passado e no presente, na família e entre os meus colegas, mas, sobretudo, a Dalva (in memoriam), Leonardo, Henner, Ann–Kathrin e Connie. Sebastian Scheerer

9


Apresentação 1. Muitos estudantes e profissionais do sistema penal já ouviram o Professor Doutor Sebastian Scheerer, da Universidade de Hamburg, Alemanha, em congressos, seminários e entrevistas no Brasil, e ficaram encantados não só com o brilho das palestras, mas com o português perfeito, falado com humor brasileiro e sotaque baiano por esse grande crítico do sistema de justiça criminal e do Estado neoliberal contemporâneo – talvez o mais brasileiro de todos os professores alemães da atualidade. Em geral, professores alemães falam inglês e/ou francês, muitos também falam italiano e espanhol, mas não conheço ninguém que fale português – e, menos ainda, com a pronúncia sonora dos brasileiros. O que mais impressiona nesse grande pensador dos problemas da criminalidade e do controle social nas sociedades globalizadas é a amplitude de sua formação humanística, filosófica e científica. A vasta área de conhecimento objeto de permanente interesse e do estimulante percurso intelectual da juventude acadêmica de Sebastian Scheerer pode ser assim resumida: a) Direito nas Universidades de Köln (1969–70), de Genève (1970–71) e de Münster (1971–73); b) Educação na Universidade de Münster (1973–79); c) Sociologia na Universidade de Münster (1973–75); d) Doutorado em Direito na Universidade de Bremen, em 1981 (summa cum laude); e) Pós–doutorado em Sociologia na Universidade de Frankfurt a. M., em 1988. Esse breve histórico curricular é suficiente para explicar a extensão do cenário de pesquisas e a multiplicidade de enfoques teóricos empregados no estudo dos problemas do mundo real – a razão de ser da pesquisa científica, em geral. 2. A carreira acadêmica desse extraordinário cientista social pode ser sintetizada em duas grandes fases: a) uma fase preliminar e transitória, como assistente acadêmico e professor interino ou professor assistente em várias universidades: em Münster (Criminologia, de 1975–78), em Frankfurt (Sociologia, de 1978–81), em Bremen (Ressocialização e Reabilitação, de 1981–82) e, novamente em Frankfurt (Sociologia, 1982–88); b) a fase principal e definitiva, como Professor Titular da Universidade de Hamburg, onde foi (i) professor de Criminologia, entre 1988–2014, (ii) Diretor do Instituto de Pesquisa Social, entre 1995–2014 e (iii) atual Codiretor do Grupo de Trabalho em Reabilitação e Prevenção, de 2013 em diante. Considerando apenas a fase principal da Universidade de Hamburg, pode– se destacar alguns temas significativos de concentração do trabalho acadêmico de Sebastian Scheerer. Assim, nos primeiros 12 anos da Faculdade de Direito (entre 1988 e 2000), além de cursos de Criminologia e de Controle Social, o tema 10


principal de suas pesquisas parece ter sido o Direito Penal de drogas, estudado com ênfase na perspectiva abolicionista. Nesse período, a primeira publicação do autor (O Abuso de drogas, 1977) parece ter descoberto um filão promissor, porque os 13 trabalhos posteriores, publicados até o final do século, tiveram por objeto o mesmo tema das drogas, analisado em todas as perspectivas possíveis – exceto três ou quatro artigos sobre sociologia criminal, terrorismo e abolicionismo. Sem dúvida, a concentração do cientista na questão das drogas explica porque Sebastian Scheerer é considerado hoje, pelos especialistas da área, uma das maiores autoridades mundiais sobre drogas: natureza, efeitos, tráfico, legislação, políticas de controle e o bárbaro genocídio produzido pelas políticas repressivas – nada escapou à sua percepção aguda. Essa reflexão também explica a convicção do ilustre professor, comunicada em todas as manifestações públicas: a descriminalização ou a legalização da produção, comércio e consumo de drogas é a única alternativa saudável e possível para as drogas proibidas, acompanhando a sorte das drogas legais, como o álcool, o fumo e outros estimulantes outrora proibidos, que deixaram de ser um problema social. Uma de suas teses sobre a guerra às drogas diz: na base do mercado da droga estão determinações econômicas de oferta e de procura – e não se pode revogar uma lei econômica com metralhadoras. Por outro lado, na Faculdade de Ciências Sociais promoveu cursos de Política de segurança, de Criminologia, de Terrorismo e policiamento global, de Crítica da razão punitiva, entre 2001 e 2014. Nesse período de produção teórica é possível registrar abordagens científicas ou tendências intelectuais dominantes no psiquismo desse grande professor/pesquisador: durante os últimos 19 anos de vida acadêmica, o tema principal de suas pesquisas parece ter se deslocado para algumas questões políticas e sociológicas do controle social, com destaque para o fenômeno do terrorismo. Mas estamos falando apenas dos temas principais de pesquisa, porque não é possível discutir o sistema jurídico sem mostrar como esse sistema se realiza nas relações sociais; e não é possível falar das relações sociais, senão como produto das regras jurídicas e do poder político do Estado capitalista. Em outras palavras: o autor jamais perde de vista a relação entre o direito legislado, como sistema jurídico/político de controle social, e a experiência histórica das relações sociais reais, como expressões concretas das relações políticas de poder do Estado capitalista neoliberal. 3. Em síntese, como se infere do curriculum vitae do autor, nos anos 2000 as preocupações acadêmicas do pesquisador transitam ainda por questões gerais do Direito Penal (o bem jurídico, a pena criminal, a razão punitiva) e da Criminologia (teoria e história da criminalidade, a perspectiva abolicionista) mas, em sintonia com o trabalho orientado para as Ciências Sociais, os grandes temas do terrorismo (estudos sobre o terror, o futuro do terrorismo, ou mesmo a possibilidade de negociar com o terrorista) e das drogas (direito de uso, terapia e contro11


le) assumem posição privilegiada – na verdade, as duas grandes preocupações do Estado neoliberal contemporâneo, que colocam face a face o cidadão e o poder do Estado, na dialética sociopolítica contraditória de necessidade de respeito aos direitos humanos e das políticas estatais de segurança pública. Como se vê, produção e publicações desse brilhante professor, originalmente em alemão, mas também em inglês, espanhol e português, abrangem as áreas da teoria do crime e do controle social, da crítica da razão punitiva (uma constante nas reflexões do autor), da sociologia dos movimentos sociais, do terrorismo e da legislação antiterror, do controle internacional de narcóticos, da legislação e políticas de drogas, incluindo, atualmente, a crise crescente da democracia liberal globalizada e o problema universal da polícia transgressora, ou seja, da violência do Estado na relação polícia/cidadão. 4. As intervenções práticas de Sebastian Scheerer no processo de discussão das questões criminológicas e político–criminais brasileiras têm sido relevantes. Assim, o notável curso sobre Tendências globais atuais em teoria criminológica, sociologia jurídica e sistema penal, apresentado no Curso de Pós–graduação do ICPC/Instituto de Criminologia e Política Criminal, entre 18 de outubro e 17 de novembro de 2017 – talvez o mais completo curso ministrado por Sebastian Scheerer no Brasil. Somente um intelectual com formação enciclopédica poderia ousar construções teóricas universais, que vincula a Criminologia como teoria explicativa da criminalidade e do funcionamento do sistema penal, a sociologia jurídica como pesquisa das tendências globais da legislação penal e a política criminal como discussão crítica das teorias penais, examinadas nas linhas de Günter Jakobs e a teoria da prevenção/integração, de Sandro Baratta e a proposta do Direito penal mínimo e de Louk Hulsman e o abolicionismo penal. Além da informação atualizada do processo mundial de controle social, apresentou os modelos de reformas administrativas e estratégicas da Polícia – essa organização com licença oficial para violência; o presente e o futuro da prisão – e as sanções alternativas; o terrorismo, como problema criminológico, penal e político internacional; e a guerra às drogas, com as alternativas político–criminais urgentes ao genocídio legal de jovens negros pobres. 5. Um dos mais relevantes papéis desse grande professor para o desenvolvimento da Criminologia, da Política criminal e da ciência crítica do Sistema de Justiça Criminal no Brasil tem sido a longa e dedicada contribuição para a formação acadêmica de professores e pesquisadores da Universidade brasileira – por exemplo, Maurício Dieter (USP), Raphael Boldt (FDV/ES) e Ricardo Genelhú (FUCAPE) são alguns dos brilhantes professores brasileiros de Criminologia e de Direito Penal que cumpriram programas de Pós–doutorado na Universidade de Hamburg, sob a simpática e eficiente orientação de Sebastian Scheerer. O reconhecimento acadêmico do trabalho científico no Brasil é demonstrado pela 12


posição oficial de Professor Visitante da Universidade de São Paulo/USP – a exemplo do que ocorre também na Espanha (Oñati e Sevilla), na Itália (Padova) outros países. 6. Como o leitor já percebeu, estamos falando do autor, e não dos textos publicados no livro. Mas os textos escolhidos para publicação no livro (12 traduzidos do alemão e 2 traduzidos do inglês) são representativos de alguns dos eixos temáticos preferidos do autor, destacando (i) o controle social e a função do direito penal, (ii) as explicações da criminalidade e o conceito de delinquente, (iii) o questionamento da pena – afinal, precisa existir? (iv) o abolicionismo penal: o que, porque e como abolir a pena e (v) a questão das drogas: direito de uso, terapia, controle e descriminalização. 7. Finalmente, duas palavras sobre a personalidade extraordinária de Sebastian Scheerer: no âmbito das emoções ou sentimentos pessoais, é um ser humano extremamente afetuoso, alegre, comunicativo, cuja presença costuma criar uma atmosfera de empatia irresistível nos espaços sociais em que circulam no âmbito da atividade intelectual, se pretendêssemos definir a radicalidade e a sofisticação do pensamento crítico produzido por seus neurônios privilegiados, utilizaríamos uma ideia apresentada neste livro, no final do texto A pena criminal como herança da humanidade?, que propõe esta bela utopia: “Mas a necessidade e, com isto, também a legitimação da pena, na realidade, ainda precisa ser comprovada – de forma autocrítica, sem limitações e subalternidade; aspirando refutação. E isso significa: por meio de uma crítica da razão punitiva, olhar para uma ética de não punir.” E está dito tudo. Foi uma honra inexcedível apresentar aos estudantes e profissionais brasileiros do sistema penal a pessoa do autor dos artigos publicados neste livro, nosso amigo, mestre e parceiro de lutas Sebastian Scheerer. Rio de Janeiro/Curitiba, janeiro de 2020. Juarez Cirino dos Santos

13


Apresentação É com grande satisfação que tomo a liberdade de apresentar ao público brasileiro essa coletânea de trabalhos do amigo e destacado Professor Doutor Sebastian Scheerer, catedrático da Universidade de Hamburgo. Conheci Sebastian Scheerer há alguns anos, quando tive a felicidade de passar uma temporada na Universidade de Frankfurt am Main, juntamente com o saudoso e pranteado Professor Doutor e Vice–Presidente da Corte Constitucional da Alemanha, Winfried Hassemer. Depois, esteve ele em Curitiba, a convite do estimado amigo Juarez Cirino dos Santos, e ali pudemos sentir as mesmas preocupações quanto aos objetivos e fins do direito penal. Sebastian Scheerer sempre se destacou por sua postura crítica em face do poder punitivo, mostrando suas artimanhas, sua seletividade, seus objetivos ocultos, sua irracionalidade e principalmente sua capacidade extraordinária de produzir uma desagregação da personalidade humana para sedimentar e fortalecer as estruturas sociais desiguais e injustas. Ao contrário dos livros que, em geral, tratam da criminologia, os quais se dedicam, praticamente, a explicar as diversas escolas e tendências, que é também uma forma de saber, esta coletânea encerra trabalhos que podem despertar uma visão mais crítica da criminalização de condutas. O direito penal não é uma ciência neutra, é um fenômeno político que se manifesta por meio de normas cogentes e abstratas. Com isso, torna–se muito difícil compreender como essas normas, que aparentemente são editadas para proteger a sociedade, constituem no fundo um poderoso instrumento de poder. Como explica Scheerer, nenhuma atividade jurídica é dotada de pureza de objetivos e intenções. Sebastian Scheerer, além de ser um exímio professor e um profundo pesquisador, é também um amigo do Brasil. Domina perfeitamente nosso idioma, conhece nossa realidade, compartilha de nossas incertezas e de nossos ideais, e está presente na formação de jovens professores brasileiros, muitos dos quais se formaram sob sua orientação e divulgam seu pensamento em todos os níveis do conhecimento. Feliz será o leitor que poderá desfrutar, em língua portuguesa, dessa grandiosa produção. Rio de Janeiro, janeiro de 2020. Juarez Tavares1 1

14

Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Professor Emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro


1. Teoria da criminalidade2 Na Criminologia, como em outras ciências, existem muitas teorias individuais sobre fenômenos específicos e áreas individuais do objeto geral. Mas a Criminologia tem dificuldade com a busca de uma teoria abrangente. Muitos criminólogos acham ilusório tal propósito, a começar pela própria ideia. Opinam que uma teoria geral fracassaria tanto pela incompatibilidade de princípios das premissas epistemológicas das atuais abordagens (da teoria da anomia à teoria do labeling ou etiquetamento) quanto pela impossibilidade de comparar os delitos passíveis de punição (do furto de loja ao genocídio). Alguns não veem nenhum problema nisso, porque de todo modo preferem a atual “fragmentação da Criminologia” (Ericson, Carriere 1996). No ceticismo pós–moderno em relação à “verdade”, “ciência” e “conhecimento objetivo”, que para eles não passam de mitos de uma “grande narrativa”, defendem o abandono de toda e qualquer “pretensão de cientificidade”, seja lá isso o que for, e pregam “revisões originais” para confrontar o discurso dominante sobre criminalidade e controle (cf. Kreissl 1996: 35; sobre o “discurso de substituição”, cf. Henry, Milovanovic 1996). Também não ajuda muito que as tais teorias gerais do crime (por exemplo, Gottfredson, Hirschi 1990) muitas vezes não cumpram o que prometem, por se limitarem, de modo totalmente convencional e decepcionante, à explicação da ação criminosa de uma perspectiva tão somente micro. No entanto, uma teoria que fizesse sentido ser chamada de “geral” teria que abranger, além da prática de delitos, as precondições e consequências da criminalidade como ação a ser analisada de uma perspectiva macro, desde o processo legislativo até o discurso sobre criminalidade. “A criminalidade da sociedade” (Krasmann 2003) versa sobre um complexo conjunto de atores e atos, instituições e movimentos, redes sociais e regras legais, relações de poder e conflitos, junto com sentimentos, imaginação, símbolos, discursos e histórias dos mais variados tipos (desde “O criminoso por desonra” de Schiller, passando pelo filme policial na TV, pelos depoimentos de testemunhas num processo penal, até o discurso científico da própria Criminologia), onde cada elemento só pode ser compreendido, finalmente, dentro do seu contexto e através dele. Uma teoria criminológica realmente geral, isto é, uma teoria cujo objetivo principal seja contribuir para uma melhor compreensão do fenômeno da criminalidade em seu conjunto, deveria, portanto, ser elaborada sempre de forma suficientemente ampla para ser capaz de levar em conta todos 2

Escrito em coautoria com Henner Hess, foi este artigo publicado originalmente em: Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie. Sonderheft 43: Kriminalsoziologie, editado por S. Karstedt/D. Oberwittler. 2004: 69–92. Tradução: Jacson Zilio; Marco Reis; Ricardo Krug. Revisão: Gilberto Bessa.

15


os fenômenos mencionados (em suma, todos aqueles que sejam relevantes para essa tarefa). Em vista do considerável alargamento do terreno a ser trabalhado pela disciplina (em comparação com as definições usuais do objeto da Criminologia e as pretensões explicativas das teorias do crime) impõe–se perguntar se ainda é possível, afinal, delimitar o objeto a ser explicado por uma teoria geral da criminalidade – e se sim, como? Para achar uma resposta a este problema (que se coloca não apenas para a Criminologia, mas similarmente para todos os projetos de uma teoria geral, por exemplo, teoria geral da arte ou da religião), é útil tomar consciência de que o que mantém juntos esses elementos heterogêneos não é senão a circunstância de que todos derivam seu significado social da categoria do crime. Todos os fenômenos que derivam o seu sentido social do crime constituem, tomados em conjunto, a província de significado da criminalidade – e as fronteiras dessa província de significado são também os limites do objeto de uma teoria da criminalidade verdadeiramente geral (Hess, Scheerer 1997, 1999). Muitas vezes, na prática, a questão de saber se devemos usar um modo de falar e pensar estruturalista, funcionalista ou conforme a teoria dos sistemas ou a teoria da ação para descrever e compreender a província de significado “criminalidade” transforma–se numa questão sobre a verdade (de um modelo teórico) ou decide–se de acordo com a suposta afinidade de um modelo com a ideologia “de esquerda” ou “de direita”, quando se trata, a rigor, apenas de uma questão de conveniência. Sob este aspecto, não é nenhum segredo que as abordagens holísticas têm ou pouco interesse ou muita dificuldade em lidar com fenômenos coletivos (por exemplo, índices de criminalidade) e ações individuais (por exemplo, a prática de um crime), enquanto os modelos baseados na teoria da ação, tais como o individualismo metodológico (Esser 1984), o construtivismo social (Berger, Luckmann 1970) ou o chamado modelo de explicação sociológica (Coleman 1990; Esser 1991; Esser 1999–2001) põem a interligação de fenômenos sociais no nível macro com processos do nível micro da ação individual (a interpretação da situação pelos atores formando o ponto de articulação entre ambos) no centro de suas considerações e justamente por isso são capazes de explicar de maneira convincente o surgimento de novos fenômenos sociais macro a partir da agregação (massiva) da ação individual3. 3

16

Nem podemos, ao estilo de Durkheim, explicar um fato social no nível macro mediante recurso a outro fato social no nível macro. Por exemplo, explicar um alto índice de criminalidade pelo alto índice de pobreza. Dessa forma, é possível, na melhor das hipóteses, detectar correlações, mas sem entender como e por que se produzem essas correlações. Só se podem compreender e explicar as relações entre as coisas quando se penetra nas interpretações das situações pelos atores, pela via do nível micro do agir individual. Portanto, a teoria informa também um mecanismo pelo qual um fenômeno social exerce um efeito sobre outro. Assim, por exemplo, se a pobreza aumenta em uma determinada região a taxa de criminalidade também aumenta, seja porque as pessoas não têm dinheiro para satisfazer seus desejos de maneira legal, seja porque as autoridades, temendo perturbações com o crescimento da pobreza, intensificam o controle, lançando luz sobre o campo escuro dos casos não notificados, ou ainda porque definem e processam mais ações como criminosas. Diferentemente das teorias correntes sobre criminalidade a nossa se interessa não apenas pelas causas, mas também pelas consequências do crime: quando o índice de criminalidade aumenta numa determinada região a pobreza geralmente aumenta também por falta de investimentos, perda de empregos, com os mais favorecidos deixando o lugar e pessoas pobres mudando–se para lá.


Por isso, assim como outros criminólogos que cultivam especial interesse em superar a divisão entre as perspectivas macro e micro nos estudos sobre desvio (Lüdemann, Ohlemacher 2002: 17 ss.), também consideramos particularmente adequada uma abordagem com a teoria da ação. E não só por causa da possibilidade de ligar os níveis macro e micro, mas também porque essa ligação facilita a adoção de um modelo de explicação genético, muito útil, muitas vezes, para um melhor entendimento – um modelo, enfim, que olha não apenas para os fatores operantes no momento em que ocorre um fenômeno, mas reconstrói todo fenômeno como resultado de um processo progressivo em cuja linha do tempo vão–se criando sempre novas (pré–)condições para outros desdobramentos mais adiante. Vale dizer: nada de determinismos e nada de ilusão de achar que seria possível prever o ponto final de um processo, bastasse conhecer as condições originais de partida! A seguir, delinearemos o modo pelo qual se poderia concretizar, do ponto de vista criminológico, os três passos do modelo em que os elementos individuais estão colocados não por adição, um ao lado do outro, e sim em um contexto geral interativo: Integramos afirmações sobre o surgimento original e cotidiano da categoria criminalidade com afirmações sobre o surgimento e desenvolvimento da ação criminosa e mostramos, por fim, como da ação criminosa de atores individuais, em interação com a ação dos controladores, surgem como resultado, por sua vez, novos fenômenos supraindividuais (mercados ilegais, estatísticas criminais, discursos sobre criminalidade e controle). Estes resultados reproduzem a realidade social geral, mas também sempre a modificam, alterando assim as condições de partida para a ação de futuros atores4.

1.1. Nível macro: criminalidade como definição 1.1.1. Riscos para a ordem social A forma de organização das relações que os indivíduos humanos estabelecem em seu confronto com a natureza e na comunicação entre si, isto é, a ordem social, é o fruto historicamente variável do fazer humano. Suas estruturas são produto da ação humana e se mantêm apenas pela ação humana, mesmo quando os homens as veem como algo estranho a eles, “poderes completamente estranhos”, (Marx, Engels) e como “faits sociaux” coisificados (Durkheim). A existência dessa ordem social ou de uma dada ordem social está sujeita a um duplo perigo, afora as ameaças de catástrofes naturais, guerras, epidemias ou coisas semelhantes. 4

O modelo é inicialmente concebido como uma pauta explicativa geral para toda a província de significado da criminalidade. Mas, também pode servir para organizar adequadamente a explicação de áreas específicas (por exemplo, sobre terrorismo: Hess et alii 1988).

17


A primeira é a liberdade biológica do ser humano como “animal não determinado” (Nietzsche) que no curso da evolução se distanciou do instinto, atingindo uma grande abertura de possibilidades de comportamento. Como as normas de comportamento que são necessárias à vida social e garantem a cooperação e as certezas da expectativa não são dadas por natureza, devem ser sugeridas e impostas de fora pela ordem social. (Gehlen 1940) No entanto, a mesma peculiaridade do homem que torna necessária a ordem social também possibilita ao homem transgredir essa ordem social. Assim, o indivíduo humano torna–se um risco para a ordem social em virtude da contradição indivíduo–sociedade (uma contradição que a sociedade, por mais que o indivíduo esteja imbuído dela, não consegue eliminar). No entanto, para a invenção original da categoria criminalidade (e a invenção do direito, com suas penalidades criminais, que define essa categoria) foi decisiva uma segunda contradição, a contradição entre dominantes e dominados. Enquanto a primeira contradição é universal, a segunda só surgiu no decorrer da evolução social. Nas sociedades acéfalas, que marcaram o período mais longo da história humana, não havia uma instância central que pudesse dizer com autoridade coercitiva o que era certo e o que era errado. Como todos os membros de uma horda ou tribo estavam, em princípio, em pé de igualdade, a ordem do mundo social passou a ser considerada muito ameaçada, sobretudo quando indivíduos quiseram obter acesso privilegiado a recursos e poder sobre outras pessoas ou até mesmo institucionalizar esses privilégios (por sucessão hereditária). Foi somente a partir do ponto da evolução social em que os conflitos por bens e posições deixaram de ser regulados no interesse de todos e alguns membros da sociedade conseguiram romper os controles anteriores e obter posições privilegiadas, ou seja, quando nasceu a dominação, politicamente, como poder institucionalizado, e economicamente, como poder de senhorio sobre os meios econômicos decisivos, que se produziu aquela mudança drástica dos conflitos e da resolução de conflitos, dando origem aos fenômenos direito (entendido como normas garantidas por varas de coerção), crime (entendido como violações de tais normas legais) e penalidades criminais (como sanção de crimes). Tanto o que era considerado um conflito grave como o modo de impor sanções mudaram completamente. Enquanto nas sociedades acefálicas tais atos eram considerados ameaças essenciais à ordem social, contra os princípios da igualdade e da reciprocidade, agora passam a ser dirigidos contra a posição privilegiada dos detentores do poder. Daí em diante a própria ordem social começou a gerar conflitos de interesse que resultavam em riscos à continuidade da ordem (Hess, Stehr 1987). Mais tarde, em parte muito mais tarde, historicamente falando, as instâncias de dominação tomaram para si também a regulação e a punição de ações resultantes da contradição indivíduo–sociedade, de conflitos entre os súditos, concorrência, propriedade privada, mercantilização 18


de bens etc. Ao monopólio da normatização juntou–se um monopólio de sanções de amplo alcance que, por sua vez, resultou em fortalecer e legitimar a dominação. Em torno do crime de lesa majestade organizou–se gradativamente todo um conjunto de disposições punitivas que inicialmente eram, muitas vezes, relativas a casos individuais e se expandiram por meio de analogias. Mais tarde, porém, pelo menos no âmbito do direito europeu continental, as disposições punitivas passaram a ser formuladas de forma geral e abstrata, vinculando um tipo penal a uma sanção negativa.

1.1.2. Controle social As forças interessadas na ordem da sociedade usam medidas de controle social para enfrentar as ações que elas enxergam como riscos a essa ordem. Já faz parte da estratégia de controle social tipificar os comportamentos indesejados de maneira abstrata, por assim dizer, em forma de figuras diagnósticas, tornando–os assim, dali em diante, passíveis de manejo e, no caso individual concreto, passível de resposta. Assim, ações perigosas podem ser estigmatizadas, dependendo das circunstâncias, por exemplo, como pecado (com tratamento pela igreja), como revolta (militar), como doença (psiquiatria), como negligência (educação) ou, é claro, como criminalidade, e deixadas nas mãos das instituições especializadas (polícia, justiça). Quanto mais complexa a sociedade, tanto mais diversos os sistemas normativos, conteúdos e enquadramentos dos desvios e os tipos, funções e consequências das sanções. Qual figura diagnóstica será aplicada em cada caso não resulta automaticamente da natureza da coisa, depende, isto sim, em todos os níveis, também da correlação de forças e das constelações de interesses. Por trás da definição de criminalidade está, sobretudo, o interesse pela afirmação exemplar das relações de dominação existentes. O “crime”, diferentemente do “acidente” ou “doença”, permite o confronto público entre senhor e subalterno e seu tratamento em um processo ao fim do qual o risco está personalizado, a pessoa é isolada e a sua rebeldia é repudiada publicamente – demonstrando a facticidade do poder e fortalecendo a sua legitimidade. Vale dizer: quanto maior a diferença de poder entre a autoridade e o subordinado à dominação, e quanto menos consolidada a dominação, tanto maior será a quantidade de leis punitivas, tanto mais autoritários serão os processos e tanto mais frequentes e cruéis as punições – e tanto maior a importância da “criminalidade” para a organização e a autoimagem de uma sociedade. Graças às definições consolidadas no Direito Penal, alguns interesses ameaçados (a dignidade de um Deus, a forma do Estado, a paz pública, a vida e a integridade física, a propriedade, uma determinada moralidade, a autodeterminação sexual, a saúde pública etc.) são elevados à categoria de bens jurídicos. Graças a essas definições as ações percebidas como riscos para a ordem social ou como vio19


lações ou ameaças para esses bens jurídicos são convertidas em criminalidade. A explicação dessas definições deve, igualmente, passar pelo modelo macro–micro– macro: o surgimento de normas legais como fenômenos macro, saídos de pré– condições macro, só pode ser explicado pelos efeitos destas pré–condições sobre os indivíduos que estabelecem as normas e pelas ações individuais deles (nível micro: ação de empreendedores morais, grupos de interesse, burocratas, jornalistas etc.) sob a forma de agregação dessas ações para formar um novo fenômeno macro: o das normas jurídicas (Chambliss 1974; Pfeiffer, Scheerer 1979:72–86). A inclusão de uma categoria de ação no rol dos delitos serve, portanto, como um dos muitos meios de controle social para afastar as ameaças à ordem social, primeiro por meio de prevenção. Naturalmente, essa inclusão também abre caminho para uma posterior repressão, se, apesar de toda prevenção, ocorrerem ações perigosas. Mas com a proscrição da ação categorizada como contrária ao direito e passível de punição e a simples ameaça de repressão diminuem a probabilidade de ocorrerem as práticas correspondentes. E nos casos em que não se consiga impedi–las, o efeito da proibição consistirá pelo menos em uma modificação, muitas vezes profunda da prática proibida (Scheerer, Hess 1997).

1.1.3. Conceitos de criminalidade Que ações ficam proibidas, passíveis de punição é o respectivo legislador quem estabelece, com efeito vinculante para sua esfera de competência – e dessa maneira, é ele também quem estabelece o que é crime e o que não é. Do seu ponto de vista, criminalidade não é senão a soma de todos os crimes. Muitos criminologistas, com boa razão, consideram inaceitável permitir que a política predetermine o objeto da própria ciência, ao invés de poder defini–lo de acordo com os próprios critérios (científicos). Muitas vezes, no entanto, a conclusão nada menos problemática que se tem tirado daí é a de que a Criminologia deveria decidir sozinha o que é “realmente” criminalidade e o que não é. Postulados desse gênero são tão frequentes quanto raros os exemplos de como algo assim deveria funcionar. Conforme o gosto, há talvez quem ache tentador contrapor à reinante relatividade positivista do direito uma verdade imutável de “crime natural” ou uma “definição de crime material” com caráter de eternidade. Mas, provavelmente será impossível, até por causa do caráter totalmente social da província de significado da criminalidade. Assim como a teoria da arte não pode e nem deve decidir o que seja a “verdadeira” arte, e sim registrar e explicar toda uma pluralidade do que se produziu, definiu e tratou como arte nas diferentes épocas e culturas, assim também a autonomia da Criminologia não consiste em substituir as definições sociais por uma definição própria, equipando–a voluntariosamente com uma soberba pretensão de verdade. Consiste, sim, na observação, descrição, análise e explicação daquilo que na sociedade é chamado e tratado 20


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.