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Coletânea de direito BanCário temas atuais

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Capa e diagramação: Analu Brettas

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

eduardo Ferrer MaC-GreGor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

luis lóPez Guerra

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

owen M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA toMás s. vives antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

A687 Araújo, Ana Paula Guimarães

Coletânea de direito bancário : temas atuais [livro eletrônico]

/ Ana Paula Guimarães Araújo ... [et al.]; Patricia Vanzolini ... [et al]. (coord.). -1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2024.

-- (Coleção OAB SP)

1Kb; livro digital

ISBN: 978-65-5908-731-0.

1. Direito bancário. 2. OAB SP. 3. Ordem dos advogados do Brasil. I. Título. II. Coleção.

CDU: 347.734

Bibliotecária Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Coleção oaB sP

Coordenadores da Coleção

Patricia Vanzolini

Leonardo Sica

Coletânea de direito BanCário

temas atuais

Coordenadores

Alessandro Moreira do Sacramento

Marcelo Tesheiner Cavassani

Leonardo Nobuo Pereira Egawa

Gabriel José de Orleans e Bragança

Leonardo Adriano Ribeiro Dias

José Nunes Terceiro

Autores

Ana Paula Guimarães Araújo

Ana Paula Lauerti

Eduardo Machado Tortorella

Felipe Enes Duarte

Fernando Cota

Gabriel José de Orleans e Bragança

Gisele Rui de Almeida

Julia Tamer Langen

Leandro Maioli

Leonardo Pelati

Liv Machado

Luis Fernando Batista Hiar

Luis Fernando Guerrero

Luiza Centini Vieira

Maurício Jayme e Silva

Nathália Albuquerque Lacorte Borelli

Nathalia Souza Patrizzi

Paulo Celso Pompeu

Rafaella Paganno Granado

Rafael Ribeiro Gonçalves Miranda

Reginaldo Sorrenti Marcello Neto

Silvia Bessa Ribeiro

Talita Vasiunas Costa Silva

Thiago Ferreira Marques

Túlio Schlechta Portella

Vitor Gomes Rodrigues de Mello

suMário

Apresentação......................................................................................................... 7 Marcelo Tesheiner Cavassani Infraestruturas de Mercados Financeiros – Regulamentação para sedimentar o passado ou para pavimentar o futuro? ......................................... 8 Maurício Jayme e Silva A (ir)relevância da distinção entre créditos a serem performados e os já performados nos contratos de cessão fiduciária de recebíveis .................... 20 Leonardo Pelati e Liv Machado A homologação de sentença estrangeira no Brasil e a possibilidade de execução de dívida de jogo contraída no exterior ....................................... 23 Fernando Cota Lawtechs: tecnologia a favor da recuperação de créditos 37 Thiago Ferreira Marques e Luiza Centini Vieira O Vencimento Antecipado dos Contratos Bancários pelo Descumprimento de Obrigação Não-Pecuniária ........................................................................... 51 Felipe Enes Duarte A citação não pode atravancar a execução por quantia certa ...................... 62 Leandro Maioli Juros do crédito rotativo e discussões acerca da sua limitação ................... 77 Talita Vasiunas Costa Silva Relativização da anterioridade do crédito como requisito para propositura da ação pauliana ................................................................................................. 87 Vitor Gomes Rodrigues de Mello e Túlio Schlechta Portella Financiamento de litígios na arbitragem e crise da empresa: alternativa de investimento e mecanismo de acesso à justiça ................................................ 97 Luis Fernando Guerrero, Luis Fernando Batista Hiar e Eduardo Machado Tortorella A resolução CMN 4.966/2021 e as novas perspectivas para o financiamento da empresa em recuperação judicial e extrajudicial .................................... 107 Silvia Bessa Ribeiro

Nathália Albuquerque Lacorte Borelli

Prescrição intercorrente à luz das alterações da Lei 14.195/2021 e seus reflexos no curso processual frente ao princípio da irretroatividade da

Julia Tamer Langen, Reginaldo Sorrenti Marcello Neto, Nathalia Souza Patrizzi e Ana Paula Guimarães Araújo

Danos morais no direito bancário - nas relações de consumo 114
Rui de Almeida
de produto rural
sujeição
processo
recuperação judicial .............................................................................................................. 121
Gisele
Cédula
ou não ao
de
norma processual ............................................................................................. 131
Lauerti
Pagano
derivativos
processos
recuperação judicial
14.112/20............................................................................................................ 137
Ana Paula
e Rafaella T. A. Granado
Contratos
e os
de
à luz da lei
A Tutela de Urgência na Recuperação Judicial ............................................ 153
José de Orleans e Bragança, Paulo Celso Pompeu
Rafael Ribeiro Gonçalves Miranda
Gabriel
e

aPresentação

Tenho a imensa satisfação de apresentar esta obra a toda comunidade jurídica e ao público em geral: Coletânea de direito Bancário – Temas Atuais

Ao longo do ano, como presidente desta Comissão, temos nos dedicado a promover debates, encontros mensais e participado como palestrante e representante da Comissão em outras entidades e em encontros promovidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Também motivamos a criação de Núcleos de Trabalho, para que em células específicas, os temas fossem debatidos de acordo com a sua especificidade. Assim foram criados os núcleos: Núcleo Agronegócio e Finanças; Núcleo Digital / Fintechs; Núcleo Arbitragem e Mediação de Conflitos Bancários e o Núcleo Mercado Secundário.

Como fruto desse trabalho, essa coletânea, analisa diversas temáticas de Direito Bancário, de acordo com a experiência profissional ou interesse acadêmico, navegando pelas atuações multidisciplinares dos membros da Comissão. Entre os assuntos abordados nesta edição, não se limitando, encontramos os diferentes aspectos da Execução, Modalidades de Crédito, Juros, Vencimento Antecipado e Infraestrutura do Mercado Financeiro, entre outros temas de relevância.

Todo trabalho, decorre do compromisso e do alinhamento dos conceitos de modernização trazidas pela Presidente Patrícia Vanzolini e pelo Vice-presidente Leonardo Sica. Sendo nossa missão a valorização dos profissionais e conduzir a advocacia paulista no debate público dos temas atuais e mais importantes para a sociedade. Hoje a Comissão é composta, por mais de 350 advogados e advogadas. Sendo 147 advogadas e 206 advogados, inclusive com membros correspondentes em outros estados. Todos com o mesmo propósito de promover debates e desenvolver a sociedade creditícia no Brasil.

Não posso deixar de externar meus especiais agradecimentos aos Dr. Alessandro Moreira do Sacramento coordenador desta publicação pelo apoio de sempre, tempo dedicado e aos colegas Dr. Leonardo Nobuo Pereira Egawa, Dr. Gabriel José de Orleans e Bragança, Dr. Leonardo Adriano Ribeiro Dias e Dr. José Nunes Terceiro por compartilharem suas capacidades acadêmicas de extrema importância para entregarmos esta coletânea.

Essa é nossa primeira coletânea e, desde já, convidamos você para participar da próxima.

Por derradeiro, agradecemos a todos que gentilmente participaram de nossas reuniões, bem como os expositores que trouxeram seus conhecimentos.

MarCelo tesheiner Cavassani Presidente da Comissão Especial de Direito Bancário

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inFraestruturas de MerCados

FinanCeiros – reGulaMentação

Para sediMentar o Passado ou Para PaviMentar o Futuro?

Os últimos anos têm sido profícuos em termos de inovações tecnológicas e suas aplicações aos mercados financeiros e de capitais. Somente no Brasil, nessas pouco mais de duas décadas do século XXI, observamos o ocaso do pregão presencial viva-voz e o surgimento do pregão eletrônico, do home broker, dos algoritmos de negociação de valores mobiliários e a redução do ciclo de liquidação das operações cursadas em bolsa de valores. Isso para citar apenas alguns exemplos de inovações tecnológicas em mercados de capitais. No mercado financeiro, acompanhamos o desenvolvimento, a implementação e a ampla utilização do Sistema de Pagamentos Instantâneos (PIX), dos arranjos de pagamentos e das fintechs.

A inovação tecnológica tem seu próprio passo, ritmo e cadência, nem sempre acompanhados de perto pela regulação competente. Neste momento em que se discute a consolidação dos Principles for Financial Market Infrastructures (PFMI) na legislação regente do Sistema de Pagamentos Brasileiro, por meio do Projeto de Lei nº 2.926/2023, é pertinente avaliar a conveniência de fazê-la pela via legislativa, considerando o evidente e natural descompasso entre o desenvolvimento de inovações tecnológicas a serviço das infraestruturas de mercados financeiros2 e o processo legislativo ordinário.

A serviço dessa avaliação, esse estudo se propõe a tratar das infraestruturas de mercados financeiros, iniciando pela sua origem e pelas funções que exercem em mercados organizados de valores mobiliários. A seguir, serão abordadas as

Fordham Law School. Visiting Scholar na Columbia Law School. Sócio de Infraestruturas de Mercados Financeiros e de Capitais no Bocater, Camargo, Costa e Silva, Rodrigues Advogados.

2 Para os fins deste estudo, o termo “infraestruturas de mercados financeiros” será empregado para se referir a infraestruturas atuantes no mercado financeiro, no mercado de capitais ou em ambos, para conferir coerência e unicidade com a terminologia adotada nos países de língua inglesa. Casos em que a referência seja especificamente a infraestruturas de mercados financeiros ou de mercados de capitais serão assim destacados.

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1 Maurício Jayme e Silva. Advogado. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. LL.M. em Banking, Corporate & Finance Law pela

respostas que foram dadas – especialmente pelos organismos multilaterais formuladores de políticas públicas – à crise financeira global de 2008 no que diz respeito à regulação das infraestruturas de mercados financeiros, em razão do papel que nela desempenharam ou deixaram de desempenhar. Finalmente, terminamos este estudo apontando riscos inerentes à forma pela qual se pretende, no Brasil, a plena implementação dos PFMI, onze anos após sua concepção, se não forem consideradas as aplicações das inovações tecnológicas atuais nas infraestruturas de mercados financeiros.

1. as inFraestruturas de MerCados FinanCeiros

Para os propósitos deste estudo, podemos identificar claramente dois momentos em todas as operações cursadas nos mercados financeiros e nos mercados de capitais brasileiro. A negociação, onde as partes comitentes acordam os termos e as condições das operações como preço, ativo e volume3; e a pós-negociação, onde as obrigações decorrentes das operações negociadas são liquidadas. Correndo o risco inerente à toda abordagem reducionista, é na fase de pós-negociação que os ativos financeiros ou valores mobiliários negociados são transferidos do vendedor para o comprador contra a transferência dos recursos financeiros do comprador para o vendedor.4

Até meados do século XX, o volume de operações, operadores, investidores e valores mobiliários suportava a liquidação física das operações executadas em mercados organizados, de modo que as obrigações contraídas no momento da negociação eram satisfeitas pela tradição dos valores mobiliários negociados mediante pagamento.

No entanto, com o aumento do número de operações, de valores mobiliários transacionados e dos investidores, a liquidação de operações mediante transmissão física de cártulas/certificados contra pagamento tornou-se impraticável. Os riscos assumidos pelas partes em operações envolvendo valores mobiliários inviabilizavam a evolução – e a própria manutenção – dos mercados financeiros e de capitais.5

3 O espaço aqui é insuficiente para trazer conceitos e elementos da negociação de valores mobiliários e de ativos financeiros, como as diferenças entre ambos, seus mercados e regulamentações. Ainda assim, aproximar a negociação de ativos financeiros e valores mobiliários à negociação de qualquer outro bem, onde são negociadas as condições da transação, é suficiente para a finalidade deste estudo.

4 “Apesar da pós-negociação ter menor visibilidade para o investidor, se comparada com a negociação, é de vital importância, pois, de forma objetiva, na pós-negociação desenvolvem-se atividades que visam fazer com que o objeto da contratação no ambiente de negociação se realiza, ou seja, por exemplo, que o vendedor receba o pagamento do preço e entregue os bens vendidos e o comprador efetue o pagamento do preço e receba os bens adquiridos.” PEREIRA FILHO, Valdir Carlos. Aspectos jurídicos da pós-negociação de ações. São Paulo, SP. Ed. Almedina, 2013, p 48.

5 “O crescimento dos mercados domésticos e internacional levou a um progressivo e constante aumento do número de negócios jurídicos que tinham por objeto valores mobiliários. Desta forma, para que os negócios pactuados pudessem ser concluídos, era necessário proceder à entrega de valores mobiliários ao portador, ensejando o trânsito físico destes, ou, no caso de valores

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A resposta para o desafio de então passava pela imobilização e desmaterialização de valores mobiliários, pela criação de estruturas responsáveis pelos elos da cadeia de liquidação de operações, e por um sistema que conferia efeitos legais a registros feitos em referidas estruturas relacionados à propriedade, transferência, ônus e gravames. Em outras palavras, pela adoção de sistemas eletrônicos de liquidação de operações, compostos por estruturas responsáveis pela compensação, depósito e registro de operações envolvendo valores mobiliários, prevista em lei.

A imobilização de valores mobiliários diz respeito ao tratamento dado pelo mercado, e legitimado pelos órgãos reguladores, para mitigar o risco da guarda física de valores mobiliários ao portador ou de seus certificados. De acordo com Valdir Carlos Pereira Filho, o processo de imobilização de valores mobiliários “consiste na guarda de valores mobiliários na forma de títulos ao portador ou representados por certificados em instituições denominadas depositários centrais. O objetivo é que, com a guarda, tais valores mobiliários fiquem ‘imóveis’ (imobilizados no depositário central), de forma que não sejam removidos, entregues e nem circulem fisicamente por força de liquidação de operações das quais sejam objeto ou para efeito de transferência de propriedade.”6

Já a desmaterialização trata do fenômeno de emissão de valores mobiliários já na forma escritural. Diferentemente da imobilização, não há substrato físico material, corpóreo, a ser desmaterializado uma vez que a emissão dos valores mobiliários já ocorre em sua forma escritural. Para Valdir Carlos Pereira Filho: 7

“Com relação à desmaterialização, esta consiste na existência unicamente escritural de valores mobiliários. Ou seja, os valores mobiliários não experimentam a materialização, existência corpórea ou tangível. Desde a sua emissão, são registros escriturais e seu titular é aquele em cujo nome se encontram registrados. O registro escritural é, aqui, fonte de domínio e de direito real. No caso de valores mobiliários nominativos, a desmaterialização implica a extinção do certificado e dos documentos acessórios para transferência, como os formulários de transferência. Trata-se de uma alteração meramente procedimental, já que os títulos nominativos já tinham uma natureza intangível, pois a raiz da propriedade é o registro e não a detenção do certificado (tanto que a perda do certificado não afetava o status de acionista, se o nome do acionista figurar no livro de registro da emissora). Entretanto, a desmaterialização de um valor mobiliário ao portador significa uma mudança em sua natureza: transformando-se de um bem corpóreo, logo tangível, para um bem intangível.”

mobiliários nominativos, proceder à efetivação do registro para transferência de titularidade, já que os certificados, quando existentes, não se prestavam para ser objeto de tradição com efeito de transferir a propriedade sobre as ações que representavam. O aumento nso volume de operações de compra e venda de valores mobiliários fez com que as etapas necessárias para a efetivação dos negócios jurídicos pactuados deixassem de ocorrer de forma eficiente e no tempo adequado, passando a haver atrasos na entrega física de valores mobiliários. Assim, na segunda metade do século XX, verificou-se que a entrega física de valores mobiliários para liquidar operações de compra e venda, aliada ao aumento de emissões de valores mobiliários, levaram a um colapso do sistema de liquidação de operações com valores mobiliários denominado, no jargão de mercado, paper crunch, pois a estrutura de liquidação com entrega física de valores mobiliários não conseguia acompanhar e processar os negócios realizados.” PEREIRA FILHO, Valdir Costa. In op. cit., p. 27.

6 PEREIRA FILHO, Valdir Costa. In op. cit., p. 31.

7 In op. cit., p. 33-34.

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Operações com valores mobiliários imobilizados ou desmaterializados requeriam sistemas de liquidação igualmente informatizados, que se beneficiassem das então inovadoras redes de transmissão de dados para registrar a titularidade, a transferência, os ônus e gravames que recaíam sobre os valores mobiliários.

Surgem então as primeiras infraestruturas de mercados dos mercados financeiros como hoje as conhecemos, responsáveis pela liquidação das operações cursadas nos mercados financeiros e de capitais.

Partindo de um conceito sistêmico, pode-se dizer que a liquidação das operações cursadas nos mercados financeiros e de capitais é executada por infraestruturas, elos de uma cadeia de comandos e registros, obrigações e garantias que, executados em conjunto pelas infraestruturas dos mercados financeiros e de capitais, viabilizam a efetivação das operações negociadas e mitigam os riscos a que se sujeitam as partes em particular, e o mercado em geral, no intervalo de liquidação.8

A crucialidade das atividades desempenhadas pelas infraestruturas de mercados financeiros para a estabilidade desses mesmos mercados é capturada da seguinte maneira por Guido Ferrarini e Paolo Saguato:9

“Trading venues act at a transactional level by offering services to buyers and sellers interested in concluding deals. Post-trading infrastructures, conversely, supply clearing, settlement, and reporting services to the trading markets, and perform a systemic function by operating as risk management and oversight mechanisms. In a sense, post-trading infrastructures are not only counterparties to financial institutions and investors, but also respond to the public interest as guardians of financial markets: they contribute to financial stability by providing network services and facilitating connections among market participants.”

No Brasil, as infraestruturas de mercados financeiros estão disciplinadas pela Lei nº 10.214/2001, que dispõe sobre a prestação e sobre os prestadores de serviços de clearing10, ou seja, de compensação e liquidação de operações no

8 Valdir Carlos Pereira Filho elenca cinco riscos apresentados no intervalo de liquidação, ou seja, entre o momento da negociação e a efetiva conclusão da operação: risco de crédito, risco de liquidez, risco operacional, risco legal e risco sistêmico. Para o autor, risco de crédito consiste no risco de perda da negociação pelo inadimplemento contratual de determinado comitente. Risco de liquidez consiste no risco de o ativo financeiro ou valor mobiliário não estar disponível para ser transacionado. Já por risco operacional, o autor entende o risco de falhas humanas, técnicas ou mecânicas que impeçam a conclusão da negociação. Risco legal, na visão do autor, consiste no risco de o efeito legal de um negócio ser diverso daquele intencionado originalmente pelas partes, e por risco sistêmico, aquele decorrente do contágio em determinada operação por falhas de terceiros, não originalmente participantes da operação contagiada. PEREIRA FILHO, Valdir Carlos. In op. cit., p. 51-53.

9 SAGUATO, Paolo; FERRARINI, Guido. Regulating Financial Market Infrastructures. (1º de Junho de 2014). Forthcoming draft chapter, The Oxford Handbook on Financial Regulation, editado por Eilís Ferran, Niamh Moloney e Jennifer Payne, (Oxford University Press), European Corporate Governance Institute (ECGI) - Law Working Paper nº 259/2014, p. 19. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2450095. Acesso em 02/10/2023.

10 De acordo com Otávio Yazbek, as estruturas de clearing são “estruturas privadas destinadas a registrar as operações realizadas pelos seus participantes; assumir a posição de contraparte central para todas as operações (ou seja, de comprador para cada vendedor e de vendedor para cada comprador), compensando seus resultados de modo a ter uma única exposição líquida a cada participante; requerer as garantias e constituir as demais salvaguardas necessárias para assegurar o cumprimento das obrigações, evitando, assim, que o inadimplemento de qualquer contraparte afete os demais participantes do mercado.” YAZBEK, Otávio. “Crise, inovação e regulação no mercado financeiro” In. Direito, gestão e prática: mercado de capitais. Francisco Satiro de Souza Junior, coordenador. São Paulo, Ed. Saraiva, 2013, p. 141.

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âmbito do então criado Sistema de Pagamentos Brasileiro11 (SPB), e pelas normas infralegais editadas pelo Conselho Monetário Nacional, pelo Banco Central do Brasil e pela Comissão de Valores Mobiliários, em suas respectivas áreas de competência.12

Aqui também, as infraestruturas exercem função crucial na promoção e manutenção da estabilidade e da higidez dos mercados financeiros e de capitais, na proteção dos investidores e na contenção de riscos sistêmicos, por intermédio de uma série de mecanismos e salvaguardas previstas em lei13, de que são exemplos o exercício da função de contraparte central de todas as operações cursadas em mercados sistemicamente relevantes14; a compensação multilateral de obrigações em uma mesma infraestrutura15; e a proteção dos deveres e direitos, obrigações e garantias, contraídas pelas infraestruturas componentes do SPB, frente aos regimes de procedimentos concursais como falência, insolvência, intervenção ou liquidação extrajudicial.16

Como visto até o momento, a liquidação das operações conduzidas em mercados financeiros e de capitais é realizada por uma série intrincada de comandos e registros, referentes a obrigações e garantias, propriedade e transferência,

11 Fernanda Garibaldi define o Sistema de Pagamentos Brasileiro como “o arcabouço jurídico-operacional integrado pelos serviços de compensação de cheques, de compensação e liquidação de ordens eletrônicas de débito e de crédito, de transferência de fundos e de outros ativos financeiros, de compensação e de liquidação de operações com títulos e valores mobiliários, de compensação e de liquidação de operações realizadas em bolsas de mercadorias e de futuros, de depósito centralizado e de registro de ativos financeiros e de valores mobiliários (denominadas Infraestruturas do Mercado Financeiro – IMF), e pelos serviços orquestrados pelos arranjos e instituições de pagamento (agentes do mercado de meios de pagamento).” GARIBALDI, Fernanda. Sistema de pagamentos brasileiro: regulação e concorrência. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2023, p. 68-69.

12 Vide Lei nº 10.214/2001, art. 10.

13 Além das aqui citadas, Otavio Yazbek menciona também critérios de acesso a mercados e de aceitação de operações, recurso a fundos mútuos, regras específicas para encerramento de posições detidas por participantes inadimplentes, regras de natureza prudencial impostas aos participantes pelo Banco Central do Brasil e/ou pela Comissão de Valores Mobiliários, entre outras. YAZBEK, Otávio. A regulação financeira em espécie Op. cit., p. 242-243.

14 Vide Lei nº 10.214/2001, art. 4º. A respeito da contraparte central: “A atividade de clearing, na maioria das vezes, e seguindo recomendações internacionais, envolve a existência de uma contraparte central. Desta forma, a contraparte central assume posição contratual de parte em todos os negócios. Todos os negócios celebrados no ambiente de negociação, uma vez registrados e ao ingressarem na fase de pós-negociação, passam a ter a mesma contraparte: a contraparte central, que atua como vendedora de todos os compradores e compradora de todos os vendedores. A interposição da contraparte central é importante para uniformizar a exposição de risco de crédito nos negócios não liquidados, já que todos os participantes do mercado têm a mesma contraparte, logo todos estão expostos ao mesmo risco de crédito.” PEREIRA FILHO, Valdir Carlos. In op. cit., p. 54-55.

15 Vide Lei nº 10.214, art. 3º. Otávio Yazbek, comentando sobre a liquidação diferida por valores líquidos (LDL) característica das clearings da Lei nº 10.214/2001, em contraposição à liquidação bruta em tempo real (LBTR), discorre dessa maneira sobre a primeira: “Determinadas operações poderiam, porém, ser liquidadas naqueles sistemas de registro, compensação e liquidação (também denominados ‘câmaras’, clearinghouses ou simplesmente clearings). Nesta última hipótese, a liquidação se dá por valores líquidos compensados (o chamado sistema LDL, de liquidação diferida por valores líquidos), o que permite a melhor administração de risco e a redução dos custos das transferências individuais, operação por operação. Assim, se uma instituição opera em um determinado mercado, registrando suas operações na clearing correspondente, ela não precisaria liquidar tais operações uma a uma quando do seu vencimento, mas o faria sempre por valores líquidos para cada vencimento, em reservas bancárias e perante a câmara, que seria a sua contraparte (art. 4º da Lei nº 10.214/2001). Tal procedimento decorre de uma ‘compensação multilateral de operações’ (art. 3º da Lei nº 10.214/2001), pela qual as posições ‘compradas’ e ‘vendidas’ de um determinado participante contra os demais vão se compensando em uma única posição líquida devida à câmara ou por ela devida a cada participante. Tais sistemas de liquidação funcionam como ‘jogos de soma zero’, recebendo valores ou ativos dos participantes que estejam ‘liquidamente devedores’ e pagando àqueles que estejam ‘liquidamente credores’. Por outro lado, dada a bilateralidade da relação entre a clearing e os agentes que nela liquidam suas operações, o pagamento (ou entrega do ativo) a um participante é sempre condicionado à recepção dos ativos (ou dos valores) por ele devidos em razão da operação registrada (ou melhor, dos valores e quantidades resultantes da compensação daquelas operações.” YAZBEK, Otavio. Regulação do mercado financeiro e de capitais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2009, p. 241-242.

16 Vide Lei nº 10.214/2001, art. 7º.

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conduzida sistemicamente por infraestruturas de mercados financeiros que, exatamente por esse motivo, desempenham função primordial na promoção, manutenção e desenvolvimento da estabilidade financeira em mercados financeiros e de capitais, no Brasil e no exterior.

No entanto, todos os mecanismos e salvaguardas engendrados em favor das infraestruturas dos sistemas de liquidação de operações em mercados organizados de valores mobiliários – e, em última instância, dos próprios mercados onde atuam – não foram capazes de evitar e, uma vez desencadeada, de conter a pior crise financeira desde o crash da bolsa de Nova York de 1929. A seguir, comentaremos a resposta oferecida por organismos multilaterais do sistema financeiro à crise financeira de 2008, especialmente no que se refere às infraestruturas de mercados financeiros.17

2. a resPosta GloBal à Crise FinanCeira de 200818

Exatamente pelo papel de agentes mitigadores dos riscos inerentes à pós-negociação de valores mobiliários, as infraestruturas de mercados financeiros, bem como sua regulamentação, foram objeto de aprofundado escrutínio ao final da década de 2000, quando a economia global sofreu os efeitos da crise financeira de 2008.

Reguladores dos principais mercados, formuladores de políticas públicas, organismos multilaterais do sistema financeiro, fóruns globais e think tanks se debruçaram na identificação e análise das origens da pior crise financeira desde o crash de 1929; no papel então desempenhado pelas infraestruturas de mercados financeiros; na função desejada para essas estruturas e no desenvolvimento e implantação de medidas que evitassem novas crises financeiras.

Entre todas as iniciativas que então surgiram, merece destaque a iniciativa do Committee on Payment and Settlement Systems (CPSS) – atualmente Commmittee on Payments and Market Infrastructures (CPMI) – do Bank of International Settlements (BIS), em conjunto com a International Organization of Securities Commissions (IOSCO) que, em 2012, publicou o documento intitulado Principles for Financial Market Infrastrutures. 19-20

17 Este estudo se limita às respostas dos organismos multilaterais do sistema financeiro global à crise financeira de 2008 no que se referem às infraestruturas de mercados financeiros. Para um relato das discussões havidas no Brasil, vide YAZBEK, Otavio. Evolução recente da regulação do mercado de capitais: impactos da crise de 2008 e opções de reforma. In. Desenvolvimento do mercado de capitais no Brasil: temas para reflexão. Amarílis Prado Sardenberg (org.). São Paulo, SP: Editora Sociologia e Política, 2015. p. 49-95.

18 Por limitação do escopo deste estudo, a resposta será analisada apenas no que se refere às infraestruturas de mercados financeiros.

19 Disponível em https://www.bis.org/cpmi/info_pfmi.htm. Acesso em 28 de setembro de 2023.

20 “The call for an international approach to the regulation (and supervision) of FMIs was amplified in the aftermath of the 2008 global financial crisis and the 2010 European sovereign debt crisis. Regulators and supervisors experienced the costs and challenges posed

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O PFMI é o resultado de um esforço conjunto, supranacional, que reconheceu o papel crucial das infraestruturas de mercados financeiros na promoção da estabilidade financeira global21 e, nesse sentido, estabeleceu 24 (vinte e quatro) princípios – agrupados em nove temas: governança, gestão de risco de crédito e de liquidez, compensação, centrais depositárias, gestão de risco de inadimplência, gestão de risco operacional, acesso a mercados, eficiência e transparência –que devem ser seguidos pelos reguladores locais dos mercados financeiros e de capitais no que se refere a infraestruturas de mercados financeiros.

Tão importante quanto a convergência dos principais atores financeiros para princípios mínimos de regulação das infraestruturas de mercados financeiros é o comprometimento dos governos locais de implementá-los. Por esse motivo, as entidades responsáveis pela publicação dos PFMI selecionaram 28 (vinte e oito) países, componentes do Financial Stability Board (FSB), do BIS ou da IOSCO, para serem monitorados quanto à implementação e aderência da regulamentação financeira local aos PFMI.22 Esta avaliação se dá em três momentos. O primeiro momento é auto-declaratório, ou seja, os próprios países selecionados avaliam a evolução da sua própria estrutura normativa em direção à plena aderência aos PFMI. Em um segundo momento, a avaliação é conduzida por pares de cada país selecionado, que buscam avaliar a completude e a aderência das inovações normativas frente aos PFMI. Por fim, os países-pares avaliam a consistência dos resultados obtidos a partir das inovações normativas implementadas.

No Brasil, os reguladores dos mercados financeiros e de capitais buscaram, no âmbito de suas competências, baixar normas que alinhassem os contornos normativos da atividade bancária e financeira do país aos princípios contidos nos PFMI. Como exemplo, no contexto da regulação a cargo do Conselho Monetário Nacional, cite-se a Resolução CMN nº 4.952/2021, que dispõe sobre a atua-

by the cross-border nature of modern finance and realized the critical importance of a coordinated international approach to ensure the stability of cross-border financial markets. The G-20 and the Financial Stability Board (FSB) rolled out multiple initiatives to boost the efficiency and stability of the post-crises markets and to strengthen the resilience of systemically important FMIs. All major jurisdiction passes sweeping financial reforms to re-build confidence in their systems, and a revised market structure was envisioned for the derivatives markets: both in the US and EU standardized derivatives were required to be traded on trading venues, processed and settled by clearinghouses, and reported trade repositories. FMIs have become even more central in the re-design of post-crises financial systems. Cognizant of the cross-border expansion of securities and derivatives markets and the growing systemic importance of FMIs, policymakers have engaged in a number of dialogues on cross-border regulatory and supervisory cooperation. The major cornerstone of the systemically important regime, and the essential shared foundations that support resilience across different jurisdictions in the global regulation and oversight of FMIs, is the Principles for Financial Markets Infrastructures (PFMI) published in 2012 by IOSCO and the Committee on Payment and Settlement Systems (CPSS), now the Committee on Payments and Market Infrastructures (CPMI).” (p. 56-57).

21 “The PFMI identify the critical role that FMIs play as a source of strength and as an element of trust and confidence in the modern markets, acknowledge the necessity of having shared standards, and put in place clear principles for the regulation of FMIs. The PFMI framework aims at supporting and achieving two main public policy objectives: promoting financial stability in the markets and enhancing the efficiency and resilience of FMIs and their operations.” (SAGUATO, Paolo; FERRARINI, Guido; PAN, Eric. Financial Market Infrastructure. The international approach and the current challenges. In. Financial Market Infrastructures. Oxford, UK. Ed. Oxford University Press: 2021, p. 57).

22 Foram selecionados: Argentina, Australia, Bélgica, Brasil, Canadá, Chile, China, União Européia, França, Alemanha, Hong Kong, Índia, Indonésia, Itália, Japão, Coreia do Sul, México, Holanda, Rússia, Arábia Saudita, Cingapura, África do Sul, Espanha, Suécia, Suíça, Turquia, Inglaterra e Estados Unidos.

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ção das câmaras e dos prestadores de serviços de compensação e de liquidação no âmbito do SPB e, nesse sentido, revogou a Resolução CMN nº 2.882/2001 e outras normas aplicáveis à matéria.23

Outro exemplo da aderência da regulação bancária e financeira brasileira aos ditames dos PFMI pode ser encontrado na competência normativa do Banco

Central do Brasil, recente exercida pela Resolução BCB nº 304/2023, que baixou o Regulamento que disciplina, no âmbito do SPB, o funcionamento dos sistemas de liquidação, o exercício das atividades de registro e de depósito centralizado de ativos financeiros e a constituição de ônus e gravames sobre ativos financeiros registrados ou depositados.24

Por fim, a Comissão de Valores Mobiliários revisou, em 201325, a Instrução CVM nº 461/200726, que regia os mercados regulamentados de valores mobiliários, seus administradores e participantes, para incluir os parágrafos quarto e quinto ao artigo 110 e, dessa maneira, incutir os PFMI na regulação dos mercados de valores mobiliários brasileiros.

Os esforços das autoridades regulatórias brasileiras para adequar a estrutura normativa dos mercados financeiros e de capitais aos PFMI surtiram efeito. Em novembro de 2020, o BIS divulgou o relatório da segunda etapa de avaliação da adesão do Brasil aos PFMI. De acordo com o documento Implementation Monitoring of PFMI: Level 2 assessment report for Brazil27, a legislação, a regulação e a supervisão das operações cursadas nos mercados financeiros e de capitais no país estão plenamente aderentes aos PFMI, ainda que haja espaço para desenvolvimento e implementação de melhorias regulatórias.28

Passados quinze anos da crise financeira de 2008 e onze anos da edição dos PFMI, a busca pela plena implementação dos PFMI, na forma e no tempo em que foram concebidos, ainda faz sentido, principalmente quando inovações tecnológicas revolucionaram o registro, o acesso, o armazenamento, a transmissão e o compartilhamento de dados? É o que se pretenderá discutir a seguir.

23 Vale conferir a Exposição de Motivos para a edição da Resolução CMN nº 4.952/2021, contida no Voto 220/2021-BCB, de 23 de setembro de 2021, disponível em https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=4952, acesso em 02/10/2023.

24 Cabe aqui menção à Exposição de Motivos contida no Voto 50/2023-BCB, de 16 de março de 2023, disponível em https:// www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20BCB&numero=304, acesso em 02/10/2023.

25 Alteração feita pela Instrução CVM nº 544/2013.

26 Revogada pela Resolução CVM nº 135/2022, que mantém o dispositivo incluído pela Instrução CVM nº 544/2013.

27 Disponível em https://www.bis.org/cpmi/publ/d196.htm, acesso em 02/10/2023.

28 “The assessment finds that – as of 31 May 20018 – the Brazilian legal, regulatory and oversight framework for all FMI types are complete and consistent with the PFMI. Some minor gaps in the frameworks are also identified, though they are judged to have an immaterial impact on the rating. Notwithstanding the consistent ratings for this assessment, the report concludes that the Brazilian legal, regulatory and oversight framework for FMIs can be further strengthened. At a minimum, this could be done by providing public clarity on the hierarchy between the pre-existing (pre-PFMI) regulations and the new (post-PFMI) implementation measures.”

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3. a aPliCação dos PFMi à luz das inovações teCnolóGiCas

Como se viu até o momento, a edição dos PFMI se deu em resposta à crise financeira de 2008, que demonstrou ser necessária uma adequada estrutura financeira, de accountability e de governança por parte das infraestruturas de mercados financeiros, tendo em vista o papel crucial que desempenham na segurança, na estabilidade e na eficiência dos mercados.

No Brasil, o processo de implementação dos PFMI se deu ao longo dos últimos onze anos, com resultados satisfatórios, assim considerados pela sua própria metodologia de avaliação, porém requer avanços. Os avanços regulatórios para plena implementação dos PFMI devem ocorrer em alinhamento sistêmico com os avanços regulatórios – igualmente necessários – que permitam caminhar, regulação e inovação tecnológica financeira, pari passu.

Afinal, desde a publicação dos PFMI, as inovações tecnológicas no campo do armazenamento, processamento, registro, transmissão e compartilhamento de dados revolucionaram o mercado financeiro e, consequentemente, o cenário onde atuam as infraestruturas de mercados financeiros.29 Como exemplo, cite-se as chamadas plataformas DLT (Distributed Ledger Technologies).

Plataformas DLT são tecnologias que permitem a constituição de um livro digital, com mecanismos descentralizados de acesso, gestão, edição – inclusive adição e exclusão – e validação de registros, operados por criptografia.30 Por ser uma plataforma descentralizada de gestão criptografada, a tecnologia DLT dispensa a figura de um “agente central de validação de operações”31, permitindo o registro, a validação e o acesso a informações de maneira descentralizada, em tempo real.

A aplicação das plataformas DLT na pós-negociação de valores mobiliários vem sendo objeto de amplo debate por parte das autoridades regulatórias dos

29 Francisco Satiro e Taimi Haensel citam, ainda, os algoritmos de negociação de valores mobiliários (algotraders) e high-frequency trading (HFT), a tokenização de valores mobiliários e as fintechs, em especial as plataformas de crowdfunding e os robo-advisors SATIRO, Francisco; HAENSEL, Taimi. Inovação tecnológica e regulação do mercado de valores mobiliários. In. Direito dos valores mobiliários e dos mercados de capitais: Angola, Brasil e Portugal. A. Barreto Menezes Cordeiro e Francisco Satiro (coord.). São Paulo, SP: Ed. Almedina, 2020, p. 467-498.

30 Em função dos contornos pretendidos para este estudo, não serão discutidas questões técnicas e operacionais das plataformas DLT, sua classificação enquanto plataforma pública ou privada, a tecnologia blochchain enquanto espécie de plataforma DLT, ou outros aspectos a ela relacionados. Para tanto, sugere-se a leitura de ALVES, Alexandre Ferreira de Assunção; TEIXEIRA, Leonardo Renne Silva. O uso de tecnologia de registro distribuído (DLT) na negociação de ações em ambiente de bolsa de valores: análise à luz da legislação do Brasil. Revista Eletronica de Direito. Jun/2023, nº 2 (vol. 31). Disponível em https://cij.up.pt/pt/red/ultima-edicao/o-uso-de-tecnologia-de-registro-distribuido-dlt-na-negociacao-de-acoes-em-ambiente-de-bolsa-de-valores-analise-a-luz-da-legislacao-do-brasil/. Acesso em 02/10/2023.

31 SATIRO, Francisco; HAENSEL, Taimi. In op. cit., p. 477.

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principais mercados financeiros do mundo3233, não obstante a União Europeia já ter estabelecido as diretrizes de um regime jurídico-piloto para infraestruturas de mercados financeiros operadas em plataformas DLT.34

No âmbito dos organismos multilaterais do sistema financeiro, a discussão vem sendo tratada em termos do impacto que a prestação dos serviços de pós-negociação apoiada em tecnologia de registros distribuídos (DLT) terá em todo o mercado de valores mobiliários.

Paolo Saguato, Guido Ferrarini e Eric Pan assim expõem as questões postas à discussão dessas entidades:35

“Technology has always contributed to the shaping of financial markets. The most recent wave of innovation, which builds on artificial intelligence, cryptography, and decentralized systems, has the potential to revolutionize or substantially upgrade the way the financial world operates. FinTechs aims at disintermediation and structurally rebuild the financial system, and is setting serious challenges to the existing international financial regulatory architecture. FinTech is intrinsically a transnational phenomenon and it is multifaceted. In the market infrastructure context, the major challenges to the incumbent firms and market structure come from digital assets – including stablecoins crypto currencies, tokens, and CBDCs – and blockchain distributed ledger technology. Both technologies aim at creating efficiencies in the financial markets by reducing the need for intermediaries, by increasing operational security and certainty, by simplifying the existing market links, and freeing resources that are currently ‘trapped’ in the ‘antiquated’ FMIs. (….)

Currently international standard setters and domestic regulators are primarily focused on two issues related to FMIs and FinTechs. First, policymakers are assessing the impact that DLT and blockchain technology might have in the operations and the business of clearing, settlement, and reporting of financial instruments. FMIs were traditionally created to build trust and confidence in the market, to maintain a centralized ledger off processed transactions, and to foster efficiency and stability by deploying compression and risk management mechanisms. Blockchain would radically change the business of FMI in the post-trading and payment environment: it would decentralize the ledgers across the network participants, it would reduce de multilateral complexity in the system, and it would revert the trust and confidence mechanis-

32 Francisco Satiro e Taimi Haensel identificam a aplicação de tecnologia DLT no registro da propriedade e transferência de valores mobiliários; na negociação de valores mobiliários e na cadeia de pós-negociação de valores mobiliários. A respeito, vide SATIRO, Francisco; HAENSEL, Taimi. In op. cit., p. 478-481.

33 Em termos da aplicabilidade das plataformas DLT aos mercados organizados de valores mobiliários, em especial às infraestruturas de mercados financeiros, as discussões tratam, essencialmente, de: confiabilidade tecnológica das plataformas DLT; proteção dos dados dos investidores; rastreabilidade dos comandos para inclusão, da edição e exclusão de dados das plataformas DLT; mecanismos de supervisão de ofertas e operações e seus responsáveis; prevenção de práticas abusivas relacionadas a manipulação de mercados, lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, identificação dos responsáveis e individualização da responsabilidade por práticas abusivas; e mecanismos de enforcement. A respeito dessas discussões, confira-se CAYTAS, Joanna. Developing Blockchain in Real-Time Clearing and Settlement in the EU, US and Globally. (22 de junho de 2016). Columbia Journal of European Law: Preliminary Reference. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2807675. Acesso em 02/10/2023. PINNA, Andrea; Ruttenberg Wiebe. Distributed ledger technologies in securities post-trading. Revolution or evolution. (abril, 2016). European Central Bank. Occasional Paper Series, nº 172. Disponível em https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/scpops/ecbop172.en.pdf. Acesso em 03/10/2023. BRUMER, Chris. Disruptive Technology and Securities Regulation, 84 Fordham L. Rev. 977 (2015). Disponível em https://ir.lawnet.fordham.edu/flr/vol84/iss3/6, acesso em 03/10/2023. LEE, Joseph. Distributed Ledger Technolgies (Blockchain) in Capital Markets: Risk and Governance (18 de maio de 2018). Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3180553. Acesso em 03/10/2023.

34 Regulation (EU) 2022/858 of the European Parliament and of the Council of 30 of May 2022 on a pilot regime for market infrastructures based on distributed ledger technology. Disponível em https://eur-lex.europa.eu/eli/reg/2022/858/oj, acesso em 02/10/2023.

35 SAGUATO, Paolo; FERRARINI, Guido; PAN, Eric. In op. cit., p. 81-82.

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ms to the market participants – trust and confidence in the system would not be the result of the actions of an intermediary, but they would be the output of the operations of the different nodes within that support the system.”

Assim, a plena aplicação dos PFMI aos mercados financeiros e de capitais brasileiros deve partir dos princípios estabelecidos pelas suas instâncias formuladoras, equacionando-os em função da eventual necessidade de autorização normativa para implementação das inovações tecnológicas do momento, por intermédio de instrumentos normativos e de supervisão que permitam sua avaliação e atualização – ou eventual revisão – de maneira ágil e tempestiva.36

Francisco Satiro e Taimi Haensel concluem desta maneira seu estudo sobre inovação tecnológica e regulação do mercado de valores mobiliários:37

“A inovação tecnológica permeia a sociedade contemporânea, em transformação que se processa há algumas décadas. Refletir sobre a revolução em curso integra a tarefa de compreender a natureza das mutações inarredáveis que o mercado de valores mobiliários vem experimentando. Novos agentes, instituições, produtos, serviços, processos, interesses e necessidades que tem a informação e o conhecimento como base demandam que a ciência jurídica aprenda a lidar com a ‘atualização’ como resposta ao problema ‘virtual’.

Nessa linha, tais respostas da regulação tendem a se fazer menos perenes: requerem o mesmo constante aperfeiçoamento que também se exige da inovação tecnológica, assim como se beneficiam do constante surgimento de novas ideias em processos colaborativos entre os agentes interessados. Tendem, ainda, a internalizar as novas dimensões de espaço e de tempo próprias dos fenômenos da era da informação. O território e o local físico perdem importância, enquanto as medidas temporais se tornam variáveis relevantes.”

4. ConClusão

As infraestruturas dos mercados financeiros desempenham função crucial nos mercados de valores mobiliários. Elas são os elos da cadeia de liquidação de todas as operações cursadas nos mercados de valores mobiliários e, no exercício desse mister, garantem a satisfação de todas as obrigações contraídas pelas partes comitentes ao longo da negociação, operando a transferência de titularidade dos valores mobiliários transacionados e dos recursos necessários ao respectivo pagamento.

A crise financeira global de 2008 atraiu o olhar dos reguladores do sistema financeiro global e das suas instituições multilaterais para a regulação aplicável às infraestruturas dos mercados financeiros. O resultado foi o desenvolvimento de uma série de princípios universais que devem nortear a regulação local dessas

36 A mais recente iniciativa de adaptação do Sistema de Pagamentos Brasileiro aos PFMI pode ser encontrada no Projeto de Lei nº 2.926/2023, de autoria do Poder Executivo, em tramitação na Câmara dos Deputados, que dispõe sobre as instituições operadoras de infraestruturas do mercado financeiro no âmbito do Sistema de Pagamentos Brasileiro. O inteiro teor da proposta legislativa e sua Exposição de Motivos estão disponíveis em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2367423, acesso em 03/10/2023.

37 SATIRO, Francisco; HAENSEL, Taimi. In op. cit., p. 493.

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entidades responsáveis pela pós-negociação de valores mobiliários, sob a premissa de que, uma vez aplicados, esses princípios mitigariam os riscos de recorrência de uma crise financeira global de mesmas ou similares proporções daquelas observadas em 2008.

No tempo necessário para a plena implementação de referidos princípios, surgiram novas tecnologias, disruptivas, que remodelaram – ou que possuem o potencial de remodelar – o ambiente de negócios das infraestruturas dos mercados financeiros, reduzindo custos operacionais para liquidação de operações em mercados organizados de valores mobiliários, dispensando recursos mantidos em garantia por parte de participantes, contrapartes centrais e administradores de mercados organizados, e mesmo permitindo a eliminação de elos intermediários da cadeia de liquidação, com potenciais benefícios em termos de eficiência do sistema de liquidação, de redução de prazos e de custos operacionais.

No caso brasileiro, o processo de atualização do arcabouço normativo regente das infraestruturas dos mercados financeiros deve conciliar a plena implementação dos princípios editados pelo BIS e pela IOSCO e a abertura para o desenvolvimento, a implementação, a avaliação e a supervisão de novas tecnologias; sob pena de, não o fazendo, sedimentar em lei o mundo tal qual existia em 2012.

Em tempos de economia e finanças, operações e mercados globalizados, tão crucial quanto o total alinhamento entre a regulação e supervisão dos mercados organizados de valores mobiliários brasileiro às melhores práticas internacionais, é a pavimentação do caminho do desenvolvimento dos mercados de valores mobiliários brasileiro para o futuro, permitindo que a regulação pátria dos mercados financeiros caminhe, se não ao lado, no mesmo ritmo das inovações tecnológicas desenvolvidas aqui e em outras jurisdições.

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a (ir)relevânCia da distinção entre

Créditos a sereM PerForMados e os Já PerForMados nos Contratos de Cessão FiduCiária de reCeBíveis

leonardo Pelati1 liv MaChado2

O crédito garantido fiduciariamente não se submete à recuperação judicial, por força do Art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005, pois é de propriedade (resolúvel) do credor, e não da empresa Recuperanda.

Encontra-se sedimentado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a compreensão de que a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como os títulos de créditos, justamente por possuírem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, mormente o aludido 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005.3

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CÉDULA DE CRÉDITO GARANTIDA POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. NATUREZA JURÍDICA. PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA. NÃO SUJEIÇÃO AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. “TRAVA BANCÁRIA”. 1. A alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, possuem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitando aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005. 2. Recurso especial não provido. (STJ - 1202918 / SP, Relator: Ministra RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 07/03/2013, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/04/2013)

A constituição da propriedade fiduciária, oriunda da cessão fiduciária, dá-se a partir do momento da sua contratação. Este é o entendimento uníssono no E. STJ, senão vejamos:

AGRAVO INTERNO. DECISÃO DE PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE CESSÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE RECEBÍVEIS. AUSÊNCIA DE DIFERENÇA ENTRE CRÉDITOS A SEREM PERFORMADOS APÓS A DECISÃO DE PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E AQUELES JÁ PERFORMA-

1 Advogado, Pós-graduado em Processo Civil, Especialista em Reestruturação, Recuperação Judicial e Falências pela FGV, MBA em Gestão de Riscos pela FIA/USP.

2 Advogada, Mestre em Direito Comercial e Sócia do escritório Tauil Chequer.

3 STJ - REsp: 1559457 / MT, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 17/12/2015, T3TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/03/2016)

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